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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.6 no.11 São Paulo  2001

 

FUNDAMENTOS

 

Incidências da paranóia na construção da teoria lacaniana

 

Paranoia incidences in the construction of the lacanian theory

 

 

Christiano Mendes de Lima

Membro da Clínica Freudiana de Uberlândia, psicólogo do NAPS Infantil da Prefeitura Municipal de Uberlândia, MG, mestrando da Faculdade de Educação da USP

 

 


RESUMO

Este artigo procura demonstrar que a teoria lacaniana pode ser entendida como construída em torno do contato de Lacan com a psicose paranóica. Para tanto, faz-se uma análise de alguns textos significativos da obra desse autor, desde sua tese de doutorado de 1932 até a década de 50, período durante o qual desenvolveu o essencial de suas idéias sobre o Imaginário e o Simbólico.

Lacan; psicose; paranóia; Imaginário; Simbólico


ABSTRACT

This article tries to demonstrate that the Lacanian theory can be conceived as being built around Lacan's contact with the paranoic psychosis. For such, an analysis is made of some of the significant texts from this author's work, since his Doctor's degree thesis in 1932 until the 50s, period during which he developed the scope of his ideas about the Imaginary and the Symbolic.

Lacan; psychosis; paranoia; Imaginary; Symbolic


 

 

Sabe-se que a criação da psicanálise por Freud deu-se a partir da escuta de pacientes histéricas. Pode-se notar que os sintomas histéricos sugeriam não só a Freud, mas também a outros, a hipótese de que haveria uma divisão da mente na base da estruturação de tais sintomas: Pierre Janet, conforme diz Freud (1909), atribuía a divisão psíquica a uma degeneração do sistema nervoso causada por fatores hereditários, que determinaria nos histéricos uma deficiência congênita da função de síntese psíquica; Breuer creditava a divisão psíquica a uma propensão das histéricas a apresentarem "estados hipnóides" nos quais as idéias que surgissem na mente teriam dificuldade de se articular ao restante do conteúdo da consciência, formando assim grupamentos psíquicos apartados desta. Vê-se, portanto, que o fenômeno da cisão da consciência era notado pelo meio médico da época e que eram dadas a ele interpretações causais distintas. Freud, nos Estudos sobre a histeria (Breuer & Freud, 1893-5), fez figurar, ao lado da concepção de Breuer sobre os estados hipnóides, sua tese de que a divisão da mente é determinada por um processo defensivo. Aquilo que aparecia na teorização freudiana de modo impreciso como divisão da mente, ou simples formação de grupos psíquicos separados da consciência, aos poucos deu origem à formalização do conceito de inconsciente como um sistema psíquico regido por uma lógica própria de funcionamento: condensação e deslocamento, tal como podemos ver em A interpretação dos sonhos (Freud, 1900). A teoria de Freud é gerada a partir de seu contato com a histeria e, conseqüentemente, com o fenômeno da divisão da consciência já observado pelos clínicos da época. Se a histeria pode ser dita fonte geradora da teorização freudiana, como seria em relação à teoria e conceitualização de Lacan?

 

LACAN PSIQUIATRA E SUA APROXIMAÇÃO DO CAMPO FREUDIANO: O NARCISISMO

Lacan começa seu contato com a clínica em sua residência médica em asilos psiquiátricos onde depara com a psicose paranóica. Tal quadro psicopatológico será tema de sua tese de doutorado: Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (Lacan, 1932), em que critica as concepções organicistas que atribuem a etiologia da psicose a uma suposta constituição que permanece completamente imprecisa e não demonstrada cientificamente. Lacan acusa tal concepção de mascarar os fatos clínicos e propõe sua via de análise da loucura a partir da compreensão, esclarecendo: "Entendemos por isso dar seu sentido humano às condutas que observamos em nossos doentes, aos fenômenos mentais que eles nos apresentam" (Lacan, 1932, pp. 315-6). Tal método consiste em, com base nos fatos clínicos, buscar as relações significativas: as "relações compreensivas brotam claramente dos próprios fatos" (Lacan, 1932, p. 316). Para analisar o caso clínico em que sustenta sua tese, Lacan aproxima-se da psicanálise, faz uma leitura do conceito de desejo como um ciclo de comportamento definido por uma finalidade, articulada com a satisfação. É certo que ele não sustenta tal definição do desejo no decorrer de sua elaboração teórica, mas aqui se vale desta para afirmar que a psicose que apresenta a paciente (Aimée: eis como Lacan a chama em seu texto) pode ser entendida como um ciclo de comportamento cujo objetivo é a obtenção da punição social decorrente do ato criminoso praticado por ela: tenta, com uma faca, matar uma atriz que era objeto de seus delírios. Em razão disto, o autor propõe denominar a psicose de Aimée de "psicose de autopunição". Na tese, Lacan retorna a Freud para, partindo do conceito de libido e do papel da fixação libidinal na "elaboração do mundo dos objetos no sentido mais geral" (Lacan, 1932, p. 258), pensar a questão do contato com a realidade na psicose. Aqui utiliza essencialmente o conceito freudiano de narcisismo para a análise de Aimée: seus delírios, megalomania etc. são entendidos em função da fixação da libido narcísica.

Lacan data o desencadeamento da psicose de Aimée de sua gravidez, durante a qual principia toda uma temática delirante, articulada em torno do temor pela vida do bebê que traz no ventre: os colegas de serviço a criticam e caluniam; ao ler os jornais, sente-se visada por frases que interpreta como acusações; quando sai de casa, os transeuntes cochicham sobre ela e desprezam-na; surgem idéias difusas referentes a ameaças à vida de seu filho. A criança que Aimée estava gestando, uma menina, nasce morta, e isso incrementa e sistematiza seu sistema delirante. Uma amiga (senhorita C. de la N.), que primeiro ouvira falar sobre a atriz contra quem iria atentar, telefona-lhe para saber notícias, e Aimée atribui a ela a responsabilidade pela morte de sua filha. Esta amiga, de origem nobre, exerceu profunda influência sobre Aimée anteriormente. Lacan diz que sua paciente a considerava uma mulher ímpar: "A única (...) que saía um pouco do comum, no meio de todas essas meninas feitas em série" (Lacan, 1932, pp. 225-6). Tempos depois, novamente grávida, retoma suas interpretações delirantes, novamente referidas a ameaças à vida de seu filho. Seus delírios acabam por conduzirem-na à tentativa de homicídio em razão da qual é internada no asilo de Saint-Anne, onde Lacan a encontra. Segundo Roudinesco (1994), após o primeiro contato com a paciente, Lacan escreve um relatório sobre seu estado clínico: "Psicose paranóica. Delírio recente que desemboca em uma tentativa de homicídio. Temas aparentemente resolvidos depois do ato. Estado oniróide. Interpretações significativas, extensivas e concêntricas agrupadas em torno de uma idéia predominante: ameaças a seu filho" (Roudinesco, 1994, p. 50). M. B. da Motta afirma que o delírio de Aimée pode ser resumido à seguinte fórmula: "Querem matar meu filho" (Motta, 1993, p. 19). Posteriormente, à impessoalidade do querem, com o desenvolvimento do delírio, é adicionada uma série de perseguidores, inaugurada pela irmã de Aimée. Esta havia ido morar com Aimée e o marido, encarregando-se das tarefas domésticas e do cuidado com o sobrinho, pois Aimée se mostrava incapaz de exercer tais funções: a irmã aparece assim aos olhos da paciente como "a imagem mesma do ser que ela é impotente para realizar" (Lacan, 1932, p. 231). Tal relação com uma imagem idealizada também pode ser notada na posição que ocupava a senhorita C. de la N. para Aimée. Notemos que na primeira sistematização do delírio esta aparece como a perseguidora da paciente de Lacan. Em relação à irmã, este observa que há uma denegação do ódio e um redirecionamento deste para outros objetos: aqui entra a atriz sobre a qual Lacan (1932) diz que realizava ao mesmo tempo a imagem ideal de Aimée e servia-lhe de objeto de ódio. O encaminhamento da tese de Lacan, então, é feito em função do narcisismo e de sua relação com o meio social, fornecedor para Aimée da imagem da atriz enquanto ideal. Isto lhe permite "explicar a autopunição e o seu mecanismo. Aimée agride seu ideal exteriorizado e fazendo isto agride a si mesma" (Motta, 1993, p. 20). A agressão não pacifica, o que só ocorre quando se vê "culpada, diante da lei, auto-agredindo-se é que ela se pacifica. Diz Lacan que a natureza da cura demonstra a natureza da doença" (Motta, 1993, p. 20), procurando sustentar assim a paranóia de autopunição como uma variedade específica da paranóia. Perguntamos: será que não podemos ver no encaminhamento da argumentação de Lacan em sua tese o germe de sua concepção posterior do Estádio do Espelho em que a relação com a imagem especular ocorre na.baliza da agressividade? Não podemos ver aqui o núcleo do desenvolvimento teórico subseqüente sobre a questão do Imaginário?

Enfim, podemos notar a partir da leitura de sua tese de doutorado que é através da paranóia e do narcisismo que o autor se aproxima do discurso e da teorização freudiana.

 

O ESTÁDIO DO ESPELHO: EIXO DA TEORIA SOBRE O IMAGINÁRIO

Em 1936, Lacan faz uma comunicação no XIV Congresso Internacional de Psicanálise da IPA acerca do que denomina "Estádio do Espelho". Não temos acesso ao texto dessa comunicação que, segundo M. Marini, o próprio Lacan, em 1966, qualificou de "pivô de nossa intervenção na teoria psicanalítica" (Marini, 1990, p. 171). Já que podemos considerar o Estádio do Espelho como eixo articulador das teorizações iniciais de Lacan, vamos examinar brevemente estas formulações a partir do texto redigido pelo autor para comunicação em outro congresso, realizado em Zurique no ano de 1949. Note-se que Lacan, treze anos após sua primeira fala sobre o Estádio do Espelho, propõe o mesmo assunto em Zurique, o que nos mostra que tal temática pode ser considerada, de fato, o pivô inicial de sua articulação teórica. Neste ínterim, o Estádio do Espelho também é discutido em 1938 no texto Os complexos familiares na formação do indivíduo, escrito por Lacan a pedido de Wallon para a Encyclopédie française, que também usaremos para situar de que se trata no Estádio do Espelho.

Se na tese de doutorado, Lacan já sustentava que o ponto de vista social era essencial para a compreensão da personalidade, no texto de 1938, desenvolve melhor esta idéia, pois demonstra o papel fundamental da família - primeira estrutura social em que a criança é inserida - para a constituição do sujeito humano, na medida em que incide na determinação do processo de recalcamento das pulsões e na aquisição pelo pequeno infante da língua materna. A família aparece aqui como determinante do desenvolvimento psíquico, transmitindo "estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência" (Lacan, 1938, p. 13), e o autor acrescenta: a família "estabelece desse modo, entre as gerações, uma continuidade psíquica cuja causalidade é de ordem mental" (Lacan, 1938, p. 13). Ou seja, o psiquismo da criança é tramado no interjogo intricado dos psiquismos que compõe a estrutura familiar. A seguir, na esteira de Freud, Lacan define tal interjogo a partir do conceito psicanalítico de complexo e diz que, apesar de eles causarem efeitos tão diversos quanto sonhos, atos falhos e sintomas, têm por característica essencial o fato de serem inconscientes. Afirma que todos os efeitos manifestos dos complexos nos remetem ao "elemento fundamental do complexo (...): uma representação inconsciente designada pelo nome de imago" (Lacan, 1938, p. 21). O autor reconhece que se pode ampliar o termo complexo para designar também fenômenos de ordem consciente, porém estes complexos que podem aparecer, por exemplo, na forma de sentimentos relacionados aos membros da família, são, "muitas vezes, a imagem invertida de complexos inconscientes" (Lacan, 1938, p. 22). Podemos notar, pelas palavras de que se vale Lacan ("imago", "imagem invertida"), que, neste momento de sua elaboração teórica, o psiquismo é concebido como uma organização de imagens nascidas da trama psíquica familiar. Parece-nos que esta valorização da imagem na constituição do sujeito psíquico é tributária da paranóia, em que Lacan, na análise de Aimée, demonstrou a importância da relação com a imagem na montagem dos fenômenos paranóicos.

Voltemos ao texto de 1938. Após afirmar que os complexos são os organizadores do psiquismo e marcar a importância das relações familiares na determinação destes, Lacan propõe que o psiquismo é forjado a partir de três complexos fundamentais: desma-me, intrusão e o Édipo.

O complexo do desmame é tramado na relação do bebê com a mãe e "fixa no psiquismo a relação da alimentação, sob o modo parasitário que as necessidades dos primeiros meses de vida do homem exigem; ele representa a forma primordial da imago materna" (Lacan, 1938, p. 22). Aqui não se trata de uma questão instintiva, no sentido biológico-natural do termo, já que no homem o desmame é essencialmente regulado pela cultura. Será que não podemos ver nesta constatação o esboço incipiente da idéia, que Lacan desenvolverá depois, do Simbólico (o qual aqui estaria figurado na cultura) como regulador do Imaginário?

Tal complexo é relacionado ao desmame porque é este que inscreve no psiquismo a marca da relação biológica imediata da criança com a mãe, após ter sido interrompida. Para Lacan (1938), o desmame implica uma crise psíquica na criança, que, diante deste, só pode ter duas reações: aceitação e recusa. Estas não podem ser consideradas como escolhas, na medida em que não há ainda um eu que possa negar ou afirmar. Aceitação e recusa são dimensões coexistentes, o que determina a instauração de uma ambivalência primordial; embora uma destas dimensões prevaleça em um dado momento sobre a outra. Além disso, o autor condiciona a formação da imago da relação de amamentação à recusa do desmame.

Lacan (1938), ainda a respeito do desmame, faz uma observação interessante: o ser humano é um animal que nasce prematuramente, mesmo se completa os nove meses de gestação. Isto determina uma completa impossibilidade de sobrevivência da criança por si mesma que se prolonga bem além dos primeiros anos de vida. O desmame, no sentido concreto de interrupção de aleitamento, fornece a expressão psíquica do desmame primordial que constitui a separação prematura da criança de sua mãe por ocasião do parto. Para o autor, esta separação original causa um mal-estar, irremediável por quaisquer cuidados maternos. Esta idéia do desamparo inicial do infans é cara a Lacan, pois ele a retoma no texto de 1949 sobre o Estádio do Espelho.

Complexo da intrusão é como Lacan (1938) denomina a experiência da criança no grupo familiar em relação aos seus irmãos. Ocorre em geral entre os 6 meses e os 2 anos de idade. Esta experiência depende de múltiplos fatores, entre os quais se destaca a ordem de nascimento da criança, ou seja, o lugar em que ela se coloca em relação aos outros irmãos: o do possuidor ou o do usurpador. Este complexo determina a emergência do ciúme em relação aos irmãos, mas "o ciúme, na sua essência, representa não uma rivalidade vital, mas uma identificação mental" (Lacan, 1938, p. 31). Esta identificação com o outro constitui a base das condutas sociais, e seu estatuto deve ser considerado imaginário, já que seu objeto é a imago do semelhante. O irmão é, neste estádio, o objeto eleito sobre o qual recai o investimento libidinal. Sobre a imago do semelhante incidem dois modos de relação afetiva: amor e identificação. O autor afirma que a agressividade que pode ser observada em um infante contra seu irmão é secundária a sua identificação imaginária com este. A libido, durante o complexo de intrusão, pode ser qualificada de sadomasoquista, o que significa um modo de investimento libidinal em que "a agressividade domina (...) a economia afetiva, mas também que ela é sempre simultaneamente sofrida e posta em ato (agie), ou seja, sustentada por uma identificação ao outro, objeto da violência" (Lacan, 1938, p. 34), no caso, o irmão. Lembremos que esta idéia já estava presente na análise do caso Aimée, em que esta, ao atacar a atriz, agredia-se a si mesma, já que a vítima do atentado representava seu duplo imaginário ideal exteriorizado.

Lacan (1938) retoma sua teorização sobre a formação do eu inaugurada na referida conferência de 1936, postulando a existência de um período que coincide com o "declínio do desmame, ou seja, ao fim desses seis meses cuja dominante psíquica de mal-estar, correspondente ao atraso do crescimento físico, traduz essa prematuração do nascimento que é (...) o fundamento específico do desmame no homem" (Lacan, 1938, p. 35). Neste período, denominado Estádio do Espelho, a criança reconhece a própria imagem no espelho e percebe a forma do outro como uma unidade. Este último fato é correlativo de um certo nível de inteligência e sociabilidade. Durante este estágio se processa por parte da criança a percepção do corpo próprio (e dos objetos externos) enquanto unidade. Segundo o autor, a identificação imaginária que ocorre neste estágio é constituinte do sentimento de identidade e do eu.

Para compreendermos melhor o que diz Lacan a respeito do Estádio do Espelho faz-se necessário retornar ao que Freud (1914) diz: "Uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo - uma nova ação psíquica - a fim de promover o narcisismo" (Freud, 1914, p. 93). Freud é claro: não há eu no início, e as pulsões auto-eróticas, cuja característica essencial é serem parciais, recortam por sua ação mesma o corpo do infante. O eu deve ser constituído por "uma nova ação psíquica", e a teorização lacaniana acerca do Estádio do Espelho pode ser entendida como o esclarecimento da "ação psíquica" que constitui o eu. Assim, o eu é a unidade que surge pela identificação da criança com a imagem especular fornecida pelo semelhante, e o autor diz: "O que o sujeito dela (da imagem) saúda é a unidade mental que lhe é inerente. O que reconhece nela é o ideal da imago do duplo" (Lacan, 1938, p. 37). Tal unidade forma-se em um mundo essencialmente narcísico, e Lacan adverte que o termo narcisismo deve ser entendido não só no sentido freudiano, mas também nos sentidos que podem ser derivados do mito de Narciso; sentido que "indica a morte: a insuficiência vital de que provém esse mundo; ou o reflexo especular: a imagem do duplo que lhe é central; ou a ilusão da imagem: esse mundo (...) não contém outro" (Lacan, 1938, p. 38), já que a percepção do outro não é por si só capaz de romper o isolamento afetivo do sujeito. O infante pode imitar o que uma outra pessoa faz diante dele, porém não se diferencia dessa imagem, e o autor acrescenta: "Mas, antes que o eu afirme sua identidade, ele se confunde com essa imagem que o forma, mas o aliena primordialmente" (Lacan, 1938, p. 38).

Por fim, articula a paranóia com o complexo de intrusão dizendo que este retorna manifestamente nas temáticas delirantes que giram em torno de idéias como filiação e usurpação, assim como "sua estrutura narcísica se revela nos temas mais paranóides da intrusão, da influência, do duplo e de todas as transmutações delirantes do corpo" (Lacan, 1938, p. 41). Além disso, relaciona as psicoses à redução do grupo familial à mãe e aos irmãos, estando o pai excluído, o que tem por efeito a permanência do sujeito em uma realidade imaginária, e conclui: "A clínica demonstra que, efetivamente, o grupo assim tornado incompleto é muito favorável à eclosão das psicoses e que aí se encontra a maioria dos casos de delírio a dois" (Lacan, 1938, p. 41). O autor, porém, não esclarece o que determinaria a não inclusão do pai na família. Será que podemos, apesar disso ver aqui um prenuncio de sua teorização posterior sobre a relação da função paterna (sua não operação) e as psicoses? Ou será que aqui ele pensa simplesmente na ausência real e concreta do pai na família? Será que Lacan pensa que uma ausência do pai na realidade corresponde a sua ausência no complexo?

Falemos brevemente sobre o Complexo de Édipo tal como formulado nesse texto de 1938. Não vamos nos alongar, já que Lacan faz aqui um encaminhamento estritamente freudiano, praticamente sem introduzir contribuições originais. O autor fala do Édipo em termos da triangulação pai-mãe-filho, descreve o jogo afetivo e desejante, ressaltando a questão da interdição do incesto e da identificação, presente nessa conjuntura, e afirma a importância do Édipo não só para o processo de recalcamento da sexualidade, mas também sua relevância para possibilitar ao sujeito o exercício desta.

O texto "O Estádio do Espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica", publicado nos Escritos, pode nos fornecer alguns esclarecimentos sobre os avanços na teorização de Lacan, pois ele data de 1949. Lacan parte de um dado ligado à psicologia comparada: um filhote humano em idade bastante precoce (a partir dos 6 meses) já é capaz de reconhecer sua própria imagem no espelho. Faz isto apesar de, em termos de inteligência instrumental, ainda se encontrar aquém de um chimpanzé; porém, enquanto este animal só é capaz de reconhecer o vazio da imagem, a criança se entrega a jogos lúdicos com esta, os quais incluem seu próprio corpo e os outros seres humanos ao seu redor. Notemos que este sujeito ainda incapaz de se manter em pé sozinho ou de andar, através de algum suporte (humano ou não) acaba por fixar sua imagem ereta que constitui a rigor uma antecipação. Lacan (1949) afirma que nesta experiência está em jogo toda uma dinâmica libidinal, pois o Estádio do Espelho (6 a 18 meses) deve ser entendido como um momento de identificação "no sentido pleno que a análise atribui a este termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem" (Lacan, 1949, p. 97). Na assunção dessa imagem especular, realizada com júbilo, há uma antecipação, pois um ser ainda impotente e recortado pelas pulsões parciais encontra um estado unificado quando se identifica a esta Gestalt, a esta imagem que passa a ser eu. Aqui se constitui a matriz primordial do eu, via identificação a esta imagem especular que se encontra fora, no espelho. Neste período é constituída então uma identificação primária (chamada por Freud de eu-ideal) que forma a base do eu e à qual as identificações secundárias terão de se articular.

Uma citação servir-nos-á de eixo para os próximos desenvolvimentos. Ei-la: "A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o eu se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito" (Lacan, 1949, p. 97). Aqui o autor já fala do Simbólico enquanto matriz que permite à criança reconhecer-se em sua imagem, assumindo-a como forma primordial que possibilita a formação do sentimento de eu.

Para esclarecermos o papel do Simbólico no Estádio do Espelho, recorreremos às formulações de J. Dor, segundo as quais "a experiência da criança na fase do espelho organiza-se em torno de três tempos fundamentais, que pontuam a conquista progressiva da imagem de seu corpo" (Dor, 1989, p. 79). No primeiro tempo, a imagem de seu corpo é percebida como um outro ser real, do qual a criança procura se aproximar. Podemos notar que a criança vive uma confusão entre o eu e o outro, que é claramente notada nos fenômenos de transitivismo: a criança bate em outro e diz ter sido batida, vê outro se machucar e chora como se fosse ela que houvesse se machucado. Há aqui um trânsito entre o eu e outro que indica o radical assujeitamento inicial da criança ao registro do imaginário. Podemos pensar que esta relação imaginária pode ser letal, se não houver algo que retire a criança deste impasse. Já dissemos que Lacan (1938) afirmava que na relação especular perfila-se a morte, como bem nos mostra o mito de Narciso, e a partir da citação acima podemos ver que o autor atribui a uma matriz simbólica a regulação da relação do sujeito com a própria imagem.

Durante o segundo tempo desse estágio, a criança percebe que o que ela vê no espelho é uma imagem, e não um outro ser real. Esta percepção, um macaco também pode ter, segundo o que Lacan (1949) nos diz. Já o terceiro tempo, abre-se somente para os humanos, pois consiste em a criança reconhecer-se na imagem especular e assumi-la enquanto própria. Parece-nos que só o ser humano é capaz de viver esta experiência, pois este é o único ser simbólico, e o que possibilita à criança reconhecer-se na imagem só pode ser a mediação da palavra. Assim entendemos a citação de Lacan de onde partimos, especialmente o trecho em que relaciona a matriz simbólica com a forma primordial que constitui o eu: é a matriz simbólica que possibilita à criança reconhecer-se e assumir a imagem no espelho como forma primordial constituinte do eu. Quando a criança se reconhece em uma imagem que não é ela enquanto tal, já que virtual, "recupera assim a dispersão do corpo esfacelado numa totalidade unificada, que é a representação do corpo próprio. A imagem do corpo é, portanto, estruturante para a identidade do sujeito, que por meio dela realiza assim sua unificação primordial" (Dor, 1989, p. 80), o que forma o sentimento de eu. O corpo, que no auto-erotismo é recortado pelas pulsões parciais, ganha unidade a partir desta identificação imaginária. É por isso que Lacan (1949) qualifica o eu de forma ortopédica, que confere unidade, mas implica a formação de uma identidade alienante a qual se esforça por desconhecer a ordem do desejo, como se pode notar por sua função defensiva. Retroativamente, ou seja, só após a consecução desta imagem totalizadora e ortopédica do eu, constituem-se as fantasias que se articulam com imagens despedaçadas do corpo. É preciso a ilusão de totalização fornecida pela identificação com a imagem especular para se viver o esfacelamento corporal enquanto fantasia inconsciente. Destas formulações se depreende a estreita relação entre o corpo, ou a imagem do corpo, e o eu, idéia já encontrada em Freud, quando afirma: "O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal" (Freud, 1923, p. 40).

Lacan afirma que, quando se conclui o Estádio do Espelho pela assunção da imagem especular pela criança, inaugura-se, "pela identificação com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme primordial (...), a dialética que desde então liga o eu a situações socialmente elaboradas" (Lacan, 1949, p. 101). Este tema já fora objeto de estudo de Lacan no texto de 1938 que examinamos anteriormente, mas aqui o autor parece situar a relação da criança com a imago do outro em tempo posterior ao Estágio do Espelho, o que não fica claro no texto anteriormente referido. Podemos pensar que a relação da criança com a própria imagem acaba por determinar sua relação com a imagem do outro, constituindo, assim, o nascedouro da socialização.

A seguir, o autor escreve: "É esse momento que decisivamente faz todo o saber humano bascular para a mediatização pelo desejo do outro, constituir seus objetos numa equivalência abstrata pela concorrência de outrem, e que faz do eu esse aparelho para o qual qualquer impulso dos instintos será um perigo, ainda que corresponda a uma maturação natural - passando desde então a própria normalização dessa maturação a depender, no homem, de uma intermediação cultural, tal como se vê, no tocante ao objeto sexual, no Complexo de Édipo" (Lacan, 1949, pp. 101-2). Esta passagem do texto - e também a questão, mencionada pelo autor na seqüência, da agressividade presente na relação narcísica com o outro - pode ser mais bem entendida se explicitarmos a concepção filosófica que se encontra na base desta formulação. Tal concepção é a filosofia de Hegel estudada por Lacan a partir da interpretação de Alexandre Kojève, cujos seminários seguiu. Faremos algumas observações sobre o modo como Lacan usa Hegel para formular sua teoria sobre a constituição do desejo no homem a partir de L. A. Garcia-Roza. Este autor afirma que "a fenomenologia hegeliana é (...) uma descrição que tem por objeto o homem tal como ele aparece a si próprio enquanto fenômeno existencial. O percurso da fenomenologia é o da historicidade do homem, isto é, o caminho seguido pela Consciência (Bewusstsein) até chegar à Autoconsciência (Selbstbewusstsein)" (Garcia-Roza, 1993, p. 140).

Tal caminho é o seguinte: o homem de início é mera Consciência no sentido de percepção do mundo exterior. Aqui não há sujeito constituído, na medida em que o homem está preso em uma relação sensualista com o mundo, sendo como que "absorvido na contemplação do objeto" (Garcia-Roza, 1993, p. 141). O sujeito só surge quando o Desejo constitui-se pela assimilação do objeto, que faz com que o homem se torne ciente de sua oposição ao mundo exterior e, portanto, ciente de si mesmo (Autoconsciência). O primeiro desejo só pode estar situado no plano da necessidade (por exemplo, o desejo vinculado à fome) que impele o homem em direção ao objeto, o qual, após assimilado, o satisfaria: "Nessa medida, toda ação surgida do Desejo é uma ação 'negatriz', pois tem por objetivo a destruição ou transformação do objeto para que o desejo possa ser satisfeito. No lugar da realidade objetiva (destruída ou transformada), surge uma realidade subjetiva pela assimilação ou interiorização do objeto" (Garcia-Roza, 1993, p. 141). Daí decorre que o Desejo é constituído a partir do objeto desejado; portanto, enquanto o objeto visado for um objeto natural, situado no campo da necessidade, o Desejo não pode constituir-se como humano. O único objeto não-natural para o qual o desejo poderia voltar-se para fundar-se enquanto humano é um outro desejo. Assim, o desejo do homem só pode constituir-se pela mediação do desejo do outro. Isto é o que faz Lacan afirmar: "O desejo do homem é o desejo do outro" (Lacan, 1953-4, p. 205). Se disto resulta que o objeto do desejo é outro desejo, como podemos entender o fato de que o desejo pode manifestamente se voltar para diversos objetos, e não somente para o desejo do outro? Embora, a partir da citação acima, possamos pensar que na teorização de Lacan já se insinua, em 1949, a solução para esta questão quando escreve que os objetos são constituídos "numa equivalência abstrata pela concorrência de outrem" (Lacan, 1949, p. 101), encontramos em seu seminário sobre As psicoses uma resposta direta à pergunta que formulamos, quando o autor diz: "O que faz com que o mundo humano seja um mundo coberto de objetos se acha fundado nisto: o objeto de interesse humano é o objeto do desejo do outro" (Lacan, 1955-6, p. 50). Assim, um objeto qualquer só é elevado à categoria de objeto do desejo com a condição de ser visado pelo desejo do outro: é o outro que apresenta ao sujeito os objetos ordinários enquanto desejáveis.

Garcia-Roza (1993), porém, afirma que a "ação negatriz" do Desejo permanece operante após sua transformação em desejo humano. Ocorre que por este Desejo não se voltar para os objetos naturais, mas para outro Desejo humano, cada qual procura transformar e assimilar o Desejo do outro a fim de que o valor de seu próprio Desejo seja reconhecido por outrem. Assim, o Desejo de um se afirma pela negação do Desejo do outro. Cria-se, desse modo, um campo de luta em que cada qual procura ter seu Desejo reconhecido pelo outro, mas à custa da destruição do Desejo do outro. Aqui podemos situar a agressividade própria da relação narcísica. Esta luta pelo reconhecimento é uma luta de morte, porém, acontece que um paradoxo se instala: se cada um, para ter seu Desejo reconhecido, precisa destruir o outro e o Desejo deste, é necessário por outro lado que os adversários permaneçam vivos, pois a morte de um implica a impossibilidade de o outro ter seu Desejo reconhecido. Como sair deste impasse? É uma espécie de pacto que salva da morte os dois sujeitos desejantes: o vencido se submete ao vencedor, para evitar a morte, reconhecendo-o enquanto mestre e, portanto, situando-se em relação a este como escravo. Se escravo e senhor só podem ser definidos um em relação ao outro, sendo na realidade lugares que independem de quem os ocupa, podemos pensar que se trata aqui de lugares simbólicos. Assim, é o pacto simbólico que salva os sujeitos em confronto narcísico de se baterem até a morte, afundando-se no imaginário. Garcia-Roza afirma esta relação do Imaginário com o Simbólico na fundação do Desejo humano dizendo: "Nessa primeira fase de constituição do desejo, que é a fase do imaginário, o desejo ainda não se reconhece como desejo, é no outro ou pelo outro que esse reconhecimento vai-se fazer, numa relação dual especular que o aliena nesse outro. Nesse estado especular, ou o desejo é destruído, ou destrói o outro. É o desejo de destruição do outro o que suporta o desejo do sujeito" (Garcia-Roza, 1993, p. 146). Temos aqui claramente definidas duas características das relações imaginárias, narcísicas: a tensão agressiva e a alienação radical ao outro que está na base do Estádio do Espelho. E o autor continua: "Como já nos mostrou Hegel, essa radical confrontação relegaria a relação do sujeito com o outro a uma destruição inevitável se não fosse a emergência do simbólico. Se no modo de relação imaginária o desejo do sujeito era forçado a se alienar no outro, a partir da emergência do simbólico ele pode ser mediado pela linguagem" (Garcia-Roza, 1993, p. 146). Enquanto o simbólico não adquire sua operacionalidade na regulação da relação narcísica, não podemos dizer que haja sujeito, já que há uma indiferenciação eu/outro, própria da relação especular. Em consonância com isto, podemos entender o dito de Lacan de que é a linguagem que restitui ao ser preso na relação especular "sua função de sujeito" (Lacan, 1949, p. 97), pois é somente pelo Simbólico que o sujeito pode advir enquanto tal.

 

O SIMBÓLICO

A seguir procuraremos circunscrever as linhas mestras da teoria do Simbólico em Lacan, a partir de sua concepção sobre a conjuntura edipiana, a fim de entendermos como o autor situa o mecanismo específico da estrutura psicótica em relação ao Édipo.

Lacan, fiel a Freud, busca a articulação da estrutura na trama de desejos do Complexo de Édipo. Da obra de Freud podemos notar claramente que o que organiza a realidade psíquica é o Édipo, por isso Lacan afirma textualmente que "o que o inconsciente revela, no princípio, é, acima de tudo, o Complexo de Édipo" (Lacan, 1957-8, p. 167). Mas o que é o Édipo? Lacan procura situá-lo em seus determinantes estruturais, ou seja, não se contenta em reduzi-lo a um jogo afetivo (amor/ódio), tal como aparece no plano do fenômeno.

Em seu seminário As formações do inconsciente, Lacan critica a enorme confusão que se estabelece a partir do discurso da psicologia quando se diz que a psicopatologia articula-se com a carência paterna, e afirma que nesta formulação "nunca se sabe em que o pai é carente. Em certos casos, dizem-nos que ele é meigo demais, o que parece dizer que lhe conviria ser malvado. Por outro lado, o fato de ele poder ser muito mau, manifestamente, implica que mais valeria talvez, de tempos em tempos, que fosse meigo" (Lacan, 1957-8, p. 173). Demonstra assim que nas concepções psicológicas a Babel se estabelece por causa da não distinção entre os registros do real, do simbólico e do imaginário no que se refere ao pai. Afirma que o adoecimento psíquico não é determinado pela carência do pai real, por sua ausência; mas pelas vicissitudes do pai enquanto simbólico, ou seja, enquanto função. Qual é então a função do pai, e o que ocorre na psicose? Para respondermos a tal questão, utilizaremos o desenvolvimento que Lacan, no referido seminário, faz sobre a conjuntura edípica.

Vejamos: o sujeito psíquico não se constitui sem o Outro. A criança desde antes de nascer tem um lugar no Desejo da Mãe. E este lugar articula-se com a história edípica da própria mãe. Assim, a criança se vê confrontada ao Desejo da Mãe e procura se fazer o objeto imaginário que satisfaria plenamente o Outro materno. Aqui Lacan situa o primeiro tempo do Complexo de Édipo: a alienação do infans no Desejo do Outro, em que há uma relação imediata da criança a este desejo relativamente ao qual se posiciona enquanto objeto. Mas as idas e vindas maternas causam na criança uma questão quanto ao desejo da mãe, que acaba por desalojá-la da posição de objeto imaginário tamponador da falta materna (falo imaginário); pois, se a mãe olha para fora de sua relação com o filho (não se trata de um olhar qualquer, mas de um olhar desejante que significa à criança que o desejo materno se orienta para alhures), este sai da posição de objeto do Outro para se constituir enquanto sujeito do próprio desejo. Eis aqui o segundo tempo do Edipo: a separação do infans do campo psíquico do Outro. E disto que se trata na função paterna: recortar o sujeito do Outro, permitindo o advento do sujeito do desejo. Lacan denomina esta operação de castração simbólica e chama de Nome-do-Pai o significante que a inscreve no Inconsciente, vindo fundá-lo enquanto tal e balizar o desejo. Mas qual é o papel estrutural deste significante no Inconsciente?

Para respondermos a essa questão, teremos que introduzir primeiramente alguns elementos referentes à leitura lacaniana da lingüística estrutural de Ferdinand de Saussure, da qual Lacan se vale para orientar seu "retorno a Freud", rubrica sob a qual inscreve seu ensino a partir de 1953. Sabemos que a tese fundamental da teorização lacaniana sobre o Simbólico é que da obra freudiana pode-se deduzir que "o inconsciente está estruturado como uma linguagem" (Miller, 1994, p. 13). Para demonstrar tal proposição, Lacan utiliza-se da lingüística, porém, ao trazê-la para o campo epistemológico da psicanálise, acaba por subvertê-la.

Saussure critica os autores que pensam ser a língua um conjunto de termos cuja função é designar objetos reais e afirma que o signo lingüístico, em realidade, é constituído da relação entre um conceito (significado) e uma imagem acústica (significante). E precisa: a imagem acústica "não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão (...) psíquica desse som" (Saussure, 1916, p. 80). Lacan (1957) inverte o esquema saussuriano do signo lingüístico (que pressupunha a sobreposição do significado ao significante) e grafa: significante/significado, indicando, deste modo, a pre-eminência do significante sobre o significado e seu papel na constituição deste. Lacan (1955-6) retoma a idéia de Saussure sobre o paralelismo entre significante e significado em que um deslizaria sobre o outro até que cortes simultâneos nas duas massas (de significantes e de significados) delimitassem unidades que constituiriam o signo lingüístico. Lacan afirma, porém, que o sentido não surge da definição dos limites de cada termo ern. que se ligaria significante e significado, mas se constitui a posteriori no movimento de retroação ocasionado quando a cadeia significante pára de deslizar por ter encontrado um ponto-de-basta, conceito que Lacan retira da técnica do estofador, em que um ponto serve de amarração e de parada para as linhas de costura do estofamento. Este ponto de parada no deslizamento indefinido da cadeia significante produz o efeito de sentido, permitindo ao sujeito dar significação aos significantes que o constituem. Lacan (1955-6) afirma que é o Pai, em sua função simbólica (Nome-do-Pai), o significante que exerce, na estrutura do inconsciente, o papel de ponto-de-basta; forjando, assim, a realidade do sujeito, na medida em que estabelece a ordenação da cadeia significante, do Simbólico.

O que ocorre, então, na psicose? Para Lacan, a questão estrutural da psicose situa-se precisamente na não ocorrência da operação de separação, o que tem por conseqüência a permanência do psicótico em uma relação sem mediação com o Desejo do Outro, que, não regulado pelo Nome-do-Pai, aparece ao psicótico como um gozo desmedido que tem por objeto seu ser. Exemplo lapidar está em "Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia", texto de Freud de 1911 mais conhecido como o caso Schreber: Schreber acreditava-se objeto de manipulações cruéis e dolorosas, que culminariam em sua emasculação e posterior entrega de seu corpo para ser objeto do gozo lascivo do Outro. Assim, o Nome-do-Pai, ao se inscrever no Inconsciente a partir da castração simbólica, regula e ordena o funcionamento deste, pela mediação simbólica que estabelece entre o sujeito e o Desejo do Outro a partir do qual se constituiu; barrando o gozo avassalador do Outro.

Lacan (1955-6) faz a leitura de Freud, traduz o que este chamava de Verwerfung por "foraclusão" e eleva este termo à categoria de conceito para designar o mecanismo específico da psicose, ou seja, o que caracteriza a estrutura psicótica é a não ocorrência e, portanto, a não inscrição da castração no Inconsciente, no Outro. Assim, a psicose refere-se a uma estrutura em que o Nome-do-Pai se encontra foracluído do Simbólico. Afinal, como à paranóia, com toda a exarcebação do Imaginário evidente em sua sintomatologia, pode ser atribuída como razão estrutural uma falha no Simbólico? Que conseqüências na relação dos registros do Imaginário e do Simbólico são determinadas pela foraclusão do Nome-do-Pai?

O autor, no texto a que fizemos referência acima, afirma que ao psicótico, na impossibilidade de integrar o Pai no Simbólico, só resta "a imagem a que se reduz a função paterna. E uma imagem que não se inscreve em nenhuma dialética triangular, mas cuja função de modelo, de alienação especular, dá ainda assim ao sujeito um ponto de enganchamento, o que lhe permite apreender-se no plano imaginário" (Lacan, 1955-6, p. 233). A foraclusão do Nome-do-Pai, assim, possui efeitos imaginários na medida em que o Simbólico não pode exercer eficazmente sua função de regulação do Imaginário. Pelo fato de o psicótico não dispor do significante organizador de sua relação com o real e com o sexual, acaba por compensar tal falta por meio de identificações imaginárias que lhe permitem sustentar-se na vida e no sexo, porém à custa de um assujeitamento radical ao Imaginário. Assim a questão da relação da violência do Imaginário na paranóia pode ser respondida pela teoria de Lacan sobre o Simbólico.

Notamos ao fim deste percurso pela teorização de Lacan que a psicose paranóica pode ser entendida como o grande eixo em torno do qual se estrutura a contribuição lacaniana à psicanálise, permitindo-nos afirmar que a paranóia está para a teoria lacaniana assim como a histeria está para a obra freudiana.

 

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Recebido em novembro/2001