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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.8 n.14 São Paulo jun. 2003

 

DOSSIÊ

 

Sob a clínica: escritas do caso

 

Under the case: writings of the case

 

Angela Vorcaro*

*Doutora em Psicologia Clínica e psicanalista em Belo Horizonte.

 


RESUMO

Trata-se de discutir a escrita do caso como transposição de registros que permite a leitura da singularidade que comparece na clínica psicanalítica. Para isso, é feito o estudo da monografia do primeiro caso de análise de crianças.

Palavras Chave: Escrita, Psicanálise, Caso clínico.

 


ABSTRACT

This paper discusses the writing of the clinical case as a shift of registers that enables the reading of the singularity that emerges in the psychoanalytic clinic. We take as a point of reference the study of the first Freudian work on clinical psychoanalytic of childrens.

Keywords: Writing, Psychoanalysis, Clinic case.

 


 

 

MÉTODO FREUDIANO E MONOGRAFIA CLÍNICA

O método freudiano não equivale nem se limita às importantes balizas técnicas esboçadas por Freud. Foi exatamente por não ter podido tornar seu método explicitamente disponível que Freud conseguiu trilhá-lo e transmiti-lo através de suas monografias clínicas. É possível afirmar que a escassez de recomendações técnicas é imanente ao método, na medida em que impede o risco de reduzi-lo à técnica, que o tornaria passível de aplicabilidade. A aplicação de uma técnica, como sabemos, pressupõe a detenção de um conhecimento que universaliza o objeto e, conseqüentemente, apaga sua manifestação singular.

A preservação de manifestações do inconsciente nas monografias de Freud testemunha sua incidência, mesmo quando tal registro ultrapassa a condição de ser abordado ou quando dissipa sua opacidade. Essa característica intima a responsabilização do analista quanto a seu ato e quanto à trans missão de sua prática clínica, obrigando cada analista, em cada caso, a recriar o método, constituindo um estilo. Como distingue Jean Allouch (1993), o discurso do método freudiano é expresso na prática metódica que faz dele um. Sua série de monografias clínicas constituiu, na repetição diferencial da série, um método. Efetivamente, Freud decanta a clínica e transmite, dela, o caso. E interessa ressaltar que o caso não se limita ao paciente, mas refere-se ao encontro que a clínica promove. É por isso que se pode ainda dizer, com Allouch (1993), que a especificidade dessa transmissão implica que a sustentação do caso em Freud não esteja limitada à função de paradigma do método freudiano1.

As monografias clínicas de Freud ultrapassam a função técnica e aplicativa do paradigma constituindo propriamente um método, como depreendeu Allouch, porque:

_ o caso histórico delimita um campo cujo método não cessa de significar-se na abordagem do caso;

_ o caso provoca uma transmissão feita do exercício subjetivo que o ato de relatar o caso faz valer: o método é o relato do caso, mantido singular, porque fundado na literalidade do que o caso mostra como sintoma e como narrativa dos invólucros do sintoma;

_ o caso aparta o saber adquirido de casos precedentes, inscrevendo o que há de traço propriamente metódico: o saber adquirido, em vez de ser aplicado, deve ser recusado.

Fazer valer tais especificidades conduz a constatar que método, diferentemente da técnica, só pode ser concebido de modo indissolúvel do que se convencionou chamar de objeto2. Mas, se podemos conferir o estatuto de método às monografias clínicas de Freud, devemos desdobrar sua função, fazendo-as trabalhar ainda mais, para forçá-las a dizer melhor, esclarecidas por relatos posteriores, pela teorização e pelas interrogações que emergiram depois delas, no atravessamento de outras séries clínicas de analistas de outros tempos.

Para problematizar a escrita do caso, a monografia clínica de Hans distingue-se porque é possível recolher nela a função da literalidade do escrito. Nessa primeira análise de uma criança, a concepção freudiana da criança concreta reverbera sobre o método com o qual Hans foi abordado e tratado, produzindo interrogações não apenas relativas à capacidade operatória da psicanálise para a clínica com crianças mas também sobre o sujeito a que tal clínica se dirige.

Tratarei não propriamente de Hans, mas daquilo que fez, de uma criança, um caso clínico. Espero, portanto, balizar as condições nas quais uma criança concreta foi considerada clinicamente, para, assim, bordear a primeira emergência do desejo de analisar crianças. Nessa perspectiva, as interrogações que a monografia de Hans produzem sobre o método analítico e as interrogações que o método analítico produzem sobre a monografia de Hans tornam-se guias de uma forma de abordagem de um traço de real da clínica com crianças, relativo ao desejo de analisá-las:

_ A preservação da literalidade do sintoma e da narrativa de Freud permite ressignificar a abordagem do caso?

_ O que o relato freudiano faz valer enquanto ato do analista? A narrativa freudiana descola-se do sintoma de Hans, ou compõe-se como invólucro dele?

_ O saber adquirido com os ensinamentos de Hans nos exige ultrapassar o que dele foi dito por Freud com os elementos que o próprio Freud transmitiu, mais do que o que ele efetivamente tenha dito ou escrito?

_ Como, enfim, o desejo de analisar crianças comparece na análise que Freud fez de Hans?

A OBSERVAÇÃO DIRETA DE HERBERT: A TRANSCRIÇÃO DEMARCA A POSIÇÃO DE QUEM LÊ

Interessa notar que os principais dados do caso, ou seja, os diálogos de Hans, foram registrados por meio de estenografia, por Max Graf, pai de Hans. Essa transcrição situa a hipótese de coincidência entre investigador da criança e pai da criança, fazendo, também, equivalência entre dois registros distintos: os diálogos entre pai e filho e o texto escrito por um investigador, para o analista. Entretanto, o voto da plena transposição de registros dos diálogos efetuada por meio de uma transcrição de dados dirigida a Freud permite problematizar aquilo que dela escapa por meio do esclarecimento de sua função e, como conseqüência, a posição de quem os lê para registrá-los.

O pai de Hans escreve para o caro professor, endereçando seus escritos a Freud. A interposição da atividade de escrita situa o Outro do escritor: o sujeito suposto saber a quem este se remete, por meio da estenografia que faz interface ao saber do filho personificado em Hans, e ao saber da função paterna, personificada em Freud.

Nessa dobradiça em que se identificam, num só tempo, filho e pai, Max Graf oferece a fala de seu filho a Freud como o modo pelo qual transmite sua demanda de reconhecimento como filia do legítimo à psicanálise. Mas cabe notar que Max ultrapassa sua transcrição: nos traços depositados de sua escrita, mantida literal por Freud, comparece a incidência de suas hesitações no exercício da paternidade, em que pode ser lida outra demanda: o que é um pai? É apenas ao final de todo o relato que Max Graf a expressa nitidamente, ao dizer que Hans é incansável em fazer perguntas (de que são feitas as coisas? quem faz as coisas?), caracterizadas pelo fato de fazê-las a despeito de ele mesmo já as ter respondido:

"(6) [...] Hans ainda quebra a cabeça para descobrir o que um pai tem a ver com seu filho, já que é a mãe que o traz ao mundo. Isto pode ser visto pelas suas perguntas como, por exemplo: `Eu pertenço a você também, não pertenço?' (querendo dizer não só a sua mãe). Não está claro para ele de que maneira ele pertence a mim. Por outro lado, não tenho nenhuma evidência direta de ele por acaso ter ouvido, como o senhor supõe, seus pais tendo relações sexuais.

(7) Ao apresentar o caso é preciso que se insista sobre a violência de sua ansiedade. De outra forma, poderia ser dito que o menino teria saído para passeios bem cedo, se tivesse recebido uma boa surra" (Freud, 1909, p. 107).

Um saber se deposita em seu escrito, a despeito de sua consciência. Note-se que, sob o efeito da educação psicanalítica, não era possível a Max bater em Herbert, impondo-lhe o abandono da bobagem, como Max podia ouvir ecoar do Outro, ou seja, daqueles que ele podia supor protestarem por sua benevolência. Entretanto, sem nada impor à criança, parecia difícil que ela pudesse saber para que serve um pai, o que faz um pai e a quem um filho pertence.

Ao fazer-se autor da monografia sobre Hans, Freud testemunha a importância de Max Graf, fazendo dele a condição que tornou possível a primeira aplicação do método psicanalítico a uma criança tão jovem. Afinal, para Freud, a reunião da autoridade paterna e médica em uma só pessoa conjugava o interesse afetivo ao científico, necessários ambos à análise de uma criança:

"O caso clínico não provém de minha observação. [...] assentei linhas gerais do tratamento [...] numa única ocasião [...] participei diretamente dele; o próprio tratamento foi efetuado pelo pai da criança; ninguém mais poderia, em minha opinião, ter persuadido a criança a fazer quaisquer declarações como as dela; o conhecimento especial pelo qual ele foi capaz de interpretar as observações feitas por seu filho de 5 anos era indispensável; sem ele as dificuldades técnicas no caminho da aplicação da psicanálise numa criança tão jovem como essa teriam sido incontornáveis" (Freud, 1909, p. 15; grifo meu).

De que trata, afinal, essa exigência de conjunção da autoridade paterna e da médica? Poderiamos ler, nessa afirmação, que Freud estaria querendo significar que o desejo do analista de crianças não pode prescindir de ser veiculado por meio de uma demanda paterna? Afinal, é possível depreender daí algo que

perturba o desejo de analista, que, especialmente na análise de crianças, insiste em comparecer: a demanda de transmissão de uma herança simbólica, ou seja, a demanda paterna. Seria possível ao analista, efetivamente, ao analisar uma criança, desprender-se dessa demanda? Enfim, o caso Hans nos parece privilegiado para que dele possamos depurar algo relativo a essa articulação entre desejo de analista e demanda paterna.

Com os aportes teóricos de Jacques Lacan, podemos constatar, na clínica de crianças, que todo o universo da psicopatologia de crianças assenta-se na perturbação da transmissão simbólica que permite a cada criança efetuar os tempos de sua estruturação para ultrapassar a condição real de objeto de um outro, imaginarizar-se identificada ao lugar em que é posta até situar-se numa posição de incomensurabilidade desde a qual pode desdobrar plenamente toda a função significante. Toda a série psicopatológica do autismo, psicose, debilidade e dos fenômenos psicossomáticos evidencia que a criança alocada na posição sígnica, ou mantendo relações sígnicas entre posições nos laços a que está exposta, sofre da insuficiência de extensão simbólica. Os requintes com os quais as inibições, fobias e as perversões infantis manifestam-se não deixam de estar atrelados à mesma condição de insuficiência de extensão simbólica, já que implicam a impossibilidade de ultrapassar a função que ocupa para o Outro primordial e distinguir-se em sua incomensurabilidade por meio do acesso a uma outra modalidade de circulação entre termos e posições, para desdobrar o campo simbólico em toda sua extensão.

Se nos parece óbvio que a análise de uma criança deva conduzi-la de um lugar infans à sua efetuação estrutural subjetiva, trata-se, para o analista, de criar condições para a transmissão simbólica: resgatando a criança do anonimato do desejo, reconduzindo-a à herança de sua linhagem simbólica própria, para que o sujeito, constituído, possa fazer com ela algo de novo.

Nessa situação, em que um sujeito ainda não comparece perfurando o real, qual desejo opera, enquanto função necessária por estrutura para constituir um sujeito? Não estaria aí em jogo o desejo do analista, atravessado em sua demanda situada na oferta de inclusão da criança no campo simbólico?

Voltemos ao caso Hans e ao que ele nos ensina.

Antes do testemunho da sexualidade infantil oferecido por Max, Freud já havia sistematizado os principais conceitos sobre a sexualidade e sua precocidade, como testemunham os Três ensaios de teoria sexual, publicado em 1905. Freud havia também observado pontualmente crianças e concluído sobre a correlação entre a criação dos jogos de palavras e os jogos das crianças. Desde seu livro sobre os chistes, Freud (1905b) constatara que a criança que trata as palavras como coisas aponta a lógica do pensamento inconsciente, calcada na economia psíquica da busca de prazer, motivação do chiste (pp. 115-20). Ao jogar com as palavras, a criança estaria buscando os mesmos sentidos na similaridade fônica. Seu equívoco provocador do riso atesta, para Freud, que um bom chiste ocorre quando a semelhança das palavras indica na realidade, ao mesmo tempo, outra semelhança essencial ao sentido, ou seja, quando se comprova a expectativa infantil. Na mesma via da experiência infantil de jogo com as palavras, o efeito de prazer do ritmo ou da rima, que não se atém à condição de sentido, já havia permitido a Freud a hipótese sobre o prazer do non-sens, rarefeito no adulto à custa da repressão.

Mas, em 1908, tratava-se, para Freud, de defender-se da incredulidade dos que haviam lido os Três ensaios, como lembra Octave Mannoni (1994). Muito mais que a análise de uma criança, o que motivava o interesse de Freud em Hans, como veremos, era a confirmação de suas afirmações anteriores. Foi a esse interesse que Max Graf aderiu especialmente, ao oferecer as manifestações de seu filho a seu caro professor.

O OBSERVADOR DE HANS

As condições de produção da primeira observação psicanalítica sistemática de uma criança são relevantes. Por isso, determo-nos em seu autor permite iluminar certas zonas obscuras da emergência de uma fobia, nessa criança. A relação de Max Graf, o pai de Hans, com a psicanálise nos importa.

Segundo Herbert Graf (1999, pp. 19 e ss.), seu pai era, ao mesmo tempo, um verdadeiro vienense e um homem universal. Pensou em se tornar compositor e escreveu uma peça ambiciosa, de várias vozes. Após o veredicto de Brahms, de que havia feito mal as partes do soprano e do baixo, ele desistiu. Além de musicólogo e crítico, seus interesses e realizações atingiam uma variedade extensa de domínios. Fez doutorado em Direito, era excelente estudioso de literatura e estética, ensinando essas disciplinas na Academia de Viena e nos Estados Unidos. Escrevia artigos de ponta como analista político, e entendia de filosofia, de ciência e de matemática.

Os pais de Hans estavam entre os primeiros adeptos de Freud, sendo a mãe uma ex-paciente e o pai um antigo freqüentador das conferências de Freud, nos diz Ernest Jones (1989, p. 23). Na verdade, como o próprio Jones esclarece (p. 24), Max Graf esteve entre os primeiros participantes das reuniões das quartas-feiras, na casa de Freud, desde 1902. Em 1906 Freud escreve o artigo "Tipos psicopáticos no palco", em que expõe as condições sob as quais certas formas de arte afetam uma platéia e como alcançam seu propósito. Esse artigo foi dado a Max Graf, que o publicará, em inglês, apenas em 1942 (p. 338). Em 1907, Freud acabara de escrever seu ensaio sobre a Gradiva e estavam sendo publicados vários estudos analíticos de grandes autores. Freud ocupara-se, em diversas ocasiões, do método adequado para lidar com esses problemas. Em 11 de dezembro de 1907, Max Graf leu um artigo sobre "Os métodos usados no estudo da psicologia dos escritores criativos". Freud confirmou suas conclusões e acrescentou outras, a partir da obra de Jensen. Ele considerava que os estudos psicanalíticos podiam lançar luz sobre a motivação dos escritores, tornando-se úteis contribuições na pesquisa bibliográfica, interessado que estava em relacionar os motivos desvendados em Gradiva com a personalidade de Jensen. Este desconhecia a psicanálise, mas foi receptivo a Freud, que lhe pediu informações sobre a fonte de suas idéias. A resposta de Jensen nada esclarecia, mas três outras histórias de Jensen com temas semelhantes foram mostradas a Freud, por Jung. No mesmo dia em que Max Graf apresentou seu artigo (11 de dezembro de 1907), Freud leu sua explicação hipotética da fonte de inspiração de Jensen. Para Freud, Jensen teria sido ligado a uma menina, possivelmente uma irmã, e teria sofrido uma grande decepção, talvez pela morte dela. Um defeito físico da menina teria sido transformado pelo escritor num belo andar, e a visão do relevo no Museu de Munique lhe sugeriu a idéia. De tal hipótese, Jensen confirmou apenas a perda de dois amores mortos subitamente (pp. 342-3).

Mas, ao nos convidar a interrogar o motivo pelo qual o nome do pai de Hans, autor do relato, está apagado na monografia de Freud, Martine Gauthron (1992, pp. 151-8) esclarece um pouco mais as relações entre Freud e os pais de Hans. Lançando a hipótese de que tal apagamento convém a Freud na apresentação que ele quer dar desse trabalho, e que o restabelecimento, apenas em 1972, do nome de Max Graf como pai de Hans abre nova possibilidade de leitura do caso, ela relata aspectos da relação entre Freud e Max Graf. O interesse na criação literária, comum a Freud e a Max Graf, faz com que este ofereça seus préstimos à tarefa de investigar como os escritores criativos mobilizam seus leitores, e como expõem suas fantasias, analisando a obra dos escritores para delas retirar ensinamentos sobre o processo de criação. Martine Gauthron observa que Max Graf explorou a infância dos escritores, propondo um método que evitava tanto a autobiografia (pelo recalcamento dissimulador da narrativa), quanto a biografia nos moldes de Lombroso ou dos psicólogos franceses (tidos por Graf como "doadores da alma" que vêem no escritor um tipo de criminoso, neurótico, ou um degenerado superior). Partia dos "motivos pessoais", ou seja, motivos poéticos repetidos nas obras de um autor, que revelariam os mecanismos mais secretos da personalidade. Freud reservou a Max Graf o direito de utilizar seu método, uma vez que este seria o único a ter a sensibilidade artística necessária a tal aproximação. É o que permite a Herbert Graf (1972, p. 20) dizer que seu pai foi o primeiro a aplicar o método psicanalítico ao estudo do processo criativo, com o artigo "Wagner im Fliegenden Holländer". Mas Freud tenta ir mais longe do que permite o recolhimento das lembranças de infância dos escritores, e levanta a hipótese de observar as crianças diretamente, por meio de questionários preparados para recolher material (Gauthron, 1992). O terreno de observação não poderia ser Anna Freud, já com 11 anos. Entretanto, na época, o filho de Max Graf _ Herbert _, nascido em abril de 1903, estava em boas condições para a observação.

A mãe, Olga Höing, havia sido paciente de Freud antes de se casar com Max. Freud já havia, também, aconselhado Olga e Max na ocasião do nascimento de Herbert, quando esses o questionaram sobre o projeto de um batismo católico para lhe evitar a rejeição anti-semita. Hans tinha como padrinho o músico Gustav Mahler, amigo do casal.

Como se pode ler na Introdução ao caso Hans, Freud também participou, desde os primeiros anos, da educação de Hans:

"Seus pais estavam, ambos, entre os meus mais chegados adeptos e haviam concordado que, ao educar seu primeiro filho, não usariam de mais correção do que a que fosse absolutamente necessária para manter um bom comportamento. E, à medida que a criança se tornava um menininho

alegre, bom e vivaz, a experiência de deixá-lo crescer e expressar-se sem intimidações prosseguiu satisfatoriamente" (Freud, 1909, p. 16).

A amizade de Freud para com os Grafs também permitiu que, na ocasião do terceiro aniversário de Herbert, Freud o presenteasse com um cavalo de pão, verdadeiro cavalo de Tróia, como lembra E. Rodrigué (1995, p. 136)3. Peter Gay (1989, pp. 242-3) faz notar que os pais de Hans interessavam-se por suas tagarelices, registravam seus sonhos e achavam divertida sua promiscuidade amorosa infantil, vivendo enamorado por todo o mundo. Freud lhe tinha muito afeto, chamando-o desde então de "nosso pequeno herói", e com admiração o considerava "exemplo de todas as travessuras" e que crescia como um burguesinho alegre e encantador.

Freud serve-se da observação direta de Hans, antes do surgimento da fobia na criança. Como lembra Jones (1989, p. 263), "dois anos antes, Freud havia publicado um breve relato de dois aspectos do caso. Em um, no qual o menino chama-se Herbert, trata da curiosidade sexual das crianças; no outro, escrito um ano depois, um menino de 3 anos adivinha corretamente a verdade sobre o nascimento observando a gravidez de sua mãe".

Realmente, ao escrever ao dr. Fürst sobre o esclarecimento sexual das crianças, Freud recorre à curiosidade sexual de Hans, "filho de pais compreensivos que se abstiveram de reprimir uma parte de seu desenvolvimento" e que "não é uma criança sensual nem com disposição pato lógica", para valorizar a posição de não intimidação e de não opressão dos pais, diante de seus filhos:

"A meu ver, o que acontece é que, não tendo sofrido intimidações e não tendo sido oprimido por nenhum sentimento de culpa, ele expressa candidamente aquilo que pensa" (Freud, 1907b, p. 140).

Ao discutir, em outro artigo, as teorias sexuais infantis, Freud (1908) afirma que, mesmo quando a criança não é intimidada pelos pais, seu progresso é inibido por ficar à mercê da ignorância em que os adultos a deixam. Assim, mesmo não sendo diretamente inibida em sua curiosidade, o método de investigação fracassa por esbarrar nos limites do adulto:

"Quando a criança não foi demasiadamente intimidada, mais cedo ou mais tarde recorre ao método direto de exigir uma resposta dos pais ou dos que cuidam dela, que representam a seus olhos a fonte de todo o conhecimento. Esse método, entretanto, falha. A criança recebe respostas evasivas ou repreensões por sua curiosidade, ou ainda é despedida com a explicação mitológica que, nos países germânicos, é a seguinte: `A cegonha traz os bebês; ela os tira da água" (Freud, 1908, pp. 216-7).

Seria um erro supor que essa educação sexual psicanalítica da nascente pedagogia freudiana fosse da ordem do vale-tudo, nos lembra Emilio Rodrigué (1995, pp. 132-3), que registra ainda o debate sistemático do tema às quartas-feiras, citando, como exemplo, a questão formulada por Tausk em 1910: aonde le-

vará dizer às crianças, em análise, coisas que entram em contradição com os pontos de vista atuais da civilização? Para Freud, a educação sexual não poderia ser dada de forma neutra, sem "tom emocional", mas a criança deveria experimentar certa excitação sexual, apropriada ao tema em questão, sem tornar-se uma "vacina preventiva".

Referindo-se diretamente a Hans, no mesmo artigo, Freud irá apontar que tais descobertas infantis serão mantidas em reserva e esquecidas:

"Sei agora que as alterações sofridas pela mãe no decurso da gravidez não escapam aos olhos aguçados da criança, e que ela é perfeitamente capaz de logo estabelecer uma relação entre o aumento de volume materno e o aparecimento do bebê. [...] Essa descoberta precoce, entretanto, é sempre conservada em segredo e mais tarde reprimida e esquecida, de acordo com as posteriores vicissitudes das pesquisas sexuais da criança" (Freud, 1908, p. 218).

O esquecimento se deve, diz Freud, ao malogro dos esforços intelectuais da criança. As hesitações e dúvidas quanto às teorias sexuais são o protótipo de todo o trabalho intelectual posterior da criança, aplicado à solução de problemas. Esse primeiro fracasso terá, para Freud, um efeito cerceador de todo o desenvolvimento futuro da criança (p. 222).

Efetivamente, a posição de Freud acerca do esclarecimento sexual de crianças era clara, e não há dúvidas de que os pais de Hans, enquanto adeptos de Freud, aplicaram-se em fazer valer suas orientações. Como lembra Jones (1989, pp. 295-6), é no momento em que Freud critica duramente aqueles que duvidavam da conveniência desse esclarecimento (abordando o infortúnio da recusa de esclarecimento e aconselhando o esclarecimento contínuo desde o início, acompanhando a curiosidade e a inteligência da criança) que ele se remete pela primeira vez a Hans (preservando seu nome próprio, Herbert), antes de o menino ter manifestado a fobia.

A OBSERVAÇÃO ANTECEDENTE À FOBIA

Em janeiro de 1906, Max Graf passa a observar seu filho.

Freud acentua que a peculiaridade da observação de Hans reside no fato de permitir provar os teoremas fundamentais da psicanálise, dando ocasião a Emilio Rodrigué dizer que, se Dora foi fruto do Traumdeutung, o pequeno Hans foi o rebento dos "Três ensaios" (1995a, p. 134). Freud (1909, p. 16) escreve que a afirmação de que a sexualidade infantil do paciente adulto é a força motivadora de todos os sintomas neuróticos, parece, a um leitor leigo, estranha, e mesmo um psicanalista pode desejar ter uma prova mais direta, e menos vaga. A certeza da possibilidade de se observar em crianças, em primeira mão e em todo o frescor da vida, os impulsos e desejos sexuais levou-o, por muitos anos, como ele afirma, a encorajar alunos e amigos a reunir observações da vida sexual de crianças, tendo em vista essa finalidade:

"Entre os materiais que me chegaram às mãos como resultado desses pedidos, os relatos que recebi em intervalos regulares sobre o pequeno Hans logo começaram a assumir uma posição proeminente" (p. 15).

Efetivamente, os relatórios de Max a Freud contemplam plenamente a prova direta e consistente dos desejos sexuais infantis. As transcrições das manifestações de Hans iniciam-se quando este (nascido em abril de 1903) tem pouco menos de 3 anos de idade, nas ocasiões em que demonstrava um interesse vivo pelo seu "pipi". As notas dirigidas a Freud (ou por ele destacadas) remetem-se especialmente a esse fato.

Max cedeu suas notas a Freud. Segundo Gauthron (1992), a questão de uma co-publicação não se põe, pois Freud é, para Max, o provedor de idéias novas, e por isso não reivindica a propriedade intelectual de seu trabalho. Max precisa:

"Seria impossível para mim distinguir as idéias que nasceram espontaneamente no meu espírito daquelas que eu tenho do ensino de Freud e das que eu devo à crítica de meus colegas" (M. Graf, 1911, citado por Gauthron, 1992).

Em 1907a, ou seja, já sob o efeito dos relatos de Max Graf, Freud (pp. 125-35) nos diz que a criança que brinca comporta-se como um escritor criativo e como um adulto que fantasia. Na perspectiva aqui inaugurada pela leitura freudiana de Hans, a criança constitui no jogo sua realidade psí quica, é dirigida por desejos que se organizam numa série permutativa: jogo_devaneio_sonho_poesia. Nessas pontuações a respeito dos jogos de criança, Freud toma tais jogos como a sintaxe de um texto cifrado, comparável à poesia e aos rébus produzidos nos sonhos. O ato de pôr coisas de seu mundo numa nova ordem diferencia-se da fala4 apenas porque os significantes usados não são vocais, mas estruturam-se igualmente no campo dos processos de condensação e deslocamento, ou seja, estão sob a vigência das leis do processo primário.

São também as observações de Max sobre seu filho, acuado pela ameaça de castração e pelo nascimento de sua irmã Hanna (ambos em 1906), que permitem a Freud (1908, pp. 189-92) registrar sua confirmação de que a capacidade de pensar é efeito do primeiro conflito psíquico da criança, constrangida pela ameaça de perda do amor, pelo efeito da presença do semelhante e pela constatação da diferença sexual, constituintes originários do complexo nuclear da neurose. Assim, Freud confirma em Hans o que já apontara nos "Três ensaios": a interrogação da criança e a construção de teorias procedem da mesma fonte, as pulsões sexuais; respondem a necessidades objetivas; fazem eco ao mito e à saga, e são análogas à atividade científica. Permitem, portanto, fornecer consistência imaginária à estrutura da série permutativa já destacada: teorias sexuais infantis_mitos_saga_ciência. Modalizam a estrutura que o jogo, o devaneio, o sonho ou a poesia organizam em complexidades distintas.

Das falas de Hans, presentes na observação transcritiva de seu pai e anteriores à eclosão da fobia, mais da metade refere-se diretamente ao pipi: pipi da mãe, pipi da vaca, cortar o pipi, sangue que sai do pipi, pipi pequenininho de Hanna, pipi invisível da locomotiva, pipi não visto do papai, pipi da mãe grande como o do cavalo, pipi pequenininho de Hanna, pipi pequenininho da boneca, pipi rabo do macaco, pedido para a mãe tocar no seu pipi, pipi comprido da girafa, pipi embaixo do cavalo, fazendo pipi escondido no banheiro, diversão-porcaria de ser tocado no pipi, fazer pipi como prenda cobrada, ser visto fazendo pipi, pipi bonito de Hanna. Outra grande parte dos relatos refere-se à relação amorosa de Hans com seus amigos: estar bem à sós com Mariedl, declara gostar do primo, expectativa de encontrar as meninas, responde gostar mais de Fritzl, pergunta por suas meninas, declara que Berta é um amor, insiste para dormir com Mariedl, pede para dormir com a menina, interroga se vai encontrar a menina, comunica saber onde a menina mora, pergunta se a menina vai beijá-lo. Os demais relatos abordam a relação da cegonha com as dores de parto (tosse), com a presença da irmã, ou com meninas tidas como suas filhas: se a mãe tosse é porque a cegonha vem, o médico está presente porque a cegonha vem, chá para a tosse da mãe, a irmã não tem dentes, com febre afirma não querer a irmã, afirma que suas filhas também foram trazidas pela cegonha.

Podemos assim constatar que muito do que já está escrito por Freud reaparece na observação de Max: o interesse de Hans pelo pênis, tanto na investigação empreendida por comparação sistemática entre o seu e os que pode supor em seus pais, nos animais e nos objetos, quanto na excitação masturbatória, na articulação do que quer ver e do que exibe ou quer esconder; a desconfiança quanto à fábula da cegonha; a construção de falsas teorias sexuais como a da cloaca, a de que a mulher tem pênis, a de que o pênis é dado (pequeno) ou negado (não tem dentes) à menina, a ameaça de perda do amor pelo nascimento da irmã e a conseqüente irrupção de ciúmes; a precocidade da substituição dos pais por outros objetos de investimento amoroso homo e heterossexuais, as manifestações da resistência à pulsão sexual na vergonha que faz o exibicionismo sucumbir recalcado e reaparecer no sonho.

Enfim, a observação de Max é completamente demonstrativa. A fala produzida por Herbert e recolhida por seu pai confirma absolutamente o que Freud decantara das análises de adultos. É o que ele próprio afirma: "Recentemente, a análise de um menino de 5 anos, feita pelo pai e a mim confiada para publicação, forneceu-me uma confirmação irrefutável da correção de uma concepção que há muito inferi da psicanálise de adultos" (Freud, 1908, p. 218).

Assim, a criança concreta Herbert apaga-se e torna-se Hans, a criança exemplar da psicanálise. Afinal, as anotações de Max sobre seu filho compõem um exemplo tipo. Max, portanto, transforma seu filho num paradigma, um exemplo que conjuga perfeitamente a gramática freudiana.

Portanto, não é sem motivo que, no decorrer de sua obra, Freud tenha problematizado, em momentos pontuais, os limites e os riscos da observação direta. Ele situou o caráter de verificabilidade da teoria psicanalítica, definindo a categoria de prova, mas não fez da observação da criança uma função privilegiada para suas investigações clínicas. Nos "Três ensaios de teoria sexual", ele lamenta que os autores que se ocupam de explicar o indivíduo adulto não possam reconhecer o caráter de lei que tem a sexualidade na infância, dando atenção muito maior à pré-história dos antepassados e à hereditariedade do que àquela que se apresenta na experiência individual da infância (Freud, 1905a, p. 157). É por não situar a observação da criança como capaz de responder sobre o infantil que Freud testemunha (no prefácio à quarta edição dos "Três ensaios", em 1920) uma das dificuldades inerentes à observação de crianças:

"Se os homens soubessem aprender com a observação direta de crianças, estes três ensaios poderiam não ter sido escritos" (Freud, 1905a, p. 120).

A observação direta da criança oferece a Freud o lugar de "certificação das inferências" e de "testemunho da confiabilidade do método psicanalítico" (p. 176), mas não constitui um campo propício à investigação e à teorização.

Quando Freud critica a cegueira neurótica dos adultos, ele se refere ao fato de que o recalcamento é capaz de impor ao adulto a vedação da manifestação sexual da criança, a despeito da nitidez com que comparece em cada uma delas. A respeito desse fato, o pai de Hans teria sido um homem privilegiado por poder ver e oferecer o testemunho das manifestações sexuais de seu filho. Mas, se lemos o relato de Max Graf iluminados pelos efeitos imaginários que as descobertas de Freud sobre a sexualidade infantil exerciam sobre o próprio Max Graf e, mais ainda, contando com as concepções de criança formuladas por Freud posteriormente, poderemos notar os engodos da observação direta à qual Max se submeteu e se alienou, ao tornar seu filho um objeto observado oferecido a seu caro professor.

Um dos estatutos da criança, para Freud, é o daquela constituída pelo adulto do que teria sido sua infância. Nesta perspectiva, a criança é a formação imaginária inconsciente do analisante adulto. Tal estatuto lhe permitiu definir a categoria do infantil sem que a materialidade da presença da criança se fizesse necessária. Foi o que testemunhou em sua teorização sobre a sexualidade infantil, elaborada por meio da análise das fantasias de cenas traumáticas dos histéricos (1914a, p. 17).

Freud descartou o método de observação direta de crianças por considerá-lo fonte de equívocos. Para ele, seria necessária a concomitância entre a investigação psicanalítica, que remonta até a infância, e a observação contemporânea da própria criança, enquanto métodos conjugados, devido ao fato de que:

"A observação de crianças tem a desvantagem de elaborar objetos que facilmente originam mal-entendidos, e a psicanálise é dificultada pelo fato de que só mediante grandes rodeios pode alcançar seus objetos e suas conclusões" (Freud, 1905a, p. 182).

Esses mal-entendidos podem ser situados a partir de outro estatuto dado por Freud à criança: uma posição simbólica, lugar de referência em que se deposita a formação imaginária do ideal parental:

"Se prestarmos atenção à atitude de pais ternos para com os filhos, teremos de discerni-la como renascimento e reprodução de seu próprio narcisismo, há muito abandonado. [...] Assim, prevalece uma compulsão a atribuir à criança toda classe de

perfeições (para a qual um observador desapaixonado não descobriria motivo algum) e de encobrir e esquecer todos os seus defeitos (os quais mantêm estreita relação com a desmentida sexualidade infantil). Além disso, prevalece a inclinação a suspender, em favor da criança, todas essas conquistas culturais cuja aceitação teve que arrancar de seu próprio narcisismo, e renovar, a propósito dela, a exigência de prerrogativas a que se renunciou há muito tempo" (Freud, 1914a, pp. 87-8).

Interessa notar a posição de Hans como falo imaginário. O próprio Freud localiza o filho nessa função simbólica, situando-o como um dos elementos tratados, no inconsciente, como equivalentes entre si e mutuamente substituíveis (1917, p. 118). O filho ganha lugar nas ocorrências influenciadas pelo inconsciente por se inscrever numa série de termos substituíveis. Como as fases de organização libidinal conservam-se junto às configurações posteriores sem se dissiparem ante as que as seguem, tal sincronia atualiza a equação simbólica em que a desvalorização dos excrementos transfere o interesse pulsional para objetos com os quais se pode presentear. Esse interesse é transposto ao investimento no filho e no pênis (1933 [1932], p. 93). Considerando a atualidade em que "os estados primitivos podem ser sempre restabelecidos" e que "o anímico primitivo é imperecível, no seu sentido mais pleno" (1915, p. 287), pode-se concluir que há uma medida _ que parece não ser pequena _ de Hans como representante fálico de seu pai.

Na observação de Hans, o renascimento narcísico de seu pai estava em jogo, determinando que as manifestações infantis tivessem valor de dom oferecido a Freud. A classe de perfeições atribuídas à criança era, nessas circunstâncias específicas, a expressão infantil da sexualidade que permitia a Freud confirmar suas teorias. Max detinha, por meio de seu filho, a prova concreta da teoria tão cara ao mestre. Afinal, os estudos dos pacientes adultos haviam permitido a Freud fazer inferências sobre a ocorrência geral do Complexo de Édipo, da castração e das zonas erógenas extragenitais do corpo. Mas, como lembra Ernest Jones, era Hans que fornecia o testemunho concreto que dava credibilidade às afirmações de Freud (Jones, 1989, pp. 263-4).

Entretanto, os problemas da observação de Hans por seu pai teriam, segundo Jones, mantido Freud numa posição cautelosa quanto ao método usado, já que este invocava a mera sugestão5:

"O pai usava o método não ortodoxo de interrogar detalhadamente o menino e, assim, com freqüência, tinha de ajudá-lo a pôr em palavras o que ele achava difícil expressar. Freud, portanto, tinha de enfrentar a óbvia objeção de que as conclusões alcançadas se deviam simplesmente às sugestões do pai. [...] Deixara de falar ao pai sobre importantes ligações que ele próprio antevira, de modo que o pai tinha de procurá-las às tontas, até que a própria criança as tornasse claras. Houve então uma fase em que a criança apresentou importantes idéias que foram uma surpresa tanto para o pai quanto para Freud. No todo, Freud comportou-se com extrema cautela e repetidas vezes insistiu em evitar interpretações até que houvesse mais material disponível. Surpreendentemente, evitou até mesmo aconselhar o pai a esclarecer para o menino o papel masculino na procriação, embora tenha dito que ele próprio o teria feito" (Jones, 1989, p. 264).

A cautela de Freud estendeu-se ainda mais ao considerar o tratamento de Hans uma feliz exceção que não permitia generalização, a despeito do sucesso da experiência.

"Em vez de perceber que um campo novo e profícuo para a terapia psicanalítica tinha sido aberto e que, precisamente por sua natureza profilática, a análise de crianças devia encerrar grandes possibilidades, ele evidentemente encarou o caso como uma feliz exceção, a partir da qual não se podiam tirar conclusões terapêuticas gerais. [...] Foi apenas porque a autoridade de um pai e a de um médico estavam reunidas em uma única pessoa e porque nela estavam combinados o cuidado afetuoso e o interesse científico que se tornou possível, nesse único caso, aplicar o método a um uso para o qual, de outro modo, ele não se prestaria" (p. 265).

Enfim, a relevância do caso Hans para a legitimidade da psicanálise conferiu-lhe o estatuto de exemplo paradigmático da teoria, e não propriamente o de um caso de criança efetivamente analisada:

"Freud comentou, sobre a análise direta de uma criança, tal como no `caso do pequeno Hans', que ela provavelmente era mais convincente para aqueles que haviam duvidado da importância da sexualidade infantil, mas que ela não alcançava as camadas mais profundas, tal como podia ocorrer com a maior cooperação de um adulto; a análise da infância feita por um adulto era, portanto, muito mais instrutiva" (p. 279).

Freud conservou certa inibição impeditiva de aproximar-se da análise de crianças, como diz Jones. Até o fim de sua vida ele teria mantido reservas quanto à análise de crianças e à exploração das regiões mais remotas e ocultas dos primeiros processos mentais. Essa cautela de Freud não pode ser desvinculada de sua experiência de acolher as manifestações de Herbert por meio da organização que seu pai lhe conferiu. Afinal, como diz Jacques Lacan, o caso Hans permite ver eclodir abertamente a sugestão. A verdadeira inquisição pressionadora presente no modo interrogativo do pai impede que se tomem as manifestações de Hans como alheias à interferência paterna. Ao contrário, essa incidência acelera a fobia, fazendo-a, num certo momento, assumir uma hiperprodutividade:

"As construções de Hans estão longe de ser independentes da intervenção paterna, com seus constantes erros apontados por Freud; respondem a elas da maneira mais sensível, como seu próprio comportamento. [...] Sua colocação na estufa, sob o fogo cruzado da interrogação paterna, mostra ter sido favorável nele a uma verdadeira cultura da fobia. Nada nos permite pensar que a fobia teria tido semelhantes prolongamentos e ecos sem a intervenção paterna, nem mesmo que ela teria tido, em seu centro, esse desenvolvimento, nem essa riqueza, nem mesmo talvez essa insistência tão pressionante durante algum tempo. O próprio Freud o admite, e retoma por sua conta que poderia ter havido ali, momentaneamente, uma combustão, uma precipitação, uma intensificação da fobia sob a ação do pai" (Lacan, 1957, pp. 262-4).

Mas vale notar, ainda com Lacan (p. 262), que a organização simbólica do mundo, com os elementos culturais que a sustentam, não pertence a ninguém, devendo ser recebida, a cada vez, por um sujeito. Se tal organização simbólica dá à sugestão seu fundamento incontestável, a abordagem de uma criança em processo de estruturação subjetiva não prescinde de sugestão. Talvez essa sugestão necessária à transmissão simbólica tenha mantido a cautela de Freud quanto à análise de crianças.

Ao tratar do desejo de analisar crianças, essa pontuação sobre a sugestão não é sem conseqüências. Dois fragmentos do relato de Max Graf a Freud, em fins de 1907, imediatamente precedentes à eclosão da fobia de Herbert, permitem distinguir uma função da fobia, articulada ao caráter de sugestão dado pela interferência de Max. Nestas, Herbert sugere estar interrogado sobre aquilo a que, até então, estava alienado: se antes respondia ao olhar do outro exibindo-se, passa a notar que é objeto de gozo, e tenta resistir, apropriar-se de uma posição na qual possa estabelecer-se, e se destacar6 do querer do outro. Por isso, a criança solicita que um pai o proteja da observação do outro, que o proteja de pagar a prenda com seu pipi oferecido ao olhar do Outro. Afinal, ele pode testemunhar esse efeito de objeto quando ele mesmo goza, ao olhar o pipi da irmã.

"[...] Ontem, quando ajudava Hans a urinar, ele pela primeira vez me pediu que o levasse para trás da casa, de modo que ninguém pudesse vê-lo. E acrescentou: `No ano passado, quando eu fazia pipi, Berta e Olga estavam me olhando'. Creio que isso queria dizer que no ano passado ele sentia prazer em ser observado pelas meninas, mas que agora já não é mais a mesma coisa. Seu exibicionismo sucumbiu à repressão. O fato de o desejo de que Berta e Olga pudessem vê-lo fazer pipi (ou o obrigassem a fazer) agora se encontrar reprimido na vida real explica seu aparecimento no sonho, disfarçado nitidamente no jogo de cobrar prendas. Desde então tenho observado repetidamente que Hans não gosta de ser visto fazendo pipi" (Freud, 1909, p. 30).

"[...] Hans (4 anos e meio) estava novamente vendo darem banho em sua irmãzinha, e então começou a rir. Ao lhe perguntarem por que ria, respondeu: `Estou rindo do pipi de Hanna'. `Por quê?' `Porque seu pipi é tão bonito'" (Freud, 1909, p. 31; grifos meus).

O que situa a angústia de Hans é que ele sabe da existência de uma diferença, mas não sabe nem do que goza, na irmã, nem do que, nele, os outros gozam. Para além daquilo que envolvia seu laço amoroso e erótico com sua mãe, Hans mantinha-se na mesma posição em relação a seu pai, estava também exposto sobremaneira à vertigem do gozo paterno _ o erotismo de seu pai, que o acolhia na posição materna, edificando-o como falo imaginário. A constrição que a observação e o interrogatório lhe impunham, arrancando palavras e registrando-as, eternizava-o nesse lugar. Hans não podia esquecer.

Que gozo seu pai visava a obter? Como oferecer-lhe o usufruto sem se perder na deriva? Que saber poderia, finalmente, satisfazer Max Graf?

Nas interrogações feitas a Hans, nas tentativas de captura e compreensão das formulações lúdicas de Hans, as demandas de Max quanto ao saber relativo à sexualidade de seu filho decantavam um desejo dirigido ao filho. Essa modalidade de personificação do desejo, pelo pai, excluía, entretanto, a função paterna. Afinal, como lembra Alfredo Jerusalinsky (1994), o sujeito constitui-se no barramento do desejo da mãe, ou seja, na versão significante que a função paterna introduz no espaço vazio que esse barramento deixa. Essa versão paterna é a que permite à criança (já separada do corpo materno e instalada no lugar do Um) encontrar sua consistência imaginária num personagem outro que a reconheça. Para que ela possa buscar tal consistência no olhar do pai, este tem de ser desejante, de modo que a criança escape à identificação absoluta ao fantasma materno. Assim, o pai como personagem é um olhar desejante que outorga ao objeto que falta uma versão imaginária, sem a qual a criança retorna à reunificação ao corpo materno. Mas é possível que, no caso de Hans, situar o desejo do personagem paterno e diferenciá-lo da função da instância paterna implica constatar que são atos excludentes. A circulação da função imaginária na constituição do sujeito pelo lado paterno conta com um desejo que, entretanto, não está personificado em Max, mas em Freud. Como vimos, Max faz de Hans o dom oferecido a Freud, ou seja, faz função materna.

Essas hipóteses trazem à tona a relação de Max Graf com Freud. Ela permite constatar o estatuto da transferência aí em jogo, que ultrapassa o trabalho de investigação e assenta-se na apresentação de um relato não do infantil de Max, mas da infância de uma criança concreta, um filho, objeto com o qual Freud foi contemplado, sujeito suposto desejante, por Max. A curiosidade que Max alimentou sobre seu filho, expondo-o à observação sistemática, permite situar a eclosão da fobia, na criança.

Até a emergência da fobia, Max, personagem inquisidor, não coincidia com uma assunção de desejo paterno dirigido à criança, mas era veículo condutor do que supunha ser um desejo de Freud. Mesmo quando Max aponta sua preocupação com o filho angustiado, sua primeira referência é ao fato de estar oferecendo a Freud o material para um caso clínico:

"[...] desta vez, lamento dizê-lo, trata-se de um material para um caso clínico. Como o senhor verá, ele vem apresentando um distúrbio nervoso que nos tem preocupado muito [...]" (1909, p. 33).

Sob efeito de angústia e de tentativas de explicação, como Freud constata, Max lhe oferece um caso clínico, e, mesmo que Freud afirme que não é nosso dever compreender um caso à primeira vista, ele acolhe o desafio de tornar o filho de Max um caso clínico, antes de tomar qualquer decisão quanto ao estatuto do que ocorre com a criança.

Interessa, ainda, recortar o registro feito por Max na seqüência de sua comunicação a Freud:

"[...] Ele receia que um cavalo vá mordê-lo na rua. [...] Será que ele viu um exibicionista em alguma parte? Ou tudo isso está simplesmente relacionado com sua mãe? [...]" (1909, p. 33; grifos meus).

Se Max indica que o terreno para tal temor teria sido oferecido pela ternura excessiva da mãe, provocando-lhe uma superexcitação, como situar o exibicionista suposto por Max em outra parte que não nele mesmo, que instigava a criança a apresentar seus pensamentos, para exibi-los a Freud? Não é difícil supor que haveria relações entre tal exibição, a que Max intimava o filho, e o fato de Hans demonstrar apreensão em ser visto, tentando esconder-se do olhar do outro para fazer pipi. Interessa notar que, ao exibir as performances e os equívocos de seu filho, Max se identifica àquilo mesmo que situa em sua esposa: uma ternura excessiva com a qual resgata seu próprio narcisismo, imiscuindo-o, num relato, às ocorrências produzidas pelo seu filho. A esperteza, a lógica e a incongruência de Hans, que seu pai exibe, teria provocado a resistência da criança em tornar-se espetáculo oferecido pelo pai ao gozo do Outro? Seria este o fundamento que lança Herbert na manifestação fóbica?

Logo após a dissolução da fobia de Hans, Max Graf perdeu seu pai e escreveu um esboço de peça de teatro sobre o tema de um conflito entre um pai e um filho, sublinhando que ele mesmo esteve nessa situação com seu pai. Queixava-se da posição de Freud, muito estrito com seus alunos, e admirava Adler, que sabia defender calma e firmemente suas posições. Sem tomar partido, lembra Gauthron (1992, p. 158), Max acabou se retirando dos encontros às quartas-feiras, mas guardou sua relíquia: o texto de Hans.

PARA CONCLUIR

Encontramos balizas que permitem a interrogação sobre o enredamento do desejo de analisar crianças à personificação de um desejo de saber que contempla o gozo do clínico, sendo, por isso, capaz de constranger uma criança à inibição. Interessa notar que aqui se encontra, mais uma vez, uma versão em que saber e gozo são vergados em direção à sinonímia. Desta forma, a possibilidade de uma criança articular significantes para desarrimar o gozo ao qual está aderida pode encontrar, como obstáculo, um outro gozo: o fascínio pelo saber com o qual o clínico se deleita, à custa da criança. Isto nos interessa porque o saber pode ser fascinante, especialmente quando um clínico reencontra numa criança a possibilidade de resgatar o desconhecimento sobre o que, da sua infância, teria esquecido.

Afinal, não é sem motivo que, muitas vezes, na clínica com crianças, pode-se assistir a uma resistência ao tratamento, que se manifesta quando a criança, por exemplo, declara-se saturada das perguntas a ela dirigidas por seu analista. Mas vale considerar, nesse caso, que a resistência ao tratamento é do analista. Assim, as perguntas, no laço transferencial, podem tornar-se dentes trituradores não dos sintomas, mas do sujeito em estruturação. Na medida em que força a produção de uma cena, fazendo aparecer, erigindo evidências, o analista faz-se obsceno, ou seja, retira-se da cena imiscuindo-se sorrateiramente nela, e faz uma clínica coercitiva, mas sem ato. Assim, não apenas põe obstáculos para a transferência, mas também lança a criança à deriva.

Entretanto, é na literalidade da narrativa escrita do caso que poderemos reconhecer e distinguir o que há de singular na clínica. Tal literalidade é cara à psicanálise porque o que o analista grafa e apaga da clínica é o que concebe como relevante ou desnecessário, evidenciando que seu ato de escrever está regulado pela responsabilização quanto ao seu ato clínico. Dizer da regulação do escrito pela clínica é dizer que o escrito submete-se, queira ou não, saiba ou não, às mesmas regras estruturais do que faz ato clínico. Nesta medida, a transmissão da clínica psicanalítica pelo que dela se escreve constringe o que há de singular no encontro desencontrado desta experiência. O real, ou o singular da clínica, que o clínico necessariamente desconhece, só pode ser abordado depois de ter sido transposto para outro sistema de registro antes de ser localizado, antes de tornar-se legível. Recuperar a operação de apagar e de ressaltar trilhamentos do caso no registro escrito deste é descompor séries imaginárias que bordeiam e encobrem o real, a letra, ou o singular do caso. Destituí-las de sua condição imaginária é, portanto, reduzi-las por meio de operações simbólicas que cartografam, distinguem séries correlatas e reencontram a repetição. Daí a função da narrativa: só o encadeamento significante permite ler, no escrito, a constrição real, ou seja, a singularidade do caso que não é nem apenas da estrutura do paciente nem de suas manifestações sintomáticas, mas refere-se ao encontro desencontrado do sujeito com o analista. Neste sentido podemos tomar o ciclo de exibição-inibição presente nas manifestações do caso Hans (sejam as de Herbert, as de Max ou as de Freud) a partir do que o registro escrito do caso translitera, repetindo, por seu ato, este ciclo: a pulsação entre a aparição eternizada da sexualidade infantil e o embaraço de Freud para tratar crianças pela psicanálise. Afinal, o caso Hans é, a um só tempo, o documento que Freud apresenta à ciência da sexualidade infantil e o que fez da criança para Freud um obstáculo irredutível ao tratamento psicanalítico, a que ele atribuiu desinteresse pessoal, negligência e impaciência da idade, acabando por delegá-lo ao futuro.

Por mais que se queira um exercício de saber, a escrita do caso mostra que o analista está submetido à clínica, sendo falado pelo seu escrito muito mais do que saberia dizer. Daí a função da escrita da clínica psicanalítica: interrogar o que ela tem de imaginário e de aleatório para, ao reduzir a montagem consistente que adquire, discernir o ato psicanalítico.

 

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NOTAS

1 Thomas Kuhn (1990) situa-nos quanto à definição e à função do paradigma: "Se não se ensinam definições aos cientistas, são-lhes ensinados métodos tipo de resolver problemas escolhidos [...]. Se eles assimilam um conjunto suficiente desses exemplos tipo, eles podem modelar sobre eles sua pesquisa ulterior, sem precisar haver acordo sobre o conjunto das características que fazem deles exemplos tipo, justificando sua aceitação. Esse procedimento parece bastante próximo àquele pelo qual os estudantes de línguas aprendem a conjugar verbos e a declinar nomes e adjetivos. Eles aprendem, por exemplo, amo, amas, amat, amamus, amatis, amant, e usam essa forma tipo para obter o presente do indicativo de outros verbos da primeira conjugação latina. A palavra ordinariamente utilizada para designar esses exemplos tipo no ensino de línguas é `paradigma', e quando eu o estendi a problemas científicos tipo, [...], parece-me que não falseei o sentido. [...] [Esses manuais] apresentam soluções completas aos problemas, aos quais a profissão conferiu o estatuto de paradigmas; pois eles demandam ao estudante... resolver ele mesmo problemas bastante semelhantes, quanto ao método e ao conteúdo, àqueles que ele já encontrou no manual ou no curso do professor. [...] Infelizmente [...] os paradigmas ganharam vida própria, caçando, em larga medida, a referência anterior ao consenso. Começando como solução de problemas tipo, eles estenderam seu império, apropriando-se primeiramente dos livros clássicos nos quais apareceram inicialmente esses exemplos aceitos atualmente, para anexarem-se finalmente ao conjunto disso a que aderem os membros de tal ou tal comunidade científica. [...] a palavra `paradigma' só é apropriada ao primeiro desses sentidos".Dossiê

2 Nesse aspecto, Canguilhem (1958) nos guia: "Procurou-se, por muito tempo, a unidade característica do conceito de uma ciência na direção de seu objeto. O objeto ditaria o método usado para o estudo de suas propriedades. Mas era, no fundo, limitar a ciência à investigação de um dado, à exploração de um domínio. Quando se constatou que toda ciência se dá mais ou menos seu dado e dele se apropria, e desse fato, o que se chama seu domínio, o conceito de uma ciência progressivamente tem bem mais o estatuto de seu método do que de seu objeto. Ou, mais exatamente, a expressão `objeto da ciência' recebeu um sentido novo. O objeto da ciência não é mais somente o domínio de seus problemas, dos obstáculos a resolver, é também a intenção e a visada do sujeito da ciência, é o projeto específico que constitui como tal uma consciência teórica" (p. 78).

3 Emilio Rodrigué cita a fonte dessa informação: Max Graf (1942), "Reminiscence of professor Sigmund Freud", Psychoanalytic Quarterly, XI, pp. 465-76.

4 Cabe esclarecer que o jogo diferencia-se da fala, mas é uma linguagem. A distinção entre jogo, língua, fala e linguagem exige atenção especial. Em outra ocasião, abordarei essa "analogia" entre os jogos e a fala da criança, na perspectiva de diferenciar em que medida os jogos fazem articulações significantes ou entre signos (os Zeichen de Freud).

5 Viviane Veras aponta importantes precisões sobre a palavra "sugestão": sugerir é oferecer para consideração, propor; trazer à mente por associação, evocar (tornar audível, trazer à escuta); tornar evidente (tornar visível, trazer à vista) indiretamente, implicar; prover um motivo para, demandar (exemplo: isso demanda/sugere uma providência). O "sugestivo" é também o que tende a sugerir algo impróprio ou indecente. Do latim suggerere _ carregar ou pôr sob o domínio de... (sub- = pôr sob [o domínio de] + gerere = carregar, levar, levar adiante, fazer). Tem a mesma raiz de gerente, gestação, gesto, gesticular, gestas (romances em versos), beligerante, congesto, indigesto, registrar. Vale notar o sentido do que é gerado/carregado sob o domínio de alguém. Interessa notar que essa palavra, ao pé da letra, cabe bem ao modo de abordagem maternante de Hans, por seu pai: as sub-gest(aç)ões do pai...

6 "Destacar" tanto no sentido de separar-se, desconectar-se, estar livre do envolvimento, como no sentido militar de destacar para um serviço especial.

 

 

Recebido em março/2003.

Aceito em abril/2003.

 

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