SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6 issue11The psychoanalyst role at schoolMorality, ethics and school inclusion author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.6 no.11 São Paulo  2001

 

DOSSIÊ

 

Espaço escolar como herdeiro das funções parentais

 

School as an inheritor of parents functions

 

 

Valéria Aguiar Carneiro Martins

Psicanalista, sócia do Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem (CPPL) e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)

 

 


RESUMO

O trabalho clínico com crianças leva o psicanalista a deparar com as questões referentes ao campo da educação. Neste texto a autora interroga acerca da concepção que tem sido compartilhada na atualidade, sobre a função educativa da escola e ainda a respeito de como a educação das crianças tem se realizado no espaço escolar. Faz uma retomada histórica constatando que o lugar de criança e, em seguida, o surgimento da família moderna e da escola coincidem. A escola é desde sempre um lugar de inscrição social. Nesta perspectiva, a escola tem uma função co-extensiva à dos pais, na tarefa de educação das crianças. A partir de uma breve análise, situa os diferentes lugares que pais e educadores ocupam na função de educar as crianças, considerando o desejo. Reflete criticamente sobre a forma pela qual as escolas têm tomado a sua função educativa, resultando em conseqüências que surgem para nós na clinica cotidiana.

Escola; pais; educadores; funções parentais


ABSTRACT

The clinical work with children group leads the psychoanalyst coining across with the referring subjects to the field of the Education. In that text the author interrogates concerning the conception that has been shared at the present tune, about the educational function of the school and still how the children's education has been accomplished in the school space. She makes a historical retaking verifying that child's place and, soon after, the appearance of the modern family and of school, they coincide. The school is, however, a place of social registration. In this perspective, school has a co-extensive function to the one of the parents, in the task of children's education. Starting from a brief analysis, it sites the different places that parents and educators take part educating children, considering desire. She ponders critically about the way schools have been taken its educational function, with consequences we face at daily clinic.

School; parents; educators; parents functions


 

 

O trabalho clínico com crianças convoca-nos insistentemente e de diferentes formas a enfrentarmos as questões relativas à educação. A posição em que se encontra o sujeito criança, de estar em constituição, de vir a ser, nos leva a escutarmos os vários discursos que se produzem em torno dela, bem como a nos ocuparmos, por vezes, com as vicissitudes, e até mesmo com os obstáculos que surgem na sua inserção no mundo. Sabemos o quanto determinadas injunções podem deixar conseqüências indeléveis por toda a infância. Não são poucas as vezes que recebemos os educadores em nossos consultórios, ou que visitamos as escolas de nossos pequenos pacientes.

Essa implicação, portanto, cria condições para refletir e levantar questões acerca de como a educação das crianças tem-se realizado no espaço escolar. Perguntamos ainda: qual é atualmente a concepção que tem sido compartilhada acerca da função educativa da escola?

Para iniciar uma reflexão, faremos uma breve retomada, através da contribuição de Philippe Ariès, em seu livro História social da criança e da família, que nos fala sobre a origem, o surgimento da noção de infância, família e escola, tal como hoje as concebemos.

Mostra-nos que a noção, o sentimento acerca de uma especificidade da infância tem pouco mais de trezentos anos e que as transformações nas mentalidades que se operaram desde o século XVII resultaram numa nova configuração da família, com novas formas de socialização e transmissão de conhecimento.

Nas sociedades medievais tradicionais a criança não era reconhecida como tal: passado o período de dependência direta dos cuidados da mãe ou geralmente da ama de leite, período do desmame, em torno dos 7 anos, ingressava diretamente no mundo dos adultos, participando da vida com os amigos jovens ou velhos, dos trabalhos e dos jogos de todos os dias. Como nos diz Ariès: "O movimento da vida coletiva arrastava numa mesma torrente as idades e as condições sociais, sem deixar a ninguém o tempo da solidão e da intimidade. Nessas existências densas e coletivas, não havia lugar para um setor privado. A família cumpria uma função: assegurava a transmissão da vida, dos bens e do nome" (Ariès, 1981, p. 275).

A educação e as aprendizagens davam-se pela participação na vida cotidiana, junto com os adultos, geralmente no seio de outra família, na qual, mesmo na condição de aprendiz, não havia uma distinção, uma preocupação específica.

O primeiro sentimento da infância foi caracterizado pela "paparicação", voltado para as crianças pequenas, e surgiu no meio familiar; o segundo proveio de uma fonte exterior à família - os eclesiásticos, os homens da lei e os moralistas -, caracterizado, por sua vez, pelas preocupações com a inocência e fraqueza da infância. Recortava-se assim um lugar de existência social para a criança, em torno do qual se produziam os vários discursos com relação à sua saúde física e moral, no sentido de preservar-lhe a inocência, afastando-a do mundo dos adultos e fortalecendo-a para a vida.

Ainda segundo Ariès, as transformações que resultaram dessa revolução profunda e lenta configuraram também uma nova família, a família moderna atual, sustentada por laços sentimentais entre pais e filhos, na qual os pais são responsabilizados pelos cuidados e destinos das crianças. A família concentrou-se em torno da criança, recolhendo-se na intimidade.

Simultaneamente a educação passou a ser ministrada pela escola, substituindo as formas de aprendizagem e socialização anteriores. De maneira crescente, a escola passou a se organizar em classes, considerando as idades, a se estender, abrangendo um contingente cada vez maior de crianças, "tornando-se um instrumento normal da iniciação social, da passagem do estado da infância ao do adulto" (Ariès, 1981, p. 231). Concluindo esse autor: "Nossa civilização moderna, de base escolar, foi então definitivamente estabelecida. O tempo a consolidaria, prolongando e estendendo a escolaridade" (p. 233)

Vale salientar a profusão de discursos e a existência de uma literatura sob a forma de tratados práticos de educação com orientações e aconselhamentos, voltados para pais e educadores.

Numa breve conclusão: o nascimento do lugar de criança engendra uma re-organização na família, atribuindo aos pais um outro lugar, lugar de implicação, no tocante aos destinos individuais dos filhos, cuja responsabilização é compartilhada com a educação escolar. A família moderna e a escola nascem ao mesmo tempo.

Essas considerações permitem estabelecer um primeiro ponto de articulação para o desdobramento da questão inicial: a escola é desde sempre um lugar de inscrição social, cuja responsabilização se dá para além do ensinamento das coisas, para além do ato pedagógico. Nesta perspectiva tem uma função co-extensiva à dos pais, na tarefa de educação das crianças.

Cabe aqui definir a noção de educação que adotamos ao longo deste texto: concebemos a educação, na acepção que Freud veio nos indicar, como um processo de humanização, como trabalho civilizatório.

No que diz respeito à educação das crianças, portanto, educar refere-se à função realizada pelos adultos tutelares (pais, educadores e seus substitutos), cujo trabalho é permitir que a criança ingresse na cultura, tomando um lugar em relação à Lei, aos códigos e aos discursos que nos organizam no social.

Compartilho a formulação do psicanalista A. Jerusalinsky quando nos diz que "educar é a função de transmitir a demanda social além do desejo" (1994, p. 6), acrescento, uma vez que estamos todos assujeitados, apesar dos nossos desejos, a uma ordem que nos permite fazer laço social.

Da maneira mais geral, sabemos que a tarefa de educar apresenta-se de diferentes formas, dependendo da posição do adulto implicado na relação com a criança, tanto é que não confundimos os lugares dos pais com os dos educadores.

Em psicanálise, vários seriam os recortes para dizer do lugar dos pais, que tomam a criança enquanto filho, a partir do seu desejo, na ilusão de poder vir a realizar aqueles ideais diante dos quais fracassaram. Imprimem assim as marcas por meio de seus cuidados, de seu olhar e de seu discurso, as quais permitem as primeiras inscrições, engendrando-se para a criança o início da constituição da vida psíquica. Escolhem um nome, designam-lhe o sexo, incluem-na numa linhagem, num sistema de parentesco, apresentando-lhe o mundo. Toda a educação a ser agenciada pelos pais vai se dar entre o seu desejo, os ideais que pautam o desejo e a versão que eles produzem acerca dos imperativos, demandas e ideais sociais vigentes.

Como referimos anteriormente, propomos que a função do educador é co-extensiva à dos pais. Perguntamos então: em que medida?

Na justa medida em que se articula o desejo de educar com o desejo de ensinar.

O que é da ordem do seu desejo, enquanto sujeito, articulou-se desde antes, na sua própria escolha laborativa, pelo viés desse ofício de educar, permeando a sua prática, delineando o seu estilo.

O desejo de educar entra em jogo mediante a responsabilização e disponibilidade subjetiva, oferecendo-se enquanto modelo identificatório, na transmissão de saberes e visões de mundo, na perspectiva de que ali, na criança, há "alguém em formação", um sujeito em constituição.

O que está posto, porém, nessa função particular é também o desejo de ensinar, transmitir conhecimentos. Nesse sentido, o ato pedagógico é ato legítimo do professor, do educador, o que vem a situá-lo num lugar outro, diferente do lugar dos pais.

Ocorre, no entanto, que cada vez mais temos testemunhado, na atualidade, uma espécie de subversão nesses referenciais, que pautam os diferentes lugares para pais e educadores. Talvez possamos dizer que se trata de uma crise, no sentido de uma alteração ou de uma ruptura nesses referenciais.

Por um lado, escutamos e acompanhamos experiências no âmbito do trabalho da escola junto a algumas crianças e pais com dificuldades, experiências que inauguram um novo lugar para a criança, abrindo-lhes possibilidades, permitindo também aos pais remanejamentos.

Entre essas experiências, é verdade, existem aquelas, nas quais os pais, pelas suas dificuldades, não conseguem atribuir outras significações ao que advém da criança, resultando num não-reconhecimento do que foi viabilizado na relação com o professor.

Por outro lado, encontramos escolas cada vez mais segregado-ras, apesar do discurso politicamente correto da inclusão. A última versão dessa história de que tomei conhecimento recentemente foi a de uma escola inclusiva que tem todos os seus alunos "normais" num turno e os "especiais", em outro. Cada "categoria" de crianças incluídas em seu turno.

Escolas cujo trabalho educativo está reduzido ao trabalho pedagógico, concebido, por sua vez, como o ensino do saber científico, o qual deverá ser "absorvido" de forma standard, pelas crianças. "Todas aprendendo tudo, da mesma maneira, sob pena de serem excluídas." Observação feita pelo psicanalista Gabriel Balbo, numa visita ao Brasil, a propósito da tendência do sistema de ensino nas sociedades capitalistas.

Educar aqui fica reduzido a informar, instrumentalizar as crianças, na perspectiva de um saber utilitário, com a promessa de poderem gozar pela posse e usufruto dos objetos, segundo a lógica que rege o mundo ocidental, na atualidade, como analisam alguns colegas psicanalistas.

Observamos ainda como escolas têm se transformado em empresas de grande porte, com um trabalho "massificado", em cujo seio as relações educador-aluno (criança) e pais são mais anônimas, mais "desimplicadas". Concomitantemente, as pequenas escolas, por vezes com um trabalho diferenciado, têm fechado. Certamente que fatores de natureza econômico-financeira não estão sendo tomados aqui.

Chama-nos sim a atenção o fato de que, em nossa contemporaneidade, a educação escolar tem sido atravessada pela lógica de mercado, por uma prática discriminatória, classificatória, com a qual a maioria dos educadores tem estado em sintonia.

"Não se trata de protestar contra a sociedade de massas, a globalização, porque disso não se recua mais, e qualquer proposta para a sua derrubada adviria de uma nostalgia por tempos que não voltam mais", como nos diz M. C. Kupfer. Acrescenta ainda: "Mas é pensar talvez que as escolas deveriam ser cada vez menores, descentralizadas, regionalizadas, ligadas às comunidades de bairro, nas quais um professor poderia ensinar a cada um de seus alunos, ... para ensinar, porém, será preciso falar o sujeito suposto no aluno" (2000, p. 121).

Para finalizar, salientamos que o trabalho clínico com crianças nos leva a deparar com as conseqüências, os efeitos que essa montagem e discurso educativo da atualidade produzem para crianças, pais e educadores, resultando num mal-estar, que ora se faz representar do lado da criança, pelo discurso parental, ora do lado da escola, pelo discurso escolar.

Enquanto psicanalistas, recebemos com freqüência pedidos dos educadores, acompanhados de queixas, para irmos às escolas falar aos pais sobre como devem educar suas crianças. O mais recorrente é o convite para darmos palestras sobre "os limites".

Ora, lembrando Winnicott e Jerusalinsky, limite é o que transforma uma coisa em outra; o que faz passagem, o que territorializa, o que situa e ordena. Dar limites às crianças, portanto, não está no âmbito do pedagógico, mas no do educativo, para pais e educadores.

Interrogo se nesse pedido há uma demanda da escola para que seja introduzido ou se restabeleça em seu interior um outro discurso acerca mesmo da sua função educativa, seus impasses, seus limites e seu alcance.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Ariès, P. (1981). História social da criança e da família. Rio de Janeiro, RJ: Livros Técnicos e Científicos, 2ª ed.         [ Links ]

Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, III, nº 7, agosto de 1992.         [ Links ]

Jerusalinsky, A. (1994). Apresentação. In Calligaris, C. et al. Educa-se uma criança? Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios.         [ Links ]

Kupfer, M. C. (2000). Educação para o futuro. Psicanálise e educação. São Paulo, SP: Escuta.         [ Links ]

 

 

Recebido em novembro/2001