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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.7 no.13 São Paulo  2002

 

DOSSIÊ

 

A transferência e a ação educativa

 

The transference and the educative action

 

 

Elisabete Aparecida Monteiro

Doutoranda e mestre em Psicologia e Educação pela Faculdade de Educação da USP; membro do LEPSI; professora da UNISAL - Campinas

 

 


RESUMO

Síntese de uma dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Educação da USP, este texto propõe uma reflexão sobre algo atualmente bastante valorizado pela pedagogia: a relação professor-aluno. Buscou-se compreender como a pedagogia pensa essa relação, em quais pressupostos ela se baseia. Desde o princípio, a psicanálise foi o suporte teórico que conduziu a análise dos textos selecionados. E, mais especificamente sobre a questão da pretendida relação professor-aluno, o conceito psicanalítico de transferência foi o eixo da reflexão. O presente trabalho abrange uma análise crítica sobre a concepção pedagógica de relação professor-aluno e uma leitura psicanalítica sobre esta pretensa relação.

Educação; psicanálise; transferência; relação professor-aluno


ABSTRACT

This is the synthesis of a dissertation that has occurred in tlie Faculdade de Educação da USP. This paper proposes a reflection about a great valuable point so important to pedagogy: thcacher and student relationship. We have wanted to understand what this relation represents to the pedagogy and in what propositions itself bases on. Since the beginning, the psychoanalysis was the theoretical support that it has lead us to the analysis of the chosen texts. In addition, the main point of this reflection was, especially, the psychoanalytical concept of transference. Actually, this was the reflection's axis. This present paper presents a wide criticism analysis about pedagogical concept of teacher and student relationship and a psychoanalytical reading about this supposed relation.

Education; psychoanalysis; transference; teacher and student relationship


 

 

Podemos apreender da leitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais que atualmente os educadores fazem questão de não se reconhecerem como autoritários, deixam este estigma aos chamados educadores tradicionais (considerados repressores ultrapassados) e se definem, quase sempre, como construtivistas/interacionistas. Mostram-se atentos às formulações da psicologia e delas procuram extrair métodos sempre "mais eficazes" que aqueles que se vinham empregando. Fala-se insistentemente em "saber sobre a fase de desenvolvimento em que o aluno se encontra e estimulá-lo", "trabalhar a partir da realidade do aluno", "motivá-lo", "conhecer os seus interesses", enfim, uma série de prescrições aos educadores, no sentido de adequar a intervenção do professor à realidade da maturação cognitiva e emocional do aluno, seus interesses e motivações.

Vemos a educação escolar e familiar condicionadas a pensar conforme aquilo que dita a ciência psicológica, já que, desta forma, supõem elas, estarão respeitando a "essência" do ser humano, a "sua natureza". O adulto - como educador, como autoridade

diante da criança - exime-se dessa posição, esperando que a ciência responsabilize-se pelos erros e acertos de uma educação. Assim sendo, enquanto espera as instruções do psicólogo, do psicopedagogo ou do manual de educação, o adulto - que carrega uma diferença pelo fato de ter nascido primeiro - hesita e se destitui da responsabilidade de transmitir à criança o que a diferença inerente entre eles vem representar: o conhecimento sobre as produções culturais da humanidade e sobre os caminhos possíveis para viver na sociedade.

A medida certa da adequação dos estímulos oferecidos pelo educador à "natureza" cognitiva e afetiva do aluno caracteriza o que a pedagogia de hoje pensa sobre uma relação psicologicamente ajustada entre professor e aluno. Verifica-se, sem dúvida, uma freqüente preocupação em se descobrir e dominar as "chaves" da relação educativa. O sucesso educativo depende, segundo os pedagogos atuais, dessa "relação adequada". Porém, quando os pedagogos percebem que a tentativa de ajuste na relação não levou ao resultado esperado, apresentam as seguintes justificativas: a ineficácia do método empregado ou do professor (para o qual se sugere um curso de reciclagem), ou, ainda, o atraso na maturação do aluno (que, por sua vez, é enviado a uma clínica psicológica ou psicopedagógica). Portanto, um dos lados da relação estava desajustado, ou seja, para a pedagogia o problema reside na falta de adequação da intervenção do professor à etapa de desenvolvimento em que o aluno se encontra, ou vice-versa.

Nossa crítica recai justamente sobre a ilusão pedagógica da existência de uma adequação na relação. E tratar a tese da adequação como uma ilusão não significa dizer que o adulto não reflita e decida sempre artificialmente sobre como atuar e o que ensinar, mas sim aponta para a ilusão de um ajuste psicológico da relação.

É por meio do conceito de transferência que podemos justificar nossa crítica. Ele vem nos mostrar duas importantes realidades no interior do ato educativo, a saber, a impossibilidade da relação e o aprender enquanto derivado da transferência instalada entre professor e aluno.

Compreender basicamente o que e por que o sujeito transfere demanda uma incursão na teoria psicanalítica de Freud e de Lacan sobre o funcionamento do aparelho psíquico e a constituição do sujeito.

O psiquismo humano funda-se a partir do registro da falta, pois, antes disso, ele estava confundido com um outro (com freqüência, a mãe), o que chamamos de "célula narcísica". Com a intromissão de um terceiro, evidencia-se a castração (a incompletude de ambos), estabelece-se um corte na célula narcísica e nasce daí um novo sujeito, um ser em falta, um sujeito do desejo. A esta passagem pelo registro da falta, ou ainda, pelo registro da castração, dá-se o nome de Complexo de Édipo.

Marcado pela falta, quando o sujeito endereça-se a outro, supõe neste outro o saber sobre seu desejo, sobre isto que lhe falta (o objeto a). O que o sujeito procura no outro é, de certa forma, recuperar o estado mítico de completude; o sujeito espera que este outro ofereça-lhe o reconhecimento, em última instância, o amor. Dizemos que um se aproxima pelo amor, enquanto o outro não sabe o que tem (lembremos do amor de Alcibíades por Sócrates), movendo o sujeito ao encontro de outros. E, portanto, a busca pelo saber sobre o desejo que faz o sujeito apostar na transferência. No entanto, não há saber sobre o desejo, e cada sujeito é, permanentemente, um sujeito desejante.

A noção de transferência vem revelar a complexidade do encontro entre dois sujeitos, pois nele o sujeito atualiza a realidade de seu inconsciente. Por isso, a noção de transferência revela aos pedagogos de hoje a impossibilidade da relação. O que existe, sim, é uma relação imaginária, e isto significa dizer que, por encontrar-se submetida à realidade psíquica singular de cada sujeito, nunca haverá uma relação simétrica; haverá sempre muito mais conteúdo na realidade deste encontro do que dele se pode apreender. De fato, nesta "relação" entre supostos "dois lados" há um conjunto inumerável de outros.

Mesmo que o professor saiba, ou não, sobre a transferência, ela é inevitável e, mais do que isso, ela está implicada no aprender.

Quando o aluno endereça-se ao professor, é porque, inconscientemente, supõe nele o saber sobre seu desejo. Aliás, são os pais que introduzem a criança na transferência com o professor, pois foram eles que sugeriram esta aposta quando a levaram para a escola. A criança vê no professor a possibilidade de realizar o desejo dos pais e supõe que estes estejam dizendo que é o professor quem tem o saber sobre como se torna adulto (em relação ao desejo). Para o aluno, o professor é o sujeito suposto saber. Hoje, por acreditarem na superioridade das teorias do desenvolvimento, nos manuais e especialistas em crianças, parece que esta aposta no saber do professor fica prejudicada. Assim, diríamos que, para os próprios educadores (entre eles, os pais), a escola tem perdido seu espaço e, de certa forma, seu valor.

Mesmo assumindo a posição de sujeito suposto saber atribuída pelo aluno, o professor deve renunciar à posição narcísica de ter todo o saber sobre o aluno e posicionar-se como mediador entre o aluno e o conhecimento. Desta forma, permitirá que o aluno aprenda e permaneça desejando saber, cumprindo os movimentos de aproximação (dependência) e afastamento (superação). Na relação imaginária, interpreta os signos para o aluno, revela os segredos da matemática, da língua, da pátria... A medida que o aluno apropria-se do conhecimento, vai tecendo laços com uma tradição e, pertencendo a esta tradição, vai adquirindo uma identidade - existindo, portanto.

O estudo do ato educativo a partir das proposições psicanalíticas sobre a noção de transferência possibilitou-nos identificar algumas ilusões e enganos no tratamento que a pedagogia atual vem dispensando à educação.

Lembremos que os educadores de hoje pensam que "devem ser adequados" na "relação" com o aluno e que esta adequação é ditada pela ciência psicológica. Isto faz o educador deixar em suspenso qualquer atitude em nome da natureza professada pela teoria e destituir-se do papel de autoridade. Em outras palavras, evitando ser inadequados, acabam, muitas vezes, posicionando-se como meros espectadores desta suposta natureza de seus alunos. Sendo assim, destituem-se da posição de sujeito suposto saber atribuída pelo aluno, desfazendo a primeira condição da aprendizagem: a dependência inicial do aluno em relação ao professor. Tendo em vista que o sujeito suposto saber é o princípio constitutivo da transferência, é supondo no professor o saber sobre seu desejo (saber impossível) que o aluno se coloca em condição de participar da transmissão dos saberes constituídos (saberes possíveis). Não assumindo a responsabilidade pela transmissão da cultura acumulada pela civilização, o educador retira de cena o que levaria o aluno a apostar na sua figura, como meio de alcançar o saber sobre o lugar que ocupa no mundo.

Por outro lado, essa mesma natureza, cientificamente professada, põe o educador diante de uma pretensa certeza sobre o aluno e aquilo de que ele necessita. Acredita que, com o domínio da ciência sobre a criança ou sobre a "relação", pode dizimar a falta, atingir a completude idealizada. Pode-se dizer que, se no passado se ensinava em nome do ideal de uma moral religiosa, hoje a pedagogia ensina em nome do ideal psiconaturalista. Melhor dizendo, a pedagogia acredita saber sobre o bem-estar no mundo e ser capaz de criar indivíduos mais felizes. Esta certeza faz com que aposte na produção de seres humanos cognitiva e emocionalmente ideais. Assim, pratica o que Maud Mannoni (1988) chama de perversão do dispositivo educativo, a perversão da autoridade tal como fez o Dr. Schreber. Perverte a transferência enquanto a utiliza, a fim de conformar os alunos a um ideal previamente estabelecido. Propaga um discurso sedutor, não menos autoritário, que termina por alienar o aluno numa promessa.

Como vimos, hoje o educador transita entre o nada saber (pois pensa que o conhecimento está submetido à natureza do aluno) e o tudo saber sobre o que quer uma criança, e como fazê-la feliz. Pode-se dizer que em ambos os aspectos a pedagogia atual peca pela intenção de apagar a diferença. No primeiro, a diferença é apagada na medida em que o professor se infantiliza, não assume a posição de autoridade, de sujeito suposto saber, por acreditar ser essa posição contra a "natureza" do aluno, como diz Lajonquière: "Nos dias que correm, supõe-se que o adulto deva se eclipsar, renunciando à sustentação do ato educativo - ou seja, renunciar à possibilidade de que se desdobre a diferença que se aninha entre ele e uma criança -, para assim vir supostamente a produzir crianças felizes e criativas, sintonizadas com o 'futuro'. A pedagogia vem professando semelhante ilusão há quase um século e, por outro lado, o cotidiano escolar, embora ainda apresente pontos de resistência, passa a estar tencionado a partir desse ideário" (1999, p. 27). No segundo, tenta-se eliminar a diferença ao acreditar na possibilidade de conformar os alunos a um ideal (o Ideal do Ego) que traria a felicidade aos futuros adultos e que converteria os pedagogos em Ego Ideal, a própria realização da felicidade, sabedores do bem-estar no mundo.

É basicamente sobre este engano que a psicanálise vem alertar os educadores. Vem revelar a diferença que diz da singularidade de cada sujeito, portanto a diferença entre aquilo que se tenciona atingir no sujeito e a realidade do que se atinge numa pretensa relação. Mais ainda, a psicanálise nos fala sobre o impossível de se viver na plenitude como condição para se viver na sociedade, isto é, a felicidade está fora da sociedade e para que ela se mantenha, as realizações são adiadas ou substituídas. Não há como fazer retornar àquele momento mítico de realização total, de completude. Por. isso, a pedagogia não pode cumprir sua promessa. A realidade da vida civilizada submete os sujeitos a uma condição: a falta a ser, em suma, a diferença.

Arriscamos dizer que aí reside a origem do mal-estar pedagógico, a negação daquilo que marca o ser humano: a angústia, a falta que leva o sujeito a transferir para outro o saber sobre o desejo. Desta negação resultam as buscas infrutíferas de controle por meio de métodos cientificamente fundamentados e de uma relação psicologicamente adequada.

Para finalizar, lembramos mais uma vez que o sujeito suposto saber é o princípio constitutivo da transferência e que a pedagogia de hoje posiciona-se de forma que ele seja invalidado e pervertido. Deduzimos daí que a transferência é algo que incomoda os pedagogos de hoje. De fato, ela inflige ao educador a renúncia da ilusão de estar na origem dos motivos afetuosos e hostis que lhe são endereçados e, então, revela a impossibilidade de uma relação simétrica.

Na história pregressa do conceito de transferência, soubemos que Breuer não sustentou os efeitos da transferência de Anna O. Arriscamos dizer que Breuer supunha garantir, com o domínio do método catártico, a relação mais adequada entre médico e paciente. Ao descobrir-se objeto dos afetos de Anna O., e desconhecendo o fato de ele próprio não estar na origem destes afetos, Breuer temeu a impossibilidade do controle da transferência.

Enfim, diante da recusa da realidade transferenciai pela pedagogia, concluímos que tal. recusa repousa no fato de a pedagogia atual ter tanto medo da transferência quanto Breuer.

 

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Recebido em março/2001