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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.7 no.13 São Paulo  2002

 

DOSSIÊ

 

Todos os avatares da transferência no hospital-dia: quarta jornada do Cerep

 

Transference in all its states in a day-hospital

 

 

Bernard Penot

Psicanalista, membro titular da Sociedade Psicanalítica de Paris, diretor do Hospital-dia para adolescentes do parque Montsouris

 

 


RESUMO

Trabalhar como psicanalista com uma equipe institucional para tratar de jovens psicóticos ou de « casos limite » (patologias de comportamento) torna necessária a análise conjunta da transferência inconsciente, na medida em que estamos diante deste tipo de transferência (não fantasmática), que proponho chamar de repetição induzida no outro. O caso Angel pode fornecer um exemplo deste trabalho psicanalítico conjunto, indicado para esses jovens com dificuldades de simbolização - isto é, de fantasmatização e de verbalização.

Construção em análise; Fantasmatização; Repetição Terapia de familia; Transferência


ABSTRACT

Working as a psychoanalyst with an institutional team treating young psychotics or "borderline cases" (conduct pathologies) requires us to analyse together the unconscious transference. This is especially necessary insofar as we are dealing with the type of (non-fantasmatic) transference that I proposed to call repetition induced in the other. The case of Angel can provide an example of how several therapists can work psychoanalytically together, which is especially indicated with these youngsters who present a deficit of symbolization - i. e. of fantasmatization and verbalization.

Construction in analysis; Fantasmatization; Repetition; Family therapy; Transference


 

 

Quase todos os jovens pacientes recebidos em hospital-dia sofrem de patologias da subjetivação. No Cerep-Montsouris, aproximadamente dois terços dos adolescentes apresentam de início um quadro de descompensação psicótica - a maioria desde a infância, e outros tendo se revelado delirantes após a passagem pubertária. Quanto à terça parte restante, esta é formada por casos-limite, com uma sintomatologia sobretudo comportamental, marcada pela despersonalização. O que é importante em todos esses casos é que não se pode esperar do jovem que ele forneça, através de seu próprio discurso, as chaves para compreender aquilo de que ele sofre manifestamente. Poderíamos dizer que o interessado está como que despossuído das raízes de tal discurso possível.

Isto não significa que ele não tenha se fabricado, em alguns setores de sua psique, uma certa via fantasmática, às vezes até rica - tanto isto é verdade que ninguém jamais é totalmente psicótico, como o demonstram alguns criadores geniais. Ocorre que pretender aplicar a essas patologias delirantes ou comportamentais uma escuta clássica considerando apenas o que eles podem verbalizar, seria assemelhar-se ao indivíduo que se obstina em procurar seu relógio perdido sob um candeeiro - não porque pense ser o provável lugar dessa perda, mas porque ao menos ali há luz!

Ora, nosso longo trabalho com esses adolescentes em dificuldade subjetiva grave possibilita verificar com muita freqüência que os setores em que seu pensamento pára correspondem exatamente a zonas problemáticas para suas famílias, e em primeiro lugar para seus pais. Por menos que se organizem entrevistas regulares com esses últimos, iremos constatar sua incapacidade em produzir um discurso capaz de dar conta de algumas provas de sua história particular. A família enquanto coletividade parece ter falhado em secretar uma quantidade suficiente de mytho (em grego antigo, mûthos significa simplesmente "palavra") de modo a representar-se a si mesma através de ligações significativas que possam dar sentido à sua história. No entanto, qualquer organismo coletivo deve produzir tal discurso significativo referente à sua experiência vivida: é a condição de sua própria continuidade através de uma herança que faz laço geracional.

Tanto que um novo discurso da experiência das gerações sucessivas, com freqüência irá requerer um requestionamento crítico, através do comentário dos "faltamentos" que puderam adornar sua história. Ora, tais faltas não deixam de suscitar certas defesas narcísicas que visam a colmatar as vivências traumáticas, as dores de amor-próprio sentidas com ou sem razão pela família - isto tomará sobretudo a forma de uma rejeição de significação, como negação, sendo que uma das conseqüências é privar a geração seguinte de certos laços de discurso que lhe seriam necessários para situar-se existencialmente e captar sua própria gênese.

Tal perspectiva geracional das dificuldades de mentalização de nossos jovens pacientes baseia-se na noção fundamental de matriz originária ativa de significações, indispensável no início para cada ser humano na aquisição das condições para uma vida fantasmática pessoal - e que se passa em primeiro lugar nas interações entre mãe e filho. O interesse dessa ótica é fornecer o modelo de um dispositivo terapêutico que favoreça a aquisição de uma realidade psíquica até então defeituosa. Isto nos conduz a insistir no fato de que uma instituição terapêutica com o objetivo de ajudar jovens pacientes a transpor uma dificuldade maior de subjetivação deve constituir não somente um lugar de palavra, com sessões ou atos técnicos, tão freqüentes quanto possam ser, mas um espaço para viver junto e produzir um discurso comum. Quer dizer que a instituição deve se organizar de modo a constituir um lugar propício ao nascimento de um discurso a partir da experiência vivida em conjunto.

Mas, para poder participar de tal evento de palavra, uma equipe de profissionais não deve se limitar a partilhar com os jovens atividades quotidianas de vida; esta deve prestar-se ao mesmo tempo ao suporte à retomada das falhas de cada caso - a partir precisamente de sua transferência no coletivo institucional. Uma tarefa prioritária do trabalho de equipe será desde já reconhecer tal repetição das dificuldades próprias ao caso na instituição, através do contato diário com o mesmo.

Assim que um adolescente com descompensação psíquica é admitido no hospital-dia, seu investimento no meio terapêutico geralmente se assinala por um fenômeno bastante característico. Através de nosso trabalho de síntese clínica, identificamos o estabelecimento de uma espécie de divisão subjetiva surpreendentemente contrastada nos adultos que se ocupam do caso em questão. Colegas que até então se entendiam bem começam repentinamente a suspeitar mutuamente de incompetência e até mesmo dos piores defeitos...

Isto se percebe habitualmente, não tanto em termos de conflito, mas de incompatibilidade, com surpreendente impossibilidade para cada uma das pessoas implicadas de identificar-se com a posição subjetiva do colega. Devemos desde então trabalhar a partir de um posicionamento subjetivo dos profissionais numa relação mútua de rejeição/exclusão e de desqualificação - fenômeno de invalidação recíproca cuja intensidade se revela mais ou menos proporcional ao grau de psicotização do caso.

Essa constatação regular nos levou, após 20 anos, a considerar metodicamente em equipe o fato de estarmos diante de uma espécie particular de transferência - para dizer de outra forma, uma espécie particular de deslocamento (Ubertragung) no meio terapêutico, de relações existenciais que puderem preceder à gênese primeira do caso em seu meio matricial original. Assim, aprendemos a tolerar sem muito incômodo esse fenômeno sempre difícil no início, mantendo-nos atentos sobretudo em relação a pretender transpô-lo em termos de quem teria razão ou não. Trata-se de considerar, ao contrário, que cada uma das vivências em presença pode ser preciosa por si mesma, pois possibilita restituir1 algo da verdade das condições primeiras no desenvolvimento do paciente.

Realizamos, desta forma, que aquilo que se encontra assim transferido entre nós é finalmente uma dinâmica de rejeição-reprovação (de-negação) (Verleugnung) tal como se pode dar na matriz familiar. Aquilo que poderia restituir ao jovem os meios de transpor os efeitos destrutivos deveria ser também, antes de mais nada, um trabalho psíquico entre terapeutas; e não cabe, nesse estágio que poderíamos chamar de pré-subjetivo, dirigir alguma interpretação direta à pessoa do jovem paciente. Pois, de fato, o estrito determinismo da repetição estará ultrapassado - de modo que vemos a sintomatologia compulsiva se modificar tanto quanto tal fenômeno seja reconhecido e sustentado pelos profissionais durante o tempo necessário, e também recolocado no circuito (de palavra) na terapia familiar. Verifica-se então que tal determinismo introduzido no outro não provinha de disposições fantasmáticas próprias ao paciente, mas que seu poder indutor era, ao contrário, mais incessante do que poderiam falhar, em sua vida psíquica, os dados de uma construção fantasmática.

Percebe-se também que, para melhor podermos captar tal fenômeno no contato com pacientes com dificuldade de simbolização, recomenda-se o trabalho psicanalítico em conjunto - o que se inicia pelo fato de proporcionar os meios de identificar a transferência que não deixou de se efetuar com um ou outro membro da equipe.

 

O TRABALHO PSICANALÍTICO CONJUNTO

Comecei a conhecer a importância de tal fenômeno de indução (em relação ao qual tendemos espontaneamente a considerar como simples realidade) através de minha prática de psicodrama psicanalítico individual com tal adolescente psicótico, em meados dos anos 70. Eu me via surpreendido pelo fato de ver um ou outro colega, sem ter quase nenhum conhecimento da história do paciente nem de sua família, adotar espontaneamente em seu jogo atitudes que eu sabia serem específicas de um dos pais, e até mesmo reproduzir entonações específicas! A informação só poderia ser passada através do próprio adolescente (mais ou menos mudo), mas como? Eis aí um fenômeno sem dúvida enigmático.

Isto nos levou a pensar que o trabalho concomitante com a família poderia ser de um auxílio precioso, no mínimo para aliviar nosso desconforto de terapeutas em endossar estranhas e desagradáveis atitudes. O fato de poder trazer essas vivências particulares à própria família irá nos ajudar a descolar mais facilmente da compulsão em que essas vivências tendem a se inscrever. Isso relativiza a virulência de relações necessariamente vividas a priori como pessoais, tornando mais fácil aos terapeutas assumir como pessoa própria esses papéis (transferenciais) antagonistas, e isso no tempo necessário para articulá-los como conflito dialetizável.

Foi interessante verificar de passagem que o grau de clarividência de cada um - pelo menos no primeiro tempo do trabalho de síntese em equipe - não depende da competência nem mesmo da experiência profissional (principalmente psicanalítica) que este pôde adquirir; mas dependeria do lugar (transferenciai) que ele vem ocupar na distribuição em torno do caso - lugar que determina seu modo de implicação subjetiva e, conseqüentemente, de cegueira.

 

O MODELO DA CARTA ROUBADA

O Seminário de Lacan (1966), A Carta Roubada, parece-me fornecer um bom "modelo" conceituai. Lacan descreve aí de modo magistral a sucessão dos posicionamentos subjetivos dos personagens da história de Edgar Alan Poe (o rei, a rainha, o ministro, o delegado, Dupin) em torno da dita carta2. Ele lembra as sucessivas distribuições de papéis subjetivos em função da relação que cada um vai manter, em cada cena, com o objeto comprometedor (modificando sua própria personalidade).

Lacan ressalta o quanto tais induções intersubjetivas necessitam do estabelecimento de um certo dispositivo para serem captadas. Lacan evidencia isso na própria escrita de Poe (o que é para nós, hoje, o relato em síntese clínica). "A narração", diz ele, "com efeito reforça o drama com um comentário sem o qual não haveria encenação possível. Digamos que a ação permaneceria, propriamente falando, invisível para a platéia." "Em outras palavras, que nada do drama poderia evidenciar-se, nem nas tomadas nem na sonorização, sem a luz quebrada, digamos, que a narração confere a cada cena do ponto de vista que um de seus atores tinha ao representá-la." "Sendo assim, dado o módulo intersubjetivo da ação que se repete, resta reconhecer aí um automatismo de repetição, no sentido que nos interessa no texto de Freud" ... "O que nos interessa hoje é a maneira como os sujeitos se revezam em seu deslocamento no decorrer da repetição intersubjetiva." ... "Veremos que seu deslocamento é determinado pelo lugar que vem a ocupar em seu trio esse significante puro que é a carta roubada. E é isso que para nós o confirmará como automatismo de repetição (p.5)."

Essa expressão surpreendente, "puro significante", aplicada ao objeto-carta será esclarecida em seguida ao comentário de Lacan em função da constatação de que Poe nada dá a seu leitor sobre a significação dessa carta, nem sobre seu conteúdo ou sobre a mensagem que ela veicula. A carta constituiria assim um "puro" significante enquanto permanece totalmente enigmática (pensamos aqui no trabalho de Jean Laplanche).

Proponho considerar que é próprio de um psicótico que passa por um coletivo (profissional) introduzir efeitos intersubjetivos não menos consideráveis. Isso se deve ao fato de veicular em si mesmo algo que é ao mesmo tempo enigmático e comprometedor para aqueles que pretendem cuidar dele: a criança psicótica não é, por si mesma, o representante de um "faltamento" familiar levado para fora da significação?

Ora, "se o que Freud descobriu tem algum sentido", prossegue Lacan (1966), "é que o deslocamento do significante determina os sujeitos em seus atos (...), não obstante seus dons inatos e sua posição social, sem levar em conta o caráter ou o sexo, e que por bem ou por mal seguirá o rumo do significante, como armas e bagagens, tudo aquilo que é da ordem do dado psicológico". E conclui: "Eis-nos aqui, novamente, na encruzilhada em que havíamos deixado nosso drama e sua ronda, com a questão do modo com que os sujeitos se substituem. Nossa apologia é feita para mostrar que é a carta e seu desvio que regem suas entradas e seus papéis. Que ela fique à espera, são eles que sofrerão por isso. Ao passarem sob sua sombra, tornam-se seu reflexo. Ao entrarem de posse da carta/letra (...) é o sentido dela que os possui (p.30)". "A letter, a litter!" - uma carta, um dejeto -, exclama ele, fazendo eco aos exegetas de Shakespeare. E, de fato, o dejeto extraviado (The purloined letter é o título de Poe) que constitui o psicótico em instituição tem, nem mais nem menos, o poder de se por a causar ("objeto causa") a vida psíquica dos profissionais que se comprometem com ele.

Parece-me que qualquer um que tenha experiência de trabalho em equipe com esses seres enigmáticos que são os psicóticos pode sentir o quanto o comentário de Lacan (se quisermos cometer essa violência de substituir a carta roubada pelo psicótico) deve ser considerado.

Insistirei ainda, para terminar, sobre o dado de que o termo usual de contratransferência não se presta bem para designar esse fenômeno de indução subjetiva. Este foi concebido por Freud para designar a reação subjetiva de um analista à projeção lantasmática efetuada sobre sua pessoa pelo paciente. O fenômeno que acabamos de descrever se passa num nível muito diferente, aquém de qualquer fantasma constituído. Insisti no fato de que seu poder de indução repetitiva era tanto mais irrefreável quanto falhava no paciente uma construção fantasmática. A repetição induzida no outro curto-circuita completamente o sistema pré-consciente do analista mais experiente.

O fato de nos darmos conta do fenômeno entre nós, reconhecendo de que modo estamos implicados, e, depois, de suportar viver isso um tempo suficiente, relacionando vivências discordantes surgidas no contato do jovem paciente, tudo isso já realiza em si uma transposição do estrito determinismo de repetição: pois podemos pensar que tal disposição intersubjetiva não poderia, até agora, na constelação (familiar) original do caso, ter acesso a uma tal representabilidade nem a uma tal subjetivação.

Proponho relatar a vocês, sucintamente, e com o recuo de alguns anos, o atendimento particularmente difícil de um adolescente fortemente despersonalizado através de uma problemática de adoção.

 

O CASO ANGEL

Este menino nos foi encaminhado aos 14 anos, para admissão em hospital-dia, com o rótulo de esquizofrenia inicial e com uma prescrição de Haldol feita por um colega do atendimento particular. Ele havia sido adotado por um casal da burguesia parisiense em função da azoospermia confirmada do pai. Algo me chama a atenção imediatamente nas circunstâncias desencadeadoras da descompensação desse menino: esta teria sido produzida em seguida à descoberta de uma subicterícia congênita (hiperbilirubinemia benigna, dita Doença de Gilbert). O adolescente teria sido capturado pouco depois de uma experiência angustiante com tonalidade persecutória, tornando-se violentamente agressivo e rejeitador, principalmente em relação à mãe. Ele foi expulso de sua escola, depois rejeitado por outros, de modo que acabou logicamente entre nós...

Não podíamos deixar de nos questionar sobre o estranho poder desestabilizador desse estigma congênito que apareceu na puberdade, como uma espécie de presentificação fantasmática dos pais, tão reais quanto desconhecidos (forcluídos).

A mãe, muito dona de casa, insistia em repetir: "Para mim, é como se eu o tivesse posto no mundo". Esforçando-se para reconstituir bem a infância do filho, apoiando-se numa impecável caderneta de saúde, ela me diz que esse lindo bebê pareceu-lhe talvez no início (com menos de um ano) um pouco rígido, crispado. O pai intervém então para precisar: "Ele desconfiava!", num notável movimento de identificação projetiva. Diante do bebê de origem desconhecida que lhe é proposto, o adotante não temeria alguma tara de que a criança poderia ser portadora? Aqui, a subicterícia metabólica, ainda que benigna, não viria alimentar precisamente essa desconfiança inicial?

Essas disposições do pai, notavelmente projetivas, iriam se confirmar com freqüência em seguida. Assim, sobre as idéias de extrema direita notadamente preferidas pelo menino, esse pai (azospérmico) não hesitava em comentar (com orgulho): "Vocês sabem, se dependesse do meu filho, haveria menos gente na Terra!".

Uma vez admitido em nosso hospital-dia, o menino iria rapidamente se mostrar mais perverso do que esquizofrênico. Vou chamá-lo de Angel pensando no anjo do filme Teorema, de Pier Paolo Pasolini. Não poderei detalhar aqui as peripécias do trabalho terapêutico institucional que tivemos que sustentar com ele durante três anos. Para nós, tratava-se principalmente de transpor os efeitos destrutivos de vivências incompatíveis que tendiam a se instaurar entre profissionais em contato com esse estranho menino: tudo se passava como se as posições subjetivas de uns e de outros se excluíssem mutuamente, em termos de desqualificação recíproca.

O próprio Angel não parecia ser afetado por aquilo que se passava em seu contato. Ele parecia estar pouco implicado enquanto sujeito por esses efeitos repetitivos de corte mútuo de reprovação/clivagem em suas referências principais. Isso parecia confirmar para ele algo da ordem de uma resposta confusa e enigmática de seu Outro referencial.

Durante seu segundo ano de atendimento, sua psicóloga referente conseguiu superar o constrangimento para verbalizar, durante uma síntese clínica, um mal-estar surpreendente de que era acometida quando se encontrava sozinha numa sala com Angel: ela sentia ameaças de desmaio, de síncope, com uma espécie de confusão do pensamento. Demo-nos conta de que ela não teve idéia de pedir ajuda a seus colegas, que, no entanto, se encontravam ao alcance da voz - um pouco como Freud (1918) relata a experiência do Homem dos Lobos diante da alucinação do dedo cortado sem poder chamar sua Nania, bem próxima. Diríamos que algo de inominável se passou, fora do campo de uma formulação possível, com um afeto confuso de estranhamento e de vergonha. O comprometimento íntimo com Angel (ser enigmático, adotado, desviado) parecia realmente suscitar algo dessa ordem.

A violência de tal fenômeno parecia tão mais chocante por se tratar de uma psicóloga experiente, analisada e antiga enfermeira. Mas um forte contraste surgiria, em seguida ao nosso trabalho de síntese, com as disposições subjetivas de outras profissionais: uma delas conta que ela deixava, de bom grado, que Angel lhe fizesse carinho a cada manhã, certa de ver ali uma manifestação inocente de um pequeno rapaz "não suficientemente mimado", enquanto outras declararam suportar mal tais cenas, julgadas "perversas".

Os homens também se dividem no trabalho de síntese segundo disposições subjetivas violentamente contrastantes: o educador referente de Angel se queixa, por sua vez, de sentir-se constantemente reprovado por outros - "enganado", diz ele (!) -, enquanto um de seus colegas, ao contrário, vive positivamente sua relação quotidiana com esse menino que o incita à solicitude.

Sabe-se o quanto prevalece um julgamento pejorativo no espírito dos adotantes com dificuldades, desqualificando os pais que eles se imaginam. Aprendemos a reconhecer tal disposição em pais adotivos de numerosos casos de adolescência patológica que somos levados a tratar; essa desqualificação imaginária dos pais supostos se revela tanto mais "desnarcisante" para a criança adotada quanto é inconsciente para os adotantes.

De fato, é chocante constatar quão pouco os pais adotivos realizam o ataque que representa para seus filhos a idéia desfavorável que estes têm sobre a sua origem. Eu diria que quanto mais essas formações imaginárias defensivas parentais são desconhecidas enquanto tais, maior se revelará sua incidência tóxica sobre a saúde psíquica do jovem. Uma espécie de semiclivagem parece se manter longamente, e isto tanto mais quanto essas projeções desqualificantes da parte dos adotantes visam ao contrário à valorização de sua parentalidade de adoção.

O fantasma adotante tende a formar então uma espécie de duplo cego no qual o jovem pode apenas se debater (caracterialmente, comportamentalmente) para tentar se desprender. A criança adotiva recebe de fato uma mensagem do tipo: você tem ainda mais valor para nós, pois pensamos tê-lo salvo de uma má origem. Mensagem paradoxal que tende a alimentar um circuito negativo como um boomerang - digamos, para simplificar, entre abandonadores-indignos e raptores-impotentes-de-progenitura...

Portanto, com Angel, foi através de um trabalho de mentalização dessas vivências difíceis e da relação impossível que estes instauravam entre os profissionais de nossa equipe que chegamos a nos representar cuidadosamente uma gênese possível - mas, claro, hipoteticamente, no sentido das construções na análise (Freud, 1937). A psicóloga referente de Angel acabou por expressar em síntese, com raiva e rancor, que ela se sentia na instituição como "uma mulher sem proteção suficiente". Ela pôde, então, ver até que ponto poderia encontrar-se marcada como suporte de uma provável vivência da genitora desconhecida, fantasmática - como uma espécie de Dibbuk de um ser que sofre, desconhecido, abolido, lord u ido.

Todo esse trabalho de subjetivação realizado entre os profissionais em torno de Angel pôde dar a ele, pouco a pouco, mais espaço de subjetivação: ele desenvolveu progressivamente uma vida fantasmática bastante rica, fabricando-se principalmente um romance familiar para uso pessoal. Imaginou-se uma origem anglo-saxônica que seu físico ruivo tornava plausível. Queria que seus colegas o chamassem bad luck - o que levava à questão: bad luck para quem? Para ele, por ter tido tal destino? Para seus pais, por terem-no concebido? Para seus pais adotivos por terem sorteado esse número errado? Para nós mesmos, enfim, às voltas com esse caso tão difícil? ... Alguns anos depois de sua cura, ele quis me rever para me perguntar sobre... a função paterna - pois ele já havia gerado uma família numerosa...

Um caso clínico como o de Angel é interessante por evidenciar os efeitos forclusivos que emanam de certo tipo de defesa imaginária (narcísica) dos pais. Eu diria que em alguns adotados esses efeitos podem se manifestar "mais nitidamente do que se observa normalmente", como exprime Freud em sua carta a Romain Rolland (1936). Estes são levados a uma defesa narcísica parental que se exerce sobretudo no modo da negação, consistindo em rejeitar a própria significância daquilo que deveria ser reconhecido como falta referencial: a esterilidade, por exemplo, ou a herança biológica vinda dos pais, etc. Pode-se ver que tal dejeto tem o inconveniente de invalidar ao mesmo tempo, na geração seguinte, o sujeito particular que poderia ter aí se produzido3.

A história de tal tratamento institucional pode dar idéia de um registro de transferência próximo ao puro determinismo de repetição e capaz, como tal, de captar o terapeuta que temerariamente ocupou-se de tal objeto enigmático. Tudo se passa, com efeito, como se nos diversos profissionais viesse encarnar-se uma certa carência de representação e, por conseguinte, de articulação significativa - no mínimo em termos de processo primário de pensamento. De fato, o terapeuta, qualquer que seja sua experiência pessoal da análise, não poderá captar aí sua implicação a não ser no "après-coup", de modo dedutivo, e isto na medida em que teve o cuidado de falar com outros! Como se tal determinismo em falta de representação tivesse a propriedade de curto-circuitar o sistema de representações (pré-consciente) dos profissionais.

Mas tais transferências em reprovação-clivagem não são abrigadas nas instituições psiquiátricas, de modo que o praticante solitário da psicanálise encontra-se também exposto a esse fenômeno e sem dúvida com muito mais freqüência do que ele pensa! Pois a falta de confronto com outros pontos de vista que caracteriza sua prática comum tem o defeito de impedi-lo de se dar conta da parcialidade profunda de sua posição4. Isto confere um valor ainda mais notável aos caminhos abertos por Donald Winnicott a partir de sua prática única de curas individuais.

 

O SABER-BRINCAR DO BOM DOUTOR WINNICOTT

Insisti no fato de que com tais casos em déficit de subjetivação fantasmática o trabalho interpretativo deve, em alguns momentos, aplicar-se ao problema de subjetivação do próprio terapeuta - que esse tipo de transferência coloca no lugar de um proto-sujeito exterior5.

Donald Winnicott tem o mérito de ter dado notáveis ilustrações disso em algumas de suas curas onde se reatualizava uma certa carência dos protagonistas originais do paciente. Gostaria de mencionar como exemplo o caso desse paciente6, que já havia passado por várias análises pouco frutíferas e ao qual ele não hesita em declarar, um dia, numa sessão: "Estou ouvindo uma menina. Sei perfeitamente que você é um homem, mas eu ouço uma menina, e é a uma menina que eu falo. Eu digo a esta menina: você fala da inveja do pênis".

Winnicott faz esse comentário après-coup: "Fizeram-me notar que a minha interpretação (...) estava bastante próxima de um jogo e tão longe quanto possível de uma interpretação autoritária que leva ao doutrinamento".

Quando, na sessão, o paciente reage dizendo: "Se eu começasse a falar desta menina para alguém, pensariam que eu sou louco!", Winnicott surpreende-se em responder: "Sou eu que vejo a menina e a ouço falar, enquanto na realidade é um homem que está em meu divã. Se há algum louco aqui, sou eu!"

Mais tarde ele diz que essa sua loucura permitiu (enfim) ao paciente ver-se como uma menina, mas do lugar do outro-sujeito (o analista no caso). Ele constrói a hipótese de que a mãe desse paciente (já morta) o havia "visto" inicialmente como o bebê menina que ela esperava; de modo que este filho teve que se conformar com essa idéia de sua mãe de que "ele deveria ser e era uma menina". Foi preciso que ele organizasse o seu eu a partir desse dado (encontramos algo dessa ordem nos transexuais).

Poderíamos considerar tal dado como uma espécie de falso real - no sentido da proposta de Lacan de que um imaginário parental malsimbolizado voltaria como real na vida do filho. A loucura da mãe desse paciente, vendo uma menina onde deveria ver um menino, encontrou-se restituída (simbolizada) através de uma capacidade do analista em reconhecê-la como sua, na transferência (se há algum louco aqui, sou eu!).

Eu diria tratar-se precisamente nesse caso de começar por reviver uma "comunidade da negação" (Michel Fain) entre pai e filho, transferida como tal na relação analítica - "loucura" parental de que devemos pensar que esta permanecia para o paciente num estatuto de real psíquico, de marca perceptiva não-integrável, enquanto tal num fantasma e mesmo na integração imaginária do eu (Winnicott precisa que aqui não se trata de homossexualismo).

 

UMA TRANSFERÊNCIA NÃO-FANTASMÁTICA

Resulta de tudo o que precede que a existência de um fantasma constituído (ainda que inconsciente) no psiquismo não deve ser evidente, como um dado natural do desenvolvimento de cada um. Este é um obstáculo conceituai que, com freqüência, nos separa de nossos colegas psicanalistas anglo-saxões. Freud, no entanto, levantou a questão capital da construção do fantasma na primeira parte de seu texto bate-se em uma criança (1919)7.

Sabe-se que no início Freud definiu a transferência como uma operação de deslocamento (Ubertragung) do passado para o presente, de um protagonista para outro, etc. Mas tal deslocamento pode se efetuar em registros bem diferentes; de modo que podemos observar toda uma gama de "transferências" formando um amplo espectro qualitativo segundo seu grau de simbolização e até mesmo de figurabilidade na psique do paciente.

As transferências na ausência de imagem psíquica testemunham a importância do real enquanto categoria psíquica. Elas provêm de um registro de marcas perceptivas que permanecem aquém das possibilidades de representação psíquica ou formam, como indica Lacan, um resíduo (inevitável) das operações de simbolização. Assim, tal real psíquico não deve ser confundido com a "realidade" do mundo recortada, por exemplo, pelos significantes da psique, nem reduzido sumariamente ao registro biológico.

De fato, somos surpreendidos pela constatação de que os fenômenos de transferência nesse registro tendem a ir de encontro ao mais puro determinismo de repetição (Wiederholungszwang), tanto mais que uma construção qualquer de fantasma vem falhar aí. Estes provêm sobretudo de marcas pela falta: lacunas de representabilidade em que certas carências relacionais primeiras têm naturalmente um papel primordial. Tal "falta" de qualidade psíquica resulta de fato, muitas vezes, de atitudes parentais sob a forma de negação de significação. (Penot, 1989).

A atualização repetitiva se produz então, seja no comportamento do próprio paciente, seja através de sintomas corporais e de somatizações, seja ainda na sempre surpreendente repetição induzida no outro (principalmente no terapeuta) como a acima ilustrada.

A tarefa essencial de nosso trabalho de analista é dar um tal determinismo mentalmente representável pelo paciente, e assim por ele subjetivável. Mas percebemos que, como nas histórias de feitiçaria8, é mais ou menos impossível para o terapeuta não se encontrar ele mesmo preso pelo surpreendente poder de indução no outro que têm essas marcas com carga mais ou menos traumática. Os pacientes com falta de fantasmatização colocam o analista diante da necessidade de efetuar um difícil trabalho de apropriação subjetiva de um já-a contecido-não-verdadeiramente-vivido, como Winnicott concebeu: uma percepção mal simbolizada que irá insistir em fazer retorno (indo de encontro ao interesse de Freud pelo retorno).

E notável que os reaparecimentos fantasmáticos tenham estado sempre compreendidos na cultura popular tradicional como resultado de uma verdade ridicularizada, de uma negação de julgamento que exigiria ser reconsiderada; mas também não poderia cessar o retorno a não ser a partir do momento em que a verdade tenha sido suficientemente restituída - e é este termo (Wiederherstellung) que Freud utiliza no final de Construções na análise (1937).

O analista às voltas com uma forma de retorno sintomático num tratamento poderá constatar o quanto isto pode diferir qualitativamente de um banal jogo transferencial-contratransferencial. Ele irá medir a distância entre aquilo que ele tem o costume de captar em sua prática como contratransferência no sentido concebido por Freud, isto é, suas reações subjetivas ao investimento fantasmático operado nele, e um modo de implicação subjetiva de uma outra natureza. Quando ele conseguir constatar que ele foi pego em seu corpo defendendo na repetição induzida no outro, ele perceberá o quanto tal tomada subjetiva difere estruturalmente (topicamente) de suas habituais reações pré-conscientes aos fantasmas do paciente.

Eu disse que nesse grau de alienação mútua na transferência, a interpretação não deveria ser dirigida, num primeiro tempo, ao paciente supondo-o como sujeito. Nesse estágio realmente pré-subjetivo da problemática em questão, é importante ao contrário manter em suspenso tanto quanto possível o julgamento de atribuição (Freud, 1925).

Isto é particularmente verdadeiro no tipo de trabalho psicanalítico com várias pessoas, do qual quis dar conta: a análise da transferência tal como podemos efetuá-la durante uma síntese deve evitar o impasse de pretender saber quem deteria o papel e a visão corretos. É essencial que cada um, qualquer que seja sua função, possa expressar livremente - sem crença de um julgamento atributivo ad personam - o papel subjetivo in opinado dirigido a seu corpo defensor. Pois é tal retorno sob forma de auto-reconhecimento no outro que pode estar na medida de abrir (identificatoriamente?) a via de um estabelecimento em imagens e em palavras até então inacessível ao paciente, possibilitando a este apropriar-se de novos instrumentos de representação mental para seu próprio uso.

E será em função dos progressos que um jovem paciente terá podido fazer em direção a uma melhor subjetivação disto, com o estofo de uma vida fantasmática própria, que poderemos aconselhar-lhe o momento para um tratamento individual com um psicanalista.

Enquanto isso, participar de um trabalho de equipe obriga o psicanalista a uma modéstia que não constitui a tendência mais habitual de sua profissão: ele deve admitir a relatividade de sua posição subjetiva e, sobretudo, o fato de não se encontrar necessariamente desde o início como o que está mais bem-colocado para captar bem!...

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Freud, S. (1918). L'homme aux loups. In Oeuvres complètes XV. Paris: PUF,1998.         [ Links ]

____ (1919). Un enfant est battu. In Oeuvres complètes XV. Paris: PUF.1998.         [ Links ]

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____(1936). Carta a Romain Rolland. In Oeuvres complètes, II. Paris: PUF, 1998.         [ Links ]

____(1937). Constructions dans l'analyse. In Résultats, idées, problèmes II. Paris: PUF, 1998.         [ Links ]

Godley, W. (2001). My lost hours on the couch. In Times Newspapers Ltd (website).         [ Links ]

Lacan, J. (1966). Le seminaire sur la Lettre Volée. In Écrits. Paris: Seuil.         [ Links ]

Penot, B. (1 989). Figures du déni. Paris: Dunod        [ Links ]

____(1989). La passion du sujet freudien. Paris: Erès, 2001.         [ Links ]

Winnicott, D. W. Jeu et realité. Paris: Gallimard, 1975, pp. 102-03.         [ Links ]

 

 

1 É o termo Viederherstellung com o qual Freud conclui Construções na análise (1937).
2 Suponho que a novela de Poe seja bem conhecida pelo leitor, ou então remeto-o a ela.

3 Ver B. Penot: Figures du déni - en deçà du négatif, esgotado em Dunod, 1989, e em reedição em Erès, 2002.
4 Ver o incrível relato de Wynne Godley (2001) My lost hours on the couch.
5 Nosso colega Xavier Jacquey foi o primeiro a falar (inspirando-se em Francois Perrier) em "transferência subjetal". Remeto aqui ao desenvolvimento de minha obra La passion du sujet treudien, Erès, 2001 - a respeito do ponto de partida em Pulsões e destinos de pulsões (Freud, 1915) da menção capital, no quadro das interações pulsionais primeiras de um "sujeito novo" externo à própria pessoa e através do qual esta última satisfaz sua necessidade de ser olhada, tomada pela mão...
6 D. W. Winnicott, Jeu et realité, Gallimard, 1975, pp. 102-3.
7 Remeto aqui ao capítulo 3 de minha última obra: La passion du sujet Freudian, Erès, 2001.
8 Jeanne Favret-Saada dá conta disso em Les mots, la wort, les sorts, Gallimard, 1977.