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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.8 n.15 São Paulo jun. 2003

 

ARTIGOS

 

A educação (não) é tudo

 

Education is (not) everything

 

 

Eliane Marta Teixeira Lopes*

*Professora titular (aposentada) de História da Educação da UFMG, psicanalista e escritora.

 


RESUMO

A educação e a escola estão hoje no divã. Para o mal-estar que ronda de modo incessante a educação, a psicanálise tem sido pensada e oferecida como uma saída, mas cuidado com os excessos! Tanto aquele que ameaça os pais diante do menor erro ou falha, como aquele da instituição que "psicologiza" de modo desmesurado. Uma das questões aí postas é a exacerbação do valor da competência e seu revés. Talvez o que de melhor a psicanálise possa oferecer à educação é justamente a escuta das palavras e a desconstrução de seu valor e poder como instrumentos de salvação.

Palavras-chave: Educação, Salvação, Psicanálise.


ABSTRACT

Education and school are today on the divan. To the malaise that rounds incessantly the education, psychoanalysis has been thought and offered as a solution, but take care with the excesses! As much the one which threats parents ahead of the minimal error or failure, as the one of the institution which immeasurably "psychologizes". The exacerbation of the competence and its backstroke's value is one of the issues here. Perhaps what psychoanalysis better offers to the education is exactly the listening to the words and the deconstruction of the value and power of the words as salvation instruments.

Keywords : Education, Salvation, Psychoanalysis.


 

 

"Cent fois remets ton travail..."

Em março de 2003, o prestigioso mensário Le Monde de L'Éducation escolheu como tema de seu dossiê a relação educação/escola e as "psi" em geral e deu a ele o título "L'école sur le divan". A editorialista expõe a questão:

"Risco de precocidade? Consulta-se. Comportamento de fracasso? Consulta-se. Insegurança? Consulta-se. Paralisados diante do menor passo em falso, os pais não sabem mais a qual `psi' recorrer para fazer com que sua criança obtenha sucesso. Quando, segundo o pedopsiquiatra Marcel Rufo, os perigos da escola acham-se na origem de 60% das consultas e quando os conselhos de classe misturam conceitos mal elaborados, é permitido interrogar-se sobre essa dependência/influência do discurso `psi' em matéria escolar. Os professores, em pleno mal-estar profissional, também fazem a demanda".

Diante da situação, o editorial conclui:

"Cuidado com os excessos! Tanto aquele que ameaça os pais diante do menor erro ou falha, como aquele da instituição que `psicologiza' desmesuradamente. Atenção para manter o equilíbrio" (Perucca, 2003, p. 3).

O dossiê é composto de 9 artigos que cabem em 16 páginas. De uma maneira geral, os textos seguem a linha indicada no editorial: os problemas existem, o recurso de que lançam mão são bons, mas é preciso cuidado para não cair em excessos.

Vejamos alguns aspectos apontados nos artigos.

No texto "A `psi' invade os pátios", Bonrepaux (2003) põe em questão a formação dos professores(as) para o uso da cultura psicológica: "Nos IUFM os futuros professores são pouco formados em psicologia: 10 horas sobre as 450 de cursos para os professores de escolas, 12 para os professores de liceus e colégios. Não se trata de formar professores(as) psicólogos, mas de dotá-los de uma cultura psicológica de base que lhes permita identificar a diferença entre um comportamento difícil e aquele que deve ser encaminhado a um especialista".

E conclui: "Uma prevenção limitada, hesitações quanto ao lugar de seu aspecto clínico, a pregnância de um discurso selvagem: a psicologia claramente não encontrou seu justo lugar no sistema educativo, o que é um paradoxo, já que seu campo de intervenção não cessa de se estender".

O artigo "Sofrimento escolar: A árvore que esconde a floresta", de Dupuis (2003), parte da afirmativa de que muitos alunos seguem uma escolaridade relativamente harmoniosa e que é bom não se esquecer disso quando se estudam os jovens que dizem sofrer em conseqüência da escola. Segundo os depoimentos de especialistas na área, os "jovens vão lhes falar de seus problemas, de seu fracasso escolar, mas a escola aparece apenas como um sintoma". Uma das questões aí postas é a exacerbação do valor da competência e seu revés. "O espírito de competição é muito mais precoce que há vinte anos, pois principia no maternal, em que as competências começam a ser conferidas. O sentimento de fracasso sendo mais precoce, as consultas também o são." Esse sintoma de uma sociedade competitiva e cada vez mais hierarquizada atinge tanto aqueles pais que pressionam excessivamente os filhos, impondo-lhes um ritmo que às vezes não conseguem seguir, quanto outros que desvalorizam e denigrem a escola, não lhe atribuindo nenhum valor. Do ponto de vista dos alunos, Galband (2003) mostra que tanto existe a questão psíquica _ `"Em 10% dos casos eu faço besteirinhas, curativos em pequenos ferimentos devidos a tombos ou a brigas. Nos 90% restantes, necessita-se de psicologia', disse uma enfermeira de escola" _, quanto existem outras questões. Saber falar a língua é uma delas: "Na verdade, eles não dominam a língua francesa, daí suas dificuldades". E a conclusão é que a psicologia não pode explicar tudo1.

O artigo "Como não perder a cabeça?" enfoca a questão dos professores(as): "Realmente existe entre os professores(as) um lancinante `discurso da queixa' proveniente do distanciamento entre a representação do mister2 e de suas condições reais. (...) Na educação, como na saúde e nos serviços sociais, os princípios de engajamento profissional, fundados sobre valores historicamente desenvolvidos e conhecidos por todos, se desfazem. O trabalho não avança, os meios e os critérios de eficácia se dissolvem. Como fazer para satisfazer os alunos e seus pais? Como não deixar que me destruam?" (Cebelle, 2003). Esta foi uma pergunta deixada por uma professora em mensagem de uma lista na Internet. Tudo se passa como se a experiência dos professores estivesse dominada pelo choque entre uma representação ideal do mister e as condições de trabalho que tornam impossível realizá-la. A acumulação e a aceleração das prescrições (reformas e diretivas oficiais) provocam a interiorização de um sentimento de falta de competência e autodesvalorização no que diz respeito à profissão. Se a todo momento uma nova regra, uma nova proposta pedagógica substituem aquelas pelas quais se lutava até então, em que acreditar? Vale a pena tanto esforço?

O conhecimento da psicologia da aprendizagem evoluiu muito esses últimos anos, pondo em questão as teorias sobre as quais o ensino esteve fundado. Baumard (2003) trata desse assunto no artigo "As ciências cognitivas a serviço do(a) professor(a)". Como são levadas em conta essas descobertas na formação dos mestres, e qual sua contribuição quando se acham diante de sua classe? O artigo confere importância ao conhecimento das aprendizagens, mas reconhece a urgência e mesmo a impaciência dos(as) professores(as) que estão mais interessados em "como fazer" do que em "por que" fazer. Assim, o trabalho pedagógico nutre-se mais, e mais freqüentemente, de receitas coletadas ao sabor de encontros e dos acasos do que das ciências e das supostas garantias oferecidas por elas.

Dois outros artigos mostram algumas saídas que têm sido buscadas, e até achadas, para esse círculo vicioso. A estratégia dos grupos de inspiração Balint, criados na França pelo psicanalista Jacques Levine3, é uma delas. Esse trabalho apóia-se essencialmente sobre a verbalização individual e coletiva das tensões escolares e sobre a noção-chave de mudança de olhar, permitindo controlar o sofrimento e regular o conflito, conforme Catsaro (2003). Uma outra estratégia, talvez mais ao gosto de nosso tempo, foi a criação em 1997 de uma linha telefônica 4 para o atendimento e escuta do mal-estar ou até do desespero dos(as) professores(as), comentada por Lebard (2003). Nessa consulta, um psicólogo clínico, anônimo tanto quanto o consulente, oferece um espaço de palavra livre. Deseja-se orientar as pessoas e evitar que as dificuldades cresçam, pois sabe-se que algumas situações podem chegar a um agravamento da falta de confiança e desestabilizar uma carreira5.

O artigo "O inconsciente à porta da escola", de Truong (2003), volta a trazer a questão do excesso do discurso "psi", praticado até pelos alunos ("Professor, o senhor está me traumatizando"), e dessa vez inclui o discurso sociológico no rol dos excessos. Segundo uma especialista, a abordagem "psi" foi apropriada por um público de leigos, e a mídia faz o coroamento desse sucesso, mas cabe a pergunta: e se a inflação desses discursos mascara o que a psicanálise pode trazer ao conhecimento e à prática educativa? De fato, a psicanálise tem muito a dizer sobre a escola, a propósito da relação com o saber, sobre a pessoa, sobre o grupo, sobre a instituição, o que não chega a ser propriamente uma novidade, já que anunciada por Freud desde 1913. A verdade é que as defesas que professores construíram ao longo dos anos bastavam. Seu poder não era contestado. Seu saber não sofria concorrência. A autoridade era legitimada. Hoje, nada disso vai por si. Os professores sofrem ataques frontais que poderiam ser analisados e mesmo canalizados pela psicanálise. Mas os professores quererão mesmo saber alguma coisa desses elemen tos inconscientes que entram no jogo desse mister que Freud dizia ser impossível?

Por duas vezes, neste resumo que fiz dos artigos do Le Monde, aparece a palavra "impossível" associada ao esforço de educar. Hoje, já é comum, e não chega a assustar nem mesmo os desavisados, a frase que Freud nos disse, sem complacência, de que educar é um ofício impossível ou uma tarefa impossível. Mas, afinal, o que disse ele?

Mireille Cifali, psicanalista e professora da Universidade de Genebra, debruçou-se por duas vezes sobre essa questão: a primeira em 1987 e a segunda, mais recentemente, em 1999, num artigo que saiu na revista Le Portique (1999). Neste último, "Métier `impossible'? Une boutade inépuisable" (que podemos traduzir por "Mister `impossível'? Um gracejo inesgotável"), a autora propõe-se a compreender e comentar, palavra por palavra, o texto de Freud de onde foi extraída essa idéia (Cifali, 1999). Vejamos o que diz, com algumas pontuações de minha parte6.

Freud utiliza essa expressão no Prefácio que faz ao livro de Aichhorn em 1925, e depois em "Análise terminável e interminável" em 1937 (talvez já valha a pena assinalar que, se traduzíssemos do francês, diríamos análise "terminada", e não "terminável", o que evidentemente faz diferença).

"Minha cota pessoal nessa aplicação da psicanálise foi muito leve. `Em um primeiro estádio', aceitei o `bon mot' que estabelece existirem três `profissões' impossíveis _ edu car, curar e governar _, e eu já estava inteiramente ocupado com a segunda delas. Isto, contudo, não significa que desprezo o alto valor social do trabalho realizado por aqueles de meus amigos que se empenham na educação."

"Personnellement, je n'ai eu qu'une participation très modeste à cette application de la psychanalyse. Il y a très longtemps déjà, j'ai fait mien le mot plaisant qui veut qu'il y ait trois métiers impossibles: éduquer, guérir, gouverner; j'avais déjà largement de quoi faire avec le second des trois. Mais je ne méconnais pas pour autant la valeur sociale du travail de mes amis éducateurs" (Freud, 1937).

"Freud não se mostra particularmente explícito para indicar suas fontes: ele reconhece que a idéia dos três métiers impossíveis não vem dele, mas que ele se apropriou de boa vontade. Outro ponto obscuro é o momento em que Freud faz sua a frase de um outro; indicando isso, ele utiliza o advérbio frühzeitig; a primeira tradução francesa propõe: `il y a longtemps'; a última: `très tôt'; e em inglês `at an early stage'. Frühzeitig significa literalmente em francês `de bonne heure'." Essa última expressão poderíamos traduzir por "precocemente". Tal como consta, pelo menos no texto que citei, a tradução é do inglês (como já se sabe). Mireille Cifali continua: "A origem temporal dessa frase permanece oculta. Possuímos, no entanto, uma informação suplementar: o pensamento sobre os misteres impossíveis acompanha Freud uma boa parte de sua vida e a ele permanece fielmen te ligado desde esse `frühzeitig' em 1925 até 1937". Mais à frente, Freud utiliza o termo Scherzwort. Em francês, a palavra foi traduzida por "mot plaisant", "bon mot" ou "boutade". E Mireille Cifali pergunta: "É preciso, com efeito, escutar esse termo no registro do gracejo, isto é, do não muito sério, ou acentuar seu lado cômico, tomando-o por uma daquelas expressões engraçadas e espirituosas que têm, como Freud nos mostrou, uma relação com o inconsciente?" E conclui: "Cada um interpretará segundo deseje ou não atenuar o peso desse impossível; quanto a mim, prefiro o efeito de uma verdade do cômico" (Cifali, 1999).

De minha parte, gostaria de chamar a atenção para o seguinte: já desde o início do texto usei, e não sem razão, para provocar, a palavra "mister". Sempre me intrigou o fato de a palavra "métier" ser traduzida por "profissão". A mim me parece que é uma tradução inadequada. Do ponto de vista formal, é certo que se pode dizer que "profissão" é uma tradução correta para "métier", mas será que educar, um verbo, é uma profissão? Por isso escolhi a palavra "mister". Vejam o que diz o dicionário sobre essa palavra: a primeira e a segunda acepção vão para "ofício", e "ofício" vai para "ocupação"; a quarta acepção é "ministério, incumbência"; a quinta é "propósito, meta, fim"; e a sexta e a sétima trazem "precisão, necessidade, urgência e aquilo que é necessário ou forçoso". Seria interessante articular "educação" com cada uma dessas acepções. Em português antigo, para as primeiras acepções ("ofício", "ocupação") usava-se apenas "mester" e para as últimas ("necessidade", "urgência") "mister". Hoje, "mister" é usado para ambas as acepções.

Não há nenhuma intenção de minha parte de abalar as traduções, que, sobretudo, já pertencem, digamos, ao domínio público. O que pretendo é fazer brotar a dúvida quanto ao poder das palavras com as quais nos acostumamos e das quais não temos dúvidas. Um outro exemplo: a Câmara Municipal de Belo Horizonte vai aprovar um projeto criando o cargo de "educador infantil". Ai! O melhor poder das palavras é fazer a dúvida.

O outro texto em que Freud volta à idéia de que educar é impossível está em "Análise terminável e interminável", de 1937.

"Quase parece como se a análise fosse a terceira daquelas profissões `impossíveis' quanto às quais de antemão se pode estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios. As outras duas, conhecidas há muito mais tempo, são a educação e o governo."

"Il semble que la psychanalyse soit la troisième de ces professions `impossibles' où l'on oeut d'avance être sûr d'échouer, les deux autres, depuis bien plus longtemps connues, étant l'art d'éduquer et l'art de gouverner" (Freud, 1937).

O comentário de Mireille Cifali destaca que o verbo "échouer" ("encalhar", "ser malsucedido") ao lado de impossível foi o que chamou a atenção e tornou-se quase um ícone quando se diz da relação "éduc/psy". A nova tradução francesa, que fala em quase e em sucesso insuficiente, é bem mais próxima da tradução brasileira. A autora chama a atenção ainda para o fato de que no texto de 1925 a palavra "impossível" aparece sem aspas e no texto de 1937 a palavra aparece com aspas. Segundo ela, duas interpretações podem ser consideradas:

· Freud indicaria pela simples grafia, ou pelo uso do sinal de aspas, que a palavra "impossível" não é dele, é emprestada de outro autor;

· E ainda será que é impossível mesmo, de verdade? As aspas devem produzir no leitor a dúvida, ou indicar que não é em seu sentido estrito que a palavra deve ser lida e interpretada.

Para M. Cifali, o mais lógico é dizer que em 1925 "impossível" não tem aspas porque o contexto da frase já exprime claramente o empréstimo que Freud confessa ter feito e que as aspas de 1937 iriam na mesma direção, com mais discrição. Ela conclui o texto:

"À guisa de conclusão, voltemos ao gracejo freudiano que diz de um fracasso garantido. (...) Para alguns aí está a tragédia; para outros, uma questão de liberdade humana. Aqueles que desejam forjar um outro à sua medida, segundo um plano estabelecido e finalidades postas para seu próprio bem, apercebem-se um dia de que esse outro atrapalha seu plano, transforma-o, e ressurge onde não estava previsto; as medidas educativas que acreditavam ser eficazes dão resultados contrários. (...) Qual seria o critério que permitiria julgar o sucesso ou o fracasso? Alguns já garantiram que o sucesso de uma educação reside no fato de que ela fracassa; aquele que é seu objeto contraria o projeto forjado para ele e pode advir como sujeito na diferença e na separação. E vice-versa: uma educação bem-sucedida aos olhos daquele que a assegura mostra-se um fracasso aos olhos daquele que passa por ela" (Cifali, 1999).

A saída que Mireille Cifali propõe é a construção de uma ética que escape da moral e do discurso vazio, de generalidades sem eficácia, e de frágeis garantias de justiça. A ética deve ser construída na palavra7. Ao lado dessa, além dessa, proponho mais uma interpretação.

Para não ficar usando a palavra "mister", esse substantivo fora de moda, vou dizer que educar é uma ação, pois que é verbo _ e o verbo, como possivelmente lembramos todos, é uma "palavra que exprime ação, um estado ou um futuro e que apresenta um sistema complexo de formas (as conjugações) sobretudo nas línguas indo-européias". Portanto, educar é uma ação que alguém pode exercer sobre outro por meio da palavra. Entretanto, como dizia Santo Agostinho8, "as palavras nada ensinam, mas nada se ensina sem as palavras" (Lopes, 1998). E, infelizmente, para nós, humanos, que nem sempre sabemos disso, a palavra é muito mais poderosa do que pensamos que ela seja. Não a controlamos. Durante séculos, os homens gabaram-se de que eram os únicos seres vivos do planeta a poder falar, mas até hoje não acreditam que não dizem só o que querem e que as palavras não dão conta de tudo. Quando quem educa ou quem ensina imagina estar se dirigindo ao Eu do outro, criança ou adulto, "o que está atingindo, sem sabê-lo, é seu Inconsciente; e isto não ocorre pelo que crê comunicar-lhe, mas pelo que passa de seu próprio Inconsciente através de suas palavras" (Millot, 1997, p. 150). Assim, os limites dessa ação de educar encontram sua impossibilidade no fato de que não se submete o Inconsciente _ é ele que nos sujeita. É verdade que não há outro domínio possível senão o do Eu, aquele que se exerce conscientemente, mas trata-se de um domínio ilusório, pois o Inconsciente demonstra ter um peso muito maior que todas as intenções conscientes.

Seriam, então, as palavras mais poderosas do que os métodos que usamos para transmiti-las e aos conhecimentos? Em última instância, as palavras independeriam dos métodos? Não são os métodos que as faculdades e os cursos de formação nos ensinam como eficazes ou não eficazes, competentes ou não competentes, para transmitir determinado conteúdo? O impossível poderia então estar articulado a essa função da palavra.

Impossibilidade não é, entretanto, nem impraticabilidade, nem impotência. Dizer que a educação é impossível é dizer desse mal-estar que ronda permanentemente nossa ação e nossos escritos. É dizer de nossa construção permanente em torno de um furo, tarefa incessante para quem se dispõe a fazer esse caminho (Belisário, 1999). Além disso, é preciso admitir que o ego não é o senhor de sua própria casa, coisa difícil para a educação, que pretende sempre, a qualquer custo, manter o controle da situação, conservar isso de onde vem seu prestígio: a ilusão de que determina o futuro.

Podemos afirmar, para facilitar o pensamento, que a educação é também interminável, pois onde está seu futuro? Em que ponto ele se situa?; quem o vê?; em que momento aparece, e é futuro? Podemos ficar aborrecidos com a denúncia de que para nosso trabalho o insucesso está previsto desde o começo, ou com o insuficiente sucesso de nossa ação, como queria Freud, mas é que não há uma necessária causalidade entre o que fazemos e o resultado, não há "causalidade" entre os meios pedagógicos utilizados e os efeitos obtidos. O futuro não está, nem é determinado pelo que fazemos ou mesmo pelo que deixamos de fazer. Mas as doutrinas, os métodos e técnicas, e a prática pedagógica visam primordialmente ao controle e a garantir o sucesso da ação. E, mesmo que isso deva ser feito, nada pode garantir o sucesso da educação. Isso traz sofrimento, isso traz mal-estar, isso provoca a "ilusão de um futuro", e, por qualquer futuro, melhor seria não tecer ilusões.

A educação é um dos últimos domínios em que os raios da razão iluminista teimam em estar acesos, e ela se gaba disso. O projeto moderno para a escola prometia, a seus usuários, ascensão social, compensação, promoção, progresso, cidadania, esclarecimento, instrução, liberdade, igualdade, fraternidade. Tudo. Para simplificar, passou-se a dizer: "Sem educação, não há salvação". Com isso, aliava-se ao projeto moderno o projeto catequético e salvacionista da Igreja Católica. Tornamo-nos todos missionários da razão. É uma herança pesada. Uma herança que, infelizmente, não pertence ao passado.

Diferentes manifestações, em diferentes épocas, vão consolidando essas idéias (Lopes, 2003). Atualmente, uma poderosa rede de TV anuncia sua atuação no campo da educação. Nela uma voz convincente afirma: "Por trás de tudo isso existe uma idéia muito forte". E, a seguir, uma vinheta anuncia vaidosamente, melodiosamente: "Educação é tudo". Aí é que entramos no terreno do verdadeiramente impossível. Quando dizemos que a educação é tudo, também dizemos que os que a têm (ou que julgam tê-la) de nada mais precisam. Estão, de novo, mais uma vez, salvos.

A educação não é salvação nem condenação; não é tudo nem é nada. A educação é uma aposta.

Usar um termo tão comum quanto esse (aposta, verbo apostar) pode ter uma certa dignidade e estatuto se nos reportamos à maneira pela qual entrou no pensamento filosófico. No século XVII, o filósofo e matemático francês Blaise Pascal9 criou essa idéia na esperança de combater o cientificismo da época e de convencer seus amigos aristocráticos, todos jogadores fanáticos, da existência de Deus. Para ele, a grande pergunta era se convinha a alguém acreditar na existência de Deus, e sua resposta era que alguém seria tolo se não acreditasse. No modo de ver de Pascal, a crença ou a descrença que você possa ter em Deus implica uma aposta. Sua conclusão é que todos nós jogamos dados com Deus.

Quando digo, apoiada em Freud, que a educação é um mister impossível, que nada pode garantir o sucesso da educação e que é melhor não tecer ilusões quanto ao futuro, não estou dizendo que não se deva educar. Partindo do raciocínio pascaliano, podemos afirmar que a educação não é tudo, mas também não é nada, é uma aposta, e o jogo tem, deve, precisa ser jogado.

"Não adianta, pois, dizer que é incerto ganhar e que é certo que se arrisca, e que a distância infinita que há entre a certeza do que se aventura, e a incerteza do que se ganhará iguala o bem finito, que certamente se expõe, ao infinito, que é incerto. Isto não é assim. Todo jogador arrisca com certeza para ganhar com incerteza; e, contudo, arrisca certamente o finito, para ganhar incertamente o finito, sem pecar contra a razão. Não há infinidade de distância entre essa certeza do que se joga e a incerteza do que se ganha; isso é falso. Há, na verdade, infinidade entre a certeza de ganhar e a certeza de perder. Mas a incerteza de ganhar é proporcional à certeza do que se arrisca, segundo a proporção das probabilidades de ganho e de perda. De onde se deduz que, se há tantas probabilidades de um lado como de outro, a partida deve ser jogada em paradas iguais; e então a certeza daquilo que se arrisca é igual à incerteza do ganho: tanto faz que este esteja infinitamente distante" (Pascal, 1967, fr. 233, p. 123).

Apesar de todas as legislações democráticas que consagram capítulos ao dever e à obrigação de educar e de ser educado, do ponto de vista da prática educativa ou pedagógica10 tanto quanto do ponto de vista do sujeito que educa ou que é educado não há garantias, é mesmo uma aposta que necessita de toda a implicação dos sujeitos para que tenha chance de ser ganha11. No entanto, se a apropriação daquelas fórmulas que nos serviram de bóia durante tantos séculos (e não apenas anos) continuar sendo feita sem nenhuma análise, sem nenhuma crítica de nossa parte, sem nenhum trabalho de desconstrução ou de interpretação, continuaremos carregando esse pesado fardo como missionários da razão.

A psicanálise também não é tudo, mas pode atuar como uma disciplina (tomo aqui a palavra nos dois sentidos: organização e matéria escolar) antiideal, que permita constatar as idealizações paralisantes e as identificações que atormentam os sujeitos. A psicanálise não tomará o poder, não dará a quem quer que seja nenhum poder, mas poderá participar do debate democrático contra todas as formas de segregação, ajudando na construção de uma ética da educação e de novas formulações pedagógicas que minem as identificações que sustentam os delírios de ideal e as sujeições identitárias, o verdadeiro pesadelo da educação e da pedagogia contemporâneas12.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Truong, N. (2003). O inconsciente à porta da escola. Le Monde de l'Éducation, "L'école sur le divan" (dossiê),março.        [ Links ]

 

NOTAS

1 A autora está se referindo a uma população imigrante muito presente nas escolas france sas, mas eu acrescentaria que não saber falar a língua, ou falar uma língua pouco compreendida pelos adultos que dirigem a escola, não é um problema apenas de alunos provenientes de países e culturas diferentes. As tribos de jovens, de diferentes estratos sociais e de diferentes etnias, elaboram, e de maneira cada vez mais refinada, vocabulário e construções sintáticas que preservam seu mundo do controle e da influência dos adultos (para bem e para mal).

2 MISTER(é). [Do lat. ministerii (est), "é de mister".] S. m. 1. Ofício (1); 2. V. ofício (2 a 6); 3. Profissão (4); 4. Ministério, incumbência, comissão; 5. Intuito, propósito, meta, fim; 6. Precisão, necessidade; urgência; 7. Aquilo que é necessário ou forçoso [cf. mester]. Cf. Dicionário Aurélio eletrônico. Século XXI.

3 Entre os vários sites que poderão ser consultados sobre esse trabalho, sugiro: http://agsas.free.fr/ e http://ecole.saint.didier.free.fr/balint.

4 Essa foi uma iniciativa da Universidade de Créteil.

5 Sem entrar nem em detalhes das técnicas, nem em sua problematização, vale a pena destacar que em uma e outra estratégia o que está em jogo é a palavra e a escuta da palavra.

6 Mantenho ao lado da tradução brasileira a versão em francês porque foi a partir dela que M. Cifali fez seus comentários.

7 Esse assunto não é desenvolvido pela autora no texto. Devemos, no entanto, reportar-nos a Lacan e ao Seminário VII: A ética da psicanálise.

8 Volto a insistir na importância da leitura do De Magistro, obra de Santo Agostinho.

9 Blaise Pascal nasceu em Clermont-Ferrand em 1623. A partir de 1646, em contato com os jansenistas, converteu-se ao cristianismo e se retirou da vida mundana. Matemático e pensador genial, morreu (1662) antes de concluir uma apologia do cristianismo, cujos fragmentos foram publicados sob o título de Pensamentos. Nesse livro é que está o texto sobre "A aposta" (Pascal, 1967, p. 118).

10 Na hora H do uso desses termos é que se constata com que imprecisão são utilizados! Na verdade, os conceitos que davam suporte ao uso embaralharam-se e perderam-se ao longo do tempo...

11 A partir da idéia de que a educação é uma aposta, vale a pena (talvez) investir nela e confirmá-la ou negá-la. A psicanálise pode trazer uma contribuição indispensável. Cf. Lacan, J. Séminaire D'un Autre à l'autre, 1968-9 (versão indisponível). Confira também a longa lista de textos disponíveis na Internet sob os títulos "aposta", "pari", "Pascal", "Lacan".

12 Cf. Escuela del Campo Freudiano de Barcelona, Primeras Jornadas, 18 e 19 setembro de 1999.

 

Recebido em setembro/2003
Aceito em novembro/2003

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