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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.8 no.14 São Paulo June 2003

 

ARTIGOS

 

Winnicott e etiologia do autismo: considerações acerca da condição emocional da mãe

 

Winnicott and autism etiology: Considerations about emotional condition of mother

 

 

Conceição A. Serralha de Araujo*

*Psicóloga clínica, doutoranda em Psicologia Clínica pela PUC-SP, membro do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP.

 


RESUMO

O presente texto, com base no pensamento de Winnicott acerca da etiologia do autismo discute a relação do estado emocional da mãe com as falhas do ambiente associadas ao surgimento dessa patologia na criança. Destaca a ênfase dada por esse autor ao ódio inconsciente da mãe pelo bebê, bem como à defesa materna contra esse sentimento, no estudo etiológico. Atenta para a possibilidade de esse sentimento de ódio advir do desamparo na maternidade, apontando a necessidade materna de sustentação emocional pelo seu ambiente próximo.

Palavras-chave: Autismo, Winnicott, Sustentação ambiental, Condição emocional materna.


ABSTRACT

The present text, based on Winnicott's thought about the aetiology of autism, discusses the relation of the mother's emotional state with the environmental failures related to the appearance of this pathology in the child. It emphasizes the focus given by this author to the unconscious hatred of the mother of her baby, also showing the mother's protection against this feeling in the actiology. It observes carefully the possibility of this feeling of hatred being suceeded from the abandonment in the motherhood, marking the mother's necessity of emotional sustentation for the environment around her.

Keywords: Autism, Winnicott, Enviromental holding, Emotional condition of mother.

 


 

O crescente interesse pela pesquisa do autismo, verificado desde que Kanner o descreveu em 1943, não conseguiu diminuir as dificuldades inerentes a esse estudo. Constata-se que essas dificuldades produziram e continuam produzindo uma série de trabalhos divergentes. Alguns trabalhos situam-no como anomalia anatômica ou fisiológica do sistema nervoso central, outros, mesmo considerando fatores dinâmicos, tratam-no como possíveis "problemas constitucionais, inatos, decorrentes de alterações do curso do desenvolvimento, predeterminado biologicamente" (Stefan, 1991, p. 18).

Diante de tais polêmicas, Donald Woods Winnicott, pediatra, psiquiatra infantil e psicanalista inglês, tinha um posicionamento singular. Dizia ele: "Independentemente de chamarmos o autismo de esquizofrenia da infância inicial ou não, devemos esperar resistência à idéia de uma etiologia que aponta para os processos inatos do desenvolvimento emocional do indivíduo no meio ambiente dado. (...) haverá aqueles que preferem encontrar uma causa física, genética, bioquímica ou endócrina, tanto para o autismo quanto para a esquizofrenia. Esperamos (...) que aqueles que afirmam que o autismo tem uma causa física que ainda não foi descoberta permitam àqueles que afirmam ter pistas seguir estas pistas, mesmo que elas pareçam levar para longe do físico e para a idéia de uma perturbação na delicada interação dos fatores individuais e ambientais, conforme eles operam nos primeiríssimos estágios do crescimento e desenvolvimento humano" (Winnicott, 1997, p. 194).

Por ser um tanto avesso a classificações formais, Winnicott fez seus estudos de maneira espontânea, sem preocupação em sistematizar. O tema do autismo, por exemplo, juntamente com idéias e conceitos que lhe são importantes, está espalhado por toda a sua obra, embora os textos mais específicos estejam reunidos em Pensando sobre crianças. Isso dificulta sobremaneira o trabalho do clínico para quem tais conceitos e idéias são valiosos, correndo até mesmo o risco de deixar de ter contato com esses, ou de falsa compreensão dos mesmos.

Winnicott, apesar de reconhecer que alguns casos de autismo apresentavam danos cerebrais consideráveis, sabia que em outros tantos casos não eram identificados quaisquer fatores orgânicos. Ele afirmava que os distúrbios mentais são "conciliações entre a imaturidade do indivíduo e reações sociais reais, tanto apoiadoras como retaliadoras. Neste sentido o quadro clínico da pessoa mentalmente doente varia de acordo com a atitude ambiental, mesmo quando a doença no paciente permanece fundamentalmente inalterada" (1983, pp. 200-1).

Na teoria winnicottiana, entende-se que, para um desenvolvimento saudável, o ambiente (a mãe) deverá ser capaz de atender às necessidades específicas de cada período do amadurecimento da pessoa potencial em questão. Sendo assim, no caso de bebês com cérebros danificados, o ambiente deverá se especializar para conseguir compensar ou minimizar os prejuízos causados, seja por uma anóxia, seja por uma má formação congênita, seja por outros fatores. Mas o que formaria a base para uma adequação do ambiente? O que não permitiria ou interferiria nessa adequação?

Um dos pontos evidenciados por Winnicott mais consonantes com a minha prática clínica com crianças autistas, ponto que pode interferir seriamente na capacidade do ambiente de fornecer cuidados, é a situação de desamparo da mãe. Este desamparo, nem sempre percebido à primeira vista, muitas vezes também não é reconhecido por ela, devido às defesas erigidas contra os sentimentos de se encontrar "perdida", só e vulnerável. Em muitos casos, na primeira entrevista, a mãe mostra-se fria, auto-suficiente, ou, por outro lado, cansada de buscar um lugar em que seu filho possa ser olhado e acolhido. Ela mostra-se desconfiada e descrente de qualquer consideração.

A princípio, eu me perguntava se o desamparo da mãe teria sua origem no estado clínico da criança e suas repercussões. Contudo, ao investigar um pouco mais a história trazida por ela, o que se evidenciava era um desamparo anterior até ao próprio nascimento do filho.

De algum modo, essa situação defensiva da mãe pode ser exemplificada no caso de uma criança de 6 anos, cuja preocupação eram jarros. Winnicott (1997) citou esse caso no artigo "Autismo", de 1966, no qual ele diz que somente após dois anos de tratamento a mãe conseguiu contar como a doença do filho teve início.

Em vários outros textos, Winnicott investigou os avatares da relação da mãe com o seu bebê e os relacionou à saúde ou à ausência de saúde, mostrando como o estado emocional da mãe é fundamental em ambos os casos, principalmente quando se trata da fase mais precoce, na qual o autismo pode evidenciar-se.

De acordo com a teoria winnicottiana das psicoses, o ambiente falha no fornecimento da provisão básica ao bebê, o que faz surgir uma agonia imensa, uma angústia impensável, contra a qual o bebê organiza-se defensivamente. No autismo, essa defesa é a invulnerabilidade, que o protege de reviver a agonia.

A preocupação materna primária1 poderia ser vista como a capacidade materna de cuidar do bebê, em grau suficiente para evitar uma agonia. Isto porque essa preocupação permitiria uma adaptação adequada às necessidades do bebê, quando a mãe, ou seu substituto, coloca-se na pele deste, protegendo-o contra invasões e imprevistos.

Em carta ao Observer, em 1964, Winnicott escreve: "Parece-me razoavelmente óbvio que aquilo de que o bebê necessita é, antes de mais nada, a capacidade da mãe de dispensar atenção plena. Introduzi, neste caso, a palavra `devoção' sob risco, porque existem pessoas que associam essa palavra a sentimentalismo. É

provável que exista uma concordância bastante ampla quanto a isso, e em minhas pesquisas percebo que é um fracasso neste ponto que predispõe ao autismo às vezes chamado esquizofrenia infantil. O oposto da devoção é a carência de devoção, ou uma incapacidade da mãe de se devotar por algumas semanas a essa função especial. Uma mãe que mantém certa porção de si mesma não envolvida durante os últimos estágios da gravidez, ou durante os estágios iniciais imediatamente após o nascimento do bebê, corre o risco, segundo minhas pesquisas, de interferir nos processos de desenvolvimento emocional do bebê, de modo tal, que existe o perigo da doença da espécie que é classificada como autismo" (1990, pp. 123-4; itálicos meus).

Entretanto, num texto de 1968, "A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe e o bebê: convergências e divergências", Winnicott comenta: "Certamente algo acontece às pessoas quando elas se vêem confrontadas com o desamparo que supostamente caracteriza o bebê. (...) Poderíamos quase dizer que as pessoas que cuidam de um bebê são tão desamparadas em relação ao desamparo do bebê quanto o bebê o é. Talvez haja até mesmo um confronto de desamparos" (1999b, p. 91).

Nesse mesmo texto, dando continuidade a seu pensamento, Winnicott afirma que algumas mulheres têm dificuldade de atingir a condição especial de preocupação por temerem não recuperar sua individualidade, por temerem que esta "vá transformá-las em vegetais, e então elas se prendem aos vestígios de uma carreira como a um salva-vidas e nunca se entregam por completo, nem mesmo temporariamente, a um envolvimento total" (p. 83). Um pouco mais adiante, ele diz que, no estado de preocupação materna primária, "a mãe é tanto o bebê quanto ela própria", e ela "pode ficar aterrorizada com isto, e uma forma de ajudá-la é dizer-lhe que esta condição não vai demorar mais que algumas semanas ou meses e que ela vai se recuperar" (p. 96).

Essa opinião de Winnicott aproxima novamente, em outras palavras, o sentimento de desamparo vivido pela mulher na experiência de maternagem do sentimento de desamparo vivido pelo bebê na sua experiência inicial de vida. Para Winnicott, "inerente a este sentimento de desamparo, é a natureza intolerável de se experimentar alguma coisa que não se sabe quando terminará" (Winnicott, 1993a, p. 327).

A aproximação do sentimento materno do sentimento do bebê, por Winnicott, é percebida quando ele esboça a mesma opinião acerca do que poderia amenizar o desamparo do bebê no nascimento e em outros eventos estressantes. Ele observa: "Muitos bebês poderiam ser ajudados, caso se conseguisse transmitir-lhes, durante um parto prolongado, que o processo do nascimento dura apenas um certo período limitado de tempo" (1993a).

Vê-se, portanto, que a mãe aterrorizada, sentindo-se desamparada, pode não conseguir a identificação necessária com o bebê, sendo possível supor, até mesmo, "uma fuga para a sanidade"2 (1993a, p. 494). Tal fato pode ter a interferência de vários fatores, entre os quais a própria vivência da mãe como bebê, que não foi satisfatória em termos de cuidados maternos, ou uma identificação masculina acentuada, ou, enfim, aquilo que quero ressaltar nesse trabalho, que é a falta de segurança na situação atual.

Essa insegurança não lhe permite regredir a um estado de dependência de seu ambiente próximo, característica da preocupação materna primária, como também não lhe permite retornar deste estado no momento adequado. Parece faltar-lhe uma confiança básica que poderia ser amenizada com um "holding", uma sustentação familiar. "É importante, embora talvez seja evidente, que quando a mãe está no estado descrito acima ela é altamente vulnerável. Isto não é sempre notado, pelo fato de que há geralmente algum tipo de suporte afetivo em volta da mãe, talvez fornecido pelo seu companheiro. Essas condições secundárias podem ser criadas de modo natural em torno da gravidez, assim como o estado especial da mãe envolve o bebê. Quando há um colapso das forças protetoras naturais é que se nota quão vulnerável é a mãe" (Winnicott, 1980, pp. 28-9; itálicos meus).

Winnicott chamou de "capa protetora" esse suporte afetivo em volta da mãe cuja função seria capacitá-la "a voltar-se para sua condição de mãe e abstrair-se dos perigos externos enquanto se preocupa com o filho" (1980, p. 29). Um fracasso dessa capa protetora torna-se um fator essencial na constituição de uma maternagem não suficientemente boa, ou uma falha no que Winnicott chamou de "mãe dedicada comum"3. "Penso que quando o bebê já está pronto para nascer, a mãe, se adequadamente assistida por seu companheiro, pela Previdência Social ou por ambos, está preparada com uma experiência na qual ela sabe, muitíssimo bem, quais são as necessidades do bebê (...) refiro-me às inúmeras coisas sutis..." (p. 4, itálicos meus).

Ao comentar um caso de psiquiatria infantil, Winnicott disse que não se poderia pensar que a mãe fosse completamente normal e até supunha ter "uma quantidade considerável de um elemento masculino em sua personalidade total". Ele chama, contudo, a atenção também para o fato de haver tensões consideráveis na família, relacionadas a desavenças familiares, e, sendo o pai muito ausente, este era "incapaz de perceber a necessidade que a esposa tinha de que criasse uma atmosfera calma em torno dela, de modo que ela pudesse desempenhar essa dedicada tarefa de modo suficientemente bom" (1967, p. 379).

Winnicott era incansável quando se tratava de pontuar a necessidade materna de proteção. Para ele, "isso é terrivelmente óbvio, mas apesar disso precisa ser dito" (1983, p. 81). Ele não considerava que a possibilidade de a mãe tornar-se o ambiente favorável para o bebê fosse dependente apenas de uma boa condição interna dela. Em 1960, salientou: "Esta orientação especial da parte da mãe para com seu lactente não depende apenas de sua própria saúde mental, mas é afetada também pelo ambiente. No caso mais simples o homem, apoiado pela atitude social que é, em si, um desenvolvimento da função natural do mesmo, lida com a realidade externa para a mulher, de modo que se torne seguro e razoável para ela se tornar temporariamente introvertida, e egocêntrica" (1983, p. 135).

Afinal, como dizia Winnicott, "o adulto sadio tem todas as imaturidades para as quais voltar, seja por divertimento, ou num período de necessidade, em secretas experiências auto-eróticas ou em sonhos" (1980, p. 108; itálicos meus). Num outro momento ele comentou: "As pessoas não têm apenas sua própria idade, elas têm, em certa medida, todas as idades, ou nenhuma idade" (1999a, p. 154). Talvez a mulher que acaba de ter o seu bebê seja a melhor expressão desse estado de coisas.

No período inicial de maternagem, a mãe torna-se, em vários momentos, imatura, dependente, desamparada e, somente assim, pode colocar-se na pele de seu bebê. Entretanto, sem um ambiente sustentador dessa condição imatura, que a reassegure nesse período em que os sentimentos provenientes dessas circunsâncias acabam interferindo no seu continuar-a-ser pessoal, ela terá de defender-se, e, defendendo-se, não conseguirá ser mãe suficientemente boa. "Cada nova criança é uma ameaça à própria organização materna; à sua cuidadosamente edificada e bem mantida ordem de coisas" (Winnicott, 1982, p. 137).

Winnicott salientava o quanto o bebê era sensível ao estado emocional da mãe. Para tanto, ele trazia a sua observação dos tempos de guerra, quando os bebês não tinham o menor medo do barulho das bombas se se encontravam nos braços de uma mãe tranqüila. Entretanto, se as mães entravam em pânico, eles eram imediatamente afetados4.

Fica mais uma vez evidente, que o que traumatiza o indivíduo, quer seja ele um bebê, quer seja uma mãe, é algo que vai muito além do que é esperado, que excede a capacidade de lidar com a situação, não permitindo a retomada da seqüência normal do desenvolvimento.

Ao contar sobre o caso de uma criança tipicamente autista, Ronald (8 anos de idade), Winnicott dá um bom exemplo dessa espécie de circunstâncias vividas pela mãe: "A mãe considerou ruim a gravidez. Havia placenta marginal prévia. O nascimento ocorreu num país subdesenvolvido, em que um velho médico sem ajuda teve grande dificuldade para levar o parto a uma conclusão satisfatória. Neste processo ele quebrou o cóccix da mãe. Nem mesmo se sabe com qual apresentação o médico teve de lidar. (...) Antes do nascimento a mãe sentira muito enjôo. Três semanas depois do nascimento ela teve icterícia, o que encerrou a amamentação. Aos 2 meses a mãe lembra de ter dado uma palmada no bebê, por exasperação, embora não estivesse consciente de odiá-lo. (...) Quando a gravidez, o parto e depois a criança a desapontaram e não conseguiram despertar sua preocupação materna, ela não só ficou confusa, como também não pôde evitar o ressentimento por ele ser um obstáculo à sua carreira como artista. O pai logo se associou a esta perplexidade e desapontamento" (Winnicott, 1997, pp. 181-3).

Na mãe, uma situação como a descrita pode desencadear variados modos de reação. Pode ser que ela se deprima, ou que entre em estado de confusão, ou que empreenda uma fuga da maternagem, ou que psicotize. Pode ser que ela duvide de que é boa para seu bebê, pois, muitas vezes, ele parece mais feliz no berço do que no seu colo.

Foi assim, numa observação5 da relação de uma mãe com seu bebê, que anotei a seguinte passagem: "A mãe afastou o bebê de seu corpo, e ele começou a resmungar novamente. Levantou-se, pegou uma flanela, estendeu-a na cama e deitou o bebê. Este ficou quietinho com as perninhas e os bracinhos como que abandonados sobre a cama e com a chupeta na boca, a cabecinha ficou tombada para o lado do guarda-roupa. Disse: `Aí eu penso que, se fosse manha, ele não ficava quietinho na cama'. A mãe saiu do quarto. O bebê levantou as duas perninhas e bateu uma das mãozinhas na chupeta, tirando-a da boca. Ele deu um gritinho e começou a chorar. De onde estava, a mãe gritou: `A mamãe já vai!' Quando chegou ao quarto trazendo uma vasilha com água e algumas bolinhas de algodão, colocou-as na cama dizendo: `Ah! A mamãe pensou que o corpo dela tinha espinhos, pois foi só colocá-lo na cama e ele ficou quietinho! A mamãe pensou!"

Pude notar que o sentimento de menos valia prevaleceu, e a mãe não percebeu que o bebê choramingou ao se afastar de seu corpo, mas, ao contrário, destacou o fato de ele ficar bem na cama, longe dela. A mãe não conseguiu relevar todo o contexto da situação e partiu do pressuposto de que era incapaz, insuficiente, prejudicial ao bebê (Araujo, 2002a).

O que se percebe, também, comumente na maternidade, devido a uma série de razões que Winnicott (1993a, pp. 350-1) pôde listar, no artigo "O ódio na contratransferência", é o aparecimento do ódio materno pelo bebê, lado a lado com seu amor. Essa lista incluía desde o fato de o bebê não ser a própria concepção mental da mãe, de o bebê ser uma interferência na vida particular dela, até o fato de ele não perceber o que ela fazia por ele e nem se quer reconhecê-la. Winnicott comentava: "Sugiro que a mãe odeia o bebê antes que o bebê a odeie, e antes que o bebê possa saber que sua mãe o odeia" (1982, p. 350).

Num texto de 1957, Winnicott traz o relato de uma mãe a respeito de quando teve seu primeiro filho (Mark), no qual evidenciam-se sentimentos que podem envolver o período inicial da maternidade e que ilustram bem os fatores apontados por ele no aparecimento do ódio materno. "Não imaginava que ter um bebê significava realmente muito trabalho. (...) Quando ele olhava para mim, parecia esperar tanto de mim, e foi então que percebi que não sabia absolutamente nada sobre bebês. (...) eu me sentia inadequada: 1) Porque o suprimento de leite estava acabando. 2) Ele gritava comigo e recusava o seio vazio. 3) Parecia que eu nunca conseguia deixá-lo confortável e `em paz'. 4) Eu estava ressentida porque ele estava zangado comigo, e isso fazia com que me sentisse ainda mais inadequada. (...) Eu estava sempre cansada e sempre ressentida. (...) eu estava gorda, ressentida e me sentia um fracasso completo e total. (...) eu não encontrava prazer em nada. De uma jovem profissional elegante e inteligente, eu havia me transformado numa dona de casa gorda, e, ainda por cima, parte de mim havia desistido como mãe" (1997, pp. 225-6).

De acordo com Geissmann e Geissmann (1993), o ódio da mãe pelo bebê seria algo muito mais fundamental do que se costuma pensar. Eles citam o trabalho de G. Carloni e D. Nobili (1975), em que são encontradas mais de 250 páginas de relatos de infanticídios. Seu comentário: "A descoberta pela psicanálise da existência do ódio tanto no bebê com respeito ao interior do corpo materno, como na mãe para com o bebê é provavelmente mais escandalosa que a descoberta da sexualidade. Permanece há muito tempo recalcada. Reencontramo-la nas produções míticas e na patologia. Aparece também nas psicanálises individuais e no decorrer do trabalho clínico com as crianças autistas e suas mães, na contratransferência: não é por acaso que o trabalho de Winnicott se intitula `O ódio na contratransferência' (de 1958). O sentimento de horror experimentado ao constatar a existência de sentimentos assassinos para com o bebê na mãe está precisamente em relação com o recalque do qual faz objeto aquele que o sente" (p. 171).

Os organizadores de Pensando sobre crianças, na apresentação da obra (Winnicott, 1997), apontam a hipótese de que o ódio dirigido à criança pela mãe se deve "à chegada do bebê à matriz preexistente da mãe e do pai como casal", reeditando uma constelação de relações edípicas, reativando dificuldades e sentimentos relativos aos conflitos edípicos da mãe. Contudo, os organizadores concordam que existem outros fatores, além dessa hipótese, determinando ódio e amor, consciente e inconsciente.

A última fase do pensamento de Winnicott não contempla a questão edípica na relação mãe-bebê inicial. O que se poderia dizer reeditado, nesse momento, é a condição primária de dependência absoluta da mãe em relação a sua própria mãe e os sentimentos relativos a esse período, anterior à sua própria fase edipiana. Aliás, a concepção winnicottiana do amor e do ódio não os percebe pulsionais; estes sentimentos são considerados aquisições anteriores ao Édipo. Mesmo assim, Winnicott não respalda idéias de ódio do bebê em relação ao interior do corpo materno, já que o bebê, em seu início, não percebe a mãe, ou o que quer que o envolva, como algo separado de si e, muito menos, que haja um interior e um exterior.

Em sua obra, Winnicott salienta a necessidade de se deixar a mãe ser mãe naturalmente, que o ambiente não interfira na sua relação com o bebê e que ela não fique buscando em livros, palestras e outros meios a receita de como ser mãe suficientemente boa. Entretanto, é necessário considerar que, em muitos momentos, "pais ordinariamente bons precisam de ajuda", precisam de instruções no caso de doenças físicas e/ou psicológicas (Winnicott, 1980, p. 191). E mais, "a mãe imatura ou não saudável precisa de ajuda especial da pessoa responsável pelo seu caso: onde a mulher normal precisa de instrução, a doente precisa de reasseguramento..." (p. 133; itálicos meus).

Sabe-se que a capacidade natural para a maternagem de uma mulher, a capacidade para devotar-se ao bebê, não evolui se ela estiver com medo, insegura e sentir-se desamparada. Entretanto, para que a mãe possa pedir ajuda, deixar-se cuidar e deixar que cuidem de seu bebê, é preciso que ela tome consciência de seus sentimentos, o que nem sempre acontece, uma vez que muitos dos sentimentos que a invadem são considerados, por ela, como inadequados à condição materna. Winnicott dizia conhecer muitas mães que viviam constantemente temerosas de descobrir que fizeram algum mal aos seus bebês e que eram incapazes de falar das dificuldades que encontravam na relação com o bebê e consigo própria, por desacreditarem que alguém pudesse compreender (Winnicott, 1993b).

Assim, na tentativa de entender a etiologia do autismo, Winnicott destacou alterações emocionais na mãe que estariam, segundo suas pesquisas, relacionadas ao adoecimento autístico.

Dias fez um resumo da posição de Winnicott acerca dessas alterações, que fariam surgir o autismo ou a defesa por invulnerabilidade. Seriam elas: "O ódio inconsciente da mãe pelo bebê recoberto por formações reativas; uma incapacidade da mãe para um envolvimento total com o bebê, nem que seja por um pequeno período de tempo; e uma loucura instalada na mãe que irrompe inesperadamente na vida do bebê" (Dias, 1998, p. 311). Winnicott, em especial, chamou a atenção para os efeitos do ódio inconsciente materno, mostrando que a falha oriunda desse sentimento é tão desastrosa, devido às defesas empregadas pela mãe para encobri-lo. A negação do ódio associada a uma formação reativa (sentimentalismo), que indica ódio reprimido, defende a mãe de sua própria tomada de consciência desse sentimento.

Em Privação e delinqüência, Winnicott fala do fracasso de uma segunda oportunidade dada às mães para sua tarefa de maternagem, quando elas exercem essa tarefa como formação reativa, derivada de seus complexos, mimando o bebê. No texto, ele aponta o resultado desse fracasso como tendência anti-social. Entretanto, o resultado diferente, nesse caso, poderia se dar pelo fato de que, na base da tendência antisocial, houve "uma boa experiência inicial que se perdeu", o que não aconteceria no autismo.

Além de não possibilitar à mãe a conscientização de seu ódio, a formação reativa impede ou dificulta imensamente que o ambiente próximo perceba o que está acontecendo. Esta percepção permitiria ao ambiente sair em auxílio da mãe e/ou da criança, da mesma forma que a conscientização do ódio permitiria à mãe uma elaboração deste. Do contrário, quando o ódio "chega à tona", o prejuízo já foi causado.

Não é o caso, por exemplo, da psicose dos pais, na qual o ambiente próximo, mesmo que não consiga ajudar por causa da gravidade do quadro6, consegue perceber que algo estranho está acontecendo.

De acordo com Winnicott, pode-se fazer uma gradação da doença psicótica, nos pais, da seguinte maneira: "a) Pais muito doentes. Neste caso outras pessoas assumem a responsabilidade pelo cuidado dos filhos. b) Pais menos doentes. Há períodos durante os quais outras pessoas assumem a responsabilidade. c) Pais que têm saúde suficiente para proteger os filhos contra sua doença e para pedir ajuda. d) Pais cuja doença inclui a criança, e desta forma nada pode ser feito por ela sem violar os direitos que os pais têm sobre seu próprio filho" (Winnicott, 1980, p. 97).

Nesses casos, a doença dos pais existe e pode ser percebida, quer seja pelo indivíduo (pai ou mãe), quer seja pelo ambiente próximo a este, e alguma coisa pode ser feita.

Winnicott, em a "História de Esther", uma garota "descartada pela mãe", exemplifica esse tipo de atitude que pode ser tomada por uma mãe no auge da loucura. Sem poder perceber os sentimentos em que se via envolvida ao pensar em separar-se da filha, a mãe jogou Esther num canal, num momento em que tinha quase certeza de que alguém a salvaria. "Ela conseguiu jogar fora o bebê, mas não conseguia separar-se dele" (1980, p. 89). De fato, Esther foi socorrida por um policial que passava, entregue a uma creche e depois adotada. Esta adoção, mesmo com muitas dificuldades, trouxe-lhe uma nova oportunidade de desenvolver-se.

Já no caso da mãe que odeia inconscientemente o seu bebê, é necessário considerar que ela "é concebida como desejando seu bebê morto, mas, mais particularmente, representando este desejo por meio de comportamentos opostos" (Winnicott, 1997, p. 26). Isto acontece porque esse desejo lhe é intolerável, e só acontece dessa maneira porque essa mãe alcançou, em seu amadurecimento pessoal, um estágio em que pôde ser constituído um inconsciente reprimido. Este, em razão de guardar os sentimentos intoleráveis, ameaça ou aparece como "fonte de reações formativas", entre as quais, o sentimentalismo (1983, p. 197). Para Winnicott, "não é possível conceber um inconsciente reprimido com uma mente cindida; ao invés, o que se encontra é a dissociação" (1964, p. 370).

A mãe de Esther, por encontrar-se dissociada, não teve como reprimir o que sentia; sua única saída foi livrar-se de seus sentimentos numa atuação. A imaturidade de seu ego, ou seja, o quantum de integração que seu ego havia adquirido não dava para abarcar o medo de separar-se.

Seguindo esse viés, possibilitado pelo pensamento de Winnicott sobre o desenvolvimento do indivíduo, pode-se dizer que a mãe que odeia inconscientemente o seu bebê e recobre esse ódio com formações reativas, não se encontra psicótica, mas sim inibida em seus instintos, entre os quais se encontra o próprio instinto maternal7. Ela não suporta o ódio, inibe seus impulsos e, em especial, a sua agressividade. Por conta disso, ela não consegue ser satisfatória ao seu bebê em suas necessidades.

Na verdade, o ódio inconsciente não produz o autismo. Ele impede que as condições que possibilitariam o amadurecimento da criança aconteçam; ele promove condições estranhas. Há o aspecto da "falsidade" envolvido nessa questão, diante do qual a criança torna-se completamente sem recursos, fazendo surgir agonias e defesas em relação a estas, que impedem a sua continuidade de ser.

Se a mãe não consegue admitir o ódio pelo bebê, ela reage com sentimentalismo e não deixa espaço para usufruir todas as possibilidades de relações com seu bebê, nem de identificar-se com ele. Devido às formações reativas que podem, até mesmo, recobrir sua insegurança, desamparo e insuficiência, à primeira vista, essas mães parecem adequadas, talvez adequadas demais. Quando se percebem as conseqüências de tal funcionamento, muitas vezes, o autismo já se instalou na criança. Em certo momento, Winnicott relatou: "Há tanta coisa que é profunda e oculta na natureza humana, que pessoalmente eu preferiria ser filho de alguém que possui todos os conflitos íntimos da natureza humana do que ter por mãe alguém para quem tudo é fácil e tranqüilo, que conhece todas as respostas e é estranho à dúvida" (1993b, p. 14).

Davis e Wallbridge (1982) dizem que, se a mãe se conscientiza de seu ódio, ela pode aceitá-lo sem que esse fato altere seus afazeres, e mais: "Há coisas que uma mãe pode fazer com o seu ressentimento: por exemplo, ela pode falar com outras pessoas a seu respeito" (p. 143). Winnicott comenta: "As mães serão ajudadas se forem capazes de expressar suas angústias no momento em que as sentem. O ressentimento reprimido deteriora o amor que está subjacente a tudo. Acho que é por isso que praguejamos. Uma palavra no momento certo concentra em si todo o ressentimento e o torna público, após o que volta a calma e enceta-se um novo período em que prosseguimos com o que estava sendo feito antes. Na prática, verifico que as mães são ajudadas quando as pomos em contato com seus mais amargos ressentimentos" (Winnicott, 1993b, p. 88).

Ao reconhecer o ódio materno e as razões para este, sendo a "pior" razão, para Winnicott, "o modo como as crianças invadem a mais profunda, mais íntima reserva materna" (1993b, p. 90), uma questão se apresenta: o que não permitiria a conscientização do ódio pela mãe? Em outras palavras, o que manteria inconsciente o ódio materno?

Existe uma hipótese bastante condizente com o que Winnicott teoriza acerca da situação da maternidade. A manutenção da inconsciência desse ódio pode estar relacionada à incerteza de compreensão dos sentimentos envolvidos, incerteza de reasseguramento da mãe, pelo ambiente. A necessidade de amparo emocional não é suprida. Em outras palavras, pode ser que os sentimentos de perda na maternidade advindos da interferência na continuidade-de-ser pessoal da mãe, juntamente com a impossibilidade de ser sustentada pelo ambiente ao tornar-se também um bebê, gerem ódio, raiva, insegurança e desesperança, que ficam inconscientes pelo mesmo motivo, por não haver um ambiente confiável que sustente essa conscientização.

Embora essas incertezas sejam a visão pessoal da mãe em relação à participação do ambiente, Winnicott sabia que subjaz a esta visão a falha do ambiente em promover confiabilidade. O ambiente tem parte da responsabilidade pelo padrão de defesa que se estabelece (Winnicott, 1990).

Num caso acompanhado por um colega, duas histórias puderam ser observadas: a história de Nancy, a oitava filha de um casal cujas funções materna e paterna não foram satisfatórias, e a história dos filhos de Nancy.

Na primeira, a história da esquizofrenia de Nancy, que se evidenciou após o seu casamento e o nascimento de sua primogênita. A doença provocou a separação no casamento e depois permeou a sua relação com vários homens, sendo dois destes pais de mais dois filhos seus.

A mãe de Nancy, uma mulher que, após oito anos de casada sem ter filhos, teve oito filhos em intervalos de um ano e meio, nunca conseguiu desenvolver adequadamente sua função de maternagem. Percebia-se uma identificação feminina inconsistente e uma sobrecarga de afazeres ao lado de um marido pouco sustentador. Deste modo, ela chegou ao auge da inadequação no nascimento da caçula Nancy, que, de alguma forma, ainda conseguiu manter o seu self precariamente integrado até o nascimento de sua primeira filha, quando tudo "desabou".

Na segunda, talvez mais interessante para ilustrar o que vem sendo discutido, a história da constituição saudável dos filhos de Nancy. Estes, apesar de nascidos nas fases críticas da doença materna, não se tornaram psicóticos. A análise feita sobre o caso apontou que essa avó teve um papel importantíssimo nesse resultado. Apesar de na época do nascimento de Nancy não ter conseguido entrar em estado de preocupação materna primária e, com isso, não ter suprido as necessidades da filha, quando do nascimento dos netos, talvez por encontrar-se mais amadurecida e num momento mais tranqüilo, pôde exercer as funções parentais adequadamente. Como os pais biológicos não se fizeram presentes, a avó não só exerceu a função materna quando Nancy estava impossibilitada de exercê-la, muitas vezes devido a internações, como também exerceu a função paterna de sustentação, quando a mãe, um pouco mais organizada, buscou cuidar dos filhos.

O caso de Nancy é mais um exemplo, que vem somar-se ao caso de Esther e a tantos outros, a mostrar que a psicose dos pais não causa a psicose dos filhos.

Por outro lado, nos vários casos de crianças autistas citados por Winnicott, podem-se perceber os sentimentos de incerteza, solidão e insegurança no ambiente próximo, envolvendo a mãe. No caso Sally, Winnicott consegue transmitir melhor a idéia que faz da conseqüência da necessidade materna de apoio. Winnicott conta: "Esta mãe não foi bem cuidada quando bebê, por causa das dificuldades da sua mãe, que por sua vez têm a ver com problemas no relacionamento da avó de Sally com sua bisavó. (...) a mãe de Sally era realmente inadequada como mãe, apesar de seu desejo muito grande de se sair bem. A razão para Sally estar num estado bastante bom era o fato de seu pai ser uma pessoa muito maternal e ter dado ao bebê grande parte daquilo que a mãe não pudera dar (...) ele era tão maternal, que ficávamos nos perguntando como faria quando se tornasse necessário como homem e como um pai de verdade". Sally apresentava "mais movimentos rítmicos compulsivos do que os bebês realmente fazem. (...) quando estava sem ter o que fazer ela começava a girar a cabeça e se balançar, e recorria a outras compulsões repetitivas. (...) Houve uma sucessão de pessoas cuidando de Sally (...) Na minha opinião, existe um perigo real aqui que talvez não seja possível evitar, e, se o pior acontecer, Sally pode se tornar autista. Se o perigo puder ser evitado, isso se deverá em grande parte ao fato de a mãe ter recebido ajuda de mim quando era criança e ter voltado a mim em busca de ajuda para a filha, apesar de se sentir paralisada em seu espanto por estar na posição de transmitir à filha o que foi transmitido a ela" (1997, pp. 186-7; itálicos meus).

No extremo das defesas contra os sentimentos acima citados, a mãe pode encontrar-se tão rigidamente defendida, que não tem olhos para o seu bebê. Se o bebê não pode ser visto pelos olhos da mãe, ele também não consegue ver-se e, conseqüentemente, não consegue existir como pessoa. "Se o rosto da mãe não reage, então o espelho constitui algo a ser olhado, mas não a ser examinado" (Winnicott, 1975, p. 155).

Em muitas ocasiões, a mãe sabe que está acontecendo algo não natural, que não está havendo uma comunicação com o seu bebê, como no caso Sally aqui relatado. Pode acontecer, então, que ela não esteja conseguindo pedir ajuda, ou, o que parece ser mais freqüente, que o ambiente não consiga compreender o seu pedido de socorro, já que este pode precisar ser decifrado.

A necessidade de "maternar" a mãe já há bastante tempo vem sendo considerada. O trabalho de Falivene (1997) ressalta muito bem esse tema. No entanto, fica cada vez mais claro que há necessidade de uma "paternagem" em conjunto com a "maternagem", para dar conta do movimento oscilatório da mãe, importante nesse período, que ora é mãe, ora é bebê.

Infelizmente, o que se percebe na maioria dos casos em que o pai biológico se faz presente é que a função paterna inicial, não diretamente com o bebê, mas protegendo a mãe e provendo o lar, não se constitui. Isso pode acontecer, por exemplo, pelo fato de o pai sentir-se relegado ao segundo plano, sentir ciúme do filho e afastar-se, ou por não conseguir esperar o momento em que passa a ser importante para o filho como pessoa e, então, rivaliza com a mãe na função de maternagem. É claro que exercer a função da mãe, quando ela está impossibilitada, pode ser vital para o bebê. No entanto, seria importante pensar se a impossibilidade da mãe não se ancora justamente na inconsistência da função paterna. Isto nos leva a perceber o quanto o pai também precisa de apoio e sustentação para ter condições de exercer a sua própria função.

Na ausência do pai, a família, a sociedade e as instituições entram em cena, mas parece que também elas não conseguem exercer a função de permitir e/ou promover que a mãe seja mãe naturalmente. Observam-se cobranças, determinações, que ela faça isso ou aquilo, sem que lhes sejam dadas as condições de segurança necessárias para que possa dedicar-se ao bebê de forma natural e que, passada a fase de dependência absoluta deste, possa retomar a sua própria vida. Isso, quando não tentam simplesmente substituí-la na função de maternagem.

Evidencia-se, enfim, que a mãe sofre uma interferência em sua continuidade-de-ser pessoal quando nasce o seu filho e precisa que o ambiente lhe dê sustentação nesse momento, para que ela possa retomar a sua continuidade-de-ser pes- soal, ao mesmo tempo em que empreende a sua continuidade-de-ser mãe. Se ela não se sente reassegurada, não consegue dar continuidade ao ser mãe, e de alguma forma nega a interferência em sua continuidade-de-ser pessoal. Um bebê que nasça sob essas condições, a menos que outra pessoa assuma a função de maternagem, ou que ajude a mãe a perceber e vivenciar a interferência em sua continuidade-de-ser pessoal com segurança, não terá, em sua imaturidade, condições de elaborar a sua relação com o mundo externo, pois, com grande probabilidade, estará invulneravelmente defendido deste.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 Winnicott disse: "Este estado organizado (que, não fosse pela gravidez, seria uma doença) poderia ser comparado a um estado retraído, ou a um estado dissociado ou uma fuga, ou mesmo a uma perturbação em um nível mais profundo, tal como um episódio esquizóide, no qual algum aspecto da personalidade assume temporariamente o controle. Gostaria de encontrar um bom termo para designar esta condição e sugeri-lo como algo a ser levado em consideração, sempre que houver uma referência à fase inicial da vida de um bebê. Não acredito que seja possível compreender o funcionamento da mãe na fase mais inicial da vida de um bebê, sem entender que ela deve ser capaz de atingir este estado de sensibilidade aumentada, quase uma doença, e recuperar-se dele" (1993a, p. 494).

2 Suposição conseqüente do pensamento de ser o estado de preocupação materna primária uma espécie de "doença" (cf. Nota 1).

3 Sobre este fator Winnicott diz: "Faço uma observação banal quando digo que com a palavra dedicada quero dizer dedicada. (...) as mulheres não ficam o tempo todo agitadas, pensando que deveriam tomar conta de um bebê. Jogam tênis, têm um trabalho que as absorve inteiramente (...) Então, um dia, descobrem que se tornaram anfitriãs de um novo ser humano que decidiu alojar-se nelas (...) Acontece que existe este período muito útil de nove meses, ao lado do qual há tempo suficiente para que ocorra uma transformação importante na mulher, que pode então passar de um tipo de egoísmo para outro. (...) Quero enfatizar a importância desse período de preparação" (Winnicott, 1993a, pp. 2-3).

4 Em minha cidade natal (Uberlândia, MG), pude observar algo semelhante. Nos ensaios da festa popular do congado, quando os "ternos" (grupos estilizados) passavam pelas ruas em direção à Igreja do Rosário, onde se reuniam, tocando seus instrumentos de percussão, as mulheres dos componentes dos grupos os acompanhavam alegres, a passos largos, juntamente com seus filhos. Alguns destes eram pequenos bebês, que dormiam tranqüilos no colo de suas mães. Enquanto ali se encontravam envolvidos pelos braços da mãe, nada os afetava, nem mesmo o barulho ensurdecedor dos instrumentos, nas mudanças do ritmo das batidas.

5 Observação da relação mãe-bebê, parte do Curso de Observação pelo Método Esther Bick, promovido pelo Centro de Estudos Psicanalíticos Mãe-Bebê-Família de São Paulo.

6 Segundo Winnicott, "é uma coisa terrível, e, ainda assim, é verdade que às vezes não há nenhuma esperança para os filhos, até que os pais tenham morrido. A psicose, nesses casos, é em um dos pais, e seu apego à criança é tamanho, que a única esperança é o desenvolvimento de um falso self, e naturalmente a criança pode morrer primeiro, mas de qualquer maneira o verdadeiro self do filho preservou sua integridade, escondido e salvo de violações" (1980, p. 86).

7 Paul Alerini, psicanalista e psiquiatra radicado em Marselha, ao questionar a existência da "mãe do autista", constata que a mãe do autista não existe como tipo clínico; é uma mãe qualquer, normal ou patológica, e "só é mãe de autista num tempo dado de sua história. "Segundo ele, "na anamnese, muitas vezes é detectada a relação dessa mãe com sua própria mãe, uma relação marcada pelo inacabamento do reconhecimento, como mulher. (...) Para a mãe há, além disso, uma ausência do pai em que ela esperava dele uma presença consistente. Em torno deste nascimento, ele não é conforme ao que ela esperava" (pp. 142-3, 1991; itálicos meus). Essa presença consistente, muitas vezes, é confundida com uma presença máscula, ou de interventor, e o que a mãe espera, antes de tudo, é que ele a apóie, a sustente (holding) neste momento.

 

 

Recebido em agosto/2002.

Aceito em novembro/2002.

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