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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.9 no.17 São Paulo Dec. 2004

 

ARTIGOS

Tempo e filiação: a errância de Édipo

 

Time and filiation: the errancia of oedipus

 

 

Eugenia Piazza*I; Daniela Teperman (Trad.)

*Faculdade de Psicologia da Universidade Nacional de Rosário, Argentina.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tendo como interlocutor “A morte da Pítia”, um conto de Friedrich Dürrenmatt, é desenvolvida a hipótese de que na tragédia edípica um tempo dado, irreversível e conjetural, dá lugar aos paradoxos da filiação, enquanto interpretação subjetiva do desejo. Em seu destino, Édipo atravessa diversas encruzilhadas: temporais, filiatórias, sobre o estatuto da verdade e do engano, tomando caminhos que adquirem consistência posterior à decisão que originam. A teoria psicanalítica permite-nos afirmar que a análise não descobre uma verdade primeira oculta após as deformações históricas, mas a capacidade para integrar as ficções em uma dimensão de “verdade histórica”, uma fenda que suprime uma linha temporal e que tem como efeito o sujeito. A construção desta decisão, enquanto instante de pausa, deixa a palavra à sufocação de sua própria escolha e a responsabilidade por sua resposta.

Palavras chave: Tragédia, Tempo, Ato, Decisão, Crença, Filiação.


ABSTRACT

This text suggests, through the study of a case attended at Lugar de Vida Therapeutics Pre-School, to inquire as a last resort, the self-mechanism of the institutional treatment. Aiming that, questions about a child’s subject of constitution, her subjective position in her parent’s speech and the construction of the Other to her, were the main articulators to its reading. It is also intended, through the written text from the case, to transcribe what is from the Real order in the clinic of psychoses for a feasible inscription of the Other’s order and what is for the other. It is from the clinic and in the clinic, questioning the subject in matter, that the acting subject of the treatment will also put in evidence his self-position and his submission in face of the ‘unknown’.

Keywords: Clinic case, Subject’s constitution, The Other’s constitution, Institutional treatment.


 

 

Parto de considerar a idéia de interpelar a coisa psicanalítica como uma operação pertinente para produzir questionamentos sobre os “conceitos fundamentais” que comprometem a psicanálise como discurso sobre os destinos do desejo. Refiro- me àquilo que do nome próprio está em jogo na elaboração e discussão sobre o estatuto interpretativo da psicanálise. A hipótese aqui desenvolvida é que na tragédia edípica um tempo dado, irreversível e conjetural, dá lugar aos paradoxos da filiação, enquanto interpretação subjetiva do desejo.

 

O TEMPO

Hölderlin foi quem primeiro formulou o problema do tempo na tragédia grega, opondo Ésquilo a Sófocles (sobretudo em Édipo e em Antígona). Em Ésquilo encontraríamos a referência ao tempo cíclico; esse tempo da tragédia constaria de três curvas desiguais: a limitação, a transgressão e a justiça. O exemplo pode ser encontrado em Agamenon: o momento do limite é o Grande Agamenon e a beleza, depois a transgressão do limite, o ato desmedido: Clitemnestra assassina Agamenon, e posteriormente há um restabelecimento do equilíbrio, a justiça, a reparação de Orestes que vingará Agamenon. A circularidade se completa no momento da justiça reparadora, na qual tudo volta a seu lugar. Aqui leríamos a fórmula do destino clássico: o destino está escrito desde o princípio, quando a tragédia começa, o ato já se concretizou, posto que o tempo é curvo. Antes que se produza a morte de Agamenon, Clitemnestra já o assassinou. Este caráter do tempo subordina o movimento. Os atos estão imbricados, aproximados ou derivados de e na medida do tempo giratório; o mais além, o eterno preditível surge nas determinações sucessivas. O herói é vítima do tempo como conseqüência de um movimento originário. Hölderlin propõe que em Sófocles é inaugurada uma novidade que funda a tragédia moderna e rompe com o esquema clássico do destino, desencurva o tempo; diz que em Édipo não vemos a transgressão de um limite, mas o limite é eliminado: em Édipo princípio e fim já não rimam. O tempo tornou-se linha reta, no sentido borgeano, o verdadeiro labirinto é a linha reta; sobre essa linha sobrevém a longa errância de Édipo; seu próprio movimento não é resultado da sucessão da determinação. Édipo, diz Deleuze (1996, p. 46), é instigado por uma vadiagem, uma deriva. Este tempo desencurvado é marcado por uma fenda que determina um antes e um depois não simétricos, um tempo zero, puro presente inacessível. O tempo já não se refere ao movimento que mede, mas o movimento ao tempo que o condiciona. Não é a sucessão que define o tempo, mas o tempo é que define como sucessivas as partes do movimento tal como estão determinadas nele. Hölderlin dirá que este tempo presente que produz um passado e um futuro é o tempo da consciência moderna. E a respeito de Édipo afirmará que esta fenda é representada pela intervenção do adivinho Tirésias.

Freud assinala que o efeito de Édipo não reside na oposição entre o destino e a vontade dos homens, pois esta oposição não é de Édipo mas das tragédias em geral. Ainda assim, essas tragédias não geram o mesmo efeito que Édipo. Afirma que “deve haver em nossa interioridade uma voz predisposta a reconhecer o império fatal do destino de Édipo”. “Voz” que sugere o resplendor do superego. Este parágrafo de Freud lança a pergunta sobre o tempo de reconhecer, pois esta predisposição só pode ser pensada depois que a voz foi escutada. Problemática temporal, ou paradoxo, já que o destino de Édipo é o de cada um de nós. Por quê? Diz Freud: “(...) porque antes de nascermos o oráculo fulmina sobre nós esta mesma maldição”. O desejo incestuoso e o desejo parricida. Este será o oráculo que legislará e transformará em nosso destino a fábula. Este “antes” de nascer que fulmina — pensando- o como escrever a morte impossível — só é lido “depois”. Depois que o instante produziu o ato de leitura. Sutura ao viés.

 

A FÁBULA

Um conto de Friedrich Dürrenmatt (1921) A morte da Pítia serve-nos de base para utilizá-lo como interlocutor nesta tentativa de discussão. Esse escritor problematiza a fábula do oráculo de Édipo. A personagem central, Paniquis XI, é a sacerdotisa délfica que devia responder a mais um jovem que perguntava se seus pais eram realmente seus pais. Realizado o oráculo que a Pítia considera inverossímil, “uma real bobagem”, pois seu cansaço, na tardia hora do dia em que Édipo chega, seu mau humor, fazem com que lhe diga seu oráculo “zombeteiro”. Descarta que seus ditos desencadeiem uma desgraça ainda que perceba nesse jovem uma “credulidade extraordinária”. Até aqui, poderíamos dizer que, efetivamente, Édipo é mais um que se pergunta sobre suas origens, “de quem sou filho?”, ou melhor “de que sou filho”? Se essas perguntas aparecem, e não só aos jovens gregos, não é mais que a tentativa de outorgar consistência à inconsistência da nomeação: sou teu pai, és meu filho. Tal afirmação parece não ser suficiente, mais que isso, abre todo um espectro de fantasias sobre o que quer o Outro. Se esse “tu” sanciona, o faz enquanto reconhecimento de um lugar, há um giro reversivo no qual aparece então “eu sou outro”. A fábula do sujeito tratará de inscrever, enquanto esboço, essas duas frases. A filiação se produzirá como efeito da fenda no tempo, instaurando antes e depois.

 

A CRENÇA

Então a primeira questão seria: há uma dúvida, a nomeação não é suficiente. Segunda questão a levar em conta: a pergunta é formulada a quem se supõe que sabe. A Pítia não precisa crer em seus oráculos, ela sabe bem que não são mais que invenções, sabe que o Sacerdote Méropo XXVII exigia que ela dissesse o que esperavam ouvir, sabe que as questões políticas, sociais e sexuais implicavam tramas complexas, nas quais as lutas por poder se inscreviam. Para ela, dizer bobagens era humilhante, e se diferenciava de sua antecessora por não querer divagar, quando chegasse a velhice, motivo pelo qual pensava em aposentar-se antes de suportar essa indignidade. “Ela mesma não acreditava em suas respostas, mas pretendia zombar com suas profecias daqueles que nelas acreditavam, com o que só conseguia despertar uma fé sempre mais incondicional nos crentes”.

O trágico (da tragédia grega à filosofia moderna) não é tanto a ação, mas o juízo: “… e a tragédia grega instaura primeiro um tribunal” (Deleuze, 1996, p. 46). Este juízo implica uma forma moral de conhecimento, de acordo com a qual a existência está relacionada com o infinito seguindo uma ordem no tempo: o existente tem uma dívida pendente com Deus. Essa dívida, na qual se crê, não é simples; se há dívida é que há reconhecimento do Outro, justamente no ponto em que a existência “se deve” a que esse “dever” reconhecer chega do Outro.

A crença, em deus, em deuses, no que quer que seja, é crença pela metade, o que “não quer dizer que crença e descrença sejam simples e completamente reversíveis” (Ritvo, 1999, p. 37). Ritvo formula que o tema não se baseia no que se crê ou não, mas no que crê ou descrê o sujeito, pois para o inconsciente o que está em jogo é “seu nome”, não o de Deus, o “seu” do crente. Interessante formulação em relação ao que estamos tratando, pois Édipo será Édipo enquanto esse “seu nome” é o que o Outro sabe que é seu nome, e ele ali, nesse “seu”, decide reconhecer- se. O paradoxo se apresenta namedida em que não há no Outro nenhum lugar onde possa estar inscrito o nome verdadeiro como sujeito da enunciação.

 

A INTERPRETAÇÃO

Duchamp dizia que gostava da palavra crer, pois em geral quando se diz “se”, não se sabe, se crê.

Freud em Construções em análise, formula a pergunta sobre o que diferencia um delírio de uma interpretação, e formulará a questão pelos efeitos assimétricos de um e do outro. A capacidade do acontecimento (interpretação ou delírio) reside na potência do fragmento de “verdade histórica” que revela, a força compulsiva da crença que ela captura ou cativa. A análise não descobre uma verdade primeira oculta, após as deformações históricas, mas a capacidade para integrar esses disfarces em uma dimensão de “verdade histórica”, uma fenda, o trauma, que suprime uma linha temporal e que situa o sujeito em relação a seu gozo. No texto “A negação”, dirá que o reconhecimento do inconsciente, na forma da negação, não implica sua modificação, mas precisa da elaboração, através do trabalho sobre a resistência; e dividindo o texto em duas partes, a segunda realizará uma teorização sobre a gênese do pensamento enquanto desmentido referido também a dois tempos (afirmação e negação). Lacan falará da interpretação como resultado (o desejo); a eficácia simbólica implica que o analisante, “tome” este dizer em seu próprio discurso, ou seja, a elaboração do recusado, do desmentido, liga-se através do trabalho da repressão. No Seminário O Aturdito, Lacan (1972) diz: “o sujeito como efeito de significação é uma resposta do real” (p. 28); não há sujeito que não seja sob a forma de um retorno.

Se há leitura analisante, há narrador analista. Narração que constrói interpretando. Narração que é ato. Sobre a formação do discurso do analisante, se desvela o sintoma, é lido, ainda mais, não apenas desvelado, mas roubado da repetição. Não seria suficiente supô-lo cativo de uma história esquecida, escrita com signos ambíguos, mas que, como construção, essa “verdade histórica” há de nascer. Interpretações — fragmentárias, polissemânticas, audazes, mínimas, atonais — inseparáveis da leitura a posteriori, que atuam sobre o emissor e sobre quem a recebe, pois não é senão a interpretação do analista interpretada pelo analisante. A voz da interpretação suporta na transferência o pronunciamento diferencial, a alteridade do sentido.

O ato interpretativo poderia ser definido como des-escritura, desescrever o que teria podido imporse como Uma escritura. Ato que se iguala ao tato. Ouvir o instante da diferença mínima. Tato que ativa a manifestação do inconsciente, que não diz o sentido mas abre à significação. Refere-se ao que preside seus encontros, àquilo que o acompanha, e que de certa maneira, des-ouve, obedecendo. Superego. Poderia ser traduzido como Palavra e Mandamento como faz Levinas, ou Liberdade ou Mandamento como Rosenzwieg, imperativo que faz surgir a subjetividade.

“O que o sujeito conquista na análise não é apenas esse acesso, uma vez mesmo repetido sempre aberto, é na transferência alguma outra coisa que confere sua forma a tudo que vive — é sua própria lei, da qual, se posso assim dizer, o sujeito apura o escrutínio. Essa lei é, primeiramente, sempre aceitação de algo que começou a se articular antes dele, nas gerações precedentes, e que é, propriamente falando, a Até.” (Lacan, 1990, p. 358).

Por que tentar fazer uma analogia entre oráculo e interpretação? A diferença apóia-se nesse efeito temporal do tempo desencurvado. Na fenda da interpretação, o analisante separa passado e futuro, faz linha, se filia separando-se, produz a diferença com o oráculo, pois não é mais do que o escutado na clínica; ou seja: o analista é arrastado pela construção1.

 

A FENDA

No relato até aqui, encontramos duas situações: a Pítia, inscrevendose em uma linha, diferenciando-se, e o Édipo crente. Mais adiante, se incorpora Tirésias, que, como adivinho solicita a Paniquis que profira um oráculo para um de seus clientes feito por ele mesmo. Prática corrente mas que a Pítia detesta, como detesta Tirésias, pois esses adivinhos proferiam oráculos que perseguiamum objetivo preciso e ocultavam corrupção e manipulação política. Tirésias solicita que se vaticine a seu cliente, Creonte, que a peste que assolava Tebas só desapareceria quando houvessem descoberto o assassino de Laio, ainda que soubesse que a peste acabaria com a construção de um esgoto. Paniquis esquecida de seu oráculo zombeteiro e de Édipo, não relaciona este pedido com seu vaticínio anterior, pelo qual, ao considerá-lo trivial, concorda. Mas depois aparecerá Édipo diante da Pítia, acompanhado de sua filha Antígona, convertido em um mendigo cego, que lhe confirma que sua profecia se cumpriu, assassinou seu pai Laio e deitou-se com sua mãe Jocasta. A Pítia reflete sobre como os homens traçam seus destinos e começa a juntar os fatos, e pensa que “tudo não podia ser casualidade”. Motivo pelo qual se lança a investigar e no Livro dos Oráculos, no qual eram registradas todas as profecias de Delfos, encontra um oráculo realizado pela sua antecessora a Laio, solicitado e pago por Meneceu, o pai de Jocasta: se tivesse um filho, este o assassinaria. O primeiro oráculo tinha sido fruto da corrupção, e o segundo tinha se cumprido por acaso.

Retroação, o segundo inscreve o primeiro em uma linha de contingência, na qual o impossível dá lugar ao necessário: deve-se inscrever. A Pítia procura fazer história dessa contingência, e sustentar um lugar possível para ela. A morte se aproxima e sua curiosidade aumenta. Nesse estado, aparecem para ela figuras fantasmagóricas que contam sua própria história e dão a explicação dos fatos: primeiro Meneceu que, em função de que seu filho Creonte tivesse tomado o poder, combina com Tirésias para que seu filho seja o Rei de Tebas. Depois aparece Laio, que diz não desconhecer a origem do oráculo que lhe foi destinado, e organiza por sua vez outra profecia que implica a morte de Meneceu; no que diz respeito a Édipo, duvida se é seu filho ou não e, como além disso ele não gostava de mulheres, era melhor livrar-se do menino.

Depois virá Édipo. Esse expressa que, ao apresentar-se diante da Pítia, já sabia que não era o filho dos reis de Corinto, Paniquis sente-se enganada. Alentava-o o ódio por aqueles que o haviam abandonado sendo lactante e lhe tinham perfurado os pés. A quem matasse seria em quem se cumprira a profecia, motivo pelo qual, quando em uma encruzilhada matou um ancião irascível, sabia que era seu pai, pois “a quem mais teria podido matar além dele? Se matei alguém, foi um insignificante oficial, cujo nome esqueci.” E para surpresa de Paniquis acrescenta: “Queria ser Rei de Tebas, e com furioso frenesi me deitei com minha mãe, e lhe plantei com toda má fé quatro filhos, porque os deuses assim o queriam, deuses que aborreço ainda mais que a meus pais, e cada vez que fazia amor com minha mãe a odiava mais que antes”.

Não há incesto possível, nem sequer em Édipo; a questão se formula com o Outro: os Deuses são quem assim o queriam, são a quem Édipo obedece e se revolta, cumpre a vontade deles e os insulta. Jocasta não é mais que outro rebaixado e odiado; são os deuses impenetráveis, aos quais Édipo não pode alcançar. Para os gregos, a religião é epifânica, ou seja, os deuses se manifestam e habitam no mundo fenomênico, são imanentes e não transcendentes. Em contraposição com a mentalidade semítica (judia-cristã, muçulmana) o que é divino é o mundo, que não é criado ex nihilo por um deus que fica fora da natureza. Pelo contrário, a natureza – que abrange a totalidade do existente – é o âmbito dos deuses, por isso sensu stricto entre os gregos não há nada “sobrenatural”, não há nada “sobre” a natureza. Esta noção só aparece com o cristianismo.

A demanda, que o sujeito crê que recebe do Outro e se expressa através de: “o que queres de mim?” é respondida: “Serei para ti _ promete o sujeito ao Outro _ o que terás querido que seja”. Mas também o que não terás querido. Oportunidade que oferece a polissemia, a escritura constante das percepções2.

Produzir a aparência como lugar de inscrição. Construções em análise, tal como o descreve Freud, produz o discurso do analisante como sintoma, superfície. Mas por sua vez, essa superfície é fluxo e refluxo de energia libidinal. Nem finalidade nem causa, nem razão: formação de Eros que detém o nomadismo da pulsão de morte.

Sófocles faz Édipo dizer, dirigindo- se a Jocasta: “Ah, ninguém pode negar que um deus nefasto e adverso decretou contra este infeliz homem este cúmulo de desgraças! Não, não, oh sagrada majestade dos deuses, nunca veja eu este dia! Morrer mil vezes antes, perderme da vista dos mortais, antes de ver a mácula horrenda sobre mim!”. Arrancar-se os olhos não foi mais que um escárnio para os deuses, pois com júbilo triunfalista inicia um processo contra si mesmo; tal como Sísifo, o castigo dos deuses tornase seu triunfo sobre eles. Não há destino senão da própria escolha forçada. Édipo é chamado por Sófocles “atheos”, que não quer dizer ateu _ o não crente, sem deus _ mas o separado de Deus.

Quando aparece Jocasta e conta que ela já sabia que Édipo era seu filho quando se deitou com ele, não faz mais que afirmar uma nova verdade, Laio não era o pai, mas um oficial insignificante. Aqui o conto não faz mais que sustentar que a verdade se cumpre ao pé da letra, está escrito: Édipo matará seu pai. Jocasta declara que o único que amou foi Édipo, e que este a ama mais que a sua própria vida, e por isso arrancou os próprios olhos ao saber que ela era sua mãe, e que não se enforcou por sua própria mão, mas por um oficial ciumento que a acusa de incestuosa. Jocasta acrescenta que cumpriu com a vontade dos deuses em todo sentido.

 

A VERDADE

Aqui começa a complicar-se a temática, pois aparece Tirésias para contar sua verdade. Havia razões políticas pelas quais proferiu aqueles oráculos que desembocaram na tragédia, mas não tinha sido essa sua intenção, mas, pelo contrário, eram razões de estado que o motivaram, pensando no bem dos gregos, ainda que nada resultasse de acordo com o que tinha previsto.

Pítia e Tirésias se envolvem em uma discussão sobre quem, das sombras que se apresentaram, mente; todas e nenhuma, pois nenhuma história é secundária. Acrescenta-se a essa história a aparição da Esfinge, que é a filha de Laio e que pediu a Tirésias que lhe dissesse que fosse vêla com seu cocheiro Polifonte. Este viola a Esfinge e, na época em que Jocasta da à luz a Édipo, nasce o filho daquela. Laio lhe ordena que atire seu filho e Édipo, com os pés perfurados, às leoas; o pastor que traz tal mensagem foi subornado por Jocasta para entregar o menino aos reis de Corinto, por isso a Esfinge o embriaga e troca um menino por outro. Desta forma, o menino que chega a Corinto é seu filho, e o outro é atirado às leoas. Quando Édipo jovem chega à encruzilhada, mata Laio e Polifonte e torna-se amante da Esfinge, novamente a profecia é cumprida.

“Por que será que os homens só dizem a verdade aproximadamente, como se na verdade não importassem sobretudo os detalhes?” (Dürrenmatt, 1990).Em O nascimento da tragédia, Nietzsche diz: “O conhecimento mata o atuar, o atuar implica estar envolto pelo véu da ilusão. (...) o autêntico conhecimento, a visão da verdade horrenda, pesa mais que qualquer outro motivo que instiga a atuar...” (1999, p. 100).

O que problematiza Nietzsche é que a arte trágica, a arte em geral, consiste em suscitar a aparência de um mundo no qual os enigmas são solucionados rapidamente; quanto mais nos esforçamos por conhecer as leis da vida, mais precisamos da aparência da simplificação. A tragédia imprime sobre o infortúnio uma dimensão universal, transindividual, sendo a resposta à angústia fragmentária que nos evocam a morte e o tempo. Sobre o silêncio da verdade o véu da ilusão. Sobre o horror o olhar que atua.

 

A FILIAÇÃO

Se Édipo acreditou no oráculo desde o princípio e o primeiro homem que matou foi o cocheiro Polifonte e a primeira mulher à qual amou foi a Esfinge, por que não suspeitou que seu pai tinha sido o cocheiro e sua mãe a Esfinge? Porque preferiu ser filho de um rei a de um cocheiro. Ele mesmo escolheu seu destino, responde Tirésias.

Partamos de onde partamos, há escolha. A crença no Outro implica que a interpretação é do sujeito. O que é que torna possível que um sujeito em determinado momento possa “tomar” uma decisão, possa escolher? Dever escolher? É “tomado” por um ato que cortará o tempo linear? O momento da decisão é sempre instante. A decisão, enquanto tal, corta o alento, é sopro, deixa a palavra à sufocação de sua própria escolha. Cada instante deixa aos sujeitos a responsabilidade de dar ar novo à inscrição _ ou não _ de sua resposta. Uma “escolha autêntica” não é jamais a escolha disto ou daquilo, é a escolha de escolher, a escolha entre a escolha e a não-escolha. “... um sujeito não pode nunca decidir nada: um sujeito é precisamente aquilo em que uma decisão só pode chegar por acidente periférico...” (Derrida, 1997, p. 56).

A genealogia não é algo que aparece desde o princípio da origem; ir buscá-la nas marcas de nascimento provoca o risco de cair na crença sobre a possibilidade de “torná-la verdadeira”, sustentando que suas marcas são as do destino. Pois se genealogia quer dizer origem e nascimento, também implica distância ou diferença da origem. Essa diferença o sujeito a encontra “de repente” (por um acaso necessário), um golpe que faz soar uma melodia referencial e cria, no retorno atravessado pela Lei, a genealogia. Agora, esse retorno toma as montagens normativas de uma sociedade como materialidade da linguagem. Diz Legendre: “Não há sistema de Referência, com efeito, mais que articulado sobre uma mitologia que coloque em cena o homicídio e a questão de sua consumação. É assim como procede a montagem do proibido na humanidade: representando uma cena a partir da qual se estabelece a separação entre a Lei e o Sujeito” (1994, p. 23).

Deleuze (1997) trabalha a novela familiar revelada por Freud, enquanto construção do sujeito moderno. A novela familiar do neurótico, diz Deleuze, é apresentada por Freud como a novela na qual o neurótico fantasia suas origens. Falanos do tema libidinal da riqueza e da pobreza; ou bem o sujeito fantasia suas origens sob a forma: sou de origem inferior, não sou filho da mamãe, sou filho da criada, ou bem sob a forma: sou de origem superior, sou filho de um príncipe, mamãe me teve com um príncipe. Em todo acontecimento de decisão, diz Derrida, o indeterminado fica aprisionado, alojado, ao menos como um fantasma. O exemplo do primeiro tipo de fantasma, conversão para a origem pobre, está no texto de Sófocles “Édipo Rei”, no qual Édipo diz a Jocasta: “É necessário que, a qualquer custo, encontre minhas origens”, e Jocasta lhe responde: “Não te ocupes disso, o que podes fazer?”, e Édipo acrescenta: “Tu te ris do problema da origem porque es de uma família brilhante e rica, enquanto eu, sou filho de um pobre pastor, sou filho de uma família pobre, triunfei graças a meu próprio mérito”. Faz uma verdadeira novela familiar, e voltando-se para Jocasta, lhe diz: “Se tu não queres conhecer minha verdadeira origem, é que te envergonhas de minha verdadeira origem”. Freud em um primeiro momento, quando descobre a novela familiar, não o faz com relação à neurose em geral, mas na paranóia, e então capta, em uma espécie de apreensão, toda a riqueza de um investimento sexual do campo social como investimento sexual. O indeterminado forma parte do laço paradoxal da filiação, na decisão absurda e acidental de um conhecimento que nos é velado. Parafraseando Deleuze, diremos que nos tempos da subjetividade, a produção social não é nunca independente da forma da própria produção humana. A maneira em que são produzidas as manifestações sociais (científicas, econômicas, políticas etc.) não é nunca independente das categorias fundamentais da produção humana: aliança e filiação.

Lacan em O tempo lógico e a asserção de uma certeza antecipada. Um novo sofisma, problematiza o sofisma como “um saber que não aporta nunca nada que não possa já ser visto de uma só vez”, é na temporalidade e não no espacial que o processo lógico obtém sua resolução. Há na suspensão do tempo uma evidência subjetiva que obriga o indivíduo a precipitar-se. O juízo assertivo, nos diz, manifesta-se por um ato, o qual se adianta à certeza em uma precipitação na qual “o momento de concluir o tempo para compreender, há de durar tão pouco como o instante do olhar”. Este ato (de precipitação) atravessa de um modo único o sujeito, e obriga-o a suturar de um modo novo seu próprio passado, suas próprias condições. Mas há algo mais que Lacan observa e é que “se, nessa corrida para a verdade, é apenas sozinho, não sendo todos, que se atinge o verdadeiro, ninguém o atinge, no entanto, a não ser através dos outros.” (Lacan, 1987, p. 212).

A Pítia se questiona sobre o estatuto da verdade, e Tirésias lhe responde que não se torture, que não continue às voltas com esse assunto ou continuarão subindo sombras do abismo e a impedirão de morrer. Talvez haja um terceiro Édipo, o próprio filho do pastor, que depois de perfurar-lhe os pés entregou-o à rainha Mérope, e abandonou o verdadeiro Édipo (que por certo não o era) às feras, e por sua vez poderia haver um quarto Édipo, um filho que a rainha de Corinto haveria tido às escondidas com algum oficial da guarda e apresentado esse filho como Édipo.

Em todo caso foi Édipo quem quis ser Édipo. Ele acreditou. Hipóstase, uma vertente que enlaça a existência com o existir, como o formula Levinas (1993): “acontecimento à mercê do qual o existente se liga a seu existir”. O tempo da hipóstase é o presente, mas um presente que não é extraído de um tempo constituído de antemão; é um desgarramento que anuncia liberdade, ignora a história causando-a. É o tempo “dado” (Derrida, 1995), hipostasiado, no qual o sujeito percorre sua identidade e se nomeia. Derrida questiona Marion que apresenta que diante do “escuta”, o sujeito responde “ouço”, a chamada do Outro, aprisiona o sujeito “na função da chamada do pai, da chamada que depende – de – e – retorna ao pai e que, na verdade, diria a verdade do pai, inclusive o nome do pai e, por último, do pai enquanto aquele que dá o nome” (Derrida, 1995, p. 57), posto que isto seria dar um conteúdo determinável ao dom; apesar disso cabe perguntar-nos se o que explica Marion não é da ordem do que Derrida procura articular. Ou seja, se o dom é de tempo, o tempo não é mais que essa articulação da temporização na qual o desejo é differance, não seria outra coisa que esse movimento de limite que representa a metáfora paterna.

A filiação procede desse encontro singular e particular com o desejo. O desejo não tem intencionalidade, não recai sobre nenhum objeto. Não há desejo de... algo, mas diferença. Abertura pulsante. Dizer desejo de... é passar ao fantasma. O desejo não busca nada, obriga a sair dos circuitos nos quais a libido se aprisiona. O desejo está no campo do Outro, onde não há possibilidade de outorgar nome ao desejo. Ainda que a tendência seja fechar o buraco, nunca se consegue. Algo disto está em jogo no paradoxo da filiação, essa tendência nunca alcançada de fazer consistir o laço, mas que insiste.

Em nossa sociedade, em nosso tempo, onde estão e quem são os oráculos? Aqueles que dizem que nada escapa ao destino, que chegou o tempo de falar com a verdade, que sabemos quem é o pai da criatura? Se o homem foi antecipado e seus atos determinados, por que regeria ainda o tempo? Acreditamos que justamente, conforme Legendre, a privatização da referência impõe ao sujeito os ideais de auto-suficiência, marcando de antemão o que está certo e o que está errado, império introduzido pela política da Razão. E, nesse sentido, não há sujeito para além daquele fundado politicamente segundo a razão socialmente construída, em um tempo não circular, mas no qual suas coordenadas foram instituídas.

Tanto Paniquis como Tirésias tentaram com suas profecias aportar uma trêmula aparência de ordem, algum tênue vestígio de regularidade aos acontecimentos que presenciavam, pois a tentativa era contê-los. Um com humor, com graça: com maledicente habilidade. Outro com frio raciocínio, com lógica insubornável: com a razão. Tirésias se pergunta de que adiantou que a Pítia tivesse acertado e ele tivesse se equivocado. E despede-se dizendo:

“Assim como eu tentei submeter o mundo à minha razão, me vi defrontado neste úmido antro a ti, que procurou dominar o mundo com tua fantasia, assim também se defrontarão eternamente aqueles para os quais o mundo é uma ordem com aqueles para os quais é uma monstruosidade.... Uns qualificarão os outros de pessimistas, e estes insultarão aqueles chamando-os de utopistas. Uns afirmarão que a história avança de acordo com leis muito precisas, os outros dirão que tais leis só existem na imaginação dos homens...” (Dürrenmatt, 1990).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Eugenia Piazza
Dirección: Entre Ríos 590 8º piso “B” (2000) Rosario – Argentina
Tel: (0054) 0341 4489748
repiazza@fpsico.unr.edu.ar

Recebido em agosto/2004
Aceito em setembro/2004

 

 

NOTAS

1 Em Inventar lo real (1993), Claude Rabant formula: “O que não se diz na história, se repete. Mas o que não se diz não se reduz ao acontecimento silenciado ou à lei secreta, é a ausência de nome para um deslocamento e uma deformação que tornaram o acontecimento inacessível e a lei sem rosto. A coação de repetição não nos desapropria somente da causa de nossos atos mas do sentido que habita no real. Neste aspecto a culpabilidade é sem dúvida a primeira tentativa de reapropriar- nos do que nos escapa: o sentido da repetição.”
2 No grafo do desejo de Lacan, a coluna esquerda é da demanda, que o sujeito acredita que recebe do Outro e se expressa através de: “o que querer de mim?”, responde: “Serei para ti – promete o sujeito ao Outro _ o que terás querido que seja”. A coluna da direita é da repetição: a demanda é o ainda não da repetição, e a repetição é o que já era que, para ser o que será no campo da demanda, requer um corte que permita como “salto” entre o já era e o será, a emergência de um instante vazio. Lacan situa o significante da repressão primordial como significante binário, não há começo que não esteja, de antemão, (re) começado por um ponto de origem que não seja, propriamente falando, subtração de origem. Não há acontecimento sem estrutura, e não obstante, qualquer estrutura perdura no ser pela emergência de um acontecimento que a própria estrutura censura. Acaso suplementar que estabelece uma prega e fissura, uma ruga e brilho na indiferente superfície de nada, uma ficção de começo que é ficção intransponível sem perder por isso sua marca de trêmula inconsistência.
I Psicanalista, Docente e Pesquisadora da Faculdade de Psicologia da Universidade Nacional de Rosário, Argentina.

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