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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.9 n.16 São Paulo jun. 2004

 

DOSSIÊ

Bebês prematuros na UTI: a maternidade em questão

 

Premature babies in intensive care: the motherhood matter

 

 

Suely Alencar Rocha de HolandaI

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir da discussão de um trabalho de extensão universitária desenvolvido pela autora num hospital público em Natal, RN, junto à equipe técnica da UTI neonatal e às mães dos bebês prematuros ali internados, delimitam-se as condições em que o trabalho se realizou e, em seguida, propõe-se uma reflexão em torno de duas articulações teóricas: a primeira dizendo respeito ao que pode significar a maternidade em relação à feminilidade e a segunda tratando da demanda em relação ao desejo. Por fim, busca-se delinear possíveis diretrizes para uma prática do analista fora do setting, visando uma contribuição para o debate em torno da questão da psicanálise aplicada.

Palavras chave: Psicanálise, Maternidade, Sexualidade, Prematuridade.


ABSTRACT

Fromthediscussion of an university extention work developed by theauthorina public hospitalin Natal,RN, with the Intensive Care Neonatal staff and premature babies’ mothers confined there,this article delimits the conditions where the work took effect and, then, it proposesa reflection about the matters face daround two theori clines:the firstone about what motherhood can mean related to femininity and these condone discusses the demand linked to desire. Finally, it tries to delineate possible ways fora psychoanalyst practice out of theset tingaimingata contribution to the psychoanalysis applied matter’s debate

Keywords: Psychoanalysis, Motherhood, Sexuality, Prematurity


 

 

PREÂMBULO

O desenvolvimento da neonatologia – uma subespecialidade médica do campo da pediatria – e, em especial, a utilização dos recursos de terapia intensiva para o tratamento de recém-nascidos prematuros, de baixo peso ou acometidos por outros tipos de morbidade resultaram, de modo inequívoco, num aumento drástico no índice de sobrevivência destes, bem como numa diminuição igualmente significativa de seqüelas posteriores entre os sobreviventes.

Sabemos que, nos primórdios dessa especialidade, preconizava-se que as Unidades de Terapia Intensiva neonatal deveriam ser rigorosamente assépticas, motivo pelo qual a mãe e demais familiares eram mantidos à distância, sua aproximação ao bebê reduzindo-se a olhá-lo através de um vidro, em horários exíguos e preestabelecidos, de modo que não interferissem nas rotinas da unidade.

Com o sucesso da nova especialidade, traduzido em termos de vitórias na luta pela sobrevivência e cura dos bebês, as UTIs neonatais tornam-se palco de outro tipo de problema – o abandono desses bebês por suas famílias, aos quais se daria alta após internações prolongadas (Brasil, 2002).

A constatação desse problema, considerado de graves conseqüências médicas e sociais, dá lugar a um processo de revisão dos procedimentos nas referidas UTIs, que, no Brasil, resultam em políticas e programas específicos do Ministério da Saúde que visam a promover a humanização do atendimento perinatal. Nos serviços de neonatologia estabelece-se o objetivo de possibilitar o contato mais precoce possível dos pais com o bebê de modo que se viabilize a formação do vínculo afetivo e, assim, prevenir aqueles efeitos indesejáveis, verdadeiras iatrogenias. Segundo a mesma orientação, preconiza-se “um investimento na formação dos profissionais da equipe de saúde, visando uma abordagem holística do paciente” (Brasil, 2002, p. 11). Portanto, recomenda-se que a equipe deverá contar com um psicólogo.

Destaca-se aqui a contribuição do pediatra dr. Edgar Rey Sanabria, que idealizou e desenvolveu o Método Mãe Canguru, em Bogotá, Colômbia, no ano de 1978. Tal método, que depois deu origem a um programa implantado em vários países, “consiste em manter o recém-nascido de baixo peso, ligeiramente vestido, em contato com o peito de um adulto, assim como fazem os marsupiais, como o canguru, cujas ninhadas nascem antes do término da gestação” (Charpak; Calume & Hamel, 1999, p. 5). A idéia básica é substituir, sempre que possível, a incubadora pelo contato pele a pele com a mãe, aumentando as chances de sobrevivência de alguns e diminuindo o tempo de internação de outros, bem como prevenindo os fenômenos decorrentes da privação materna, nos primórdios da vida extra-uterina.

Tomando como referência as orientações e políticas do Ministério da Saúde, destacamos que se passou a atribuir importância especial ao aspecto psicológico, e, em relação ao Método Mãe Canguru, “espera-se que haja um vínculo mãe-filho muito maior, que auxilie o desenvolvimento psicomotor dos recém-nascidos, notadamente os de baixo peso, e promova o aleitamento materno” (Brasil, 2002, p. 11).

Embora essas novas medidas tenham sido bem-sucedidas, no que diz respeito a diminuir sensivelmente o índice de abandono hospitalar dos bebês, alguma dimensão de “fracasso” continua a ter lugar, segundo registro das equipes. Enumeram-se aí subseqüentes reinternações dos bebês, devidas a causas diversas, mas associadas de um modo ou de outro a “práticas inade quadas” nos cuidados ao bebê, pelos familiares (Charpak et al., 1999, p. 50). Entendemos que tal situação tende a configurar um espaço de tensão e conflito entre a equipe e as mães, constituindo um campo aberto a intervenções psicanalíticas.

 

UMA EXPERIÊNCIA DE PSICANÁLISE APLICADA

O presente trabalho resulta de um projeto de extensão desenvolvido sob minha coordenação junto ao Programa Mãe Canguru de um hospital público em Natal, onde o método começara a ser aplicado em 1995, por iniciativa de duas pediatras da equipe do berçário, no momento em que estavam sendo implantados os primeiros leitos do que viria a ser uma UTI neonatal. O projeto de extensão, que durou aproximadamente um ano, teve início em fevereiro de 2001, a partir do pedido que me foi formulado pela pediatra da equipe daquele programa.

Esse pedido, que foi sendo depurado ao longo de três encontros dela comigo, consistia em que eu desenvolvesse um trabalho com as mães inseridas no Programa Mãe Canguru, para fazê-las entender a importância de os cuidados ao bebê serem feitos do modo correto, e, portanto, para que participassem de modo mais colaborativo nas atividades a que eram orientadas pela equipe. A doutora incluiu também um pedido de que eu contribuísse para a formação dos profissionais que atuavam na equipe do programa, prestando informações, ministrando cursos.

No decorrer daqueles encontros fui delimitando condições segundo as quais, e em resposta àqueles pedidos, eu tinha a oferecer uma escuta de orientação psicanalítica, em decorrência de minha formação, o que, aliás, já era de conhecimento deles. A realização dessa escuta, para a qual tinha como referência a ética da psicanálise, sistematizada na teoria por Lacan, deu-se, por um lado, em reuniões quinzenais com a equipe, coordenadas por mim, e, por outro lado, em reuniões semanais com o grupo de mães, conduzidas por duas colaboradoras, as quais eu acompanhava em supervisão.

Em nossa primeira reunião, as pessoas que integravam a equipe falaram de suas expectativas acerca de nossa contribuição, bem como de suas dificuldades no âmbito daquele trabalho, a maior parte delas situadas na relação com as mães. Contaram das mães que não colaboram, que não fazem os procedimentos conforme o que lhes é orientado e é certo, mães que não cuidam de seus bebês como deveriam, não os amamentam, não os colocam na posição canguru, mães que não sabem ou não querem ser mães, mães que fogem para suas casas, para seus homens, para seus outros filhos, abandonando o recém- nascido que tanto necessita delas. Ou seja, de certo modo, confirmaram o que já estava presente nos termos do pedido da pediatra.

Mas, além disso, uma queixa atravessava diversas falas, no sentido de que elas procuravam fazer de tudo para atender às reivindicações das mães, para satisfazer suas necessidades, mas estas, em troca, mostravam- se cada vez mais insatisfeitas, mais revoltadas e queixosas. Para aquelas pessoas, profissionais da equipe, isso constituía um motivo de frustração e desafiava sua capacidade de compreensão.

Na conta do que já haviam feito em benefício das mães, listavam: compra de maquiagem e de um aparelho de som portátil, a solicitação de duas refeições extras, realização de festas e comemorações de datas especiais, para tanto, organizando bazares e pedindo doações. Mas a única atividade de que aquelas mães participavam com inequívoco interesse, para espanto da equipe, era um curso de educação sexual, sobre métodos contraceptivos, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, etc.

Enquanto isso, na reunião com o grupo das mães, estas falavam de como se sentiam, que aquele lugar era uma prisão, já que eram impedidas de sair, ir a suas casas, visitar suas famílias. Uma dizendo que queria ver os filhos pequenos que tinha deixado em casa sem ter quem cuidasse deles, outra com receio de não encontrar mais o marido quando voltasse, outra alegando que tinha de trabalhar para dar de comer aos outros filhos... Ora se queixavam de uma determinada auxiliar de enfermagem que tinha sido grosseira, ou da médica que não explicava como estavam seus bebês, ora reclamavam das refeições, da falta do que fazer.

De um lado, na equipe, soavam queixas de que tudo se fazia para satisfazer essas mães, mas que elas não só não reconheciam, como ainda continuavam reclamando, se revoltando. Do outro lado, entre as mães, a queixa era de serem tratadas como prisioneiras, de que não tinham com que se distrair, de que não sabiam sequer se sairiam dali com seus filhos.

No campo da psicanálise, algumas articulações teóricas poderiam ser feitas no esforço de tornar inteligível e, portanto, transmissível essa nossa experiência. No entanto, para efeito deste trabalho, elegemos duas que se mostraram fecundas quanto ao que aqui gostaríamos de considerar. A primeira diz respeito ao que significa a maternidade em relação à feminilidade, e a segunda trata da demanda em relação ao desejo.

 

CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE MATERNIDADE E FEMINILIDADE

As questões que nos guiam inicialmente são: o que significa a maternidade? O que pode significar ser mãe para uma mulher?

Encontramos em Freud que ter um filho equivaleria a obter do homem o falo que lhe falta, como conseqüência de uma verdadeira feminilidade, já que ele procura fazer coincidir simetricamente o ser mulher ao ser homem. Deparando aí com um obstáculo, algo que resiste a seus esforços de teorização, ele mantém no lugar da feminilidade um enigma, algo que restaria sempre a decifrar (Freud, 1933).

Com Lacan, veremos a questão ser retomada em relação ao falta-aser, condição do humano, enquanto ser falante, por se constituir como sujeito ao significante. Em conseqüência do limite estrutural da cadeia significante, o sujeito é convocado a tomar posição na partilha dos sexos, nos termos da dialética do ter ou não ter o falo, único significante com que conta para inscrever a diferença sexual. Mas Lacan também assinala aí o que resiste ao significante, o real que não cessa de não se escrever, e que se põe no horizonte de gozo do ser sexuado (Lacan, 1972).

Aqui, a questão da feminilidade articula-se na intersecção de dois campos: o do significante e o do gozo, revelando onde esses campos se recobrem ou se disjuntam. Portanto, para o mesmo autor, trata-se de que posição o sujeito tomará na relação ao gozo, levando em conta que ele aí formula a bipartição de um gozo sexual, fálico, decorrente do significante, em relação ao gozo do Outro, que ele situa do lado feminino como um gozo suplemen tar, um mais gozar, impossível de significantizar1 (André, 1987).

É por encontrar-se situada em certa posição no campo de seu desejo inconsciente que uma mulher pode reencontrar num filho, embora de forma ilusória, o objeto de seu desejo. Sendo assim, “a criança ocupa primeiramente a posição daquilo que vem arrolhar a falta que causa o desejo: a criança faz de sua mãe uma mulher ‘plena’, uma mulher preenchida” (André, 1987, p. 192). Mas a idéia de completude não faz jus ao que se passa aí, “pois já neste primeiro tempo a relação mãe-criança é prenhe de conflitos, nem que sejam os conflitos internos à mãe” (pp. 192-3). Trata-se de um reencontro do sujeito feminino com seu próprio narcisismo, com o que se encontra concernido como objeto causa de seu desejo, desde sempre perdido. Tornar-se mãe seria, portanto, uma resposta possível, embora faltosa, à questão anterior de ser mulher.

Assim, é do lugar do falo em relação ao Outro primordial, do que apreende como o desejo desse Outro, que uma criança tem acesso a fundar-se como sujeito. Sendo o objeto a, o objeto causa do desejo, o conceito lacaniano que inscreve uma inexistência, pois o desejo é desejo de desejo e não de um objeto, objeto nenhum coincidirá com o que aí é visado, havendo sempre uma diferença, que deixa a desejar.

Podemos aqui articular que o filho desejado jamais coincide com o bebê que de fato nasce. O que, por outro lado, no mais das vezes, nem chega a se fazer notar, pois, sob o olhar da mãe, a criança real é quase que imediatamente (num tempo inapreensível) revestida da roupagem narcísica, investida de uma imagem fálica, representação fantasmática do desejo daquela. É nisso que apreende como representação do falo no olhar do Outro primordial (a mãe), que a criança irá se lançar, procurando estar onde calcula que esteja o desejo desse Outro. O filhote humano, diz Lacan, nasce numa condição de pré-maturidade, de insuficiência, que ele refere à inoperância dos instintos, no sentido de não garantirem o reconhecimento do objeto de sua necessidade. Este fato inaugura uma condição de total desamparo, dependência estrita a um Outro que signifique e responda com a ação específica às suas necessidades. Sendo os humanos seres de fala e a fala estando fundada na equivocação, resta que nada esteja dado de antemão, tudo tendo de ser construído a partir dos significantes que surgem no campo do Outro.

Remetemo-nos ao conceito de Outro, que encontramos articulado por Lacan como sendo a própria Linguagem, Tesouro do significante. “O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo o que vai poder presentificarse do sujeito, é o campo desse vivo em que o sujeito tem que aparecer” (Lacan, 1964, pp. 193-4).

Portanto, diante de um bebê que chora, apresenta-se a possibilidade de que a mãe sinta-se um pouco perdida sobre o que fazer para acalmá-lo. Há um saber faltoso que, diante do grito de um filho, opera dando-lhe o valor de apelo, transmutando-o em demanda, ao significantizá-lo. Recorrer a outrem, à própria mãe, a uma outra mulher, ao pediatra, etc. seriam recursos disponíveis na cultura, com que uma mulher poderia contar, para reencontrar-se com esse saber que nela opera como não sabido – saber do Inconsciente.

Interrogar-se, deixar-se marcar pelo grito do filho como apelo, seria conseqüência do que aí se atualiza de seu desejo, transmutado em demanda. Sendo assim, a condição da maternidade evoca em cada mulher certos efeitos de inadequação, de insuficiência, que seriam decorrentes da falta estrutural que incide aí, a falta de uma referência universal para o feminino.

“Ter um filho, portanto, consiste num ato que paradoxalmente situa o sujeito entre a confirmação da própria finitude e a possibilidade, embora ilusória, de imortalizar-se através dele” (Holanda, 2000, p. 86).

O que se passa, então, quando um inesperado incidente tem lugar por ocasião do nascimento de um bebê? Nascendo um bebê em condições precárias para a sobrevivência, por pré-maturidade, baixo peso ou outro motivo, o que torna necessária sua internação em uma UTI neonatal, configura-se uma situação que, para a mãe, promove efeitos de encontro com o Real, pela possibilidade iminente da morte de seu bebê. Tomamos aqui o Real, tal como introduzido por Lacan para designar o que se produz como resto da operação de inscrição do vivente no campo do simbólico, sendo também definido como o que não cessa de retornar como impossível de se escrever (Roudinesco & Plon, 1998).

Mas, para aquelas mulheres que encontramos na difícil situação de serem mães, mas não poderem ter seus filhos consigo, o que se põe em jogo? O que se passa no campo do seu desejo? Com que recursos simbólicos contarão para que esse Real lhes seja concernido? Essas são questões que só se poderiam articular no um-a-um da demanda de cada sujeito. Na situação por nós encontrada, as demandas daquelas mulheres soavam como estridentes gritos inaudíveis.

 

CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE A DEMANDA E O DESEJO

Comprometidas com o ideal de salvar a vida de cada bebê, as profissionais que compunham a equipe só conseguiam escutar as queixas e os pedidos daquelas mulheres no nível do que julgavam dever ter para dar. Dar mais conforto, dar informações e orienta ções que as tornassem mães adequadas, capazes de prestar os cuidados de que seus bebês necessitavam.

Paradoxalmente, a intervenção sustentada pela equipe de saúde, em nome da sobrevivência dos bebês, por estar comprometida no nível da demanda, falhava no ponto mesmo em que insistia em responder a ela. Ou seja, os membros da equipe acreditavam que o problema das mães era não saber como cuidar dos bebês e que, portanto, caberia a eles (da equipe) ensiná-las. Na mesma direção iam os esforços da equipe em antecipar e atender os anseios das “mães”, arranjar-lhes maquiagem, aparelho de som, organizar festas e comemorações. Mas, para as mães, essas respostas configuravam-se como engodo insuportável, na medida em que responder às demandas transitivas (demandas de algo), deixa velada a demanda intransitiva (demanda de amor) que através daquelas se articulava.

“A demanda poderia se formular pela frase me dá, com toda a conotação impositiva que essa fórmula implica. [...] trata-se efetivamente de demanda de amor por onde circula o desejo como desejo de outra coisa” (Quinet, 2000, p. 96).

Retomando a fórmula lacaniana pela qual amar é dar o que não se tem, o que entendemos na via de que amar é demandar amor, e demandar amor é deixar a entrever a própria falta. O paradoxo aí implicado é que, embora o sujeito, por sua demanda, dirija-se a um Outro que tem para dar, encontrar alguém que responda desse lugar, ou seja, que acredite ter, pode dar lugar à angús tia, já que o sujeito identifica-se no ponto de falta do Outro (Lacan, 1958).

Portanto, quanto maior o esforço de responder em termos do que se tem, mais tende a insistir o sujeito em sua demanda, denunciando o engodo aí implicado e reivindicando a permanência do desejo como tal que, por definição, é insatisfeito, já que é como desejo de desejo que se funda, portanto, puro deslizamento metonímico.

Havia uma situação instalada de muita tensão, um campo de forças, em que se opunham a equipe, de um lado, e as mães, do outro, tendo como “pomos da discórdia” os bebês internos na UTI. Esta configuração teria chegado a dar lugar a cenas de “batebocas”, “verdadeiros barracos”, conforme nos disseram, em reunião da equipe, a médica e a enfermeira envolvidas no episódio com algumas mães.

Em nossa escuta à equipe, procurávamos não responder à demanda, provocando questionamentos ali onde nos demandavam um saber, de modo até certo ponto análogo à direção que imprimimos à escuta em entrevistas preliminares, quando visamos a entrada em análise. Procurávamos convocar a explicitação dos mitos, das fantasias compartilhadas de modo tácito, para, pondo-as em questão, sustentar uma abertura, um ponto de falta no saber que se pretendia sem furos.

Assim, foram-se abrindo outros sentidos, e, por exemplo, pudemos escutar para além da exigência contínua e intransigente dirigida àquelas mulheres, as mães cangurus, uma exigência intransigente também das profissionais para consigo mesmas, com os próprios filhos, com a vida, com o trabalho.

A presença da morte no cotidiano daquela unidade pesava densamente sobre cada pessoa que ali se encontrava. Uma ameaça concreta, quase despudorada, de um desnudamento do real, da libra de carne de que, em última instância, somos feitos, embora só possamos sê-lo como efeito de que esse real se perca, caia, sob a determinação iniludível do significante.

Falava-se dessas mortes, do ideal de tirar todos os bebês com vida; da desumana condição enfrentada por uma médica ao verse diante da exigência de decidir “como se fosse Deus” quem iria viver e quem iria morrer, quando, havendo dois bebês em situação grave, dispunha de apenas um leito na UTI. Falava-se ainda da terrível incumbência de dar a uma mãe a notícia do óbito de seu bebê, que muitas vezes “sobrava” para as auxiliares de enfermagem que estavam de plantão naquele momento.

Admitir de algum modo o insuportável, tratá-lo pela fala diante de outrem a quem se suponha um saber, tem efeitos sobre o real, conforme sabemos desde os primórdios da psicanálise, com Freud, efeitos de alívio sobre o sofrimento.

Sustentar uma posição na escuta marcada por uma dimensão de não saber, abstendo-nos de julgar e orientar, possibilitou o atravessamento de algumas situações de difícil manejo. Situações em que nos víamos convocadas a tomar partido, a dizer quem estava certo ou errado, com quem estava a razão. Ou seja, exatamente por não lhes respondermos do lugar em que nos demandavam é que podiam ir construindo outras saídas para os impasses em que se haviam metido.

A certa altura, numa reunião com a equipe, pedi que as pessoas falassem sobre como imaginavam que se sentiam aquelas mulheres que ali estavam como mães canguru, o que pensavam que as fazia agir tal como me haviam descrito. Aconteceu, então, uma produção interessante, pois, em algumas falas, sinalizava-se uma possibilidade de atravessar essa oposição imaginária em que se encontravam. Alguém admitiu que seria muito difícil ficar em situação tão precária e por tanto tempo. Houve quem se lembrasse de ter ficado extremamente irritada nos meses da licença maternidade, por permanecer tanto tempo em casa o dia inteiro “lidando com choro, peito e cocô” e ainda se sentindo horrorosa, mesmo estando no conforto de sua casa, com o apoio do marido e da família.

A convocação a que falassem do que lhes ocorria, a cada vez, nas reuniões com a equipe, bem como nos encontros com as mães, foi possibilitando um certo deslizamento dos sentidos, ou da alegada falta de sentido em que se haviam fixado. Ao introduzir uma questão em que era demandado um saber, sustentando um ponto de abertura, uma falta irredutível em que se idealizava a completude, penso ter contribuído para um alívio em relação ao mal-estar que ali se instalara.

Essa constatação tem o valor de nos apontar uma direção ética para uma intervenção psicanalítica fora do setting analítico, em que o stricto sensu de seu ato pode ter lugar. Por setting, aludimos às condições da análise, propostas por Freud e retomadas por Lacan, as quais encontram-se muito claramente explicitadas por Quinet (1991), em As 4 + 1 condições da análise.

Trata-se, na medida do possível, de um tratamento do real pelo simbólico a ser feito pelos indivíduos ali implicados, apostando nos efeitos subjetivantes que possam daí decorrer. Referimonos aqui ao efeito de alívio de gozo resultante da fala, tal como se encontra trabalhado em Tratar o impossível: A função da fala na psicanálise (Bernardes, 2003).

Pensamos que o que pode fazer diferença é a sustentação de uma posição discursiva que, não se deixando enganar pela demanda – não reivindicando diante do outro o saber –, introduz uma outra lógica, viabiliza uma outra modalidade de relação com o coletivo, contrária à dominação, a qual se encontra, embora de modo velado, nos mais bem-intencionados projetos de ajuda humanitária.

Para concluir, constatamos que, embora o título deste trabalho sugira que a maternidade ficaria em questão, enfrentando dificuldades para ser exercida, como decorrência da necessidade de internação do bebê numa UTI neonatal, a experiência psicanalítica leva-nos a considerar que ser mãe envolve questões que seriam anteriores e decorrentes do que resta de enigmático em relação à feminilidade. Portanto, haveria uma certa dimensão de mal-estar implicada no ato de tornar-se mãe, como questão a ser enfrentada por cada mulher, a cada vez, diante de cada filho.

Sendo assim, o fato de um bebê nascer prematuro ou com outros problemas que exijam tratamento em UTI não determina per si uma dificuldade em relação à maternidade, mas conjuga-se, para cada mulher, com as questões concernidas em sua fantasia fundamental, e com o que decorre do modo pelo qual enfrentou a assunção de seu sexo, como sujeito feminino.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Suely Alencar Rocha de Holanda
suehol@terra.com.br

Recebido em março/2004
Aceito em junho/2004

 

 

NOTA

1 Embora não exista em português, o termo ‘significantizar’ é usado aqui para enfatizar o sentido de passagem pelas vias do significante
I Psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pelo IP-USP, professora do Dep. de Psicologia da UFRN.

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