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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.9 n.17 São Paulo dez. 2004

 

FUNDAMENTOS

A transmissão da falta, a partir da leitura do seminário IV de Lacan

 

Lack´s transmission from a view of Lacan´s seminar book four

 

 

Ilana Katz Z. Fragelli*; Renata Petri

* Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo as autoras apresentam uma leitura do seminário IV de Lacan que enfoca, através da escansão de três tempos lógicos (Privação, Frustração e Castração), a transmissão da falta como eixo fundamental da constituição do sujeito.

Palavras chave: Transmissão da falta, Privação, Frustração, Castração.


ABSTRACT

This paper presents a view of the Lacan’s Seminar Book Four focused on the lack’s transmission as the main point of the subject constitution throughout three logical moments: privation, frustration and castration.

Keywords: Lack’s transmission, Privation, Frustration, Castration.


 

 

Em seu quarto seminário, Lacan aborda a constituição do sujeito a partir de sua relação com o objeto. No entanto, tal abordagem é feita de um modo muito específico, uma vez que aquilo que o autor tratou como relação de objeto é, na verdade, a relação com a falta do objeto. É mesmo Lacan quem nos indica a presença dessa idéia na obra de Freud.

A primeira estrutura do aparelho psíquico, formula Freud, é de um aparelho reflexo, constituído por neurônios regidos pela lógica de se manter livre de estímulos, descarregando as excitações recebidas pela via motora, ou simplesmente fugindo dos estímulos provenientes do mundo exterior. Essa inércia neurônica é interrompida por estimulações endógenas (fome ou sede: frutos de ausência de algo) que, ao criarem um estado de tensão, obrigam o organismo a realizar uma ação específica no mundo externo, única alternativa para diminuir a intensidade produzida no interior do aparelho pelo estímulo recebido. O aumento do estímulo é associado à produção de desprazer e sua diminuição, conseqüentemente, produz a sensação de prazer no aparelho. Nas palavras de Freud (1895): “Como já temos conhecimento de uma tendência da vida psíquica a evitar o desprazer, somos tentados a identificá-la com a tendência primária à inércia” (p. 33).

Um “indivíduo prestativo”1, afirma Freud, realiza a ação específica no mundo externo para o pequeno humano desprovido dessa possibilidade. Se o bebê chora porque tem fome e o outro atende sua demanda oferecendo o leite, o bebê poderá, então, cancelar o estímulo endógeno. Essa é a experiência batizada por Freud de vivência de satisfação, uma experiência decisiva para a constituição do sujeito que está por vir (1895, p. 32).

Já no texto do Projeto está claro que qualquer ação específica só terá sucesso, se for seguida de uma vivência de satisfação que elimine o estímulo interno e, desse modo, faça marca no aparelho, conservando um traço do percebido. É muito importante frisar que se trata de traços relacionados àquilo que foi experimentado como satisfação. Isso quer dizer que, em termos freudianos, diante da experiência de saciedade da fome não se inscreve o seio como objeto no aparelho. O objeto (da pulsão) sobre o qual Freud discorre não é uma coisa do mundo que se oferece à percepção, mas uma síntese, operada pela incidência da palavra, de representações dispersas que Freud denomina representações-objeto. Por exemplo, o que é investido não é o seio enquanto objeto que existe no mundo, mas a sua representação no aparelho, que não é a imagem e semelhança do peito. É a própria representação que é tomada como objeto.

Da próxima vez que a necessidade colocar o pequeno humano em estado de tensão, ele poderá recorrer a essa marca da memória para tentar restabelecer o apaziguamento relativo à satisfação. Freud (1895) explica: “Origina-se, através da vivência de satisfação, uma facilitação entre duas imagens recordativas e os neurônios nucleares que, no estado de incitação, são ocupados” (p. 33). Tal apaziguamento se produz como referência, uma vez que se relaciona ao registro da experiência, e não mais à vivência de satisfação propriamente dita. Freud ensina que aquilo que se apresentou como objeto para tal satisfação não será mais encontrado, estará para sempre perdido.

Nas palavras de Lacan: “Uma nostalgia liga o sujeito ao objeto perdido, através da qual se exerce todo o esforço da busca. Ela marca a redescoberta do signo de uma repetição impossível, já que, precisamente, este não é o mesmo objeto, não poderia sê-lo” (p. 13).

No Seminário 4, Lacan distingue três formas de falta de objeto, ou seja, três registros diferentes da falta, que se articulam para confeccionar o sujeito. São eles: a privação, a frustração e a castração. São três tempos lógicos distintos da transmissão da falta e cada tempo engloba e ressignifica o anterior, ampliando as possibilidades de circulação discursiva do sujeito.

 

PRIVAÇÃO

Há, num primeiro momento, uma relação supostamente dual entre a mãe e a criança. O bebê, sujeito da necessidade, grita frente à tensão orgânica causada pela fome. A mãe interpreta este grito como apelo, ou seja, vê-se convocada pela criança a satisfazê- la e responde, oferecendo o objeto alimento, objeto da satisfação da necessidade, acompanhado de uma tessitura desejante.

É importante ressaltar que, para a mãe poder interpretar este chamado da criança, é preciso que ela se tome como não-toda. Deste modo, a mãe se apresenta como uma matriz simbólica para a criança, alternando-se entre presença e ausência.

A falta, no registro da privação, incide de modos diferentes para a criança e para a mãe. A mãe se vê privada da criança como representante do objeto de seu desejo, ou seja, como objeto simbólico. Já a criança é privada da mãe, enquanto objeto real da satisfação de sua necessidade (leite). O agente da privação para ambas é o pai imaginário, ou seja, qualquer movimento que venha interferir e romper com o transitivismo característico desta relação inicial entre a mãe e a criança.

Este seria o primeiro desencontro inevitável entre o movimento desejante da mãe e a necessidade da criança que, em 1964, Lacan elabora assim: “Pois, depois de tudo, por que a cena primitiva é tão traumática? Por que ela é sempre muito cedo ou muito tarde? (...) Trata-se, na experiência analítica, de partir do fato de que, se a cena primitiva é traumática, não é a empatia sexual que sustenta as modulações do analisável, mas um fato fictício” (p. 71).

Ainda que tudo se cumpra, há um “fora do tempo”, um (des)tempo que garante o desencontro necessário da mãe com a criança.

Há uma diferença importante a ser precisada: essa falta, quando incide no real, não está no sujeito. “A privação está no real, completamente fora do sujeito. Para que o sujeito apreenda a privação, é preciso inicialmente que ele simbolize o real” (Lacan, 1956- 57, p. 55). Lacan explica essa idéia através do exemplo da organização de uma biblioteca. Quando solicitamos ao bibliotecário um livro, ele pode nos responder, depois de procurar em suas estantes, que tal objeto não está no lugar e isso quer dizer que o livro não está disponível para ser retirado. Pode ser, porém, que o livro esteja colocado sobre a mesa do funcionário, no setor de “devolvidos”. O que essa cena nos mostra é que, apesar de o livro estar na biblioteca, esta última está privada dele. O bibliotecário, sujeito à lei de organização da biblioteca, vive inteiramente no mundo simbólico. Para ele, o livro fora do lugar designado simbolicamente está invisível.

Será exatamente a simbolização do real que permitirá à mãe introduzir a criança na ordem simbólica e essa operação será instituída a partir do tempo seguinte. privação, é preciso inicialmente que ele simbolize o real” (Lacan, 1956- 57, p. 55). Lacan explica essa idéia através do exemplo da organização de uma biblioteca. Quando solicitamos ao bibliotecário um livro, ele pode nos responder, depois de procurar em suas estantes, que tal objeto não está no lugar e isso quer dizer que o livro não está disponível para ser retirado. Pode ser, porém, que o livro esteja colocado sobre a mesa do funcionário, no setor de “devolvidos”. O que essa cena nos mostra é que, apesar de o livro estar na biblioteca, esta última está privada dele. O bibliotecário, sujeito à lei de organização da biblioteca, vive inteiramente no mundo simbólico. Para ele, o livro fora do lugar designado simbolicamente está invisível. Será exatamente a simbolização do real que permitirá à mãe introduzir a criança na ordem simbólica e essa operação será instituída a partir do tempo seguinte. privação, é preciso inicialmente que ele simbolize o real” (Lacan, 1956- 57, p. 55). Lacan explica essa idéia através do exemplo da organização de uma biblioteca. Quando solicitamos ao bibliotecário um livro, ele pode nos responder, depois de procurar em suas estantes, que tal objeto não está no lugar e isso quer dizer que o livro não está disponível para ser retirado. Pode ser, porém, que o livro esteja colocado sobre a mesa do funcionário, no setor de “devolvidos”. O que essa cena nos mostra é que, apesar de o livro estar na biblioteca, esta última está privada dele. O bibliotecário, sujeito à lei de organização da biblioteca, vive inteiramente no mundo simbólico. Para ele, o livro fora do lugar designado simbolicamente está invisível. Será exatamente a simbolização do real que permitirá à mãe introduzir a criança na ordem simbólica e essa operação será instituída a partir do tempo seguinte.

 

FRUSTRAÇÃO

Conforme descrevemos anteriormente, a partir do momento em que há incidência do chamado pai imaginário, que interrompe o ritmo da alternância entre a mãe e a criança, a primeira, que até então se apresentava como uma matriz simbólica, passa a se apresentar também como real. Ela aparece munida de grande potência à qual a criança se submete, numa dependência aterrorizadora. Lacan usa a figura da mãe insaciável para dar a dimensão da voracidade seu desejo.

Mas o que confere potência à mãe?

Os objetos que ela oferece à criança também sofrem uma mudança de estatuto e, em vez de objetos reais (leite), que, sob a ótica da criança, lhe seriam previsivelmente entregues, a mãe passa a ser a possuidora de objetos de dom simbólicos, que, por sua vez, estão sujeitos a uma outra lógica e assim podem ser oferecidos _ ou não _ à criança.

Os objetos de dom são os objetos símbolo do amor, que ganham terreno quando o objeto da necessidade é tomado pela via simbólica, implicando aí, no eixo pulsional, todo circuito das trocas e, no espectro do significante, as possibilidades de substituição do objeto propriamente dito.

Mas, para que essa operação seja possível, o objeto deve ser primeiro anulado como referente da necessidade, uma vez que o dom é formulado como aquilo que se dá pela mãe ao apelo da criança, e a criança só pode reivindicar aquilo que não está presente.

À criança resta, então, por causa de sua dependência radical dos objetos que a mãe oferece ou não, oferecer a si mesma como objeto da mãe. Isso acontece na tentativa da criança de conter o furor de satisfação da mãe e, assim, torna-se parte dessa economia psíquica, suportando em si um estatuto de objeto (em maior ou menor grau).

A criança, diz Lacan, se faz falo da mãe, na tentativa de garantir a oferta de objetos de satisfação. Este é um jogo de engodo, em que a criança obtura a primeira brecha que vislumbra porque lê que é a partir dessa brecha, do que não há, do que é falta na mãe, que o agente da função materna se lança em direções nem sempre coincidentes às relativas à sua própria satisfação. Trata-se de uma questão de sobrevivência: afinal para a criança a presença da mãe está diretamente vinculada à sua satisfação. Identificando-se ao falo, a criança restitui à mãe, mantendoa completa, ainda que ao preço de se manter alienada a ela.

É por esse caminho que se instala a dialética da frustração _ ou o paraíso do engodo _ articulada essencialmente em torno de três elementos: a mãe, a criança e o falo.

A partir do ingresso da criança na dialética da frustração, é importante ressaltar que, embora o objeto real não seja indiferente, não há necessidade alguma de ser específico. “Mesmo que não seja o seio da mãe, nem por isso ele perderá algo do valor de seu lugar na dialética sexual, de onde se origina a erotização da zona oral. Não é o objeto que desempenha, em seu interior, o papel essencial, mas o fato de que a atividade assumiu uma função erotizada no plano do desejo, o qual se ordena na ordem simbólica” (Lacan, p. 188).

Para o filho, não importa qual é o alimento que a mãe oferece, mas a posição a partir da qual ela faz esta oferta. Ela pode alimentar a criança a partir de seu corpo, situada apenas no eixo da necessidade, sem veicular o amor; tanto quanto oferecer uma chupeta e satisfazer a criança, na dimensão do dom.

A operação que se dá nesse momento de transformação do objeto real em objeto de dom é fundamental para introduzir a criança na ordem humana. Como já foi formulado, o dom se manifesta ao apelo, e “o apelo já é uma introdução, totalmente engajada na ordem simbólica, à palavra” (Lacan, 1956-57, p. 186). É a partir dessa transformação que podemos escutar as demandas da criança, já como uma tentativa de veicular um desejo ainda incipiente e responder a elas com um símbolo do amor, como um reconhecimento desse desejo. Esse reconhecimento se veicula na língua, com palavras, uma vez que o que está em jogo não é a oferta de um objeto determinado que possa destruir o desejo. Lacan (1956-57) enuncia que o dom-tipo é justamente o dom da palavra. “Desde a origem, a criança se alimenta tanto de palavras quanto de pão, e perece por palavras” (p. 192).

Um quadro que não é raro se instalar nesse momento da constituição e que coloca às claras esse funcionamento é o que Lacan chamou de anorexia mental, que não é relativo ao não comer, mas ao comer nada, algo que só existe no plano simbólico. Através desse sintoma, a criança inverte sua relação com a mãe e a coloca na sua dependência. O sujeito submete o capricho da mãe onipotente à sua força, articulada ao “comer nada.” O sujeito come nada para guardar vazio o espaço do desejo e não ser tomado pela via da necessidade. Assim, o objeto real (comida_nada), escapa da trama da satisfação relativa ao vital e torna-se signo da exigência de amor. Há uma satisfação que responde ao vital _ barriga cheia, mas isso é signo do dom, ou seja, nada em ter mos de satisfação pulsional, uma vez que a satisfação que está em jogo pela via da frustração (aquela à qual o sujeito faz o apelo) advém da ordem decepcionante do simbólico.

“É no nível do objeto anulado como simbólico _ pela mãe _ que a criança põe em xeque a sua dependência, e precisamente alimentando-se de nada” (Lacan, 1956-57, p. 190). E isso só é possível de ser engendrado, se a ordem simbólica já estiver operando.

Neste ponto, vale fazer um parêntese para pensarmos em qual dimensão essa lógica pode ter nas relações intersubjetivas, na atualidade. Vivemos num tempo em que é muito comum vermos pais e educadores impotentes ante as demandas da criança, incapazes de ler que, quando a criança reivindica um objeto da realidade, não é isso que ela deseja. Os adultos se engajam em satisfazê- la com a oferta de objetos reais, uma vez que tomam a falta como um vazio a ser preenchido em vez de como motor do funcionamento psíquico. É de fato característica do discurso social contemporâneo a veiculação da ilusão da completude e valorização do objeto por suas características reais de eficiência, velocidade, competência, preço etc., e não pelo lugar que ocupa numa série intersubjetiva. Para a criança, ganhar uma pedrinha que seu pai recolheu na beira de um rio, numa viagem, ao se lembrar de um passeio realizado em conjunto, pode ter o mesmo significado que ganhar um carrinho de controle remoto, referido a um hobby comum entre pai e filho. No entanto, o discurso capitalista recusa o engodo próprio dessa dialética da frustração, ludibriando os indivíduos de que o caminho de responder a demanda seria mais fácil e apaziguador, atribuindo valor ao segundo objeto, não pela importância que encontra dentro dessa relação específica, mas pelos atributos reais. Os pais, na tentativa de oferecer o “melhor” objeto, se atrapalham e se deixam capturar pela demanda social. As demandas insistentes e intermináveis das crianças vêm assinalar que não é do objeto real que se trata, o que se demanda é sempre o símbolo do amor, objeto de dom. Seria importante precisar que, para um objeto ser símbolo do amor, deve estar necessariamente relacionado à falta. Às vezes a maneira mais aplacadora do mal-estar da existência, angústia provocada pela falta, é o dom da palavra, muitas vezes veiculado na palavra não, que asseguraria para a criança que, mesmo que sua demanda não seja atendida, seu desejo é reconhecido, tendo como efeito um cessar da reivindicação, na qual o desejo pedia reconhecimento pela via da demanda.

Outra leitura recorrente dos adultos a respeito das demandas incessantes das crianças, sublinhado sobretudo no discurso pedagógico, é de que está querendo “chamar a atenção”. No entanto, essa leitura, apesar de não parecer totalmente equivocada à primeira vista, é superficial porque remete sobretudo a uma suposta necessidade da criança de ser o centro das atenções e de ser satisfeita permanentemente. Nesse sentido, incorre no mesmo equívoco apontado anteriormente. A criança parece chamar, sim, a atenção do adulto, mas não é escutada. Os objetos reais são oferecidos na tentativa de silenciar o incômodo derivado do desejo indestrutível, no entanto, não só fracassam nessa empreitada, como transformam as crianças em pequenas ditadoras e criaturas chatas. Observamos também uma outra possibilidade de leitura, a de que a reivindicação da atenção que a criança faz é o pedido direto pelo objeto de dom, sem desviar pelo objeto real. No entanto, pais e educadores, tomados pela lógica da satisfação pela via do objeto, muitas vezes não reconhecem o pedido de dom como um pedido legítimo. Dessa forma, o “só quer chamar a atenção” esvazia de sentido o apelo da criança, que mais uma vez não é escutada.

Retomando o caminho da constituição subjetiva, quando se instala, entre a criança e a mãe, a dinâmica relativa ao estabelecimento do dom, a criança vive um tempo no qual tudo parece caminhar bem. Ela é bem sucedida em seu papel de objeto enganador do desejo da mãe e, nesse sentido, a dialética da frustração parece dar conta da experiência com a mãe e o falo. Porém, em algum momento, essa pretensa harmonia se desestabiliza.

Do lado da criança, o encontro entre a pulsão real e o jogo imaginário do engodo produz a necessidade de uma nova organização. A pulsão que tem sua fonte no corpo, na organização fálica, conduz a criança à experiência de potência, porém, essa potência não é experimentada na relação com a mãe, para quem o “tudo” que a criança pode oferecer, é insuficiente. Por essa via, produz-se novamente um desencontro, necessário para desencadear a busca por uma nova organização.

O pequeno Hans se enrosca exatamente nesse momento. Ele vivia sua dialética da frustração com a mãe, que caminhava bem até se deparar com a emergência de seu pênis real e com o nascimento da irmã, cenas que o confrontam com sua situação de insuficiência em relação ao desejo da mãe. O pai real como agente da castração seria convocado nesse momento para solucionar o impasse, mas o pai de Hans não exerce essa função, o que o obriga a inventar outros elementos para resolver este situação, o que faz ao preço de uma fobia.

A fobia se apresenta como uma das soluções imaginárias e provisórias para o sujeito que, diante da mãe insaciável, serve-se desta como medida de proteção. A outra saída imaginária possível é o fetichismo, instituindo um objeto no lugar da falta.

Ao armar uma fobia, o sujeito está interessado em manter o engodo do falo, ou seja, ele produz uma resposta à castração materna que, apesar de já ter sido vislumbrada, consiste na tentativa de manter a mãe completa, sem falta. A criança tenta permanecer como objeto de prazer para a mãe, oferece-se como o que Lacan denominou neste seminário, metonímia do falo.

O sujeito recua ou volta atrás diante da constatação da falta na mãe. A criança pressente que alguma coisa é desejada pela mãe, além dela mesma, Mas, tomada pelas marcas da volúpia do desejo materno, ainda se esforça por ser aquilo que, pela via significante, sacia essa mulher. Temos aqui a cristalização de um estado que deveria ser provisório, uma vez que a criança fóbica mantém sua função fálica e de estruturação metonímica em relação ao desejo de completude da mãe.

A idéia da fobia como placa giratória _ apresentada por Lacan no seminário De um outro ao Outro, de 1969 _ introduz a formulação de que o estado fóbico, no tempo da constituição do sujeito, pode apresentar a consistência de um sintoma transitório, a ser desorganizado pelo movimento do desejo na própria criança, garantindo a estruturação de uma neurose. Ou pode ainda recolocar ao sujeito a possibilidade de estabelecer um objeto fetiche _ e não mais um significante, como fez na configuração da fobia _ no lugar daquilo que ele entende faltar à mãe, estruturando por essa via uma perversão.

A instalação do objeto fetiche é uma resposta bastante singular que a criança produz na direção da negação da castração materna. Por esse objeto, símbolo do pênis da mulher, a criança restitui a mãe de sua perda, mantendo-a fálica e poderosa. Nesse sentido, o sujeito realiza uma operação de positivação do objeto, que garanta o reencontro com ele. Dessa maneira, instituindo um objeto para obturar a falta materna, o sujeito se protege da voracidade do desejo da mãe. Para elaborar uma resposta como essa, é preciso que a criança já tenha vislumbrado a falta materna e ao mesmo tempo não tenha encontrado um elemento significante que a regulamentasse simbolicamente. Dessa maneira, resolve o impasse em que se encontra dentro da tríade imaginária, negando a castração materna com a interposição do objeto fetiche, que tem a função de velar aquilo que o sujeito não pode admitir que a mãe não tem. O fetiche é uma resposta ao horror da castração, diante da qual cria-se um monumento, um substituto para ela.

Além dessas saídas imaginárias e sintomáticas que a criança inventa, na trama edípica, para lidar com a castração materna, há também uma saída simbólica. Essa ocorre quando a criança encontra no campo do Outro um novo elemento para fazer frente a esse impasse. Esse elemento é o agente da função paterna que, ao incidir sobre a relação da criança com a mãe, avança para o registro da falta nomeado como castração. Como veremos, para que o Édipo cumpra sua função normativa é preciso que ele faça sua conclusão na castração.

 

CASTRAÇÃO

É o pai real2 o agente que pode vir regular esse novo (des)encontro entre mãe, criança e falo, instituindo um quarto elemento para operar a castração materna e, assim, liberar a criança do desejo insaciável da mãe. Essa seria a saída pelo complexo de castração, terceiro registro possível da falta, que oferece uma estrutura simbólica por meio da operação da lei que regulamenta as trocas humanas: a interdição do incesto. É nesse ponto que a incompletude é legalizada, a transmissão da castração apazigua o sujeito, pois a falta ganha, definitivamente, estatuto de motor psíquico e não de vazio a ser preenchido.

A partir da incidência da operação simbólica da função paterna, o falo, objeto imaginário da dialética da frustração, é elevado ao estatuto de objeto simbólico e pode, então, ser buscado tanto pelo menino como pela menina. Depois dessa operação de castração, a criança sai marcada em relação ao falo, com um sinal de mais ou de menos. Afinal, numa dialética simbólica, “o que não se tem é tão existente quanto o resto” (Lacan, 1956- 57, p. 125). Mas o que importa é que está marcada por ele e isso é o que vai vetorizar suas buscas posteriores. O falo é a moeda principal que possibilitará as futuras trocas da criança com o Outro.

É isso que Lacan (1956-57) formula no seguinte fragmento: “A partir desse momento de virada, o objeto não é mais o objeto imaginário com o qual um Outro é sempre capaz de mostrar que o sujeito não o tem, ou o tem de forma insuficiente. Se a castração exerce esse papel essencial para toda a continuação do desenvolvimento, é porque ela é necessária à assunção do falo materno como um objeto simbólico. Somente a partir do fato deque, na experiência edipiana essencial, ela está privada do objeto por aquele que o tem, que sabe que o tem, que o tem em todas as ocasiões, é que a criança pode conceber que esse mesmo objeto simbólico lhe será dado um dia” (p. 213).

Assim, a saída neurótica do engodo da frustração é operada pela via da função paterna: o pai real comparece como agente da introdução de uma falta simbólica de um objeto imaginário: o falo. A castração vem dizer para o sujeito que seus objetos imaginários, apesar de estarem postos no lugar do que falta, não fazem completude. Nesse sentido, o atravessamento do Édipo desembocado na castração é uma saída simbólica e por isso mais estável. Esse é o momento crucial da estruturação do sujeito, uma vez que a castração reordena as relações do sujeito com a falta e dá um novo estatuto ao falo, que de objeto imaginário é alçado a condição simbólica: como significante da falta, servindo de suporte para o jogo das infinitas substituições às quais o sujeito irá se submeter no decorrer de sua vida. Nesse sentido, se estabelece para a criança o que Lacan chamou de “jogo de quem perde, ganha”. A criança perde a ilusão da completude materna e ganha pertinência social, amplia seu circuito de trocas.

Para que o sujeito se constitua, é imprescindível a transmissão da falta. É próprio do humano que a satisfação não seja alcançada pelo encontro com o objeto, a satisfação pulsional é parcial e promovida pelo exercício do desejo, guardado pela manutenção da falta, que Lacan formulará mais tarde como o impossível da relação sexual.

A neurose como estrutura se arma aqui, como articulação do desejo insatisfeito, no caso da histeria, e impossível, na neurose obsessiva. Em ambos os casos, seu funcionamento e organização estão baseados na transmissão da falta como motor do desejo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Freud, S. (1895). Projeto de uma psicologia. In: >Obras isoladas de Freud. (Trad. Osmyr Faria Gabbi Jr.) Rio de Janeiro: Imago, 1995.        [ Links ]

Lacan, J. (1956-57). O seminário – livro 4: a relação de objeto. Texto estabelecido por Jacques Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

_______. (1964). O seminário – livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

 

 

Endereço para correspondência
Ilana Katz Z. Fragelli
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Recebido em junho/2004
Aceito em agosto/2004

 

 

NOTAS

1 Terminologia sugerida por Osmir Faria Gabbi Jr. (1995), em sua tradução comentada do texto do Projeto.
2 É importante ressaltar que tal operação não é realizada pelo pai simbólico que, neste seminário, é definido por Lacan nos termos de uma construção mítica.

 

 

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