SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6 número10A exclusão do saberInvariantes institucionais que dificultam o processo de integração escolar índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.6 no.10 São Paulo  2001

 

ARTIGO

 

As pessoas com necessidades especiais, a comunidade e suas instituições

 

People with special necessity, the comunity and their institution

 

 

Stella Caniza de Páez

Professora de deficientes da voz, do ouvido, e da palavra, mestre em Problemas de Desenvolvimento pela Universidade de Salamanca, Espanha, reitora da Escola de Especialização em Estimulação Precoce de Buenos Aires, ex-diretora de Educação Especial da República Argentina, atual assessora da Direção de Educação Especial da Cidade de Buenos Aires

 

 


RESUMO

Atender às crianças e jovens reconhecendo-os e respeitando-os em suas diferenças é um desafio. É um processo complicado no qual estão comprometidas a ciência, a ética, a subjetividade de todos os envolvidos. Por isso as conquistas são lentas. Não vertiginosas.
No presente artigo, afirma-se ser necessário reconhecer que se avançou bastante. Que muitos projetos estão em andamento. É preciso articulá-los, para constituir uma rede rica em ações que dêem sustentação a processos que favoreçam às pessoas portadoras de deficiências chegar a ter melhor qualidade de vida.

Inclusão; educação especial


ABSTRACT

Receive children and youth recognizing and respecting them in their differences is a challenge. It's a difficult process, where science, ethics and everybody subjectiveness are implicated. That's why victory are slow, not very quick.
In this article it is shown how much it has advanced.Many projects are working. It's necessary to articulate them to build a rich net in action which gives sustentation to process that help people with deficiency in order to have better quality of life.

Inclusion; special education


 

 

REDEMOINHO DE IDÉIAS

Diferença? Indiferença? Integração? Inclusão? Igualdade? Desigualdade? Eqüidade? Justiça? Injustiça? Assimilação? Fagocitação? - todos estes significantes estão à disposição em nossa língua e poderíamos usá-los em relação às pessoas com necessidades especiais, para além da origem, causa ou etiologia dessas necessidades.

Entre as pessoas com necessidades especiais, podemos destacar o grupo cujas necessidades especiais resultam de um problema orgânico ou psíquico, podendo enquadrar-se entre os que afetam a minoria formada pelas pessoas portadoras de deficiências.

Essas pessoas sofreram historicamente o duplo jogo perverso de serem discriminadas, sendo separadas do resto dos membros da comunidade, dos "convencionais", para, em seguida, serem massificadas sob o nome da patologia que as afeta ou caracterizadas pela disfunção que portam. Assim, "os Downs", "os surdos", "os cegos", "os Williams", "os paralíticos cerebrais", etc. foram por muito tempo vistos como minorias formadas por indivíduos indiscriminados entre si, sem lugar para que a singularidade de cada Sujeito pudesse ser considerada e atendida.

Assim, cabe perguntar-nos se as pessoas portadoras de deficiências ou com necessidades especiais são diferentes - assim como as pessoas convencionais entre si - porque são respeitadas em sua singularidade, necessidades e escolhas; e que portanto têm naturalmente o direito de incluir-se em qualquer atividade ou organização de sua comunidade, ou se a priori outros podem determinar, de fora e a partir de preconceitos, qual é o melhor lugar para "elas". Ou seja, indiferenciando-as entre si.

Se "elas" são crianças, jovens ou adultos em situação de aprendizagem sistemática, surge a questão muito atual da integração escolar e os critérios de transformação e atualização das instituições. Tanto as escolas comuns como as escolas especiais, de todos os níveis, estão diante do desafio de adaptar seus serviços, transformando-os e preparando-se para atender à diversidade.

O que isso quer dizer? Compartilharemos a seguir alguns temas de reflexão:

É necessário reconhecer que as instituições do sistema educacional, de diferentes níveis e modalidades, funcionaram tradicionalmente como compartimentos estanques, como vias paralelas. As paralelas, como sabemos, não se juntam. Somente uma ilusão de ótica nos faz pensar que se unem no horizonte, mas ao chegar comprovamos que continuam sem ter pontos de contato. Isto não ocorre somente entre as instituições de educação. Também funcionam assim as instituições de saúde, questão crucial quando se trata de alunos com necessidades educacionais especiais causadas por alguma deficiência.

O desafio é transformar um caminho de vias paralelas em um sistema de vasos comunicantes. Sistema no qual se facilite que a incidência recíproca entre todos seus componentes permita contribuir para que se atinja uma melhor qualidade educacional para todos. Sistema educacional que seja realmente um sistema, no qual a interdisciplina seja o modo de se trabalhar, mesmo que para tanto sejam necessárias ações inter-institucionais e/ou inter-setoriais.

O processo transformador está em andamento. Na maior parte dos países há tentativas de, de diferentes maneiras, repensar as práticas em relação à educação de pessoas com necessidades especiais. Ou seja, como modificar a situação das minorias, reconhecendo como um compromisso ético a busca de estratégias que permitam atender à diversidade nas escolas.

Esse compromisso implica oferecer igualdade de oportunidades nos moldes da eqüidade. Ou seja, dar a cada um o que necessita, para que possa chegar a ser um adulto com uma vida plena. Mais um em sua comunidade, apesar de suas particulares dificuldades.

Parece paradoxal propor que se incluam nas escolas, em todas as escolas, alunos com necessidades especiais, ou seja, educar na diversidade, e estas são instituições nas quais são transmitidos os valores da cultura, a especificidade dos povos. Paradoxo porque estamos vivendo em um momento no qual a sociedade é cada vez mais elitista, competitiva, na qual os objetivos de eficácia e eficiência adquirem tal magnitude, que apagam, ou pelo menos velam, outros valores humanos. Sociedades nas quais a desigualdade social foi se generalizando de um modo impensável em outras épocas.

Estamos diante do desafio de romper com velhos esquemas. Desterrar preconceitos.

Todas as minorias transcorreram tradicionalmente sua vida por um caminho repleto de preconceitos. Estes são, em muitos casos, produto da ignorância ou de uma informação desatualizada. Também são conseqüência de atribuir às estatísticas valor de verdade universal, quando sabemos que podem ser verdades em geral e mentiras em particular; ou seja, conseqüência de pensar que, se uma determinada porcentagem de pessoas portadoras da mesma deficiência tem certa característica, isso as converte em indivíduos iguais. Quase como se fossem clones.

O reconhecimento em sua singularidade de cada um dos sujeitos que formam parte de um certo grupo humano é ainda uma matéria que muitos têm pendente.

Atender à diversidade na escola é justamente procurar romper com esses destinos previamente determinados, procurar dar igualdade de oportunidades, ou seja, oferecer a cada um o que necessita para construir seu melhor projeto de vida. É, justamente, não se resignar a aceitar modelos assentados em uma concorrência feroz e comprometer-se a dar cotidianamente a todos os alunos uma experiência de vida solidária.

Essa não é somente uma responsabilidade da escola, já que esta não pode abstrair-se totalmente de receber, como um eco, o discurso social que a rodeia. É uma responsabilidade compartilhada. Todas as ações comunitárias, para além da variedade dos temas, deveriam partir do princípio de reconhecer que são "de caráter ético, ou seja, correspondem ao que é certo fazer, ao que não se deveria fazer e ao que não se pode fazer a nenhum preço" (Eco, 1997, p. 7).

É necessário buscar estratégias que nos permitam responder ao compromisso ético de atender à diversidade na escola, reconhecendo que não existe uma divisão clara entre os alunos "deficientes" e os "normais", mas sim uma série de necessidades individuais que são incluídas em um conjunto único.

Atualmente nos debatemos em um vaivém entre o desejável e o possível, a potência e a impotência, a teoria e a prática. Lendo Freud, podemos afirmar que não se pode pretender acomodar as pessoas, mesmo estando no lugar de pacientes ou alunos, à teoria, pois cada um se ocupa de rompê-la quotidianamente.

Posicionar-nos em um ponto de articulação entre teoria e prática é o que nos situa na praxis. Ponto de interação que nos permite ter na mira, no eixo da prática, a constituição do sujeito, sua singularidade.

Tomar essa posição não é missão de uma única pessoa. É produto do trabalho de uma equipe interdisciplinar. Só assim podemos atuar, distanciando-nos de alguma maneira do risco de fracasso, nesta tentativa de educar na diversidade.

Isto nos leva a continuar pensando na questão da interdisciplina, entendida como uma interpelação recíproca entre os diferentes discursos disciplinares. Cada um destes discursos tem o propósito de sustentar a verdade desde sua perspectiva. Assim, "a verdade" pode ser sustentada a partir da religião, da política, da economia, da medicina, da pedagogia, da psicologia e outras. Mas não se trata de somar verdades nem de fazer uma justaposição destas. Isto seria multidisciplina.

A multidisciplina pode partir da suposição de que as diferentes intervenções, cada uma a partir de sua verdade, são metabolizadas naquele a quem se dirige, gerando um efeito de mescla integrada. A interdisciplina tende, em troca, a transferir este suposto efeito a cada membro da equipe que intervém. E necessário aceitar a necessidade de contar com outras verdades, com outros discursos, com outras intervenções, a partir do reconhecimento da própria incompletude, para poder trabalhar em equipe.

Equipe, palavra mágica, no dizer da dra. Lydia Coriat, que não requer para constituir-se que cada instituição conte em seu seio com a totalidade dos recursos humanos. É preciso concordar... Concordar no modo de interagir, articulando ações intra ou inter-institucionais e inter-setoriais.

Os profissionais, docentes e não docentes, existem na comunidade. Trabalhar em equipe oferece a possibilidade de coordenar melhor as ações, evitar superposições e otimizar a utilização dos recursos disponíveis. Favorece a gestão, eliminando passos burocráticos desnecessários e, fundamentalmente, permite às pessoas com necessidades especiais e suas famílias uma vida mais normalizada, mais simplificada nas demandas cotidianas.

O trabalho interdisciplinar exige formação e compromisso. A graduação e a capacitação em serviço devem contribuir para que se atinja este propósito. O compromisso é individual e institucional.

O projeto institucional, formulado como resultado do dizer e do fazer de todos e cada um dos membros da comunidade educacional, deve prever a inclusão de espaços e tempo para que a reflexão compartilhada seja possível, tanto entre seus próprios membros como com outros que contribuam de fora. Isto redundará em uma oferta de maior qualidade para todos.

Atender à diversidade na escola implica que nos dediquemos à integração e à inclusão. Isto exige que continuemos mudando de paradigmas, modelos que por muito tempo tomamos como válidos.

Até algum tempo atrás, supunha-se que o ideal para aprender, ou, mais ainda, para ensinar, era um grupo escolar homogêneo. Hoje sabemos que a heterogeneidade existe em todo grupo humano, mesmo que que não a tenhamos podido ou querido ver, e é um valor em si mesma. Sabemos que esta não é reconhecida porque alguém ou algo trata de esmagar as diferenças. Sabemos também que aprender com outro, confrontar hipóteses, compartilhar ações ou experiências, ter em um momento lugar de centro no funcionamento grupal e em outro momento distanciar-se do centro para atender à proposta de outro que ocupa esse lugar, é uma riqueza em si mesma.

Essa dinâmica, que permite o interjogo de potencialidades e dificuldades que todos possuímos, reconhecendo e respeitando as diferenças, é o que sustenta a idéia de escolas inclusivas, organizadas a priori para receber o universo de alunos que solicitem inscrição, tendo organiza dos os recursos que lhe permitirão educar a maioria.

Acreditamos, no entanto, que a incorporação de alunos com necessidades educacionais especiais em escolas comuns, tem limites. De fato, as limitações são cada vez menores, já que, modificando as estratégias de intervenção, podem-se ampliar os destinatários que se beneficiam desta transformação.

Entretanto, quando a capacidade para a interação social está severamente limitada, é necessário manter centros ou escolas especiais, para poder oferecer a essas crianças âmbitos que respondam a suas tão particulares necessidades.

Uma escola inclusiva pode receber a solicitação de inscrição de todos os aspirantes, mas, se em seguida chega-se à conclusão de que, para uma determinada criança, nesse momento de sua vida, a oferta dessa instituição não a favorece, será procurada outra instituição mais adequada para suas particulares necessidades, nas quais a criança poderá ser matriculada.

Fazemos então uma distinção entre inscrever os alunos em todas as escolas e matriculá-los naquela em que poderão receber a melhor oferta nesse momento, procurando por todos os meios que essa mudança de instituição seja proposta unicamente em situações extremas, quando não o fazer poderia pôr em risco este aluno ou o seu grupo. Esta afirmação parte da convicção de que os alunos vão à escola para aprender, para apropriar-se dos valores da cultura e devem fazê-lo em grupo.

Idealmente poderíamos dizer que as crianças com necessidades educativas especiais (NEE) deveriam ser educadas nas mesmas escolas que freqüentariam se seu desenvolvimento não estivesse afetado.

Para poder atender à grande maioria dos alunos con NEE nas escolas comuns ou no âmbito menos restritivo possível, é necessário utilizar todos os recursos disponíveis. Quais são estes recursos? Apresentaremos alguns:

- Uma mudança fundamental se relaciona com a tendência internacional de eliminar currículos especiais preparados para alunos portadores de determinadas deficiências. As diretrizes curriculares de um país ou de uma jurisdição devem ser as mesmas para todos os destinatários de cada ciclo, grau ou nível da educação. A partir destas ocorrerão as adaptações locais, institucionais, de sala de aula e para cada aluno com necessidades educativas especiais.

- A formulação de currículos especiais em função dos grandes quadros patológicos trouxe como conseqüência a eliminação a priori de conteúdos supostos como inacessíveis para determinados grupos, o que impediu que muitos integrantes dessas minorias pudessem apropriar-se de certos conhecimentos, já que ninguém se propôs a ensiná-los.

- As adaptações curriculares, ou a aceitação de currículos diversificados, devem ser realizadas levando em conta que as adaptações podem ser gerais ou visando o acesso a conteúdos, o que possibilita que todos possam aprender melhor.

- Outras adaptações são especiais ou específicas, e dentro destas é preciso distinguir as que tornam mais acessíveis os conteúdos procedimentais, atitudinais e somente em última instância os conceituais.

- Propiciamos afastar a idéia simplista de que se trata de ensinar menos sobre um mesmo tema. Muitas vezes é melhor fazer a oferta de um modo diferente, utilizar outras estratégias didáticas ou conhecer novas, esforçar-se para compreender uma linguagem que pode parecer estranha, usar diferentes instrumentos ou recursos, isto é, repensar a prática.

- Como questão muito geral poderíamos dizer que, aos docentes da educação comum, falta aprender e acostumar-se a ser membros de uma equipe (tarefa nada fácil) e, aos docentes especializados, falta afastar-se da tradicional patologização dos alunos, para aprender muito mais da didática das ciências básicas.

Seamus Hegalty, especialista inglês, proferiu uma conferência nas Jornadas de Educación Especial, realizadas em Buenos Aires em maio de 1998. Transcrevo sua contribuição relacionada às diferentes responsabilidades referentes à preparação e concretização da utilização do currículo:

 

NÍVEIS DE CONCRETIZAÇÃO DO CURRÍCULO

Ministério da Educação

Currículo oficial.

Para todos os alunos do país (e/ou jurisdição)

Equipe docente

Projeto educativo curricular

Para todos os alunos de um centro

Professor de classe

Programação grupo-aula

Para todos os alunos do grau ou grupo

Professores comuns, especializados e equipes interdisciplinares

Adaptações curriculares individualizadas

Para cada aluno com NEE

Para atingir esses níveis é preciso contar com diretrizes curriculares amplas, flexíveis e abertas. Com transformações como estas, conseguiremos que a maior parte dos alunos aprenda nos âmbitos mais normalizados possíveis. Aprender implica adentrar o mundo simbólico que permite apropriar-se dos valores da cultura.

Alguns o farão brilhantemente em todas as disciplinas, obtendo uma aprendizagem realmente funcional em cada uma delas. Outros conseguirão apenas entrar em contato com a existência de determinado objeto de conhecimento e usá-lo superficialmente em sua vida diária, ou às vezes nunca. A maioria terá uma aprendizagem significativa em algumas questões e pouco significativa em outras, de acordo com seus desejos e necessidades.

Isto é sempre assim. Historicamente, tem sido pouco questionado. Mas, diante de uma tendência claramente dirigida a educar a diversidade em escolas inclusivas, começam a aparecer opiniões céticas, sustentadas na idéia de que não todos aprendem da mesma maneira nem atingem o mesmo nível de conhecimentos. Justamente, o que sempre se pôde comprovar nos grupos convencionais, sem que ninguém o questionasse, é objetado hoje diante das necessidades educativas especiais conhecidas, reconhecidas e respeitadas.

Aceitar a diversidade, respeitar cada um em sua singularidade e avaliar as conquistas individuais, tomando como referência o próprio processo de aprendizagem, não nos distancia de nenhuma maneira das conquistas importantes.

Sustentamos a necessidade de respeitar os limites decorrentes do fato de que todos os alunos devam poder aprender em seu grupo, apropriar-se dos mesmos objetos de conhecimento, ainda que alguns o façam a partir de estratégias facilitadoras e com diferentes níveis de profundidade.

Isto não implica que construir um currículo personalizado para um aluno com NEE seja preparar uma oferta tão diferente da do grupo, que isso o converta em um estranho inserido em um grupo e sem possibilidades de estar realmente integrado.

Educar na diversidade não implica diminuir a qualidade educativa. Muito pelo contrário. É necessário arejar o fantasma de que isto significa nivelar por baixo, fazer com que o grupo aprenda menos. Pelo contrário, é muito freqüente que, na busca de estratégias alternativas, os professores de ensino regular utilizem para o grupo instrumentos recriados a partir da reflexão compartilhada com a equipe interdisciplinar, que enriquece e facilita o trabalho, levando a que todos aprendam melhor.

A avaliação da qualidade da educação é uma preocupação para toda a comunidade. Pais, docentes e funcionários ocupam-se dessa questão. Vale então se perguntar se a melhor escola é a que obtém maiores pontuações em provas de matemática e línguas, depois de ter encaminhado para outros estabelecimentos os alunos com NEE ou com maiores dificuldades, ou se a melhor escola é aquela que atende à diversidade, procurando que realmente todos tenham igualdade de oportunidades.

Podemos modificar a pergunta tradicional sobre uma criança ser boa o suficiente para ser aluna de determinada escola e interrogar-nos se a instituição é suficientemente boa para encarregar-se de educar essa criança, conhecendo e respeitando as diferenças.

Deveríamos então propor às autoridades que, quando preparem os documentos de avaliação das instituições, incluam um item no qual se considere positivamente a tendência a funcionar como uma escola inclusiva.

Podemos retomar um ponto que nos parece crucial. Acreditamos que é possível que, apesar de currículos diversificados, de adaptações comprovadas, do trabalho em equipe, algum aluno não esteja podendo interagir e/ou aprender neste grupo ou nesta instituição. Isto pode ocorrer devido a suas próprias necessidades em um determinado momento de sua vida. Ou pode ser que esse não seja para ele o ambiente adequado.

No entanto, é necessário pensar que freqüentemente um aluno integrado é uma criança, um jovem ou um adulto que deve adaptar-se ou "amoldar-se" a um estabelecimento que não havia pensado muito nele como aluno potencial. São pessoas que têm de demonstrar, em quase todos os momentos de sua vida escolar - muito mais que seus companheiros convencionais -, que suas habilidades e atitudes lhe dão direito a estar "neste" lugar. É como se o prisma a partir do qual estas pessoas fossem olhadas fosse uma lupa muito potente para avaliar suas dificuldades.

A relação dialética entre aprendizes e educadores não pode ser eliminada. Nem tudo depende do aluno.

Nesses casos a proposta é escolher um estabelecimento da mesma modalidade ou de outra cujo projeto educacional seja mais continente nessas circunstâncias. A proposta para tomar este tipo de decisão deve ser produto das conclusões da equipe que intervém, da qual os professores são membros naturais e inatos, e estar sustentada a partir do trabalho realizado com os pais.

Ao mencionar os pais, surge outra questão crucial. Afirmamos que, para formar parte de um grupo escolar e apropriar-se dos valores culturais que permitirão a cada pessoa ser mais um em sua comunidade, sendo respeitada em sua singularidade, é necessário dispor de capacidade para a interação social e partir de conhecimentos prévios ao ingresso escolar.

Isso quer dizer que um sujeito psíquico está em processo de constituição, ou já se constituiu. Sujeito desejante e pensante interessado e capaz de interagir com o ambiente. Isto não depende, certamente, do que ofereça a instituição escolar.

Há um antes e um depois da escola, para que a integração na comunidade seja possível e real na vida adulta.

Antes, a filiação do pequeno portador de deficiências como filho.

Acompanhar os pais nesse processo é função das equipes especializadas em estimulação precoce. Estas intervirão nos primeiros anos de vida. O bebê e a criança serão seu objeto de trabalho, mas só chegarão a ele por meio do agente materno.

Os especialistas intervirão nos primeiros momentos, favorecendo que, ao exercer seu papel, a mãe (ou quem se ocupa da função) mostre ao bebê o mundo que o rodeia, mesmo quando ele ainda não sabe que este mundo existe para além de sua mãe, de quem tampouco sabe que é diferente.

Logo chega o momento em que o bebê já sabe que é outro. Os terapeutas acompanharão então a criança pequena, para que, em sucessivas identificações, reconheça a si mesma como membro de uma comunidade cada vez mais ampla. Para que possa passar do individual ao social e começar a interagir na primeira instituição cultural que a sociedade prepara para seus filhos: o jardim da infância.

Não se pode encarar uma transformação das escolas em direção à inclusão se a comunidade não garante que todo pequeno com problemas de desenvolvimento ou em grave risco de padecê-los possa receber um tratamento precoce adequado, que tenha como eixo da prática a constituição de um sujeito desejante e pensante.

Só assim chegará à idade escolar em condições de poder realmente integrar-se.

Também há um depois da escola primária e da secundária.

As pessoas portadoras de deficiências, hoje adultas, têm sérias dificuldades para exercer direitos inalienáveis, que ninguém questiona às pessoas convencionais, quando se propõem a exercê-los. Prepará-los para que estejam em condições de exercer estes direitos é um processo que começa no berço e deve continuar durante todas as etapas do desenvolvimento.

Implica que a sociedade modifique seu olhar em relação à minoria formada pelas pessoas portadoras de deficiências, reconhecendo para estas, como para todos, um leque de possibilidades na construção de seu destino.

A patologia de base não pode interditar absolutamente a esperança de uma vida plena para o sujeito, ainda que este necessite mais assistência que outros para conquistá-la.

Assistência não é dependência nem subordinação. Trabalhar, apaixonar-se, viajar, decidir como e com quem viver e quando fazer mudanças na vida sempre é possível. Talvez para alguns não seja provável. Mas o importante é não os deixar, a priori, fora do desejável. Ou será que diante de qualquer bebê pode-se assegurar o que será dele quando for adulto, ou até mesmo se chegará a sê-lo?

No entanto, dificilmente alguém tem preparadas respostas restritivas ao formular a um pequeno a pergunta mágica: o que você quer? Isto, entretanto, pode ocorrer com freqüência com crianças portadoras de alguma deficiência.

Atender às crianças e jovens reconhecendo-os e respeitando-os em suas diferenças é um desafio. É um processo complicado no qual estão comprometidas a ciência, a ética, a subjetividade de todos os envolvidos. Por isso as conquistas são lentas. Não vertiginosas.

É necessário reconhecer que se avançou bastante. Que muitos projetos estão em andamento. E preciso articulá-los, para constituir uma rede rica em ações que dêem sustentação a processos que favoreçam às pessoas portadoras de deficiências chegar a ter melhor qualidade de vida.

Uma rede é formada por fios que, entretecidos numa trama, lhe dão o caráter singular que a caracteriza. Que essa rede seja forte, tenha a plasticidade necessária para acomodar-se aos movimentos sociais, que esteja tecida com fios significantes enovelados de nossa cultura depende em parte da qualidade dos materiais, mas, fundamentalmente, da habilidade dos artesãos.

Contamos com muitos artesãos que estão tecendo redes ricas em ações.

Aos que ainda não se animaram, aos que olham esse processo de integração escolar com desconfiança, aos que não têm interesse de envolver-se oferecendo a sua opinião, a estes, devemos continuar esperando. Talvez dentro de um tempo nos ajudem a sustentar a rede com força, ainda que não tenham podido comprometer-se com a preparação da trama.

 

 

Recebido em agosto/2000