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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.9 n.17 São Paulo dez. 2004

 

DOSSIÊ

Para ser um guri: espaço e representação da masculinidade na escola1

 

In order to be a boy: space and representation of masculinity at school

 

 

Ieda Prates da Silva

Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na experiência com clínica psicanalítica de crianças num serviço público de saúde mental ao longo dos últimos anos, temos nos deparado com uma desproporção entre o número de meninos e meninas encaminhados para tratamento psicoterapêutico com sintomas escolares, sendo significativamente maior o número de guris. O que faz dos meninos, na atualidade, tão avessos à escola? Ou será a escola avessa a algo da masculinidade que está em causa ali? O que produz este conflito, elevado à máxima potência em muitos casos que são encaminhados para a clínica, na espera de que “domestiquemos” estas crianças? Estará havendo uma tentativa de apagamento da diferença, o que faz com que ela ressurja no espaço escolar como violência e transgressão? Como constroem os meninos modelos de identificação, se não podem diferenciar- se num universo maciçamente feminino?

Palavras chave: Clínica psicanalítica, Escola, Funções parentais, Agressividade, Identificação, Diferença sexual.


ABSTRACT

Our experience with psychoanalytic clinic of children in a public mental health service during the late years has shown us a large difference between the number of boys and girls assigned to psychotherapy due to school problems. The number of boys is considerably higher. What makes boys so averse school today? Or would school be averse something of masculinity that is conveyed here? What causes this conflict that is specially hard in some individuals who are assigned to psychotherapy as a way to be tamed? Would it be due to an attempt to erase the difference, so that it returns as violence and transgression at school? How do boys build models of identification if they cannot be different among a strongly feminine universe?.

Keywords: Psychoanalytic clinic, School, Parental functions, Aggressiveness, Identification, Sexual difference.


 

 

Em primeiro lugar, gostaria de fazer referência ao título, que me veio da lembrança do trabalho de uma estagiária de psicologia de nosso serviço – agora já psicóloga – sobre um caso clínico atendido por ela, que eu pude acompanhar em supervisão, e cujo atravessamento do trabalho analítico produziu uma operação subjetiva que ela intitulou “para ser um guri”. Esta expressão pareceu- me muito pertinente para a questão que desenvolvo neste artigo, e tomei-a emprestada da referida colega1.

Na experiência com clínica psicanalítica de crianças num serviço público de saúde mental ao longo dos últimos anos, temos nos deparado com uma realidade que para mim levanta questões instigantes e que o tema do Congresso da APPOA, A Masculinidade, me oportunizou trabalhar: o número de meninos, principalmente na faixa dos 8 aos 12 anos, encaminhados para tratamento psicoterapêutico com sintomas escolares (agressividade, distúrbios no comportamento, hiper-agitação, dificuldades de concentração e de aprendizagem), é significativamente maior do que o de meninas (70% de crianças do sexo masculino e 30% do sexo feminino). A grande maioria dessas crianças é encaminhada pelas próprias escolas; os demais vêm encaminhados pelo Posto de Saúde, mas geralmente a pedido da escola. Se considerarmos que não há praticamente diferença na proporção de meninas e meninos matriculados na rede municipal de ensino da cidade de Novo Hamburgo (52% são meninos e 48%, meninas), esse dado chama a atenção. Constatamos, por um lado, o sofrimento psíquico desses meninos para se ambientar e interagir num espaço que parece fechado para eles e, por outro, o desespero de professoras, que se sentem acuadas, agredidas, desrespeitadas e impotentes para lidarem com essas situações.

De que forma, ou de que posição, a escola pode operar efeitos que não sejam sintomáticos, mas geradores de aprendizagem e crescimento? E que resposta a clínica psicanalítica pode dar aí, que não seja simplesmente atender essa demanda cada vez maior de tratar “estes guris medonhos”.

Focarei mais especificamente os sintomas da agressividade e da agitação, pois, além de serem as queixas mais freqüentes, são os que provocam reações mais graves e descontroladas por parte da família e da escola. São meninos que, geralmente, lotam os serviços de neurologia antes de chegarem para tratamento psicoterapêutico.

As professoras geralmente se identificam com a criança agredida, principalmente se for uma menina. A leitura que fazem das reações e atos desses meninos com comportamento agressivo, é sempre a mesma e carregada de indignação, de raiva e de uma visão moral, que mal encobre um discurso de vitimização da mulher submetida à força física do homem. Afirmo isso porque é freqüente, nos relatos de algumas professoras ou diretoras de escolas, que a descrição desses meninos e de seu comportamento os situa numa posição de homens, de adultos, que colocariam em risco as outras crianças e até mesmo as professoras, justificando atos descontrolados ou repressão severa por parte destas, quando não, acionando instâncias da lei, como o Conselho Tutelar ou a Guarda Municipal para coibir atos agressivos que lhes parecem impossíveis de serem contidos, mesmo que se trate de uma criança pequena, de 7, 8 ou 9 anos, por exemplo. Quero deixar claro que não se trata de uma posição acusatória em relação às professoras. Antes, parece-me haver aí um reflexo do discurso familiar e social que localiza o masculino do lado da violência, da força bruta, do desadaptado... As professoras, que têm uma turma com cerca de trinta crianças para educarem, vêem-se pressionadas e despreparadas para intermediarem conflitos e situações que, na maioria das vezes, são plenamente suscetíveis à interferência da palavra – uma palavra sustentada em transferência – e poderiam se resolver no âmbito escolar, geralmente dentro da própria sala de aula.

 

MAS, ENTÃO, O QUE FRACASSA AÍ?.

Esses meninos com problemas de agressividade, agitação motora, dificuldade de concentração e de aprendizagem, na grande maioria são diagnosticados apressadamente com uma sigla: TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiper-atividade). Hoje o alastramento desse diagnóstico vem sendo discutido, inclusive em alguns meios médicos (conforme reportagem da Revista Cartacapital, de 11/08/04), nos quais se questiona a rapidez do diagnóstico e a generalização da medicação das crianças. A revista aponta o óbvio, mas facilmente esquecido: o mundo “hiper- ativo” em que vivemos, dotado de excessos, velocidade, superficialidade, agitação, cultura do descartável, fragmentação, ausência de sentido etc. A reportagem chega a declarar que “... a hiper-atividade revela-se mais do que uma novidade: ela é, talvez, a mais contemporânea das doenças” (p. 11). Nessa mesma matéria, o médico Carlos Alberto da Costa e Silva, especialista em saúde mental e ex-diretor da Organização Mundial de Saúde (OMS), alerta para a superficialidade e rapidez com que se diagnostica atualmente essa “doença”, afirmando que aproximadamente 65% dos diagnósticos de TDAH são incorretos. Surpreende-nos, por se tratar de uma autoridade do próprio meio médico a dizer tal coisa. Ele elenca uma série de outras hipóteses e situações para explicar tais sintomas apresentados pelas crianças – em grande parte meninos – de ordem fisiológica, familiar, social ou cultural, sem no entanto considerar as causas psíquicas. Porém, com bomsenso, recomenda tempo e prudência na elaboração do diagnóstico e na intervenção medicamentosa, aconselhando: “O mais importante é a análise minuciosa da história clínica do paciente, um exame clínico cuidadoso, a interação com a família e paciência para ouvir.” (Revista Cartacapital, 11/08/04, p.14 – grifo meu).

A disseminação dos manuais para identificação dos possíveis casos de TDAH criou o estereótipo do hiper-ativo, carapaça que serve em qualquer menino mais agitado, ou que não corresponda ao padrão de comportamento esperado pela escola. A criança é encaminhada para o médico já portando esse estigma e, chegando lá, quase sempre ouve a confirmação desse diagnóstico e ganha um remedinho (“remendinho”) para tomar. Nos casos em que a criança não é medicada, há reclamação das mães e das professoras, geralmente, que depositam no medicamento a esperança de que o filho ou o aluno “defeituoso” seja consertado. O que se espera é uma mudança radical e imediata no comportamento, sem que nada em torno da criança mude ou precise ser interrogada.

A escola, nos dias de hoje, representa um universo maciçamente feminino, formado por professoras, diretoras, supervisoras e merendeiras. É um lugar onde as mulheres predominam, decidem, comandam. Como será para esse universo eminentemente feminino lidar com o masculino? Por que os meninos, muito mais do que as meninas, respondem com tais sintomas?.

É preciso lembrar que a agressividade é constitutiva do sujeito. Ela surge fundamentalmente na experiência fraterna na tenra infância, em que um igual é tomado como inimigo, na lógica do eu ou ele. Esse outro, visto como rival frente à mãe, é sempre ameaçador, ao mesmo tempo em que funciona como duplo. Isso se vê claramente, por exemplo, na experiência do transitivismo, na qual a criança é a que bate e, ao mesmo tempo, a que foi agredida. Lacan (1938) já apontava isso a que ele designou inicialmente de “Complexo de Intrusão”, num de seus primeiros textos, A Família. Num artigo posterior, Agressividade em Psicanálise (Lacan, 1948), segue trabalhando esse tema do complexo de intrusão ou complexo fraterno. Retoma a questão do ciúme – referindo o relato de Santo Agostinho daobservação de uma cena de amamentação – não apenas como rivalidade vital, mas como expressão de uma identificação. “Aqui realiza-se este paradoxo: que cada parceiro confunde a parte do outro com a sua própria e identifica-se com ele.

...O mesmo é dizer que a identificação, específica das condutas sociais, neste estádio, se funda sobre um sentimento do outro, que não se pode senão desconhecer sem uma concepção corrente do seu valor completamente imaginário (Lacan, 1938, p. 39). Enfatiza também a questão da necessidade de uma semelhança entre os sujeitos: “Parece que a imago do outro é ligada à estrutura do corpo próprio e mais especialmente das suas funções de relação, por uma certa semelhança objetiva” (1938, p. 40). Ou seja, há uma ambigüidade originária na relação com o outro, o semelhante, em que há uma operação de identificação por trás da rivalidade, mas também um processo de diferenciação em relação ao outro. Essa agressividade especular é fundante do eu. É correlativa da tensão narcísica no advento do sujeito e não pode, nas palavras de Lacan, “... ser concebida, se não tiver sido preparada por uma identificação primária que estruture o sujeito como rivalizante consigo mesmo” (Lacan, 1948, p. 33). E é o que Freud (1919) já havia postulado no texto O estranho, quando fala do duplo como constituinte da identidade do eu.

É no atravessamento do Édipo, pela operação de identificação secundária a partir da introjeção da imago parental, que se abrem as portas para a sublimação, a qual libera o sujeito das amarras da rivalidade acentuada em direção ao interesse pelo que está a sua volta. “Assim, a identificação edipiana é aquela pela qual o sujeito transcende a agressividade constitutiva da primeira individuação subjetiva” (Lacan, 1948, p. 34). As teorias sexuais infantis têm aí o seu ápice e, a partir de então, o semelhante pode ser tomado numa relação fraterna que não seja dominada pela agressividade, mas intermediada pelo prazer lúdico e da convivência, pela curiosidade, pela fantasia, pelo interesse nos objetos e instrumentos da realidade.

Vivemos numa cultura que tenta banir a agressividade, o conflito, num ideal de harmonia fadado ao fracasso. Vemos isso freqüentemente na relação de pais e filhos, em que aqueles tentam economizar o conflito, a tensão inevitável na relação intergeracional, cedendo incondicionalmente ao apelo das crianças (ainda que seja da criança introjetada neles próprios). É uma cultura que faz a apologia da igualdade, na qual a diferença sexual, a dessimetria entre adultos e crianças, a diferenciação nas funções do pai e da mãe tendem a ser apagadas em formações imaginárias que obliteram a dimensão da falta.

Será exatamente a simbolização do real que permitirá à mãe introduzir a criança na ordem simbólica e essa operação será instituída a partir do tempo seguinte. privação, é preciso inicialmente que ele simbolize o real” (Lacan, 1956- 57, p. 55). Lacan explica essa idéia através do exemplo da organização de uma biblioteca. Quando solicitamos ao bibliotecário um livro, ele pode nos responder, depois de procurar em suas estantes, que tal objeto não está no lugar e isso quer dizer que o livro não está disponível para ser retirado. Pode ser, porém, que o livro esteja colocado sobre a mesa do funcionário, no setor de “devolvidos”. O que essa cena nos mostra é que, apesar de o livro estar na biblioteca, esta última está privada dele. O bibliotecário, sujeito à lei de organização da biblioteca, vive inteiramente no mundo simbólico. Para ele, o livro fora do lugar designado simbolicamente está invisível. Será exatamente a simbolização do real que permitirá à mãe introduzir a criança na ordem simbólica e essa operação será instituída a partir do tempo seguinte. privação, é preciso inicialmente que ele simbolize o real” (Lacan, 1956- 57, p. 55). Lacan explica essa idéia através do exemplo da organização de uma biblioteca. Quando solicitamos ao bibliotecário um livro, ele pode nos responder, depois de procurar em suas estantes, que tal objeto não está no lugar e isso quer dizer que o livro não está disponível para ser retirado. Pode ser, porém, que o livro esteja colocado sobre a mesa do funcionário, no setor de “devolvidos”. O que essa cena nos mostra é que, apesar de o livro estar na biblioteca, esta última está privada dele. O bibliotecário, sujeito à lei de organização da biblioteca, vive inteiramente no mundo simbólico. Para ele, o livro fora do lugar designado simbolicamente está invisível. Será exatamente a simbolização do real que permitirá à mãe introduzir a criança na ordem simbólica e essa operação será instituída a partir do tempo seguinte.

 

FRUSTRAÇÃO

Conforme descrevemos anteriormente, a partir do momento em que há incidência do chamado pai imaginário, que interrompe o ritmo da alternância entre a mãe e a criança, a primeira, que até então se apresentava como uma matriz simbólica, passa a se apresentar também como real. Ela aparece munida de grande potência à qual a criança se submete, numa dependência aterrorizadora. Lacan usa a figura da mãe insaciável para dar a dimensão da voracidade seu desejo.

Mas o que confere potência à mãe?

Os objetos que ela oferece à criança também sofrem uma mudança de estatuto e, em vez de objetos reais (leite), que, sob a ótica da criança, lhe seriam previsivelmente entregues, a mãe passa a ser a possuidora de objetos de dom simbólicos, que, por sua vez, estão sujeitos a uma outra lógica e assim podem ser oferecidos _ ou não _ à criança.

Os objetos de dom são os objetos símbolo do amor, que ganham terreno quando o objeto da necessidade é tomado pela via simbólica, implicando aí, no eixo pulsional, todo circuito das trocas e, no espectro do significante, as possibilidades de substituição do objeto propriamente dito.

Mas, para que essa operação seja possível, o objeto deve ser primeiro anulado como referente da necessidade, uma vez que o dom é formulado como aquilo que se dá pela mãe ao apelo da criança, e a criança só pode reivindicar aquilo que não está presente.

À criança resta, então, por causa de sua dependência radical dos objetos que a mãe oferece ou não, oferecer a si mesma como objeto da mãe. Isso acontece na tentativa da criança de conter o furor de satisfação da mãe e, assim, torna-se parte dessa economia psíquica, suportando em si um estatuto de objeto (em maior ou menor grau).

A criança, diz Lacan, se faz falo da mãe, na tentativa de garantir a oferta de objetos de satisfação. Este é um jogo de engodo, em que a criança obtura a primeira brecha que vislumbra porque lê que é a partir dessa brecha, do que não há, do que é falta na mãe, que o agente da função materna se lança em direções nem sempre coincidentes às relativas à sua própria satisfação. Trata-se de uma questão de sobrevivência: afinal para a criança a presença da mãe está diretamente vinculada à sua satisfação. Identificando-se ao falo, a criança restitui à mãe, mantendoa completa, ainda que ao preço de se manter alienada a ela.

É por esse caminho que se instala a dialética da frustração _ ou o paraíso do engodo _ articulada essencialmente em torno de três elementos: a mãe, a criança e o falo.

A partir do ingresso da criança na dialética da frustração, é importante ressaltar que, embora o objeto real não seja indiferente, não há necessidade alguma de ser específico. “Mesmo que não seja o seio da mãe, nem por isso ele perderá algo do valor de seu lugar na dialética sexual, de onde se origina a erotização da zona oral. Não é o objeto que desempenha, em seu interior, o papel essencial, mas o fato de que a atividade assumiu uma função erotizada no plano do desejo, o qual se ordena na ordem simbólica” (Lacan, p. 188).

Para o filho, não importa qual é o alimento que a mãe oferece, mas a posição a partir da qual ela faz esta oferta. Ela pode alimentar a criança a partir de seu corpo, situada apenas no eixo da necessidade, sem veicular o amor; tanto quanto oferecer uma chupeta e satisfazer a criança, na dimensão do dom.

A operação que se dá nesse momento de transformação do objeto real em objeto de dom é fundamental para introduzir a criança na ordem humana. Como já foi formulado, o dom se manifesta ao apelo, e “o apelo já é uma introdução, totalmente engajada na ordem simbólica, à palavra” (Lacan, 1956-57, p. 186). É a partir dessa transformação que podemos escutar as demandas da criança, já como uma tentativa de veicular um desejo ainda incipiente e responder a elas com um símbolo do amor, como um reconhecimento desse desejo. Esse reconhecimento se veicula na língua, com palavras, uma vez que o que está em jogo não é a oferta de um objeto determinado que possa destruir o desejo. Lacan (1956-57) enuncia que o dom-tipo é justamente o dom da palavra. “Desde a origem, a criança se alimenta tanto de palavras quanto de pão, e perece por palavras” (p. 192).

Um quadro que não é raro se instalar nesse momento da constituição e que coloca às claras esse funcionamento é o que Lacan chamou de anorexia mental, que não é relativo ao não comer, mas ao comer nada, algo que só existe no plano simbólico. Através desse sintoma, a criança inverte sua relação com a mãe e a coloca na sua dependência. O sujeito submete o capricho da mãe onipotente à sua força, articulada ao “comer nada.” O sujeito come nada para guardar vazio o espaço do desejo e não ser tomado pela via da necessidade. Assim, o objeto real (comida_nada), escapa da trama da satisfação relativa ao vital e torna-se signo da exigência de amor. Há uma satisfação que responde ao vital _ barriga cheia, mas isso é signo do dom, ou seja, nada em ter mos de satisfação pulsional, uma vez que a satisfação que está em jogo pela via da frustração (aquela à qual o sujeito faz o apelo) advém da ordem decepcionante do simbólico.

“É no nível do objeto anulado como simbólico _ pela mãe _ que a criança põe em xeque a sua dependência, e precisamente alimentando-se de nada” (Lacan, 1956-57, p. 190). E isso só é possível de ser engendrado, se a ordem simbólica já estiver operando.

Neste ponto, vale fazer um parêntese para pensarmos em qual dimensão essa lógica pode ter nas relações intersubjetivas, na atualidade. Vivemos num tempo em que é muito comum vermos pais e educadores impotentes ante as demandas da criança, incapazes de ler que, quando a criança reivindica um objeto da realidade, não é isso que ela deseja. Os adultos se engajam em satisfazê- la com a oferta de objetos reais, uma vez que tomam a falta como um vazio a ser preenchido em vez de como motor do funcionamento psíquico. É de fato característica do discurso social contemporâneo a veiculação da ilusão da completude e valorização do objeto por suas características reais de eficiência, velocidade, competência, preço etc., e não pelo lugar que ocupa numa série intersubjetiva. Para a criança, ganhar uma pedrinha que seu pai recolheu na beira de um rio, numa viagem, ao se lembrar de um passeio realizado em conjunto, pode ter o mesmo significado que ganhar um carrinho de controle remoto, referido a um hobby comum entre pai e filho. No entanto, o discurso capitalista recusa o engodo próprio dessa dialética da frustração, ludibriando os indivíduos de que o caminho de responder a demanda seria mais fácil e apaziguador, atribuindo valor ao segundo objeto, não pela importância que encontra dentro dessa relação específica, mas pelos atributos reais. Os pais, na tentativa de oferecer o “melhor” objeto, se atrapalham e se deixam capturar pela demanda social. As demandas insistentes e intermináveis das crianças vêm assinalar que não é do objeto real que se trata, o que se demanda é sempre o símbolo do amor, objeto de dom. Seria importante precisar que, para um objeto ser símbolo do amor, deve estar necessariamente relacionado à falta. Às vezes a maneira mais aplacadora do mal-estar da existência, angústia provocada pela falta, é o dom da palavra, muitas vezes veiculado na palavra não, que asseguraria para a criança que, mesmo que sua demanda não seja atendida, seu desejo é reconhecido, tendo como efeito um cessar da reivindicação, na qual o desejo pedia reconhecimento pela via da demanda.

Outra leitura recorrente dos adultos a respeito das demandas incessantes das crianças, sublinhado sobretudo no discurso pedagógico, é de que está querendo “chamar a atenção”. No entanto, essa leitura, apesar de não parecer totalmente equivocada à primeira vista, é superficial porque remete sobretudo a uma suposta necessidade da criança de ser o centro das atenções e de ser satisfeita permanentemente. Nesse sentido, incorre no mesmo equívoco apontado anteriormente. A criança parece chamar, sim, a atenção do adulto, mas não é escutada. Os objetos reais são oferecidos na tentativa de silenciar o incômodo derivado do desejo indestrutível, no entanto, não só fracassam nessa empreitada, como transformam as crianças em pequenas ditadoras e criaturas chatas. Observamos também uma outra possibilidade de leitura, a de que a reivindicação da atenção que a criança faz é o pedido direto pelo objeto de dom, sem desviar pelo objeto real. No entanto, pais e educadores, tomados pela lógica da satisfação pela via do objeto, muitas vezes não reconhecem o pedido de dom como um pedido legítimo. Dessa forma, o “só quer chamar a atenção” esvazia de sentido o apelo da criança, que mais uma vez não é escutada.

Retomando o caminho da constituição subjetiva, quando se instala, entre a criança e a mãe, a dinâmica relativa ao estabelecimento do dom, a criança vive um tempo no qual tudo parece caminhar bem. Ela é bem sucedida em seu papel de objeto enganador do desejo da mãe e, nesse sentido, a dialética da frustração parece dar conta da experiência com a mãe e o falo. Porém, em algum momento, essa pretensa harmonia se desestabiliza.

Do lado da criança, o encontro entre a pulsão real e o jogo imaginário do engodo produz a necessidade de uma nova organização. A pulsão que tem sua fonte no corpo, na organização fálica, conduz a criança à experiência de potência, porém, essa potência não é experimentada na relação com a mãe, para quem o “tudo” que a criança pode oferecer, é insuficiente. Por essa via, produz-se novamente um desencontro, necessário para desencadear a busca por uma nova organização.

O pequeno Hans se enrosca exatamente nesse momento. Ele vivia sua dialética da frustração com a mãe, que caminhava bem até se deparar com a emergência de seu pênis real e com o nascimento da irmã, cenas que o confrontam com sua situação de insuficiência em relação ao desejo da mãe. O pai real como agente da castração seria convocado nesse momento para solucionar o impasse, mas o pai de Hans não exerce essa função, o que o obriga a inventar outros elementos para resolver este situação, o que faz ao preço de uma fobia.

A fobia se apresenta como uma das soluções imaginárias e provisórias para o sujeito que, diante da mãe insaciável, serve-se desta como medida de proteção. A outra saída imaginária possível é o fetichismo, instituindo um objeto no lugar da falta.

Ao armar uma fobia, o sujeito está interessado em manter o engodo do falo, ou seja, ele produz uma resposta à castração materna que, apesar de já ter sido vislumbrada, consiste na tentativa de manter a mãe completa, sem falta. A criança tenta permanecer como objeto de prazer para a mãe, oferece-se como o que Lacan denominou neste seminário, metonímia do falo.

O sujeito recua ou volta atrás diante da constatação da falta na mãe. A criança pressente que alguma coisa é desejada pela mãe, além dela mesma, Mas, tomada pelas marcas da volúpia do desejo materno, ainda se esforça por ser aquilo que, pela via significante, sacia essa mulher. Temos aqui a cristalização de um estado que deveria ser provisório, uma vez que a criança fóbica mantém sua função fálica e de estruturação metonímica em relação ao desejo de completude da mãe.

A idéia da fobia como placa giratória _ apresentada por Lacan no seminário De um outro ao Outro, de 1969 _ introduz a formulação de que o estado fóbico, no tempo da constituição do sujeito, pode apresentar a consistência de um sintoma transitório, a ser desorganizado pelo movimento do desejo na própria criança, garantindo a estruturação de uma neurose. Ou pode ainda recolocar ao sujeito a possibilidade de estabelecer um objeto fetiche _ e não mais um significante, como fez na configuração da fobia _ no lugar daquilo que ele entende faltar à mãe, estruturando por essa via uma perversão.

A instalação do objeto fetiche é uma resposta bastante singular que a criança produz na direção da negação da castração materna. Por esse objeto, símbolo do pênis da mulher, a criança restitui a mãe de sua perda, mantendo-a fálica e poderosa. Nesse sentido, o sujeito realiza uma operação de positivação do objeto, que garanta o reencontro com ele. Dessa maneira, instituindo um objeto para obturar a falta materna, o sujeito se protege da voracidade do desejo da mãe. Para elaborar uma resposta como essa, é preciso que a criança já tenha vislumbrado a falta materna e ao mesmo tempo não tenha encontrado um elemento significante que a regulamentasse simbolicamente. Dessa maneira, resolve o impasse em que se encontra dentro da tríade imaginária, negando a castração materna com a interposição do objeto fetiche, que tem a função de velar aquilo que o sujeito não pode admitir que a mãe não tem. O fetiche é uma resposta ao horror da castração, diante da qual cria-se um monumento, um substituto para ela.

Além dessas saídas imaginárias e sintomáticas que a criança inventa, na trama edípica, para lidar com a castração materna, há também uma saída simbólica. Essa ocorre quando a criança encontra no campo do Outro um novo elemento para fazer frente a esse impasse. Esse elemento é o agente da função paterna que, ao incidir sobre a relação da criança com a mãe, avança para o registro da falta nomeado como castração. Como veremos, para que o Édipo cumpra sua função normativa é preciso que ele faça sua conclusão na castração.

 

CASTRAÇÃO

É o pai real2 o agente que pode vir regular esse novo (des)encontro entre mãe, criança e falo, instituindo um quarto elemento para operar a castração materna e, assim, liberar a criança do desejo insaciável da mãe. Essa seria a saída pelo complexo de castração, terceiro registro possível da falta, que oferece uma estrutura simbólica por meio da operação da lei que regulamenta as trocas humanas: a interdição do incesto. É nesse ponto que a incompletude é legalizada, a transmissão da castração apazigua o sujeito, pois a falta ganha, definitivamente, estatuto de motor psíquico e não de vazio a ser preenchido.

A partir da incidência da operação simbólica da função paterna, o falo, objeto imaginário da dialética da frustração, é elevado ao estatuto de objeto simbólico e pode, então, ser buscado tanto pelo menino como pela menina. Depois dessa operação de castração, a criança sai marcada em relação ao falo, com um sinal de mais ou de menos. Afinal, numa dialética simbólica, “o que não se tem é tão existente quanto o resto” (Lacan, 1956- 57, p. 125). Mas o que importa é que está marcada por ele e isso é o que vai vetorizar suas buscas posteriores. O falo é a moeda principal que possibilitará as futuras trocas da criança com o Outro.

É isso que Lacan (1956-57) formula no seguinte fragmento: “A partir desse momento de virada, o objeto não é mais o objeto imaginário com o qual um Outro é sempre capaz de mostrar que o sujeito não o tem, ou o tem de forma insuficiente. Se a castração exerce esse papel essencial para toda a continuação do desenvolvimento, é porque ela é necessária à assunção do falo materno como um objeto simbólico. Somente a partir do fato deque, na experiência edipiana essencial, ela está privada do objeto por aquele que o tem, que sabe que o tem, que o tem em todas as ocasiões, é que a criança pode conceber que esse mesmo objeto simbólico lhe será dado um dia” (p. 213).

Assim, a saída neurótica do engodo da frustração é operada pela via da função paterna: o pai real comparece como agente da introdução de uma falta simbólica de um objeto imaginário: o falo. A castração vem dizer para o sujeito que seus objetos imaginários, apesar de estarem postos no lugar do que falta, não fazem completude. Nesse sentido, o atravessamento do Édipo desembocado na castração é uma saída simbólica e por isso mais estável. Esse é o momento crucial da estruturação do sujeito, uma vez que a castração reordena as relações do sujeito com a falta e dá um novo estatuto ao falo, que de objeto imaginário é alçado a condição simbólica: como significante da falta, servindo de suporte para o jogo das infinitas substituições às quais o sujeito irá se submeter no decorrer de sua vida. Nesse sentido, se estabelece para a criança o que Lacan chamou de “jogo de quem perde, ganha”. A criança perde a ilusão da completude materna e ganha pertinência social, amplia seu circuito de trocas.

Para que o sujeito se constitua, é imprescindível a transmissão da falta. É próprio do humano que a satisfação não seja alcançada pelo encontro com o objeto, a satisfação pulsional é parcial e promovida pelo exercício do desejo, guardado pela manutenção da falta, que Lacan formulará mais tarde como o impossível da relação sexual.

A neurose como estrutura se arma aqui, como articulação do desejo insatisfeito, no caso da histeria, e impossível, na neurose obsessiva. Em ambos os casos, seu funcionamento e organização estão baseados na transmissão da falta como motor do desejo.

 

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Endereço para correspondência
Ieda Prates da Silva
R. Borges de Medeiros, 500/22 93310-280 – Novo Hamburgo, RS
tels.: (51)5829572 / 99879576
iedaps@uol.com.br

Recebido em junho/2004
Aceito em agosto/2004

 

 

NOTAS

1 Terminologia sugerida por Osmir Faria Gabbi Jr. (1995), em sua tradução comentada do texto do Projeto.
2 É importante ressaltar que tal operação não é realizada pelo pai simbólico que, neste seminário, é definido por Lacan nos termos de uma construção mítica.

 

 

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