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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.9 n.16 São Paulo jun. 2004

 

ARTIGOS

A investigação psicológica sobre a moralidade. Anotações de um projeto

 

Psychological research on morality. Notes on a project

 

 

Orlando Calo*I; Nidia Brohman(Trad.)

* Universidade Nacional de Mar del Plata

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta um projeto de pesquisa em curso sobre a constituição da moralidade. Sintetizam-se duas etapas distintas do processo: a) primeiro se indagou sobre a noção que as crianças têm da responsabilidade, podendo observar-se a maneira pela qual evoluem desde uma perspectiva objetiva a uma subjetiva, mas verificando também a aparição precoce de reflexões infantis que mostram sua compreensão da responsabilidade sobre as conseqüências não desejadas, mas, embora involuntariamente, causadas; b) na segunda etapa, atualmente em processo, aborda-se, pela investigação psicológica empírica, a problemática da liberdade dos sujeitos em relação à norma. A relação do eu consigo mesmo, tal como é considerada por Foucault, e as operações de alienação e separação, nos termos de Lacan, são tomadas como modelos para a compreensão dos processos que se estudam.

Palavras chave: Pesquisa, Desenvolvimento, Moral, Responsabilidade, Liberdade.


ABSTRACT

The article discusses a research project that is presently being carried out on the establishment of morality. Two separate phases are briefly described: a) in the first place an examination of the notion that children have of responsibility was carried out. The evolution of a subjective to an objective point of view was observed, while finding that the early manifestations of infantile thoughts show a comprehension of responsibility in undesirable consequences, even when caused involuntarily; b) in a second phase, in progress at the present, the question of the subject’s freedom in relation to the norm is approached by means of empirical psychological research. The relation of the ego with itself, as described by Foucault, and the alienation/separation operation, as considered in Lacan’s terms, are the models used to understand these processes.

Keywords: Research, Moral development, Responsibility, Freedom.


 

 

E nossa finalidade neste artigo apresentar o caminho que estamos percorrendo em um projeto de pesquisa sobre a constitução da moralidade, desenvolvido na Faculdade de Psicologia da Universidade de Mar del Plata.

Para isso, seguiremos a seguinte ordem: exporemos em primeiro lugar as circunstâncias particulares que fundamentam nosso interesse no tema; em seguida sintetizaremos as tendências presentes na pesquisa psicológica da moralidade que enquadram nossa busca; em terceiro lugar, apresentaremos os passos já dados em nosso caminho e uma resenha dos aspectos que nos têm parecido mais relevantes; continuaremos com uma síntese dos aspectos que estamos considerando atualmente; e concluiremos com algumas reflexões.

 

OS ANTECEDENTES

Como introdução, uma breve referência a nossos antecedentes permitirá compreender a direção que nos guia nesta investigação. Há já mais de dez anos, na área de Psicologia da Universidade de Mar del Plata, temos a nosso cargo o ensino da Deontologia. A tarefa não é simples, particularmente se pensamos, como objetivo principal, na promoção nos futuros profissionais de uma posição ética ante o exercício profissional, o que supõe uma relação crítica, nem de submissão nem de indiferença, com o corpus deontológico que regula a prática. O exercício profissional não pode existir sem códigos, mas a própria profissão se desvitalizaria sem a interação com os profissionais que, com sua prática e sua crítica, atualizam-na a cada vez (Calo, 2002b).

Vemos a relação do profissional com o código como um cenário delimitado no qual se representa uma das múltiplas versões do núcleo central de toda reflexão em torno do drama da ética: o conflito eterno entre o que devemos e o que desejamos fazer, a fonte do mal-estar na civilização.

Pois bem, a particularidade que a psicologia tem – que compartilha com alguns outros poucos campos da sabedoria –, de ser tanto uma ciência como uma profissão, implica que, como profissão, é objeto da deontologia, e por isso os psicólogos têm de subordinar-se a normas ético-deontológicas; ao mesmo tempo, como ciência, busca dar explicação dos motivos pelos quais os sujeitos, incluídos entre eles os profissionais, acatam ou não as normas que os afetam. Em conseqüência, a dimensão científica da psicologia pode oferecer ferramentas conceituais e procedimentais úteis à dimensão deontológica, contribuindo assim para fundamentar a formação dos psicólogos enquanto profissionais.

Depreende-se do exposto que nossa investigação parte de propósitos manifestos vinculados à finalidade mediata de fornecer recursos que contribuam para uma melhor formação dos profissionais no aspecto ético-deontológico. E essa contribuição, pelo fato de mostrar-se possível, pode ser aproveitada de maneira similar em todos os níveis e áreas educativas, já que os processos psicológicos que participam no posicionamento ético são basicamente os mesmos em todos os casos, ressalvando-se as particularidades próprias de cada etapa maturativa ou dos diferentes papéis sociais de que se trata em cada ocasião.

Sinteticamente, então, a busca de conhecimentos que dêem maior fundamento à formação dos profissionais tem-nos conduzido a aprofundar a investigação dos processos psicológicos que operam nos modos de relações que as pessoas estabelecem com as normas. A investigação psicológica destas relações supõe proximidade, mas não identificação, com as abordagens filosóficas e sociais da temática.

 

A INVESTIGAÇÃO PSICOLÓGICA DA MORALIDADE

A temática que propusemos contém aspectos relevantes que a tradição investigativa psicológica tende a manter dissociados, de certa maneira, como continuidade de uma dissociação observável também nas abordagens filosóficas.

Por um lado, linhas que, de acordo com certa filiação kantiana, rastreiam as respostas no âmbito das operações cognitivas e segundo perspectivas que situam na reflexão racional e nas capacidades argumentativas críticas o ponto de chegada ideal do que se propõe como desenvolvimento moral. Estes trabalhos, de orientação cognitivo-evolutiva, consideram o desenvolvimento moral em sua relação com o desenvolvimento das estruturas cognitivas – e para isso lançam mão de desenhos de pesquisa que, no entanto, buscam indagar principalmente a respeito das argumentações com que os sujeitos justificam suas preferências morais –, e mostram-se úteis para dar conta do desenvolvimento do raciocínio moral e dos fundamentos dos juízos morais, mas não tanto para explicar a ação moral concreta. Nesta linha, as primeiras investigações pertencem a Piaget (1960, 1971) e serviram de inspiração e guia a muitos outros autores, entre os quais se destaca particularmente Kohlberg (1992). Segundo nosso critério, cabe também uma menção especial para Turiel (1984), cujas observações sobre as diferenças entre os níveis moral e convencional supõem uma evolução simples da heteronomia à autonomia.

Por outro lado, como uma discussão interna à investigação do desenvolvimento moral, merecem consideração especial as observações iniciadas por Carol Gilligan. Esta pesquisadora começou seus trabalhos na área das indagações de Kohlberg, mas, ao notar que a direção com que trabalhava acarretava um viés que tinha como efeito desmerecer as produções femininas diante das masculinas, redesenhou suas pesquisas adotando pressupostos diferentes. Assim, pôde deixar claro que, caso se estabeleçam como critérios-guia a responsabilidade e o cuidado pelo outro, em lugar da justiça e da imparcialidade, a valoração moral pode ser muito diferente da que resultava dos estudos de Kohlberg, a sensibilidade ocupando então um lugar preferencial, com a racionalidade em segundo plano.

Numa terceira perspectiva, dirigir o olhar ao tema do desejo com relação à norma leva-nos inevitavelmente às conceituações psicanalíticas. Nelas, pode-se diferenciar uma perspectiva, que poderíamos denominar filogenética, em que a moralidade é pensada como resultado da limitação dos apetites individuais em função da manutenção da vida em sociedade, e uma perspectiva ontogenética, que explica a formação das instâncias morais em cada sujeito como resultado do atravessamento do complexo edipiano; estas perspectivas têm sido desenvolvidas por diferentes autores, mas as bases de ambas podem encontrar-se já fortemente explicitadas na obra de Freud, em textos como Totem e tabu ou O mal-estar na civilização, para a primeira perspectiva, e O ego e o id ou A dissolução do complexo de Édipo, para a descrição do processo na ontogênese. A partir da pluma de Lacan, o estudo do vínculo do desejo com a lei mostra que a relação do sujeito com a norma não se pode reduzir a uma abordagem em termos de desenvolvimento, já que por essa via ofusca-se o fato fundamental de que a presença dessa relação é constitutiva do sujeito.

Uma análise cuidadosa da questão geral mostra que as diferenças entre as perspectivas podem ser analisadas segundo dois planos opositivos: por um lado, algumas das teorias tendem a pôr a ênfase sobre os aspectos cognitivos, enquanto outras o fazem sobre o desejo e/ou a sensibilidade. Neste plano resulta factível situar as posições de Gilligan mais próximo das da psicanálise que das de Kohlberg, ao menos na manifesta consideração pelas situações particulares e contextualizadas, diferentemente de uma maior atenção à universalidade e à reflexão abstrata por parte do olhar kohlberguiano.

Por outro lado, pode-se analisar a diferença que resulta de dirigir a atenção à dimensão temporal. Vêse então que algumas das perspectivas são predominantemente evolucionistas e dirigem seu esforço explicativo à análise do desenvolvimento moral, independentemente de ser esta afirmada no plano cognitivo ou no afetivo, e nelas o suposto genético implica um processo cronológico, desdobrado temporalmente, enquanto outras põem o acento num plano estrutural e entendem a moralidade – talvez se devesse dizer aqui eticidade1 – como efeito de uma posição, mais do que de um progresso, e a vêem expressar-se mais no imediato do ato que no processo deliberativo. Segundo esse plano temporal, alguns desenvolvimentos psicanalíticos acompanham as propostas cognitivo-evolutivas e o pensamento de Gilligan, enquanto outras posturas psicanalíticas assentam-se mais numa leitura estruturalista e criticam as teorias psicogenéticas.

No caso de nosso projeto de investigação, uma primeira etapa de trabalho adotou critérios elaborados nos pensamentos de Piaget e de Kohlberg, enquanto atualmente, após algumas reflexões críticas que esse percurso já mereceu de nós (Calo, 2003b; Álvarez, 2003), avançamos em direção a um marco teórico que tem como ponto de perspectiva a consideração da relação do sujeito com a norma como constitutiva da subjetividade.

 

NOSSOS PRIMEIROS PASSOS:

Alonso (2002) observa que, apesar das diferenças nos marcos conceituais com que os representantes das diversas correntes definem suas investigações e interpretam os dados, todos eles abordam experiências nas quais se podem discriminar três dimensões da moralidade: a valorização que os sujeitos fazem da norma, a concepção que têm da responsabilidade e o comportamento moral concreto.

Essas três dimensões e seus vínculos com a obediência à autoridade, com a consideração da intenção nos atos e com a experiência concreta da relação com pares foram temas que nos propusemos a investigar empiricamente em nosso marco geográfico e cultural.

Com esse propósito, nos últimos três anos desenvolvemos uma investigação empírica que tomava alguns supostos teóricos e recursos metodológicos originários das investigações sobre moralidade de Piaget, de Kohlberg, de Turiel e de Selman. Trabalhamos com uma amostra de 112 crianças de ambos os sexos, entre 6 e 9 anos, pertencentes a sete estabelecimentos educativos, dos quais quatro eram estaduais e três de gestão particular, um destes últimos de orientação religiosa. Guiava- nos na eleição das escolas a expectativa de cobrir com a amostra selecionada diferentes níveis sociais, econômicos e culturais. Não nos estenderemos aqui sobre os critérios e desenho metodológico, os quais já foram expostos em outros artigos (Calo & Iacovella, 2003; Calo, 2002a e 2003a).

Do conjunto de dados coletados e processados, interessa-nos nesta ocasião referir-nos aos que estão vinculados com a noção que as crianças têm da responsabilidade. Por ser o que levaremos em consideração em nossos próximos passos.

Essa noção foi questionada por meio do recurso a provas de dilemas. As provas foram concebidas considerando como supostos os estudos sobre o tema feitos por Piaget e continuadores. As antecipações hipotéticas com as quais iniciamos nossa tarefa derivavam também das mesmas observações, esperando-se conseqüentemente relações similares entre a idade cronológica das crianças e suas preferências por critérios de responsabilidade objetiva ou subjetiva2. Pode-se esperar que as crianças mais novas mantenham-se numa posição de responsabilidade objetiva, entendendo que o dano é mais passível de punição quanto mais importante é o bem que sofre o dano, enquanto as crianças mais velhas, presumivelmente depois dos 9 anos, deveriam subordinar a materialidade do bem danificado à intencionalidade do agente causador do dano. Segundo este último critério, mereceria sanção mais severa quem tives se cometido o dano intencionalmente do que quem o praticou involuntariamente, tornando-se assim subjetiva a responsabilidade.

A população considerada pertence, pela idade cronológica, à etapa de realismo moral. Nesta etapa, as crianças tendem a considerar que os deveres e valores são de imposição obrigatória, com total independência da consciência e circunstâncias do sujeito. As notas mais destacadas do realismo moral são o caráter heterônomo do dever, a definição do bem como obediência às normas adultas, a necessidade de observar as normas ao pé da letra, e não em seu espírito, e, por último, a concepção objetiva da responsabilidade, que impede avaliar os atos em função da intenção e o faz de acordo com suas conseqüências materiais (Rovira & Martín, 1999).

Nossos resultados coincidiram em geral com o que supúnhamos inicialmente com base na idade das crianças da amostra. É assim que:

a) a intencionalidade como fator determinante foi levada em conta por poucas crianças, o que se podia esperar, já que a ampla maioria das que foram entrevistadas tinha menos de 9 anos de idade;

b) na maioria dos casos mantiveram sem duvidar sua convicção de que o maior castigo tem de ser dado a quem danifica o bem de maior custo, materialmente falando;

c) algumas crianças mostravam-se em transição, com respostas ambivalentes ou oscilantes entre uma e outra posição com relação à responsabilidade.

Além desses resultados gerais, porém, algumas crianças foram capazes de argumentar em direção à formulação de uma responsabilidade que não fica bem representada pela divisião entre objetiva e subjetiva. Estas argumentações despertaram nosso interesse porque “resistiam” a seu fácil enquadramento. Tratava-se de respostas em que as crianças mostravam reconhecer a ausência da intencionalidade do agente, mas nem por isso o consideravam isento de responsabilidade, já que, argumentavam, o dano foi causado por uma ação que se realizou sem cuidado pelas possíveis conseqüências.

Essas respostas têm valor especial porque expressam uma diferenciação precoce no interior da responsabilidade subjetiva. Não só manifestam a capacidade de discernir a importância da intenção, mas também vão além, avançam em direção à compreensão ética da responsabilidade sobre as conseqüências não desejadas de nossos atos, sendo adequado para sua compreensão recorrer à diferença que, em termos de direito, se faz entre o dolo e a culpa. A divisão formulada por Piaget entre responsabilidade objetiva e responsabilidade subjetiva mostrava-se então insuficiente para nós, e por isso para o processamento dos dados devemos incluir uma subdivisão que contemple estas respostas.

Apesar de o número de crianças que deram esse tipo de respostas ser quase irrelevante em termos estatísticos (só 6 casos, sobre o total de 112), sua importância, considerada qualitativamente, reside em que elas constituíram para nós um descobrimento empírico que alimentou a discussão crítica dos supostos teóricos e metodológicos do projeto.

Efetivamente, a maneira de valorizar a responsabilidade nos casos referidos expressa a necessidade de considerar os detalhes do contexto e inclui a idéia de que os sujeitos têm de prever as conseqüências de seus atos (por exemplo, opinando sobre o relato que a pesquisadora do projeto lhe fizera, segundo o qual algumas crianças, brincando na sala de aula, haviam quebrado acidentalmente um relógio que se encontrava sobre a escrivaninha; Antonella, de 9 anos, diz que “não deveriam brincar nem correr dentro da sala de aula, são culpados porque não deveriam ter corrido dentro da sala de aula”); ao mesmo tempo, outras das respostas exigem a responsabilidade do adulto no cuidado pelas crianças (“a professora não o quer repreender porque não foi proposital, mas teria de lhe dizer que não brincasse de modo tão estouvado”, diz Ignacio, de 7anos e 6 meses; enquanto Micaela, de 7 anos e 11 meses, opina que a professora “tem de lhe dizer que tenha mais cuidado, evitando brincar tão perto da escrivaninha”).

Perante respostas como as descritas mostra-se válido reconsiderar linhas teóricas que destacam a dimensão do particular e da relação intersubjetiva enquadradas, como podem ser a ética do cuidado e da responsabilidade de Carol Gilligan (1985), no âmbito psicológico, ou perspectivas comunitaristas, como a de Mac- Intyre (1987), no âmbito filosófico.

A proposta de Kohlberg, por outro lado, sustenta uma posição que se centra na justiça como critério de ordenamento da evolução da moralidade e é concebida como efeito de um progresso cognitivo que vai de níveis mais heterônomos, com processos de raciocínio concreto associados ao contexto e o particular, até o nível mais desenvolvido, caracterizado por um pensamento formal, neutro e universalista. Nesta perspectiva, pode-se ver uma insuficiente diferenciação entre os descobrimentos empíricos, a reconstrução teórica e a prescrição moral, indiferenciação habitual nas investigações do desenvolvimento moral e que pode levar a se justificar a prescrição sobre a base de recomendações que, sendo construções valorativamente orientadas, propõemse como objetivas e neutras. Essa interpretação pode ser feita do estádio nº 6 do nível pós-convencional, já que, como assinala Canal (2003), tem um sentido filosófico mais do que psicológico e, ao formulá-lo como estádio final ao qual se inclinaria todo ser humano, se o instrumenta para legitimar assim a direção do desenvolvimento moral a que se propõe.

Em contraposição, outras linhas de pensamento não consideram que o desenvolvimento moral consista num progresso da racionalidade, com um suposto incremento da neutralidade e objetividade nas análises, e sim em um aumento da sensibilidade perante as necessidades dos outros membros da esfera de relações (Rorty, Hoffnung statt Erkenntnis. Eine Einführung in die pragmatische Philosophie, 1994, citado em Canal, 2003). Para esta perspectiva, o desenvolvimento entende-se em termos de reformulação das pressuposições próprias de uma comunidade histórica particular e, em conseqüência, não se poderia dispor de critérios externos válidos para cada momento histórico ou para qualquer idiossincrasia.

 

NOSSOS PASSOS DE HOJE

As tendências investigativas em psicologia apresentam em geral seus estudos sobre moralidade – seja em termos de desenvolvimento ou de aquisição – convergindo com as explicações sobre a constituição do psiquismo, mas não se reduzindo a esses processos. Diferentemente disto, a hipótese com que trabalhamos afirma que as posições éticas dos sujeitos não resultam apenas de processos cognitivos nem de fatores independentes dos de sua constituição subjetiva, mas sim implicam uma continuidade dos mesmos processos constitutivos, expressados em diferentes níveis de análise.

Ao referir-nos anteriormente a nossas motivações para a investigação da moralidade, sustentamos que o vínculo do profissional com o código é um dos cenários em que se desdobra o conflito entre o que devemos e o que desejamos. Acrescentamos agora que pensamos tal conflito como reedição, para cada sujeito, de sua relação constitutiva com o Outro, segundo as duas operações que Lacan denominou alienação e separação.

Por ocasião de um congresso sobre o pensamento de Foucault (Calo, 1999), pudemos articular os pressupostos teóricos que nos possibilitam hoje avançar em direção a uma leitura do fenômeno moral mais completa que a que se reduz à valorização da responsabilidade. O caminho da ética, enquanto relação com um mesmo (Foucault, 1996), constitui uma via regia de afirmação de si, de subjetivação moral, e permite que o sujeito possa separar-se dos lugares nos quais é confinado pelas práticas objetivantes3, tanto epistemológicas como divisórias. O trabalho sobre si mesmo que constitui a ética só é possível com base no fato de que a determinação procedente dos discursos da sabedoria e do poder não é absoluta. Ao contrário, se essa determinação fosse absoluta, o sujeito estaria constrangido a ser aí, no lugar em que as técnicas de dominação o objetivam. Mas, como assinala Mallea (1992), isto é precisamente o que Foucault nega, já que

“todo sujeito capturado na diagramação dos desígnios estratégicos dos dispositivos do poder pode achar as circunstâncias de exceção que lhe permitem afirmar singularmente sua vontade. Reinstalando-se na cena, os indivíduos já não serão meramente os agentes de uma norma obedecida, mas sim reclamarão o direito de escolher-se a si mesmos como termos de sua intencionalidade moral”.

As maneiras de objetivação, tanto epistemológicas como divisórias, se nos apresentam como homologáveis à conceituação lacaniana do Outro, especialmente no modo pelo qual o Outro é concebido no Seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ou seja, como termo de oposição dialética ao sujeito no interior das duas operações essenciais: a alienação e a separação.

Tanto a separação (como operação de produção de sujeito) como a ética (entendida como constitutiva do sujeito moral por meio da relação do eu consigo mesmo) assentam-se sobre um fato estrutural: o campo das determinações é incompleto, a determinação não é absoluta. Isto permite ao sujeito moral constituir- se nos resquícios que as práticas objetivantes deixam e está presente também sob a forma de castração do Outro na constituição subjetiva, tal como se a entende desde a psicanálise.

A partir dessas reformulações, pensamos que a clássica relação entre liberdade e responsabilidade pode ser reinterpretada. Se considerarmos a liberdade tal como é pensada desde Kant, não a veremos em oposição à responsabilidade, mas sim, pelo contrário, esta última se nos apresentará como realização da primeira. Em vez disto, entendemos que a relação entre liberdade e responsabilidade pode ser considerada como uma das maneiras em que se atualiza a relação do sujeito com o Outro, com o qual o par que formam conserva sempre uma tensão não redutível a um só dos termos.

As diferentes formas de responsabilidade representariam, inicialmente, os modos pelos quais o sujeito adapta-se ao Outro, incluindo tanto uma posição subjetiva (que implica o sujeito responder à demanda das instituições, ocupando o lugar que se espera dele), como uma dimensão cognitivo-evolutiva, que permite à conformação à regra ir alcançando ajustes cada vez mais adequados, por meio de mecanismos de acomodação.

Por outro lado, mais em consonância com a idéia de ética como relação consigo mesmo (Foucault, 1996), e relacionada com o pólo da liberdade da tensão referida, consideramos a execução de práticas do sujeito que supõem uma disposição de resistência diante das práticas discursivas objetivantes uma afirmação de si. Estas práticas também dão conta de uma posição subjetiva, mas desta vez, mais do que de acomodação, são de questionamento, de oposição à demanda.

 

REFLEXÕES FINAIS

Com a intenção de oferecer recursos frutíferos à formação deontológica dos psicólogos, estamos levando adiante uma investigação dos processos psicológicos que participam na determinação dos modos em que os sujeitos atuam em relação às normas. Isto nos tem levado a indagar, em primeiro lugar, da consideração que as crianças têm da responsabilidade, podendo observar como evoluem desde uma perspectiva objetiva a uma perspectiva subjetiva da responsabilidade, mas focalizando também a aparição precoce de reflexões infantis que mostram sua compreensão da responsabilidade sobre as conseqüências não desejadas, mas, embora involuntariamente, causadas. Numa segunda etapa, atualmente em processo, estamos decididos a abordar pela investigação empírica em psicologia a problemática da liberdade dos sujeitos em relação à norma. Entendemos que a relação entre responsabilidade e liberdade expressa uma tensão subjetiva que é, em cada ocasião, a reedição dos processos constitutivos de subjetividade.

Paul Ricoeur (em “La raison pratique”, 1979, citado em Cragnolini, 1990) sintetiza isso magistralmente ao sustentar que a razão prática é “o conjunto de medidas tomadas pelos indivíduos para preservar ou restaurar a dialética recíproca da liberdade e as instituições, fora do qual não existe ação sensata”.

Pensamos que o par liberdade e instituições expõe na dimensão social a mesma tensão que, na dimensão subjetiva, apresentase nas operações entre alienação e separação.

A integração das duas tendências não parece atingir níveis de resolução, nem maturativos nem dialéticos, que teriam como ponto de chegada a integração madura do sujeito à realidade, a objetividade, a dissolução do mal-estar na civilização; constitui, mais que isso, soluções de compromisso que sintetizam em cada caso as particularidades da história do sujeito, da relação que teve com quem assumiu para ele os papéis de transmissão cultural: os pais, a escola, as diferentes instituições que determinaram sua inclusão no mundo social.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Orlando Calo
ocalo@mdp.edu.ar

Recebido em dezembro/2003
Aceito em abril/2004

 

 

NOTAS

1 Enquanto moralidade refere-se aos costumes, ao esperável de acordo com o código, eticidade inclui a implicação subjetiva em relação a esse código.
2 Entende-se como responsabilidade objetiva aquela na qual se avalia a gravidade da falta segundo a apreciação do dano causado ao objeto, enquanto na responsabilidade subjetiva a materialidade do dano torna-se secundária ao tomar-se como critério principal a consideração da intencionalidade do agente do dano.
3 Objetivante, por oposição a subjetivante. Três práticas participam da produção do sujeito: as epistêmicas, as divisórias e a ética. Para as duas primeiras o sujeito é um efeito exterior a elas mesmas, enquanto na ética o sujeito trabalha sobre si, tem-se a si mesmo como fim; esta diferença permite dizer que para as primeiras o sujeito é objeto de sua produção, enquanto a ética é autoconstrução. As duas primeiras são então objetivantes, enquanto a ética é propriamente subjetivante.
I Professor titular de Deontologia Psicológica e Epistemologia da Psicologia na Universidade Nacional de Mar del Plata, da qual é diretor de Projetos de Investigação e Extensão Universitária sobre Ética e Deontologia.

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