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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.9 n.16 São Paulo jun. 2004

 

ARTIGOS

Psicanálise e inclusão escolar: direito ou sintoma?

 

Psychoanalysis and school inclusion: rigths or symptom?

 

 

Rinaldo VoltoliniI

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A psicanálise na questão da inclusão escolar põe em primeiro plano as condições subjetivas, enquanto o discurso jurídico tenta delimitar as condições objetivas para incluir. Como articular estas duas dimensões?

Palavras chave: Direito, Lugar de exceção, Inclusão.


ABSTRACT

Psychoanalysis in the question of school inclusion puts subjective conditions first, while the juridical discourse tries to delimit the objective conditions to include. How can these two dimensions be articulated?

Keywords: Rights, Excepted, Position, Inclusion.


 

 

“Coloquemos isso: uma das dimensões constitutivas de nossa atualidade é a
tentativa de tratar em termos jurídicos todos os problemas da cidade”
Chemama, 2000

 

Podemos reconhecer em Maud Mannoni e sua experiência em Boneuil um pioneirismo em termos de política inclusiva na educação.

Talvez de maneira alheia a sua vontade, acabou representando uma das faces do movimento antipsiquiátrico destinado a tratar o laço da exclusão que a sociedade faz modernamente com o louco por um ato dirigido diretamente às instituições feitas para dele cuidar.

Se dizemos que talvez tenha sido à revelia que ela foi vista naquele papel, é que não é certo que ela mesma consentisse em ver seu trabalho posto sob a rubrica do movimento antipsiquiátrico.

Por um lado sim, já que se inscrevia de bom grado na tradição que via em qualquer proposta técnica de tratamento ao louco uma manifestação de mecanismo de controle social. É bem por isso que o ponto fundamental de sua proposta, e é mesmo por onde ela começa, é a suspensão dos chamados banhos de tratamento, tão comuns com essas crianças. Assim como sua conhecida posição diante da psicanálise nesse projeto: participa da explosão da instituição, mas nunca como técnica de tratamento.

Por outro lado não, já que se podia perceber que o movimento antipsiquiátrico sempre careceu de uma doutrina teórica. Caracterizava- se mais por uma empolgação baseada na vontade de liberdade e luta por direitos do que propriamente por uma reflexão acerca da condição subjetiva daqueles que eram os assim chamados loucos. Tanto que tal movimento perdeu bastante seu impulso inicial uma vez que teve de aprender a lidar com as contradições que apareceram a partir de suas intervenções.

O interessante, contudo, é que Mannoni nunca pretendeu erigir sua iniciativa em política pública, preferindo dar cada passo a partir do que se estabelecia do passo anterior. Ou seja, evoluía seu trabalho por elaboração.

Chegou até mesmo a admitir, preferindo a reflexão à empolgação, que uma certa dose de marginalidade em relação ao poder público era uma condição favorável aos bons resultados do trabalho.

O que hoje se apresenta como inclusão escolar teve origem e evolução diferentes. Surge como política pública cujo afã seria o de garantir os direitos dessas pessoas à escolarização.

E isso porque se percebeu que a tendência social de exclusão do deficiente e do louco passava também, como não poderia deixar de ser, pela instituição escolar. Aquela em que já havia sido apontada a vocação segregacionista a propósito dos pobres, agora recebia também o impacto da crítica de segregação aos loucos e diferentes.

As vozes que sempre se levantam numa sociedade democrática a favor das minorias tinham também neste caso conseguido estabelecer um compromisso das instituições com os excluídos e, com isso, vencido mais uma batalha na guerra contra a desigualdade social.

Uma vez reconhecido o direito, trata-se daí para a frente de construir os recursos para a viabilização do projeto em questão.

A extensão da proposta (já que virou uma política pública) indica a ênfase no tratamento jurídico da questão. Trata-se de legislar, estabelecer limites e especificações sobre um dado assunto que envolve um laço entre os indivíduos. E esse legislar deve prescrever princípios gerais, normativos, e não flexíveis, às idiossincrasias.

É assim que se combate A Exclusão, e não esta ou aquela exclusão.

A imaginarização da questão fomentada a partir dessa decisão não faria com que fôssemos para cada caso particular com um inimigo fixo?

Nada impede, em princípio, que se possa partir da lei, mas tomando cada caso particular considerado em sua particularidade, no entanto, não parece ser este o caminho mais freqüente.

O tratamento jurídico da questão trabalha com categorias cujos contornos de definição não são os mesmos que os do discurso científico. Servem mais para designar com uma linha divisória, que deve ser clara, qual parcela da população deve se entender compreendida dentro dos limites desta categoria. Além, é claro, de prescrever um encaminhamento qualquer para os já categorizados.

É desta maneira que se fala em louco, e não em psicótico, por exemplo, ou, ainda, em crianças portadoras de necessidades educativas especiais, e não em psicóticos, autistas, cegos, surdos, etc., já que se trata não da prática e da teorização específicas com estas pessoas, mas sim do funcionamento dos diversos discursos (científico, religioso, político, etc.) que atribuem a estas crianças seu estatuto.

Dito de outro modo, o tratamento jurídico da questão agrega1, sem se preocupar com a heterogeneidade do que agrega. Seu princípio é por definição homogeneizante.

É evidente que se justifica que a questão da escolarização dessas crianças mereça um tratamento jurídico. Este é, na verdade, mais um dos discursos que conferem às pessoas seu estatuto e marcam o laço social.

O problema passa a existir quando se estabelece em relação aos outros (científico, religioso, político, etc.) uma posição de primazia. E isto porque faz vir para o primeiro plano a idéia de contrato.

Estipula dois pólos: os que serão atendidos e os que deverão atender, e aposta. Isso é a premissa fundamental da idéia de sistema contratual de Rousseau, que os indivíduos podem organizarse com o instrumento da razão de maneira tal, que se possam eliminar os conflitos.

Premissa liberal e iluminista, como sabemos, uma vez que pressupõe um indivíduo suficientemente livre de determinismos e dotado de um poder de intervenção que, desde que bem instruído, pode atingir um nível ótimo de execução.

A idéia de contrato pressupõe ainda que os indivíduos que assumem os pólos deste contrato, e se comprometem com seja lá o que for, devem fazê-lo com responsabilidade, ou seja, devem saber responder sobre seu ato, saber as razões, as justificativas para fazê-lo.

É no Seminário sobre a ética (1959-60) que Lacan irá marcar a diferença entre pensar-se uma ordem coletiva qualquer a partir da idéia de razão e necessidade, ou a partir da idéia de desejo.

Os sistemas sociais nada querem, em geral, saber sobre o desejo, uma vez que se se parte dele não se sabe nunca onde vai parar. As necessidades apresentam-se como mais administráveis, mais razoáveis.

Não é casual que o termo apareça na categoria crianças com necessidades educativas especiais.

Assim definido, fica possível estabelecer sobre com o que ambos os lados se comprometem.

Caso se quisesse pensar a partir da posição desejante, não haveria nada sobre o que, de antemão, se pudesse contratar.

A ênfase no sistema contratual exclui o desejo, além de dirigir o acento mais para o conjunto do que para os elementos que o compõem.

É o que ocorre com uma certa tradição de prática da análise, como o demonstra Chemama (2000), cuja ênfase localiza-se no contrato. Não importa o que aconteça na sessão, o enquadre deve ser mantido.

“É evidente que o contrato não poderá situar-se no nível do conteúdo sobre o qual é difícil combinar de antemão. Daí uma prioridade dada ao próprio enquadramento: quatro ou cinco vezes por semana, cinqüenta minutos, isto pode ser programado.” (2000, p. 199).

Mas a pergunta a ser feita aqui é a de que se o contrato estabelece para ambas as partes um compromisso, trata-se de um compromisso com o quê?

Não é sabido que analista e paciente podem cumprir o enquadre contratado sem que nada de analítico ali ocorra?

Assim como, também, não é sabido que educadores, de um lado, e crianças com necessidades educativas especiais, de outro, podem cumprir tal contrato sem que nada de educativo ocorra?

Seria necessário reconhecer que “se, aqui e lá, o tema do contrato surge em relação com uma ideologia da liberdade, ele produz uma dependência ainda mais forte de um Outro que exclui o desejo” (Chemama, 2000, p. 197).

Ou seja, se desejamos recorrer aos princípios liberais e iluministas que a idéia de contrato implica, só podemos fazê-lo ao preço de não considerar o desejo, ou ainda, o que parece mais significativo, alimentando uma dependência de um outro que mantém para nós a crença na autonomia e na liberdade.

E aqui chegamos a um paradoxo importante. Aquilo com o que os contratantes comprometem-se pode levá-los a não produzir exatamente aquilo para o que estabeleceram o contrato.

A excomunhão de Lacan do cenário do movimento analítico oficial, sob a alegação principal de que ele comprometia o trabalho analítico, quebrando o enquadre contratual, levou-o a apontar o caráter problemático deste compromisso.

Para ele, a obediência a certas regras inflexíveis, aos particularismos dos casos, além de negligenciar as próprias ressalvas de Freud sobre o assunto, demonstrava uma alienação2 que comprometia mais o analista com esse Outro institucional do que com seus pacientes.

Como já demonstramos em trabalho anterior (Voltolini, 2001), a idéia de contrato (contra-ato) marca o laço entre ambos os pólos mais a partir do que não se deve fazer do que daquilo que se pode fazer.

Não é de se estranhar que a receptividade ao contrato da inclusão, por parte da maior parcela dos professores, tenha sido marcada por uma resistência semelhante àquela da criança que fecha a boca para a comida oferecida (sempre para o seu bem, como sabemos) porque já entendeu que ela tem de comer porque a mãe deseja.

Nesse sentido, se ela simplesmente come, corre o risco de ver-se anulada em sua posição de sujeito desejante.

Uma fala constante dos professores a propósito da inclusão marca de maneira clara justamente esse ponto. Dizem eles: “Eu não fiz a opção para trabalhar com crianças assim, eu não prestei concurso para isto!”

A reivindicação de um direito é ilustrativa da afirmação de uma posição de sujeito desejante?

Embora se sinta demandado a comer, essa proposta em nome do bem público reage à proposição de que ocupa passivamente o lugar de objeto.

E o pedido de formação que fazem esses professores, como resposta ao que lhes é demandado, não pode ser considerado, na maioria dos casos, como algo que foi mobilizado por um desejo de saber. Seria ingênuo supor isto.

Ao que parece, a confiança nas luzes que uma certa racionalidade poderia trazer para a execução dessa proposta, somada a outra confiança, de que os indivíduos são livres e sabem responder sobre seus atos, não pode senão conduzir ao pior.

Há ainda um ponto a mais a observar com relação à idéia de contrato.

Dentro da perspectiva rousseauniana, pode-se pensar no sistema contratual como uma evolução, uma emancipação em relação ao sistema estatutário. Evolução que equivaleria à passagem das sociedades pré-democráticas, autocráticas, que se sustentavam sobre a idéia de papéis (pai, filho etc.), para as sociedades democráticas, que passam a se sustentar pelo contrato entre as pessoas que se dispõem numa relação simétrica, de igualdade.

Tal evolução consiste, para Rousseau, numa forma de atualizar a natureza boa do ser humano, refletido numa disposição de pôr o interesse coletivo à frente do individual.

Evidentemente, para que uma sociedade possa atingir esse nível de evolução, demanda-se educação.

É assim que Rousseau torna-se o pioneiro da idéia de educação como ferramenta de mudança social, como salienta Hannah Arendt (2003).

A aposta é que os indivíduos possam atualizar sua natureza boa por meio de um processo educativo que não os corrompa, ou seja, que não os faça reafirmar-se a partir do interesse individual.

E, chegado o caso, poderíamos contar com indivíduos capazes de estabelecer entre si uma convenção bem-feita, que funcionaria como garantia contra o perigo das transgressões.

O que manteria, portanto, os indivíduos agregados, seria uma disposição para a primazia da racionalidade.

Freud convida-nos, de certo modo, a conceber a idéia de contrato e princípio de agregação de um modo diferente do da perspectiva rousseauniana.

No mito da horda primeva, construção feita por ele para dar conta de uma origem do humano enquanto cultura, o contrato entre os irmãos dá-se sob forma de um pacto que prescreve que ninguém deve almejar ocupar o lugar de exceção (lugar ocupado pelo pai, que por isso foi morto), sob pena de ter o mesmo destino do Pai, ou seja, a morte.

O que nos importa pôr aqui em relevo é exatamente a importância estrutural do lugar da exceção na organização desse pacto. Ele não desaparece depois de morto o pai, ao contrário, ele permanece como organizador do pacto.

Como lugar na estrutura, sua presença, assim como seus efeitos, não é contingencial, mas sim permanente, muito embora diferente em cada caso.

Um dos efeitos é a deflagração de uma suspeita e vigilância sobre o outro, uma vez que este é sempre suposto, como eu, desejar ocupar o lugar da exceção e viver segundo seus caprichos.

E esse efeito não parece sucumbir a nenhuma racionalidade educativa.

Não é verdade que, mesmo nas sociedades mais democráticas, não se escapa de pensar que as pessoas que têm certa cota de poder usufruam de privilégios e prerrogativas que bem podem servir a desejos caprichosos?

Nesse sentido, aquilo que é criado para coibir o caprichoso (a lei) acaba servindo (via transgressão) para permitir seus caprichos. E isso porque não se escapa de sonhar com o gozo além da barra ($), o que alimenta a tal suspeita e vigilância entre os indivíduos.

Daí também uma certa suposição, efeito dessa estrutura, de que minha relação com o outro é basicamente de oposição: ou eu prevaleço, tomando o outro como objeto, ou o contrário.

Campo imaginário da hostilidade entre os homens, exatamente o ponto que fazia Freud desconfiar radicalmente do princípio cristão: amar ao próximo como a si mesmo. Ponto estrutural também destinado a não ser superado por uma educação racional.

Outro efeito importante do lugar de exceção na estrutura refere-se ao princípio da agregação entre os homens.

Uma vez decidido o elemento comum (sempre da ordem de um traço) que une por identificação os membros de um grupo, definem-se ao mesmo tempo e pelo mesmo ato aqueles que estarão fora do grupo.

Não existe um grupo que inclua a todos, na medida em que um grupo só se constitui quando marca uma diferença com aquilo que não pertencerá ao grupo.

Só faz sentido falar em grupo de professores, por exemplo, porque nem todo o mundo é professor.

Ou seja, não há como agregar sem segregar. Isto torna qualquer idéia de política inclusiva, uma vez que seu princípio é agregar quem está segregado, um movimento impossível, dado seu caráter de infinitude.

Tudo o que se faz quando se pensa estar incluindo é empurrar a linha que demarca os de dentro e os de fora para um outro lugar. Ou seja, cria-se outra minoria.

Por isso também, mesmo nas sociedades mais democráticas, nunca se escapa de tratar com reserva e certa hostilidade aqueles que são identificados como forasteiros (vindos de fora).

A questão é que, se entendemos esses efeitos como sendo de estrutura, não se pode esperar emanciparse deles.

O que não significa resignar-se a eles, mas, ao contrário, considerálos como vicissitudes e manejá-los tais como aparecem em cada situação singular. O que é muito diferente de tentar combatê-los com a crença na suposta primazia da racionalidade.

Na dinâmica que se estabelece no universo escolar, a partir da implantação de estratégias de inclusão, esses efeitos fazem-se sentir plenamente.

É comum observar-se o fantasma do desejo caprichoso da exceção na idéia de que tal política deve ter sido encampada para otimizar recursos públicos (ou seja, alguém que não põe a mão na massa quer lucrar enquanto eu me sacrifico). É comum também observar o quanto a escola reage aos forasteiros que agora lhe propõem agregar.

No instante de sua constituição, a linha demarcatória entre os que estarão dentro e os que estarão fora levou a escola a excluir os então chamados deficientes. Não poderia agora senão vê-los como forasteiros.

A proposta iniciada por Mannoni parece aproximar-se mais de um sistema estatutário do que de um sistema contratual, e nisto parece estar bem referencializada pela psicanálise, uma vez que é na análise que as coisas decidem-se muito mais pelo que acontece a partir da assunção de certos lugares do que a partir de um combinado qualquer. O que é só uma outra maneira de dizer que o que é mais decisivo é o que se faz de fato, e não o que se alega pretender fazer.

É na experiência analítica que se pode reconhecer a importância dos efeitos de estrutura e dar-se conta de que eles não são superáveis por uma instrução racional, mas são transformáveis até o ponto de poderem fluir de maneira menos conflituosa. É bem verdade que a discussão sobre os direitos tratada pelo discurso jurídico tem seu lugar, mas a ênfase neste tipo de tratamento não constituiria hoje um tipo de intolerância ao sintoma? (Chemama, 2000).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Arendt, H. (2003). Entre o passado e o futuro. São Paulo, SP: Perspectiva.        [ Links ]

Chemama, R. (2000). Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano. Porto Alegre, RS: CMC.         [ Links ]

Lacan, J. (1959-60). O seminário, Livro VII, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.         [ Links ]

Voltolini, R. (2001). Do contrato pedagógico ao ato analítico: Contribuições à discussão da questão do mal-estar na educação. Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, VI (10).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rinaldo Voltolini
rvoltolini@usp.br


Recebido em março/2004
Aceito em maio/2004

 

 

NOTAS

1 E, assim fazendo, define também o que segrega, já que o que temos aí é, sobretudo, uma operação lógica que, ao definir os que estão dentro, define também, no mesmo ato, os que estão fora.
2 E aqui vale também pensá-la tanto no sentido lacaniano como tomada de posição de objeto em relação ao Outro, quanto no sentido marxista de encobrimento da verdade.
I Professor doutor da FE-USP e colaborador da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, do IP-USP.

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