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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.6 no.11 São Paulo  2001

 

RESENHA

 

M. h.s. patto. Mutações do cativeiro: Escritos de psicologia e política. São Paulo, SP: Hacker/Edusp, 2000

 

 

Leandro Alves Rodrigues dos Santos

Psicanalista, psicólogo escolar, mestrando em Psicologia no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), é filiado ao Departamento de Psicologia da Aprendizagem, Saúde e Desenvolvimento Humano (PSA) do IPUSP

 

 


 

 

Maria Helena Souza Patto está de volta! E com seu estilo característico: contundente, instigante e, em certos momentos, absolutamente corrosivo. E, se é pela via do estilo que um autor captura o leitor, certamente os escritos de Patto confirmam essa hipótese, pois seus livros são - para além de uma literatura científica, fruto de pesquisas acadêmicas - também um testemunho vivo e indignado de uma profissional que não se conforma passivamente com a situação atual da psicologia, ciência que ainda mantém práticas reprodutivas, tanto de teorias quanto de técnicas, importadas de outros contextos e muitas vezes pouco afinadas com nossa realidade sociocultural.

Patto é uma autora bastante interessante, muitas vezes polêmica, pois pode ser considerada uma das pioneiras a se embrenhar nos aspectos políticos que a psicologia, enquanto ciência, aparentemente relega a um obscuro segundo plano. O percurso teórico dessa autora vai no sentido inverso, apontando poderosos holofotes sobre a questão de saber como as práticas e o saber psicológico colaboram para a manutenção do status quo social, especialmente nesses tempos de globalização, em que as desigualdades são naturalizadas e quase sempre creditadas exclusivamente ao indivíduo, o que é peculiar ao liberalismo.

E qual seu campo de pesquisa preferido? Em grande parte a realidade da escola pública - com o fracasso escolar de uma considerável parcela de sua clientela -, da atuação e do olhar dos psicólogos nas questões e demandas oriundas dessas instituições, da psicometria inconseqüente e definidora de destinos das crianças das classes populares, que são objetos - em certos casos, vítimas - dessas práticas questionáveis e acríticas.

E criticidade é o que mais encontramos na pena dessa autora, responsável pela publicação de uma obra considerada indispensável na intersecção entre psicologia e educação, o já clássico e sempre citado A produção do fracasso escolar: estórias de submissão e rebeldia, editada no início da década passada. Esse livro, fruto de ampla pesquisa em escolas públicas, põe às claras certos mecanismos institucionais, práticas duvidosas, relações de poder assimétricas e outros aspectos que colaboram fortemente para manter e tornar crônico o fenômeno chamado "fracasso escolar". E, mais ainda, mostra com cores fortes a responsabilidade dos psicólogos diante dessa questão, pois, ao centrarem sua investigação na criança ou na psicodinâmica familiar, como focos prioritários, colaboram para que nada mude nos excessivos encaminhamentos de crianças aos postos de saúde ou consultórios particulares, frutos de uma suposta demanda para a hoje já bastante questionada "avaliação psicológica".

E o que Patto nos oferece dessa vez? Mais uma obra que pode ser enfíleirada junto com os livros fundamentais, aqueles que raramente são encontrados nas prateleiras dos sebos. Estamos falando agora de uma coletânea de ensaios, nomeada como Mutações do cativeiro: escritos de psicologia e política, que, como o próprio título sugere, trata essencialmente desses aspectos, da psicologia, da política e de sua sempre delicada conexão. Porém, a questão a ser posta é: como são tratados esses aspectos?

É nesse ponto que o estilo de um autor toma vulto, e podemos observar como o sujeito que escreve pode articular as questões que o interrogam, que o fazem empreender um esforço para produzir algo que supostamente interesse a um outro, um leitor imaginário.

E, se ocupamos esse lugar, o que encontramos? Ensaios que foram confeccionados desde o ano de 1993 até 1999. Textos que foram, em sua maioria, publicados em revistas científicas, especialmente na Universidade de São Paulo, onde a autora exerce a docência no Instituto de Psicologia (IPUSP), mais especificamente no departamento que, entre outras especialidades, engloba também a psicologia escolar. Nesse mesmo Instituto, ministrou a disciplina Psicologia Escolar e Problemas de Aprendizagem, até há pouco tempo, imprimindo marcas diferenciadas no trato das questões do mundo escolar. Atualmente, orienta dissertações e teses, e ministra uma disciplina que toma o fracasso escolar como objeto de estudo, na Pós-Graduação do IPUSP.

Portanto, essa série de artigos gerados durante esse período de seis anos retrata um momento particular de seu percurso, fato que pode ser percebido quando tentamos estabelecer um fio condutor entre os ensaios. Talvez essa não seja a melhor estratégia, pois cada capítulo porta especificidades do assunto em questão. Nas próprias palavras da autora, "todos eles tratam da relação de homens contemporâneos com a opressão social. Todos eles falam, cada um a seu modo, do lugar da ciência moderna na esfera do poder".

Mas, se o leitor se permitir flutuar pelos capítulos, encontrará reflexões sobre tópicos que interessam sobremaneira aos profissionais desejosos de questionar sua própria prática, seus atos, sobre o peso de suas palavras e sobre como podemos colaborar, ainda que ingenuamente, para a manutenção de uma realidade certamente criticável. E não importa se estamos falando de profissionais "psi", educadores, fonoaudiólogos ou médicos, trata-se, como nesse trabalho, de vê-los na qualidade de profissionais que, a partir de seu saber formal, têm poder de interferir nos destinos de pessoas!

Alguns capítulos merecem atenção especial, como, por exemplo, "Para uma crítica da razão psicométrica", em que são questionados de forma intensa e rigorosa os testes psicométricos e o conseqüente psicodiagnóstico, ainda tão presentes na prática de alguns psicólogos. O que mais nos chama a atenção é a forma como se articula uma compreensão política do fenômeno - com um uso parcimonioso do referencial marxista, raramente bem utilizado em textos oriundos da área da psicologia -, aliada a uma crítica aos fundamentos do aparato psicométrico, desde o próprio objeto de investigação, passando pelos aspectos ideológicos mais obscuros, chegando até mesmo à visão de mundo do próprio aplicador da técnica. Realmente, é necessário certo fôlego no entrelaçamento das argumentações, observado em uma passagem muito específica: onde sinaliza que a "revelação desse estado de coisas gera uma discussão cheia de percalços a respeito dos testes psicológicos. O assunto é difícil, por vários motivos: porque põe em evidência a má formação dos psicólogos; porque o uso de testes para fins psicodiagnósticos é, por lei, privativo desses profissionais e está no centro de sua identidade, o que faz com que seu questionamento provoque ameaça de perda de importante ponto de referência; porque a crítica se faz a partir da filosofia materialista histórica, objeto de desconfiança e desconhecimento de grande parte dos psicólogos; porque a inércia também está presente no corpo docente do terceiro grau. Mas a dificuldade maior de realizar esse debate certamente vem do predomínio técnico da formação dos psicólogos, em geral, e dos que se dedicam aos testes, em particular" (p. 68).

Há um ponto nevrálgico na questão da formação em Psicologia no Brasil, uma certa submissão a um modelo médico, calcado na visão higienista presente em nossas plagas desde os dois últimos séculos, como bem retrata Jurandir Freire Costa, autor com quem Patto trava um sutil diálogo no "Teoremas e cataplasmas do Brasil monárquico: o caso da medicina social", encontrando subsídios para articular um raciocínio que visa, em última instância, alertar os psicólogos sobre o peso dessa influência na formação, nas metodologias, nos instrumentais e, principalmente, na visão de mundo dos profissionais "psi", especialmente quando se defrontam com clientelas que diferem de um suposto padrão de "normalidade", ou ainda que são vistas como carentes de ajustamento a um funcionamento psíquico esperado.

É comum encontrar Patto interrogando platéias sobre qual o sentido da aplicação, em crianças brasileiras, dos testes de QI, criados e utilizados nos Estados Unidos para uma seleção rápida de soldados para as Forças Armadas americanas, que entrariam em uma guerra então inevitável.

Pois bem, é comum encontrar em escolas públicas laudos psicológicos que apontam certo quociente intelectual de um determinado aluno, quase sempre de classes desfavorecidas economicamente, como se isso pudesse, por si só, justificar o insatisfatório desempenho dessa criança, que não atende às expectativas do professor ou da escola pública. Mas essa mesma criança, que não aprende matemática, vende amendoim no trem! O que acontece então com os psicólogos? Seria meramente uma questão de formação? Aumentar nas graduações o número de professores mais "críticos" ajudaria em algo, ou ainda talvez promover mudanças drásticas no currículo?

Não nos esqueçamos de que há um fator que não pode ser negligenciado: as fantasias e motivações inconscientes que levam alguém a desejar tornar-se psicólogo, narcisicamente poder "curar" o outro, aspiração que é quase inviabilizada quando se compreende o alcance dos alertas contidos na obra de Patto. Ora, o que fazer então?

Essa talvez seja a principal contribuição dessa obra: apontar para aspectos que denotam os efeitos de práticas dos psicólogos e, por extensão, da psicologia enquanto ciência. Mas, para além desse feito, causa variadas sensações nos leitores: em alguns, desconforto, em outros, a irresistível vontade de juntar-se a uma militância que Patto parece convocar ou, ainda mais, o desejo de se interrogar, de aprofundar as pesquisas, acadêmicas ou pessoais, sobre o alcance, a quem servem, o que deve ser repensado, e principalmente o que pode ser criado com a ciência psicológica.

Pois, se a psicologia não equaliza sua oferta com as demandas que o tecido social convoca, sempre aparecem modismos que tomam seu lugar, como, por exemplo, a teoria da inteligência emocional, que tantos livros vendeu e tantos seguidores arrebanhou em nosso território, alguns anos atrás. É desse tema que a autora trata em "Mutações do cativeiro", capítulo que dá nome ao livro, dissecando com profundidade os pressupostos da tal teoria. Cabe aqui uma citação que pode ilustrar a precisão cortante da análise de Patto: "A última página de Inteligência emocional volta à idéia que o inaugura: o temperamento é inato, mas pode ser modificado por uma educação que forme o caráter. E formar o caráter é treinar a disciplina obstinada: 'É preciso força de vontade para manter a emoção sob o controle da razão'" (p. 165).

Tal frase nos faz pensar sobre o que pode fazer com essa teoria - e com qualquer outra, aliás - um professor em escolas públicas de periferia: obter caução científica para a angústia que o toma quando crianças não aprendem? Localizar "carências" intelectuais em sua clientela? A autora ainda continua: "O livro silencia sobre a qualidade do ensino, os preconceitos e estereótipos que grassam no ambiente escolar, as humilhações freqüentes a que são submetidas crianças pobres nas salas de aula, os meandros intra e intersubjetivos da relação professor-aluno, o exercício vertical do poder e o confronto de interesses das classes no interior das escolas - numa palavra, omite a dimensão política da instituição escolar" (p. 168).

Um outro ponto bastante interessante é a discordância da forma com que o autor do referido livro trata de Freud, pensador que Patto afirma não conhecer com profundidade, e, mesmo assim, amparada em sua colega Maria Cristina Kupfer, propõe um debate e uma teorização antagonizando com firmeza aquele tratamento, considerado equivocado. Isso nos mostra que a academia pode enriquecer seus pesquisadores com as mais variadas teorias. Depende apenas do dogmatismo de cada pesquisador...

Fechando o capítulo com ironia, cita a propaganda de uma conferência que trataria do dito tema, cujo mote era: "O autor de Inteligência emocional e Trabalhando com a inteligência emocional vai mostrar qual é o principal recurso para as empresas no mundo globalizado: Tecnologia Humana de Ponta" (p. 181).

Fechando o livro, encontramos "A miséria do mundo no Terceiro Mundo", em que parte de uma pesquisa de Pierre Bourdieu, que entrevistou alunos e professores dos subúrbios franceses, relatando os diversos tipos de mal-estar que assombram o cotidiano escolar francês, com uma desigualdade que se assemelha, e muito, ao cenário brasileiro. E é sobre esse cenário atual, pois o artigo é de 1999, que Patto se debruça para compreender as modificações pelas quais passa o ensino público. Especialmente em São Paulo, com seus ciclos, com suas salas de aceleração, com suas progressões continuadas, etc. Mas, para além de uma problematização, também, abre-se espaço para os envolvidos falarem... E como falam! E com esses depoimentos Patto documenta a barbárie.

Afinal, se os pesquisadores em psicanálise e educação, leitores deste veículo, pensam em se aprofundar nessa intersecção, em expandir seus horizontes, poderiam com certeza mirar-se em Patto, que, mesmo não sendo psicanalista, consegue captar o que está "latente" no jogo social, o que subjaz à problemática, para além das estatísticas, dando voz aos atores do cenário em que se vê às voltas o cotidiano escolar. O próprio Freud já apontava que a então nascente psicanálise poderia extravasar as paredes dos consultórios, quem sabe para uma tentativa de investigação de algo das patologias culturais, dos laços sociais.

Mutações do cativeiro: escritos de psicologia e política serviria como uma boa bússola nessa empreitada!