SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 número14A ortografia e as formações do inconsciente: Novas considerações sobre a instância da letraConsiderações sobre a letra e a escrita na clínica psicanalítica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.8 n.14 São Paulo jun. 2003

 

DOSSIÊ

 

A instância da letra na leitura

 

The letter instance in the reading

 

 

Elaine Milmann*

 

*Psicopedagoga no Centro Lydia Coriat de Porto Alegre, educadora especial na Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila Monte Cristo da Secretaria Municipal de Educação e Desportos (SMED) de Porto Alegre e mestranda em Educação na Faced-UFRGS.

 


RESUMO

A instância da letra na leitura refere-se ao transbordamento pela subjetivação psicótica no texto. O trabalho é desenvolvido a partir da experiência da clínica psicopedagógica numa equipe interdisciplinar e na escola, propondo um diálogo entre a psicanálise e a educação. Acompanhando-se várias situações de leitura, surge a hipótese de que, com os atos de leitura, é possível situar a singularidade da subjetividade psicótica nas suas relações com o sentido. Isso poderia ser analisado do ponto de vista dos fenômenos de linguagem que aparecem quando o leitor fala sobre o texto lido. Também seria possível atestar a incidência da letra no desenrolar do enodamento borromeano sobre os três registros, RSI. Procurando demonstrar a singularidade da relação da psicose com o campo do sentido, apresentam-se situações de leitura de um menino com este diagnóstico e faz-se uma análise do material colhido a partir das leituras realizadas.

Palavras chave: Leitura, Psicose, Sentido, Letra, Clínica psicopedagógica, Educação.


ABSTRACT

The letter instance in the reading mentions the overflow to it for the psychotic subjective act in the text. The work is developed from the psychopedagogical clinic experience with a interdisciplinar team and a school, considering a dialogue between psychoanalysis and education. Following some reading situations, one hypothesis appears: with the reading acts, it is possible to point out the singularity of the psychotic subjectivity in its relations with the meaning. This could be analyzed from the point of view of listening of the language phenomena that appear when the reader speaks about the read text. Also it would be possible to certify the letter incidence in the developing of the "Borromeano" enlancing, the three registers, RSI. Attempting to demonstrate the singularity of the relation between psychosis and the meaning field, reading situations lived by a boy with this diagnosis are presented and the material gathered is analyzed from the readings.

Keyworlds: Reading, Psychosis, Meaning, Letter, Psychopedagogical clinic, Education.


 

 

"O Sefer Yezirah, escrito em algum momento do século VI, afirma que Deus criou o mundo mediante 32 caminhos secretos de sabedoria, dez Sefirot ou números e 22 letras. Dos Sefirot criaram-se todas as coisas abstratas, das 22 letras foram criados todos os seres reais e as três camadas do cosmos - o mundo, o tempo e o corpo humano".

Manguel, 1997, p. 21

A instância da letra na leitura é um trabalho que surge no diálogo entre a psicanálise e a educação1. Os interrogantes são trazidos de dois lugares: primeiro, da clínica psicopedagógica com crianças e adolescentes em estruturação psicótica, em que atua uma equipe interdisciplinar, e, paralelamente, do acompanhamento dos alunos no contexto escolar, no ensino público. A partir desses dois lugares, buscou-se o enlaçamento da teoria psicanalítica como fonte epistemológica e

metodológica para escutar a leitura e situar a singularidade desses leitores, considerando o transbordamento pela subjetivação psicótica no texto.

O atravessamento da psicanálise oferece uma lente à educação e à psicopedagogia clínica para olhar as relações entre linguagem e subjetividade, indo além dos aspectos instrumentais da aprendizagem, no acompanhamento de crianças com questões orgânicas e/ou psíquicas que afetam seu desenvolvimento e aprendizagem.

Para Lacan, a lei do homem é a lei da linguagem, e a falha na inscrição da função significante do Nome-do-Pai vai deixar as marcas sobre o próprio funcionamento da linguagem. A psicose é um distúrbio de linguagem do sujeito em sua relação com o significante. No decorrer da teorização lacaniana, a psicose passa a ser vista como uma não nodulação a três, uma nodulação não borromeana dos três registros da experiência humana, Real, Imaginário e Simbólico _ RSI.

A leitura é um ato em que o leitor, o autor e o texto põem-se em jogo na relação com o sentido. Neste ato podem-se explicitar fenômenos de linguagem característicos da estruturação psicótica e também a incidência da letra nos registros, RSI, possibilitando assim situar a singularidade da posição do sujeito no campo do sentido.

A psicanálise sustenta que "não há um psíquico separado do social" (Julien, 2002, p. 73), e isso é fundamental na clínica das psicoses. A partir do olhar clínico, podemos situar a singularidade do psicótico. Na escola, quando esta singularidade é levada em conta e as diferenças são significadas no campo social, pela aprendizagem e pela inserção no regramento da cultura, produzem-se efeitos na subjetividade dos psicóticos.

A SINGULARIDADE DA ESTRUTURAÇÃO PSICÓTICA

Para situarmos a leitura em sua relação com a linguagem enquanto estrutura, no caso, situando a singularidade nas psicoses, buscamos algumas conceituações da psicanálise. Os conceitos na teoria lacaniana foram sofrendo transformações conforme a ênfase que o psicanalista foi dando aos três registros da existência humana. Na década de 30, o acento foi posto no Imaginário, nos anos 50, a ênfase caiu sobre o Simbólico e, por volta dos anos 70, a ênfase é posta no Real.

Lacan, no início de seu trabalho, quando faz sua tese de doutorado, nos anos 30, situa a loucura pondo a ênfase sobre o registro Imaginário. Nos anos 50, a partir da concepção de linguagem tomada do modelo estrutural de Saussure e depois subvertida, destaca que a subjetividade está na dependência da relação com o significante, com primazia deste sobre o significado (Freire, 2001). O significado é efeito da articulação entre significantes, e a cadeia significante é a matriz simbólica. "Se o neurótico habita a linguagem, o psicótico é habitado por ela" (Lacan, 1955-6, p. 284).

Para Lacan, "a forma como se exprime a linguagem define por si só a subjetividade" (1953, p. 299). A lei do homem é a lei da linguagem, e a falha na inscrição da função significante do Nome-do-Pai vai deixar as marcas sobre o próprio funcionamento da linguagem. Os determinantes lingüísticos da psicose relacionam-se a um tipo de falha na estruturação simbólica produzida pela falta da incidência da função paterna, necessária para proporcionar ao sujeito o acesso estruturado à linguagem. O significante Nome-do-Pai faz a nominação do sujeito, por meio do pai do nome, "constituindo o traço unário, a letra do gozo com a qual o sujeito se identificará, assumindo seu nome inconsciente, matriz subjetiva a determinar o itinerário do sujeito" (Freire, 2001, p. 33).

Esse significante primordial é o estruturador da subjetividade, na qual está a origem lógica da linguagem. "Alguma coisa que foi rejeitada do interior reaparece no exterior... assim pode acontecer que alguma coisa de primordial quanto ao ser do sujeito não entre na simbolização e seja não recalcada, mas rejeitada" (Lacan, 1955-6, p. 97).

A questão da estrutura da linguagem na psicose vai incidir em como a língua é usada. Analisando, em 1958, o caso clássico do presidente Schreber apresentado por Freud, em De uma questão preliminar de todo tratamento possível da psicose, Lacan trabalha os fenômenos de linguagem na psicose, que testemunham a falta do ponto de basta no discurso psicótico. O ponto de basta, ou de capitonê, refere-se ao cruzamento do eixo sintagmático e paradigmático na rede, em que, pelo deslizamento dos significantes, produzem-se os sentidos, sempre a posteriori, pelas operações de pontuação ou de escansão.

A cadeia significante dirige a trajetória da subjetividade, na qual os significantes operam em oposições como pura diferença, sendo preciso ao menos dois deles para produzir efeito de sentido. O significante lacaniano é uma seqüência acústica que pode assumir sentidos diferentes, conforme seu deslizamento no discurso, tomando o significante como qualquer corte feito na cadeia falada. Para Lacan, o significante tem a função de representar o sujeito determinando-o.

Os fenômenos de linguagem na psicose são:

Fenômenos de código - neologismos como novas palavras compostas; trata-se de algo bastante próximo das mensagens que os lingüistas chamam de autônimas, na medida em que é o próprio significante (e não o que ele significa) que é objeto da significação (Lacan, 1955-6, p. 544).

Também são considerados como fenômenos de código os vazios de significação e intuição (certeza no lugar de vazio de significação).

Fenômenos de mensagem - mensagens interrompidas pela quebra da cadeia significante; são distúrbios de conexão em que a frase é cortada justamente no ponto em que a significação poderia sugir, isto é, sobre o elemento da mensagem que amarra a relação dos termos envolvidos.

Em 1957, no texto de Lacan A instância da letra no inconsciente, ou a razão desde Freud, a letra é posta como o conceito pelo qual é marcada a especificidade da cadeia significante. A instância da letra, sua insistência, como o suspenso do sentido na cadeia significante, designa a estrutura da linguagem na medida em que o sujeito nela está implicado; esta implicação é fundadora de toda a lógica que vai se estabelecer.

Conforme Freire (2001), no final da década de 60 Lacan interroga-se sobre a relação entre linguagem e escritura. A metáfora será pensada como a própria operação de criação da linguagem humana e simul-

tânea ao surgimento dos traços da escritura, uma vez que, para passar de uma linguagem que seja tão-somente do signo para o nível significante, é preciso um recurso metafórico, na medida em que o significante não significa nada, nadificando o signo. Para que o significante possa se articular numa cadeia, é preciso o trabalho da letra; de ciframento do gozo. Nesse período, para Lacan, os operadores da estruturação subjetiva são mais da ordem da letra do que do significante.

No seminário A identificação, de 1961-2, a letra é posta com a função de suporte para o significante, e é necessário que a relação do signo com a coisa seja apagada. No Seminário XVIII, De um discurso que não seria do semblante, a definição de letra aparece como aquilo que borda, "entre o gozo e o saber a letra faria litoral" (Lacan, 1970, p. 113). No Seminário XIX, ... Ou Pire, de 1972-3, surge a noção de enodamento borromeano, como aquilo que estabelece as relações entre os três registros: RSI. Nesse período a ênfase da teoria cai sobre o Real. É aqui que há o deslocamento da reflexão do significante para a letra, pondo os três registros em equivalência.

Os três registros são como aros, e há um quarto elemento, o Nome-do-Pai, ou sinthome, que é responsável pelos aros permanecerem juntos. A não nodulação a três dos registros da existência humana é o novo conceito de psicose, o qual implica que o sujeito possa criar versões do pai: os nomes do pai. O pensamento e o sentido só se dizem pela articulação dos três registros. Eles são amarrados em diferentes pontos pela função significante Nome-do-Pai, e este enodamento constitui os pontos de estofo.

Pela psicanálise podemos verificar as relações entre linguagem e subjetividade, e algumas delas podem ser analisadas na produção de sentido na leitura. Procuramos olhar isso pelo transbordamento da subjetivação psicótica no texto.

O TRANSBORDAMENTO PELA SUBJETIVAÇÃO NO TEXTO

Acompanhando crianças e adolescentes na escola e na clínica, há tempo percebia que, para além da aquisição de um código, ou da aquisição conceitual da leitura, havia uma questão que falava da própria relação sujeito/linguagem implicada em seus atos de leitura. Escutando a leitura de sujeitos psicóticos, surge a seguinte questão: há transbordamento pela subjetivação no texto? Esta questão desdobra-se nestas duas outras: o que a leitura atesta sobre a estrutura do sujeito? e qual a singularidade da instância da letra na leitura desses sujeitos?

A idéia de situar a posição na linguagem de sujeitos em estruturação psicótica a partir da leitura surge pelo fato de a clínica revelar que, na relação leitor/autor/texto, emergem fenômenos relacionados à singularidade de sua subjetivação. Estes fenômenos explicitados pela estrutura psicótica podem passar

despercebidos e serem confundidos. O cotidiano na escola mostra isso na confusão do diagnóstico da psicose com outros quadros: autismo, hiperatividade com déficit de atenção, problemas de conduta, deficiência mental e até altas habilidades.

Nas situações de leitura a singularidade da estruturação subjetiva da psicose na relação com o significante afeta a produção de sentido. Esta singularidade pode emergir pelo transbordamento do sujeito no texto, pois o leitor fala a partir de sua posição na linguagem, e isso afeta sua forma de produção de sentido na leitura. "Metodologicamente, estamos, portanto, no direito de aceitar o testemunho do alienado em sua posição em relação à linguagem, e devemos tê-lo em conta na análise de conjunto das relações do sujeito com a linguagem" (Lacan, 1955-6, p. 238).

A linguagem representa o sujeito a partir da posição da letra. A materialidade da letra pode-se articular em diferentes modos no campo da linguagem que representa o sujeito. Esta pode entrar em diferentes estatutos, no sentido de funcionar em diferentes sistemas lógicos, de acordo com o registro em que ela seja tomada: RSI.

A especificidade da forma da nodulação dos três registros RSI pode-se explicitar pela predominância com que a letra insiste e incide em cada um deles nos atos de leitura. Pensando que a posição de um sujeito no discurso é a marca de sua singularidade em relação aos atos de leitura nas psicoses, surgem algumas hipóteses. A primeira é que a singularidade da posição do sujeito na linguagem pode-se revelar sob forma de fenômenos de linguagem que se explicitam por meio de alterações semânticas, sintáticas e pragmáticas na linguagem, que por sua vez são explicitadas pelas falas produzidas a partir do texto lido.

A segunda hipótese é que há possibilidade de situar a incidência da letra na subjetivação psicótica em relação aos registros RSI. O transbordamento pela subjetividade do texto na leitura explicita-se na medida em que lemos as marcas que evidenciam a incidência da letra, predominando em um dos registros da cadeia borromeana. Assim haveria três categorias de leitura, conforme predomine a incidência da letra: a leitura do Real, a leitura no Imaginário e a leitura no Simbólico.

A LETRA NA LEITURA

Escutar a leitura implica situar a posição do sujeito na linguagem. Implica que o texto principal seja aquele produzido pelo sujeito. Uma identificação correta de um significante como tal localizado, isto é, escrito, permite reconstruir toda a cadeia do texto. O psicótico presentifica a letra, como estrutura essencialmente localizada do significante, a letra em instância, na sua insistência.

Para a letra funcionar como linguagem, ela deve dar lugar ao significante em relação ao Outro. Tanto na leitura como na escrita a letra entra no registro do significante por essa via, ou seja, para ser leitura ou escrita tem de cumprir esta condição, entrar na via do Outro. A leitura e a escrita comportam a dimensão da letra, o que implica sua relação com o campo do sentido.

A letra pode estar do lado do Simbólico, fazendo barreira ao excesso de sentido, mantendo o Imaginário à distância. Pode estar incidindo no Imaginário, explicitando-se pela colagem num sentido unívoco, ou pela proliferação dele. A letra pode estar incidindo no Real, quando a leitura é tomada pela transcrição de grafemas em fonemas, ou pela leitura do nome das letras, impedindo o acesso ao sentido. A letra desenha um buraco, que é o buraco do não sentido, sustentando algo do Nome-do-Pai, sua incidência na leitura revela sua função de borda na relação com o sentido.

O psicanalista francês Jean Bergès (1988) sustenta que a letra presa à pura imagem pode afetar a busca de sentido na leitura. Relacionando com os três registros do nó borromeano, afirma que a sobreposição da imagem ao símbolo repele o acesso à letra, que para verificar o sentido é preciso ir além dela.

"A leitura não tem um conceito preciso e rigoroso, mas remete a um conjunto de práticas que podem delineá-la do ponto de vista sociológico e histórico" (Einaudi, 1987, p. 184). A leitura é objeto e meio de aprendizagem, é um dos eixos para possibilitar a inserção do aluno na escolaridade e sua socialização. É um dos modos de educar o sujeito a compartilhar as formas de significação produzidas na cultura. A relação entre subjetividade e linguagem pode-se explicitar na relação sujeito/autor/texto. O leitor também expressa sua posição na linguagem, possível de ser escutada na leitura em voz alta, ou desde o enunciado sobre o que leu. "A leitura não ultrapassa a estrutura, está-lhe submetida, tem necessidade dela, respeita-a, mas perverte-a" (Einaudi, 1987, p. 198).

Existem formas de leitura que não são equivalentes, que implicam diferentes relações do leitor com a escrita. Há diversas operações que podem marcar o lugar do sujeito na leitura: "É evidente que o leitor não lê apenas com sua razão e com seu entendimento... o leitor empreende a leitura com seu corpo erógeno, corpo esse permeado pelo desejo" (Birman, 1996, p. 62).

Podem-se mapear atos de leitura que testemunham a mera decodificação do escrito. A leitura não opera somente na reprodução do oral, embora seja fonética. A relação grafema/fonema (uma letra por um som) pode ser utilizada em alguns momentos da leitura, e é verdade que, como suporte de microestrutura, pode servir para a leitura de palavras desconhecidas, re-situar nossas inferências de sentido, auxiliando nas correções, porém sempre no contexto da busca e articulação de significações. Quando o leitor detém-se somente na decodificação, sua leitura não flui. Preso excessivamente ao Real da letra, ou seja, na transcrição, perde-se o sentido do texto lido. A leitura presa ao registro do Real equivale à representação dos sons, ou mesmo, dos nomes das letras, ficando do lado da decodificação.

Embora haja na lógica da escrita alfabética uma ênfase na decodificação, ou na leitura como transcrição, a leitura é o acontecimento de um ato criativo. O universo, na cultura judaico-cristã, é concebido como um livro a ser lido. A letra como traço, quando entra no registro significante, permite ao sujeito ler produzindo sentidos próprios e recriando o universo do texto. A letra, tomada no Real, impede o acesso ao sentido.

Segundo Manguel (1997), a percepção torna-se leitura, como o ato de apreender letras relaciona-se não somente com a visão e a percepção, mas com a possibilidade de fazer inferências e julgamentos, com a memória, o reconhecimento, o conhecimento, a experiência e a prática. O que se vê ao olhar as palavras organiza-se de acordo com um código ou sistema aprendido e compartilhado com outros leitores de seu tempo e lugar.

A leitura, assim, adquire um status de lugar do Outro. Além de organizar-se a partir de um código vindo do contrato feito pela comunidade, que compartilha significações estabelecidas, também foi escrito por um outro, o autor do texto. Mesmo quando o que se lê foi escrito pelo leitor, há um distanciamento que se cria pela escrita, fazendo com que mesmo aquilo que foi escrito pelo próprio leitor adquira um estatuto de alteridade.

"Ler não é um processo automático de capturar um texto como um papel fotossensível captura a luz, mas um processo de reconstrução desconcertante, labiríntico, comum" (Manguel, 1997). O fato de o corpo - olhos, ouvidos, boca, voz, nariz, tato - entrar em jogo na leitura, num processo lingüístico, cognitivo, histórico e sociocultural, implica-a numa perspectiva também subjetiva. No desenvolvimento infantil a falha nas funções parentais evidencia efeitos da estruturação subjetiva no exercício das funções perceptivo-motoras que tradicionalmente são consideradas entre as causas das dificuldades de leitura.

Por vezes a ausência de referenciais das funções parentais gera desordens oculares da ordem do real do corpo, e a organização espaciotemporal falha na medida em que algo da constituição da imagem corporal também não se armou. Na leitura, o corpo está engajado na voz, pela fonação e pelo olhar, nos deslocamentos e paradas oculares que seguem o ordenamento espaciotemporal no espaço gráfico. O corpo deve-se desprender do imaginário da letra para que a letra possibilite o acesso ao sentido.

A significação da leitura, também foi-se transformando à medida que a prática de leitura modificava-se. No percurso da história, estas modificações deram-se tanto como prática social, como na forma com que o corpo, a voz e o próprio regramento da leitura entram em jogo. A pontuação e os parágrafos, ou seja, aquilo que dá referências ao leitor da intenção de sentido do autor, nem sempre existiram como existem hoje. A leitura silenciosa tornou-se um modo usual no Ocidente somente por volta do século X. A direção da leitura da esquerda para a direita não é universal, pois os judeus e árabes lêem da direita para a esquerda, os chineses e os japoneses lêem em colunas de cima para baixo, e os astecas liam serpenteando pela página, como em um jogo de trilha, sendo a direção indicada por linhas e pontos. A escrita antiga em rolos não separava as palavras, não distinguia maiúscula de minúscula, nem usava pontuação.

A pontuação faz escansão, controla o sentido, corta as unidades significantes. O uso da pontuação indica as pausas na leitura que levam ao sentido do texto. Seguindo a história, a pontuação, tradicionalmente atribuída a Aristófanes de

Bizâncio (cerca de 200 a.C.), era errática, e os textos precisavam ser ensaiados antes de lidos em voz alta. A separação das letras em palavras e frases desenvolveu-se muito gradualmente. Para ajudar os leitores com pouca habilidade, os monges dos conventos desenvolveram um método de escrita em que o texto era dividido em linhas de significado, uma forma primitiva de pontuação que ajudava o leitor inseguro a baixar ou elevar a voz no final de um bloco de pensamento, transmitindo um significado mais óbvio aos leitores.

Os escribas irlandeses começaram a isolar partes do discurso e introduziram muitos sinais de pontuação que usamos hoje. No século X, para facilitar ainda mais, escreviam-se as primeiras linhas das seções principais de um texto com tinta vermelha. Os parágrafos eram demarcados por um traço divisório, e, mais tarde, passou-se a usar uma letra maior ou maiúscula para indicar o começo de um novo parágrafo.

Goodman, estudando os processos de leitura, define-os como "um jogo de adivinhações psicolingüísticas" (1990, p. 11) em que o pensamento e a linguagem estão involucrados em contínuas transações. O autor historiciza o surgimento da psicolingüística como ponte interdisciplinar entre a psicologia cognitiva e a lingüística, cujo propósito era estudar as relações entre pensamento e linguagem. Ele considera a linguagem oral e a escrita como paralelas, mas diferentes. A língua escrita implicaria uma comunicação através do tempo e do espaço, e o processo de leitura seria único em todas as línguas, na busca de obter o significado. No texto, a concordância entre o leitor e o escritor na forma de utilizar a linguagem é uma característica que influencia a leitura. A ortografia tem uma função fundamental nesse processo. É ela que permite uma unidade na língua e o que possibilita chegar à compreensão de unidades semânticas. Os leitores utilizam estratégias de leitura como seleção, predição, inferências e correção, na busca de significado.

Ao ler, o sujeito está diante da possibilidade de produzir uma rede de sentidos, ou seja, há uma construção de significações na relação entre o sujeito e o texto. O sujeito produz sentido para além das possíveis predições de sentido do Outro-autor, que o escreveu. A marca do Outro se faz representar pela sua escritura, por meio do signo manuscrito, que virá a ser decifrado singularmente por cada leitor, a partir de sua possibilidade de produção de sentido.

Quando, na leitura, há a predominância de uma significação particular do leitor, ou seja, o sentido atribuído é independente do que o autor ali quis dizer, podemos situar a leitura no registro Imaginário. A letra incide sobre a imagem, afetando o sentido. Há situações também em que há pregnância das imagens (ilustrações) sobre o texto lido. A leitura fica como uma descrição da imagem, afastando-se do sentido do texto. Bergès (1988) afirma que a letra presa à pura imagem pode afetar a busca de sentido na leitura, a sobreposição da imagem ao símbolo repele o acesso à letra, e, para verificar o sentido, é preciso ir além dela.

Segundo Birman, a leitura é uma prática significante que se funda no campo do desejo, em que, ao se apropriar do texto, permeado pela polissemia, ao ler, o leitor forja novos sentidos (1996, p. 64).

Como a própria linguagem é polívoca, o texto é polissêmico. Quando o leitor leva em conta o Outro, "ler é estar ali, receber o novo significante", como diz Heidegger (Einaudi, 1987, p. 200). A leitura do lado do registro Simbólico ocorre na leitura posta em relação com uma prática significante. A intersubjetividade do leitor/autor põe-se no jogo de relação dos significantes de ambos para a produção de sentido a partir do texto, isto é, o Outro é levado em conta.

Jean Bergès (1988), abordando a questão da leitura, fala-nos sobre a sua relação com o status da letra que faz apelo ao olhar do leitor e ao corpo do escrevente. Tanto o corpo do escritor quanto o corpo da letra são os dois dados a ver. Segundo o autor, será no jogo entre o escópico, o auditivo e o motor, na relação com a escrita, representação do Outro, que o leitor poderá verificar os sentidos do texto.

O autor aborda o sentido na leitura relacionando-o aos registros do Simbólico, do Imaginário e do Real. A leitura em voz alta, por exemplo, como se pode observar nas aprendizagens, pode facilitar o acesso ao sentido, ou opor-se a ele. A facilitação é exemplar na leitura de hieróglifos, pois o que eles têm de imaginário deve ser articulado para aceder ao sentido. Em outros casos, com certas crianças aprendizes de leitura, "essa articulação vai confundi-las: elas preferem ler mentalmente, o que lhes permite nada perder da voz" (Bergès, 1988, p. 200). Para a operação da leitura, é preciso deixar cair a letra para aceder ao sentido.

Procuramos neste trabalho situar a singularidade da subjetivação psicótica na leitura, trazendo alguns recortes de situações de leitura de Gustavo, um menino de 8 anos, com diagnóstico de estruturação psicótica não decidida, freqüentando a segunda série da escola e alfabetizado. Ele tem grande interesse pela leitura, pela escrita e por histórias. O material que será apresentado foi colhido em sessões de filmagens, realizadas no Centro Lydia Coriat de Porto Alegre, com a proposta de analisar os atos de leitura de Gustavo.

ENCONTROS DE LEITURA

Gustavo iniciou o atendimento psicanalítico em março de 1999 com a idade de 4 anos e 6 meses. Teve atendimento em psicopedagogia inicial no período de 1999 a 2001. Algumas informações foram fornecidas por sua psicanalista antes de realizar os encontros de leitura que propúnhamos.

Ele chegou para atendimento em psicopedagogia inicial, encaminhado pelo médico neuropediatra. A mãe é tomada pelo discurso médico do real do corpo, e vem para o atendimento pela via da relação transferencial com este discurso. O neuropediatra havia encaminhado para uma psicopedagoga, baseado no diagnóstico de síndrome de Asperger, geralmente relacionada com o autismo.

Quando chegou à clínica, Gustavo tinha medo de barulhos, como o do relógio cuco da casa dos avós, não queria sair de casa e temia pegar ônibus por causa do ruído. Ele não brincava e não controlava completamente os esfíncteres, não antecipava sua vontade de ir ao banheiro. Ficava em casa, e passava muito tempo na janela, olhando a entrada e saída de carros numa garagem. Gustavo referia-se a si mesmo na terceira pessoa, repetindo as interrogações que lhe faziam. Quando ficava sozinho, corria e sacudia as mãos em flapping.

A família relata que Gustavo não saiu de casa até completar 1 ano de idade, e somente ficava com os pais, que temiam que ele adoecesse. Dormiu com os pais até os 6 anos de idade e mamou no peito até 2 anos e meio. A mãe temia que a gestação não chegasse a termo e, depois de sofrer um assalto na escola em que trabalhava, durante a gravidez, não saiu mais de casa.

Segundo a psicanalista, a história de Gustavo evidencia a fragilidade da incidência da função significante do Nome-do-Pai em sua estruturação subjetiva. "O corpo da mãe, em seus gestos de criação, seu peso, seu calor, seus odores, sua voz, e o olhar que ela porta vêm agir a presença e ausência, constituir a escansão do que está presente sobre fundo de ausência, e ausente sobre fundo de presença, e, como o diz Lacan, ele é o agente de frustração" (Bergès, 1988, p. 8).

Em junho de 1999, Gustavo assinava seus desenhos com seu nome e o de sua mãe escrito num coração. Já lia e escrevia seu nome e os dos colegas. Nesse período, o controle esfincteriano se efetivou. Segundo a mãe, antes ele não queria soltar as fezes, e agora brincava de achar letras ali, no cocô.

Nos encontros de leitura, Gustavo podia escolher o que queria ler. Ocorreram três momentos: o primeiro, em que pegava os livros e, ao lhe pedirem que lesse, falava sobre o que via nas figuras, lendo fragmentos do texto; um segundo, em que leu histórias contadas por ele e escritas por sua analista; e um último, em que leu as histórias oferecidas por mim. A seguir apresentaremos alguns recortes dos encontros de leitura com Gustavo.

Ofereço a Gustavo vários livros que espalho pelo chão, onde nos sentamos. Ele pega um que tem gravuras e comentários sobre o planeta Terra, suas formas geográficas, e sobre o sistema solar. Gustavo, sentado no chão, olha o livro em silêncio, e, depois de um tempo, fala:

"E daí, olha só a água, o lençol, daí a água fica evaporando e daí formam as nuvens quando. Tiver quando. As nuvens estiverem pesadas chove de novo".

"Lá no Pólo Norte é um lugar muito legal que possui iglus. Sabe que também, de repente, eu quero falar três coisas legais. Daí são todas regiões daquela maneira, para sempre fazer calor. No Pólo forma-se gelo porque é muito. Daí, também, quando, quando, fica noite. Daí, daí, o sol ilumina quando, bom, por exemplo, olha só, quando agora o sol está clareando no Brasil, e daí aqui neste desenho significa que está quase, ham, dia no Brasil, sabia?"

Nessas situações, "Daí são todas regiões daquela maneira, para sempre fazer calor. Tiver quando. No Pólo forma-se gelo porque é muito. Daí também, quando, quando fica noite", vemos, no processo metalingüístico, o funcionamento diverso de termos que qualificam o estatuto do discurso. Por exemplo, "quando" é uma palavra utilizada para estabelecer uma relação temporal entre conjunções. As relações temporais, fornecidas pelo Outro, para Gustavo estabelecem-se com falhas na sucessividade. A pontuação posta por Gustavo expressa uma alteração de linguagem que afeta a ordem sintática, ficando fora da lei do código. A pontuação, que também regula o sentido, "a pontuação colocada fixa o sentido, sua mudança o transforma ou o transtorna, e, errada, eqüivale a alterá-la" (Lacan, 1953, p. 315). Se a pontuação regula o sentido na linguagem escrita, a forma pela qual ela é utilizada por Gustavo em sua fala fere a série da cadeia sintagmática, que fica interrompida por um ponto final no advérbio "quando". A forma em que aparecem as proposições fere o ordenamento sintático, a cadeia sintagmática apresenta-se com falta de costuras, o que afeta o sentido.

A quebra da cadeia significante na mensagem interrompida aparece no ponto após o advérbio, e remete a duas perguntas: é muito o quê? quando fica noite acontece o quê, também? Há uma forma diferencial de organização no deslizamento dos significantes. Surge aqui um fenômeno no nível da contigüidade. A sintaxe é afetada, a cadeia sintagmática é interrompida num ponto inesperado. Faltam pontos de capitonê para fazer o enodamento da cadeia significante. As solturas evidenciam-se pela falhas no discurso, em que as redes de sentido parecem soltas.

Em outro momento, ele lê em silêncio e diz:

"Olha só, aqui tem de ordem do sistema solar. Primeiro, o Sol, depois primeiro o planeta Mercúrio, depois Vênus, depois de Vênus, Terra depois vem Marte, depois Júpiter, depois Saturno, depois Urano, e depois Netuno, depois Plutão, sabe que Plutão é um planeta muito longe que sempre tá escuro?"

Aparece a utilização da preposição "de" no lugar do artigo "a" quando ele refere-se ao sistema solar: aqui tem "de ordem do sistema solar", novamente alterando a lógica sintagmática pelo deslocamento da função na cadeia sintática.

Em um dado momento, vejo que Gustavo está desinteressado sobre o que estamos lendo. Pergunto se ele não quer mais ler aquilo, e ele me responde: "Eu só estava a fim de ler outras letras".

Ler as letras. Pode-se pensar a partir dessa fala que Gustavo toma a leitura no sentido literal, o que se lê são as letras, e não o sentido do texto. Esta idéia está referida também em outros momentos, quando se pergunta sobre o que ele leu, e Gustavo aponta no livro o texto escrito dizendo: "Tá aqui, oh".

Tomemos agora uma leitura em voz alta realizada por Gustavo: "São os objetos do Universo. Aglomerados de Galáxias", murmura. "Imagem de três, vírgula, três em quatro. Existem seis, quatro mil e quatrocentos e seis Galáxias em espécie, número bem dizer cinco mil e duzentos e trinta e seis Galáxias no final", murmura. "Seis mil e vinte dois Galáxias irregular. Demorada", murmura. "Missão estrelar. O sol estrela principal. A Terra e a Lua", murmura.

Sua leitura apresenta rupturas na coerência interna do discurso. Geralmente, quando se está lendo do lado do registro Simbólico, o retorno à leitura ocorre para fazer-se correções a partir das buscas de sentido. Neste caso, Gustavo parece justamente não deter-se em buscar uma coerência quanto ao que lê, parece que o Outro não é levado em conta. Ele lê "vírgula" no lugar de usá-la na função simbólica da vírgula, que é de fazer uma pausa de sentido na leitura.

Gustavo segue lendo: "Gás é, gás quente da parte interna disco a direção é evitado raio X de alta energia". E diz: "Eu conheço também uma única forma de planetas, uma forma e ordem que chama-se sistema solar".

Novamente o ordenamento da cadeia sintática e o sentido são afetados. Falta coerência interna, faltam conexões que poderiam ser feitas, por exemplo, pelo uso adequado de preposições, que marcam a transitividade da frase.

Pergunto a Gustavo: "E o que é o sistema solar?"

Ele responde: "Diz aqui, olha", mostrando no livro, "o que é o sistema solar".

Gustavo parece convencido de que me mostrar a imagem contida no livro fala daquilo que peço como conceito. Insisto na questão, e Gustavo responde:

"Sistema solar, olha só, olha só, todos os planetas ficam perto e longe do Sol, olha só este aqui é o Sol, esse aqui é o primeiro planeta de contra o Sol, é o Mercúrio, o segundo planeta é Vênus, o terceiro planeta é a Terra, aqui que a gente mora, aqui na Terra. Marte é o quarto planeta, o quinto planeta é o Júpiter, o

sexto planeta é Saturno, o sétimo planeta é Urano, o oitavo planeta é Netuno e o nono planeta é Plutão. Plutão é um planeta que fica muito longe do Sol, lá só fica escuro. Sabe, sabe, sabe Urano, ele fica também brilhante, e escuro todos os dias, e escuro cada dia. Cada ecologia do planeta Urano, Netuno e os planetas que ficam perto do sol".

Mais adiante, interrogado sobre o sol, dirá: "O Sol é um planeta bem bonito que ele, atrás ele tem muitos fogos", corrige-se, "fogos de, de, de claridade".

No segmento "planeta de contra o Sol", vemos a utilização de preposições de forma incomum, sem o estabelecimento de relações entre elas. Em "fogos de claridade", parece evidenciar-se um tipo de acoplamento de dois significantes que têm alguma relação pela via paradigmática, mas que sintagmaticamente ficam fora do uso da língua. Em "cada ecologia do planeta Urano, Netuno e os planetas que ficam perto do Sol", temos uma proposição que fica inacabada. Essas alterações encontradas afetam a coerência interna do discurso.

Em outra situação de leitura retomamos a história escrita por sua analista, contada por Gustavo. Ele quer ler as histórias que inventou:

Gustavo: "Bom a história é essa aqui. A história de Movericks. História: o bombeiro que fez uma oportunidade". Inicia a ler em voz alta:

"Há muito tempo atrás o bombeiro passava muito bem, estava tranqüilo até chegar e passar tanto tempo a cidade. De repente o carro dele estava pedindo emergência, o computador dele estava fazendo uuuuuuhhhh era um incendiaço que tem muitos impactos e conflitos, estava pegando fogo lá. O bombeiro chegou, tinha um incêndio chamado Jack Store, o computador do seu carro mostrava o endereço: Avenida Júlio de Garcia no 1568. Daí aconteceu em três prédios, este lugar é muito estreito. Até deu tanta umidade neste incêndio, o bombeiro vai chegar e pegou muitas emergências. Daí de repende o bombeiro agora chegou até tanto tempo, ele começou a chegar e olha só o que aconteceu, olha lá! Estava acontecendo aquele incêndio. Estava acontecendo a mesma coisa que no computador. Era aquele incêndio muito estreito dos conflitos. Até as reportagens", murmura, "tudo isso. De repente até sair bastante fogo, chegou a um tempo muito instante, o fogo estava muito explosivo, mas o bombeiro começou a apagar, de repente ele pegou a mangueira de seu carro e ligou até que o fogo começou apagar. O bombeiro começou a apagar o edifício até cair as janelas e até começou a ser apagado novamente. Esse fogo aconteceu porque no 4o andar o moço ligou o venti lador no banheiro, ligou a torneira, lavou as mãos, caiu um pingo d'água no ventilador e pegou fogo. Até o bombeiro passou um tempo muito legal, ele chegou num lugar especial com os trabalhadores da Octam2 e de repente tinham uma oportunidade, muita felicidade com todos os bombeiros e até as pessoas do edifício que pegou fogo fizeram uma festa também. Bom enquanto eles fizeram a festa o computador estava chamando para mais uma emergência e olha só que aconteceu. Era na Rua Cristóvão Puente no 619 e até um edifício se esquentou muito e até parecia uma brincadeira, o fogo parecia um chapéu de ínicio e um pé de feijão e também parece umas costas de porco-espinho muito estreito. O bombeiro chegou, as reportagens também, também o bombeiro esfriou bem rápido. Isso aconteceu no 5o andar. O homem estava com o ar-condicionado ligado na sala, ele secou as mãos sacudindo-as na frente do ar-condicionado. As gotas caíram e assim pegou fogo. O bombeiro apagou... Ficaram muito felizes e emocionados também os trabalhadores da Octam que estavam na festa". A história relatada por Gustavo refere-se a um incêndio que ocorreu do lado de sua casa. Podemos ver uma série de alterações de linguagem que surgem no decorrer da história. Gustavo lê e não repara em nenhum momento que possa haver fraturas de sentido na história que foi contada por ele. No título, "O bombeiro que fez uma oportunidade", podemos ver a questão do verbo "fazer" utilizado fora de sua significação usual.

Podemos selecionar algumas seqüências encontradas no texto: "estava tranqüilo até chegar a passar tanto tempo a cidade... De repente o carro dele estava pedindo emergência, o computador dele estava fazendo uuuuuuhhhh era um incendiaço que tem muitos impactos e conflitos, estava pegando fogo lá... O bombeiro chegou, tinha um incêndio chamado Jack Store...", "o bombeiro agora chegou até tanto tempo...", "Era aquele incêndio muito estreito dos conflitos...", "De repente até sair bastante fogo, chegou a um tempo muito instante".

Vemos uma série de proposições, conjunções, significações deslocadas na rede do texto. As relações de contigüidade estão afetadas, há palavras postas em relação de forma incomum, não usual. O incêndio tem um nome próprio: "Jack Store". A construção da cadeia sintática está alterada pela utilização de advérbios temporais no sentido de expressar sucessividade temporal: "o bombeiro chegou agora até tanto tempo". Esses são alguns exemplos de alterações de linguagem que aparecem quanto ao processo metalingüístico.

Numa outra situação de leitura, Gustavo lê uma adaptação da fábula A raposa e as uvas, de Esopo:

"A raposa dsanimada foi... de repente teve uma grande surpresa, por cima do muro, viu um galho com cachos de uva madurinhos, e madurinhos. Daí na falta de galinhas servem umas uvas... lambendo os beiços, lambendo os beiços, então subiu na ponta dos pés e esticou os braços, mas não alcançava onde os cachos. Bom, chegava a ficar com água na boca. Os cachos de maduros e tentou agarrá-los de novo. Mas nada, suas mãos continuaram tão vazias, quanto seu pobre estômago. De qualquer modo não queria, conseguia empanturrar de uvas. Afastou de um pouco", corrige, "afastou-se um pouco, disparou uma corrida e deu um salto, esteve a pouco de conseguir o doce prêmio, mas os cachos continuavam altos demais. As uvas pareciam dançar diante do focinho da raposa, como se zombassem dela. Cada vez mais irritada... dela e caiu sobre a terra como numa piscina sem água. Já havia feito de todas as tentativas mas não conseguia colocar os dentes nas uvas". Interrompe a leitura e explica: "Olha a raposa era desse tamanho e estava alto demais e ela não conseguia pegar. Então a raposa sacudiu a poeira do corpo e disse com desdém, tentando convencer a si mesma: Eu nem queria mesmo essas uvas, estão verdes".

Peço a Gustavo que diga o que leu. Ele fala:

"É que o... é que a raposa ela, ela não conseguiu, ela tava saindo de casa pra almoço, faminta, ela tava com fome e isso significava que era hora do café da manhã ou do almoço e daí ele, ele, ele, tava tentando... ele queria pegar de café ou almoço uvas, sabe de uma coisa? Eu posso falar uma coisa em inglês". Gustavo balbucia palavras em inglês.

Gustavo vira de frente, sempre murmurando em inglês e pulando. "Daí ela tentava alcançar as uvas e... Alguém sabe... contar... em inglês?"

Digo que gostaria que me disesse o que aconteceu na história.

Ele diz:

"A história é a seguinte: o lobo, ele queria almoçar uvas. Ele estava tentando muitas vezes, deu um salto, deu um salto", saltando, "mas a árvore estava alta demais. Estava bem, bem parece do tamanho desta casa, parece desse tamanho", mostra na janela o tamanho da casa vizinha, "e a raposa era bem pequena. Aí, a raposa tentou alcançar e aí pegou, ela tava pegando e ele deu o maior salto e ele quase alcançou e... pegava e era hora do café da manhã ou do almoço. Daí ela não conseguia alcançar e ela, ela, não tava conseguindo alcançar e ela tentou várias vezes. Deixa eu ver quantas tentativas ela fez - tentou uma, tentou duas, tentou três, tentou quatro, tentou cinco e não conseguiu. Ela, ela disse, que ela não queria uvas porque as uvas estavam verdes. E ele não gostava de uvas verdes, ele gostava de uvas... roxas".

Pergunto se ele achava que a raposa não queria uvas.

Ele responde:

"Ele queria uvas".

Pergunto, insistindo, por que ele disse que não queria, e ele diz:

"Ela não queria mesmo as uvas e ela sacudiu bem a poeira, estava tão faminta e até, então, ela pegava outra comida e comia em vez, em vez de uvas. Eu acho, talvez essa história, eu ia demonstrar isso".

Nessa leitura vemos outros pontos interessantes. Quando Gustavo é solicitado a falar sobre a história, vemos que há um enlaçamento com o conteúdo da história. Podemos ver, porém, a predominância do registro Imaginário na sua relação com o sentido. Embora ele sustente que a raposa pulou muitas vezes e não alcançou a árvore, quando questionado sobre por que ela disse que não queria as uvas verdes, ele responde que é por ela gostar de roxas. O aspecto figurativo é predominante, sua lógica é linear: se não gosta de verdes, é porque gosta de roxas. O duplo sentido do verde, como não estando maduras, não entra no registro. A relação com o sentido é unívoca e sustentada nas relações de contigüidade. Enfim, ele resolve a questão, se a raposa queria ou não as uvas, apoiando-se numa imagem do texto: "Ela sacudiu bem a poeira". E completa com algo que cria uma outra rede de relações: "Ele pegava outra comida em vez, em vez de uvas". Termina sua fala numa proposição com uma série de falhas de conexão: "Eu acho talvez esta história, eu ia demonstrar isso".

(IN) CONCLUSÃO

O material aqui apresentado é um fragmento, e sua análise é um ensaio. A partir deste material, verificamos que a leitura possibilita situar alguns pontos da relação do sujeito com o campo do sentido. Os fenômenos explicitados falam do transbordamento da subjetivação na leitura. Na relação com o texto, o sujeito fala desde sua possibilidade estrutural.

Também, podemos ver, no caso de Gustavo, que a incidência da letra deu-se predominantemente no registro Imaginário, não caracterizando assim o enodamento borromeano. Isso se relaciona com sua estruturação subjetiva modalizada a partir da inscrição da função significante do Nome-do-Pai.

Em geral, nos atos de leitura de Gustavo, vemos que no processo metalingüístico, há o funcionamento diverso de termos que qualificam o estatuto do discurso. Podemos encontrar situações em que há falhas na metáfora, outras em que há dominância e alterações das vias de contigüidade, ou seja, nas construções sintáticas, a letra é tomada predominantemente pelo paradigma. Há pregnância da imagem, por exemplo, em forma de descritivismo. Há rupturas nas cadeias de sentido, há dificuldade de realizar a autonimização no discurso. O deslizamento na cadeia significante é alterado pela forma de barramento na relação significante/significado. A utilização da pontuação que regula as pautas de sentido é afetada, evidenciando que, em vários momentos em que Gustavo lê, não leva em conta o Outro.

Situar a singularidade da estruturação psicótica abordada pelo saber da psicanálise é um atravessamento necessário à clínica que se propõe a abordar a psicose. Na infância a escola é um lugar em que se podem sustentar os laços sociais necessários para esses sujeitos. Nesse sentido, o diálogo entre a clínica e a educação é fundamental. Um sujeito fala desde um lugar no discurso, e na psicose atestamos que não há transparência da linguagem. Se a educação tem uma função para a psicose na infância, também a psicose tem isso a transmitir aos educadores.

Aqui abordamos algumas situações de linguagem que buscam situar a singularidade do psicótico na linguagem pela leitura. Esperamos que isso contribua para os olhares sobre o trabalho com a psicose. No desdobramento deste texto deixamos em aberto a reflexão sobre a importância dos efeitos da leitura na constituição subjetiva. A experiência de qualquer leitor atesta o quanto podemos ser atravessados subjetivamente pela leitura.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Bergès, J. (1988). Leitura e escrita literais. Doze escritos de Jean Bergès. Escritos da infância, 2, 1997.         [ Links ]

Birman, J. (1996). Por uma estilística da existência. São Paulo, SP: Editora 34.         [ Links ]

Einaudi, Enciclopédia (1987). Verbetes Leitura. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.         [ Links ]

Freire, M. (2001). A escritura psicótica. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.         [ Links ]

Goodman, K. (1990). O processo de leitura: considerações a respeito das línguas e do desenvolvimento. In Ferreiro, E. & Palácio, M. Os processos de leitura e escrita. Novas perspectivas. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.         [ Links ]

Julien, P. (2002). Psicose, perversão, neurose. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.         [ Links ]

Lacan, J. (1953). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1988.         [ Links ]

______ (1955-6). O Seminário, Livro III, As psicoses. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1985.         [ Links ]

______ (1957-8). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

______ (1957-8). De uma questão preliminar de todo tratamento possível da psicose. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge ahar, 1998.         [ Links ]

______ (1961-2). O seminário, Livro IX, A identificação. CD: Jacques Lacan, sem textos estabelecidos.         [ Links ]

______ (1970). O seminário, Livro XVIII, De um discurso que não saeria do semblante. CD: Jacques Lacan, sem textos estabelecidos.         [ Links ]

______ (1972-3). O seminário, Livro XIX, ... Ou pire. CD: Jacques Lacan, sem textos estabelecidos.         [ Links ]

Manguel, A. (1997). Uma história da leitura. São Paulo, SP: Companhia das Letras.         [ Links ]

Nancy, J. & Labarthe, P. (1991). O título da letra. São Paulo, SP: Escuta.         [ Links ]

 

 

NOTAS

1 Este trabalho foi escrito a partir da dissertação em desenvolvimento no Mestrado em Educação na Faced-UFRGS, sob a orientação da professora doutora Margareth Schäffer.

2 "Octam" é o nome da peça de Lego de um jogo utilizado por Gustavo em seu atendimento.

 

 

Recebido em abril/2003
Aceito em maio/2003

Creative Commons License