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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.8 n.15 São Paulo jun. 2003

 

DOSSIÊ

 

Amar, cuidar, subjetivar - implicações educacionais na primeira infância

 

Loving, taking, subjetctivizing_educational implications in early childhood

 

 

Valéria Ferranti Baptista*

*Psicanalista, mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, professora convidada do LEPSI.

 


RESUMO

A partir do momento que a criança ganha estatuto de valor mercantil, sua conservação se tornou um imperativo e para tal um grande mal deveria ser combatido: a alta taxa de mortalidade infantil, que caracterizava o Antigo Regime. Por meio da orientação dos homens esclarecidos, a promoção da educação dos bebês entra em cena e para protagonizar este novo capítulo na história da infância a figura da mãe é convocada. Sua missão é cuidar da cria, não pela obrigação moral, mas sim pelo amor. Desde então há uma conjunção entre cuidar, amar e educar. Por meio do ensino de Lacan, é possível realizar um disjunção destes termos e refletir em sua implicação na prática educativa com a primeira infância.

Palavras-chave: Outro primordial, Maternagem, Amor-natural, Desejo.


ABSTRACT

When the child acquired mercantile value, its survival became an imperative and the high mortality rate which characterized the Ancien Régime became an evil that had to be met with. Through the guidance of illustrated men, baby education was promoted, and the mother was invoiced to protagonize this new chapter in the childhood history. Her mission was to take care of her offspring not by moral obligations, but by love. Since then a conjunction of care, loving and education began. Based on Lacan's ideas it is possible to separate these terms and review their implication in the educational practices of early childhood.

Keywords: Primordial other, Mothering, Loving, Wish.


 

 

Os termos postos no título deste artigo _ amar, cuidar, subjetivar _ supostamente apresentam vinculação direta entre si, pois tornou-se corrente associar os cuidados essenciais dispensados à sobrevivência do bebê com manifestação de amor _ vinculados ao desejo _, tendo como conseqüência a subjetivação do infans, ou seja, sua passagem de organismo a corpo imerso e inscrito na linguagem. Curiosamente, é como se a função do cuidador tivesse sido "naturalizada" em ressonância com a construção histórico-social que traça uma equivalência entre maternagem e amor.

Não há dúvida de que o manuseio do corpo do infans realizado pelo cuidador deixará marcas, mas cabe questionar se o estatuto destas inscrições assemelha-se às realizações do Outro Primordial. A fim de discutir a construção desta equivalência, torna-se importante relevar dados que evidenciem a promoção da educação dos bebês e o destinatário de tal função.

Desde que Philippe Ariès (1960) publicou L'enfant et la vie familiale sous l'Ancien Régime, do qual temos traduzida a versão que o próprio autor condensou, o conceito de criança como objeto natural foi radicalmente questionado _ apesar da crítica realizada por historiadores que apontam a carência metodológica de suas teses que têm por base fontes iconográficas _, e um novo paradigma surge para pensar o conceito de infância e os protagonistas envolvidos na cena. Entre os inúmeros fatos trazidos pelo autor, um merece destaque para o objetivo deste trabalho: até o século XIX não havia uma palavra que nomeasse a criança bem pequena. O francês tomava termos emprestados de outras línguas _ como bambino, do italiano _, palavras para nomear crianças pequenas, mas não os bebês. Apenas no século XIX o francês tomou a palavra inglesa baby, que nos séculos XVI e XVII era usada para nomear as crianças em idade escolar, e passou a designar o bebê _ bébé. A partir de então a criança, em seus primeiros meses de vida, ganhou um nome.

Ao nomear esses pequenos seres que viviam a primeira infância não sob o olhar atento e vigilante dos pais ou de adultos cumprindo esta função, mas de forma que se confundiam com os animais _ vale ressaltar que criança, em sua etimologia, está referida em creantia, particípio presente de creare, vinculada ao animal que se está criando _, as crianças pequenas ganham lugar na realidade discursiva. Imerso na passagem para a modernidade, o bebê ganhou nome, família e o direito a ser amado.

Um dos principais aspectos presentes nesse novo investimento para com a cria humana objetivava barrar o alto índice de mortalidade infantil que caracterizava o Antigo Regime. A preocupação com a mortalidade infantil é concomitante ao nascimento de uma nova disciplina, a demografia, pois contabilizar os habitantes de um país tornou-se uma prática a partir de meados do século XVIII como meio para dimensionar o potencial produtivo do Estado, assim como engrossar a força militar. Os homens esclarecidos percebem que o Estado, ao manter asilos para a guarda de crianças abandonadas, investe a fundo perdido, pois estas crianças, em sua grande maioria (cerca de 90%), morrem antes de tornarem-se produtivas. Assim, preservar a cria do homem é necessário, pois esta ganha valor mercantil, e a promoção da educação dos bebês será a munição contra o terrível mal.

A protagonista dessa nova tarefa será a mãe, mas como convencê-la a investir nesse pequeno ser tão sem atrativos? Mais uma vez os homens esclarecidos ocupam-se de tal missão. Nesse cená rio, a Academia da Holanda oferece prêmio em dinheiro para quem descrevesse o melhor método para conservar as crianças; há também as descobertas médicas nas quais se constatava que maus hábitos ou a falta de caráter eram transmitidos através do leite das nutrizes. Tais descobertas indicavam um único caminho para as crianças ricas: ser bem educadas implicava estar sob o olhar atento e vigilante da mãe e a salvo das influências negativas dos criados.

Como a taxa de analfabetismo era bastante elevada, muitas famílias, e principalmente muitas mães, não tinham acesso aos manuais destinados à conservação dos bebês. Para promover a sobrevivência dos filhos da classe pobre, o Estado cria formas de intervenção, como as Sociedades Protetoras da Infância.

Ao endereçar a educação da prole às mães, há inegavelmente uma mudança no lugar estabelecido para as mulheres: com o foco voltado para sua função, elas ganham certa autonomia diante dos maridos e passam a ter suas funções valorizadas socialmente. Portanto, os papéis desempenhados na família também são determinados historicamente e se imbricam com o próprio conceito de infância. Elisabeth Badinter (1985) afirmará:

"É em função das necessidades e dos valores dominantes de uma dada sociedade que se determinam os papéis respectivos do pai, da mãe e do filho. Quando o farol ideológico ilumina apenas o homem-pai e lhe dá todos os poderes, a mãe passa à sombra e sua condição assemelha-se à da criança. Inversamente, quando a sociedade interessa-se pela criança, por sua sobrevivência e educação, o foco é apontado para a mãe, que se torna a personagem essencial, em detrimento do pai. Em um ou outro caso, seu comportamento modifica-se em relação ao filho e ao esposo. Segundo a sociedade valorize ou deprecie a maternidade, a mulher será, em maior ou menor medida, uma boa mãe" (p. 26)

As crianças que eram mantidas junto à família tinham sua conservação garantida de acordo com sua origem de classe. Aos nascidos em família burguesa, criou-se um "cordão sanitário", e todo seu desenvolvimento será marcado pelas contribuições dos especialistas na infância. Cabe salientar que, ao redor dessas crianças, havia uma discreta vigilância.

Para as crianças oriundas da classe pobre, tratou-se de construir, como afirma Jacques Donzelot (1986), um modelo pedagógico como o de liberdade vigiada, em que a criança seria alvo de vigilância. Para dar conta deste modelo, as crianças deveriam ir para a escola ou permanecer na habitação familiar, longe das relações iniciáticas oferecida pelas ruas.

Tanto no cordão sanitário como na liberdade vigiada, a família representa um dos pilares de sustentação do novo modelo de organização social propagado pelos ideais iluministas. Longe de estabelecer o discurso da obrigatoriedade moral em cuidar das crias e educá-las, a filosofia das Luzes propagará as idéias de igualdade, felicidade individual e do amor.

Pela corrente da igualdade, embora fosse igualdade entre os homens, e não entre os seres humanos, a mulher passa a ter uma função socialmente valorizada, assim como a criança, que passa a ser valorada como bem afetivo. Neste contexto, o amor terá papel central. Não se trata de cuidar das crias pela obrigatoriedade moral, mas por meio do amor, que passa a ter novo estatuto: amor natural.

Ao bebê cabe um novo lugar. De simples corpo igualado aos animais, passa a ser alvo de investimento afetivo _ o amor materno. Este binômio amor-natural «—» amor-materno determinará as relações mãe-bebê até hoje, diferenciando a relação normal da aberrante.

Ao corpo do bebê serão dispensados cuidados até então inexistentes, gerando uma importante novidade: o manuseio do corpo pelo cuidador.

É possível então afirmar que a partir dos ideais iluministas a maternagem, como manifestação do amor da mãe pela cria, tornou-se naturalizada, havendo a prescrição da conduta correta preconizada pelos especialistas da infância na tentativa de promover a preservação do pequeno ser. Assim, dentro deste ideário, a maternagem e a função da mãe coincidem.

A partir do ensino de Lacan, os termos postos no título deste artigo poderão ser escandidos e assim gerar uma nova significação.

AMAR

Pela condição de extrema fragilidade em que o filhote humano vem ao mundo, é possível tomar o bebê como um "nada" que dependerá do Outro cuidador para sobreviver, e este Outro cuidador poderá ou não ser a genitora. Assim, não falaremos mais da mãe no sentido iluminista do termo, mas de Função Materna, ou Mãe Primordial, ou Outro Primordial ou ainda Outro Materno. Cabe ressaltar que primordial refere-se ao primórdio ou aquilo que se organiza primeiro: fonte, origem, princípio. A organização desse organismo vem de fora, de um Outro Primordial que lhe dará as balizas para a passagem de organismo a corpo marcado pela linguagem ao assistir suas necessidades fundamentais.

Inicialmente, focaremos a função imaginária como condição de investimento na cria, pois o bebê não tem nada de majestoso em si mesmo. Sua existência torna-se inefável pelo lugar que o Outro lhe atribui. Lugar construído a partir do narcisismo em que o bebê, a "meia libra de carne", será tomado como objeto de investimento libidinal, no lugar de um espelho que refletirá a imagem desejada. Neste lugar, o Outro Primordial criará para o bebê uma ficção sobre sua existência. Assim como Narciso apaixonou-se pela própria imagem refletida, o Outro cuidador amará o bebê como reflexo de si mesmo, salientando que este amor não é sinônimo do amor iluminista da harmonia e dedicação à cria. Amor e ódio estão inscritos na lógica imaginária, e assim são direito e avesso de uma mesma moeda.

A noção de harmonia, de perfeito estado de completude entre bebê e Outro Primordial, é ofuscada pela presença de um elemento com valor de simulacro: o falo. Com a prevalência do registro imaginário, o falo é um elemento que não se pode ver como objeto real, mas uma invenção, uma ficção que se crê como promessa. Como não está em lugar algum, poderemos grafá-lo como (-j), como falha imaginária. O falo em questão é o falo feminino (posição feminina, e não necessariamente uma mulher).

Lacan abordará o objeto fálico como tema central na obra freudiana, outorgando diferentes estatutos a este conceito ao longo de seu ensino. Para poder apontar a disjunção entre amar, cuidar e subjetivar, um aspecto merece destaque: a incidência da teoria fálica sobre a mulher.

Em um primeiro tempo, a mãe aparece como fálica, como um ser provido de falo imaginário que tornará evidente sua castração se desejar como mulher, ou seja, se crê que encontrará o falo em outro lugar, abrindo caminho para que o pequeno ser a tome como um ser em falta. Mas, se o que está em jogo não é a anatomia, de que se trata então?

Em uma conferência intitulada "A significação do falo", Lacan (1998b) retomará o algoritmo invertido do signo lingüístico, caracterizando o falo não como uma fantasia, ou mesmo um objeto sensível, mas sim como um significante:

"(…) Pois ele [o falo] é o significante destinado a designar, em seu conjunto, os efeitos de significado, na medida em que o significante os condiciona por sua presença de significante" (p. 697).

O falo é o significante do significado, portanto, um fato de linguagem, e não de anatomia. É o significante que circula a partir da ameaça imaginária que incide sobre um objeto real, inscrevendo algo no lugar de uma ausência.

O falo inscrito como ausente na ordem simbólica a partir da castração inscreve a menina na possibilidade de tornar-se mãe e mulher e também permite ao sujeito feminino eleger objetos para trocar com essa ausência. Um dos objetos possíveis para realizar a troca é o bebê, e, assim, deparamos com a lógica freudiana presente na equação bebê = falo, ou seja, o bebê pode funcionar como substituto à falta fálica.

Temos aqui o bebê em seu valor de Ersatz.

Ao preencher a mãe a criança encarna o objeto fálico. Ora, esta é a definição freudiana para o fetichismo. Embora a perversão seja atribuída aos homens e muito raramente às mulheres, de acordo com Miller (1998), esta perversão feminina seria normal e poderia ter outro nome: amor materno.

A mãe ama na ilusão de repositivar a falta fálica, mas, como nenhum objeto sensível é capaz de fazê-lo, o resultado será a recorrência de encontros faltosos. Esta falta fundamental é como Lacan nomeia o complexo de castração freudiano.

A mãe em falta busca algo para tamponar, para suprimir o buraco. A mãe busca um filho. O filho, por sua vez, oferece-se como objeto capaz de apaziguar a fera. Para não ser devorado, o bebê deverá estar inscrito no mais além do próprio objeto, e para tal é necessário que além de preencher provoque a falta na mãe. Paradoxal, pois, ao mesmo tempo em que preenchendo faz-se objeto amado, gera angústia e satura o desejo do sujeito feminino. Uma mãe preenchida é uma mãe angustiada, pois não deseja como mulher. Assim, o bebê inscrito na série de objetos fálicos deverá falhar como obturador da falta.

Ao tomarmos o bebê na série metonímica dos objetos, afastamo-nos radicalmente dos ideais iluministas do amor materno como natural. A maternidade pode ser interpretada como um possível nome para a falta estrutural do desejo fe minino, portanto, como uma solução para a castração.

 

CUIDAR

Para sustentar o fato de que alguém se ocupa de um bebê não por um dom natural, outro aspecto deve ser relevado: o bebê ocupa lugar de objeto condensador do gozo da mãe. Cabe ressaltar que esta perspectiva não invalida o lugar de objeto fálico, mas aponta para um deslocamento no estatuto da criança. Lacan (1985, p. 24) afirmará:

"Confio em vocês para lembrar-lhes o que ensina o discurso analítico sobre a velha ligação com a nutriz, mãe ainda por cima, como se, por acaso, tendo por trás a história infernal de seu desejo e tudo aquilo que vem em seguida".

O desejo da mãe é infernal e toma a criança como objeto causa de seu desejo, ou seja, como objeto a. Algo deverá intervir para que a separação ocorra. A este algo, Lacan nomeou como os Nomes-do-Pai, agora no plural, indicando que existe um além do Édipo freudiano.

Ao bascular a definição de criança do lugar de falo para o objeto a, apreendemos que, no primeiro tempo, há a predominância do significante e da linguagem, portanto, do registro Simbólico. Ao propor a incidência do significante no corpo e as inscrições daí resultantes, estamos diante do registro do Real, sem a prevalência de um registro sobre o outro. Podemos então nomear o falo como significante de um gozo legalizado, vinculado à castração, portanto, limitado, capturado pelo simbólico e que dará a medida da separação/junção entre o gozo e o corpo, enquanto o objeto a está posto para o que resta da significação, portanto, como resto da castração.

Um aspecto crucial se põe: o manuseio do corpo e quem é o agente de tal ação. Trocar as fraldas, alimentar, aquecer, etc., ou seja, maternar, não será jamais asséptico, apesar do discurso higienista. Há um corpo sendo tocado que não é puro organismo, pois do substrato orgânico surge um corpo feito para gozar.

"(…) nós não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso se goza" (Lacan, 1985, p. 35).

Há um outro real, de carne e osso, que incorpora o lugar de Outro e que, por sua vez, toma o bebê, o corpo do bebê como objeto que não é passivo, pois seu corpo também goza como um "polimorfo perverso".

"Gozar tem essa propriedade fundamental de ser, em suma, o corpo de um que goza de uma parte do corpo do Outro. Mas esta parte também goza _ aquilo agrada ao Outro mais ou menos, mas é fato que ele não pode ficar indiferente" (Lacan, 1985, p. 35).

Há portanto, uma complementaridade gozante, como se o Outro encarnasse no corpo do bebê, usando-o para incorporá-lo ao próprio gozo. A mãe poderá encarnar no corpo do bebê tomando-o como objeto.

A partir desse foco, o lugar da mãe ganha outro estatuto: o de tomar o corpo do bebê como apaziguamento do próprio fantasma, lembrando que a álgebra lacaniana propõe um matema para o fantasma: $ à a.

O texto clássico de Lacan (1998a) para abordar a criança no lugar de objeto a é "Duas notas sobre a criança". Retomaremos sua afirmação de que "a criança realiza a presença do que Jacques Lacan designa como objeto a na fantasia" (Lacan, 1998a, p. 5) para ressaltar que estamos novamente diante da idéia de que a criança, no lugar de objeto poderá saturar, obturar a falta materna, mas agora não mais como substituto fálico, mas como sutura no Real, do corpo do bebê tomado como real na fantasia do Outro, ou seja, empresta o corpo para o fantasma da mãe. A criança incorpora na estrutura o lugar de objeto fantasmático da mãe quando o desejo da mãe não é metaforizado pelos possíveis Nomes-do-Pai, causando "acidentes" na subjetivação do infans.

Um paradoxo se faz presente quando abordamos os momentos iniciais na constituição do sujeito: para ser sujeito, deverá primeiro ser objeto, deverá condensar, com o próprio corpo, o gozo do Outro e também gozar, para depois poder, por meio de um dos Nomes-do-Pai, significar o desejo infernal da mãe e criar seu mito individual, seu sintoma, e todas as cadeias significantes advindas da busca infinita de atribuir significado a este momento lógico. Embora este jogo gozoso possa ocorrer com todos aqueles que manipulam o corpo do bebê, um terá papel primordial em que a manipulação terá valor de inscrição, ocupando assim a função de Outro Primoridal, ou de “mãe”, de função de mãe e não de genitora.

Esse serviço sexual prestado ao Outro Primordial deverá ser substituído pela incidência significante, originando os significantes mestres, os S1 que marcam o corpo e as zonas erógenas do sujeito. "O significante é aquilo que faz alto ao gozo" (Lacan, 1985, p. 36). O significante, ao marcar o corpo, circunscreve o gozo a uma zona erógena, "desertificando" o corpo que era, até então, capaz de gozar em toda a superfície. Há, portanto, através da inscrição significante, uma perda, uma exclusão de gozo que marcará o psiquismo.

"Assim, o gozo se retira, é marcado por um buraco, um vórtice, mas não desaparece por completo. Na medida em que o corpo é deserto de gozo, ele vai se concentrar fora do corpo: de fato, a inscrição dos significantes que se opera pelo viés da demanda do Outro vai localizar o gozo em torno das bordas anatômicas, em torno justamente disso que faz buraco e que não está, a propriamente dizer, no interior do corpo" (Gazzola, 2002, p. 59).

E o sujeito se põe em direção a aceder ao gozo fálico na busca impossível de refazer o UM, miticamente vivido na relação com a mãe e que se faz radicalmente Outro pela incidência do corte significante. Esta lógica circular ganha combustível pelo fato de a mulher não ter o falo, e, quando se torna mãe, capturar o bebê, destacado de seu corpo, como objeto de seu gozo fálico. Concomitantemente, o infans é posto no lugar do objeto a, condensado o que Lacan denominou mais de gozar.

Cabe ressaltar que o bebê não ocupará o lugar de objeto no fantasma de todos aqueles que dele se ocupam. A manipulação do corpo produz gozo, efeitos de gozo, mas, se não estiver conjugada à incidência significante, que também poderia ser chamada de incidência do Outro Primordial, não produz inscrição.

SUBJETIVAR

Miller (1998), ao considerar o amor devotado às crias como não natural, evoca uma lenda grega, cuja versão literária mais conhecida foi realizada por Eurípedes: a de Medéia. Terrível feiticeira, que pratica a boa e a má magia, ajuda o líder dos argonautas, Jasão, a obter o velocino de ouro, que era guardado pelo rei Eetes, pai de Medéia. Apaixonados, Medéia e Jasão fogem com os argonautas para Jolcos, pátria de Jasão. Mais tarde, Jasão apaixona-se por Glauce, com quem pretende se casar. Ao ser abandonada, Medéia presenteia a noiva com um manto mágico que causa sua morte, e envenena os filhos oriundos da relação com Jasão, deixando assim de ser mãe.

"(…) ato próprio para ilustrar, certamente pelo horror, que o amor materno não se sustenta na reverência pura à lei do desejo, ou que só se sustenta nele se uma mulher, enquanto mãe, permanecer, para um homem, a causa de seu desejo" (Miller, 1998, p. 8).

Medéia seria, por meio do ato, um modelo do amor materno, pois só se é mãe quando o desejo do sujeito feminino, dividido pela maternidade, não se totaliza com o bebê, e a mulher pode também estar no lugar de objeto do desejo de um homem, ser o objeto a para um homem. Lacan afirmará que um filho só deve respeito e amor ao pai se este eleger a mãe como seu objeto a. Radicalmente oposto à naturalização, o amor engendrado na família inscreve-se pelo discurso do desejo articulado ao objeto. Assim, uma mãe poderá amar sua cria, mas não cuidar bem dela, valendo a mesma lógica para seu oposto: quem cuida faz a maternagem, não necessariamente ama. A maternagem não é sinônimo de amor materno.

Sobre o amor, há uma característica que merece ser destacada: a de ser sempre recíproco, pois o sujeito quando é amado se fez objeto a para alguém. Não há amor sem a presença do objeto a, e podemos então inferir que as inúmeras gracinhas feitas pelos bebês, assim como a manha, podem, em parte, evidenciar esta lógica de se fazer notar pelo Outro. O infans põe-se no lugar de uma oferenda. Oferenda que poderá ser ou não capturada pelo fantasma materno. Se o for, possibilitará que o desejo do Outro, animado pelo fantasma, não seja anônimo, outorgando-lhe estatuto de Outro Primordial.

Outro aspecto implicado no não anonimato do desejo é o saber, pois para que haja amor deverá haver suposição de saber. A mãe poderá amar sua cria quando supõe haver, encarnado no corpo do infans, um sujeito detentor de algum saber, e talvez por isso fale, cante, converse com o bebê, supondo uma possibilidade de comunicação. Assim, a mãe posiciona-se diante do objeto tomando partido do amor ou do ódio, mas não da indiferença, que se apresenta também como possibilidade. Amar ou odiar também implica uma captura do bebê pelo fantasma materno.

Lacan, na década de 1970, fará do amor um tema em seu seminário Encore, homofonia intraduzível com en corps, no corpo. Em uma vertente, abordará o amor relacionando-o ao gozo, ao Outro e ao signo. Como o próprio título do Seminário XX sugere, trata-se de pôr o corpo em questão, e, no caso do bebê, a manipulação de seu corpo pelo Outro na maternagem, necessária para garantir a sobrevivência do infans. Então, é possível considerar a maternagem como um meio de o Outro gozar do corpo do infans. Para ampliar este aspecto, faz-se necessário abrir os termos nele implicados.

Lacan (1985) definirá signo como o próprio efeito do funcionamento do significante sendo também correlato a uma presença. O signo está para uma presença assim como o significante está para sua articulação com outro significante, implicando uma ausência.

O signo, condicionado a uma presença, refere-se ao corpo real, concreto, que será tocado pelo significante do Outro, afetando-o por meio de uma inscrição. Ao considerarmos que o Outro Primordial quando realiza a maternagem põe em marcha seu amódio _ neologismo sugerido por Lacan (1985) no lugar da ambivalência de Bleuler _, e portanto não se mostra indiferente diante do bebê, pelo contrário, supõe a existência de um saber e por isso fala com a cria, marcando, pelas palavras, sílabas e sons, o corpo manipulado. O corpo, afetado pela linguagem, implica que o significante, além dos efeitos de significação, também produz efeitos de gozo (pois refere-se ao corpo).

Podemos então considerar que o desejo anônimo poderia ser equivalente à maternagem, já que qualquer corpo é suporte para o gozo. Para que a maternagem tenha valor de inscrição, o infans tem de estar enredado no fantasma daquele que dele se ocupa, o que define um desejo não anônimo. A este lugar diferenciado para o objeto, o Outro destina afeto, que poderá ser amor ou ódio, e a partir daí é possível que haja inscrição significante no infans conjugada aos efeitos de gozo.

DE VOLTA AO COMEÇO

A passagem para a modernidade configurou-se como o momento de formalização da demanda social em termos de educação infantil, já que as crianças, na primeira infância, deveriam ser preservadas e educadas. Com as lentes voltadas para esta "idade da vida", a mãe é convocada a evitar as relações iniciáticas oferecidas pelas ruas, bem como a má influência dos criados. Tal ideário era possível para as famílias da nascente burguesia.

Nas famílias pobres o trabalho feminino era "desculpado" apenas nos casos em que a pobreza era irremediável, mas haveria conseqüências indeléveis para os filhos _ neste contexto, o trabalho intelectual das mulheres era altamente recriminado, já que não havia motivo real para a ausência da mulher do seio do lar. Objetivando remediar o inevitável, ou seja, o afastamento da mãe de sua tarefa educativa, nascem as instituições destinadas à primeira infância, e assim descortina-se uma polarização: de um lado, a família burguesa, assessorada pelos saberes da puericultura em que a educação da prole era exercida pela mãe, e, do outro, a família popular, analfabeta e sem acesso aos livros. Há uma sepa ração entre classes a partir do saber educativo para com os filhos.

A família popular mostrava-se "insuficiente", seja pela ausência do saber, seja pela ausência da mãe, o que permitiu a transferência do saber educacional, higiênico e moral para os especialistas da infância. Entre as instituições que nascem no bojo desta lógica, está a creche.

Palavra de origem francesa que significa manjedoura de animais domésticos, bois, carneiros, etc., a creche traz em sua concepção uma contradição, pois impedia a amamentação e a educação direta realizada pela mãe. A fim de amenizar tal contradição, surge a figura da educadora mulher, o que, muito provavelmente, foi justificado pelo papel "natural" da mãe-educadora.

Kuhlmann (1990), abordando o nascimento desse equipamento educativo, cita Joaquim Ferreira Moutinho, que publicou em 1884 A creche, em que há a seguinte afirmação: "Da escolha da educadora das creches depende essencialmente o futuro da sociedade. A educadora das creches representa o papel de mãe de milhares de crianças; tem, como mãe, de formar milhões de corações; e deste seu imenso poderio depende naturalmente a felicidade do futuro" (Moutinho, citado em Kuhlmann, 1990, p. 81).

O binômio mãe-professora, atribuído naturalmente às mulheres, como função essencial na posição educativa para com a cria, é invertido em professora-mãe quando se caracteriza este novo especialista na infância: a educadora da creche. Nesta lógica, a função da educadora assemelha-se às realizações da mãe, ao menos na definição das Luzes, e se configura como um fantasma, que, ainda hoje, está presente nas discussões sobre a creche.

A partir dos conceitos psicanalíticos extraídos do ensino de Lacan, é possível dissociar a Função da mãe da maternagem, pois quem cuida não necessariamente faz inscrição, ou seja, faz papel de Outro Primordial. Assim, a maternagem poderá ser abordada sob outro prisma: os cuidados com os bebês serão realizados por um adulto, profissional que trabalha na creche, independentemente de sua formação, já que a maternagem faz parte do cotidiano da creche, o que implica que o infans será manipulado, terá seu corpo manuseado. Lembrando que o bebê, com seu corpo, dá vida ao objeto, poderá ser tomado por quem materna como objeto de seu fantasma, como objeto mais-de-gozar, mas que a captura como objeto por aquele que se ocupa do bebê é uma exceção, e apenas nesta situação a maternagem equivale à Função materna. Portanto, radicalmente oposta aos ideais iluministas, a psicanálise aponta para uma disjunção entre amar, cuidar e subjetivar.

 

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Recebido em agosto/2003
Aceito em outubro/2003

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