SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 número17A transmissão da falta, a partir da leitura do seminário IV de Lacan índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.9 n.17 São Paulo dez. 2004

 

RESENHA

Mônica Yumi Jinzenji1

Centro Universitário de Belo Horizonte, MG

Endereço para correspondência

 

 

A infância e sua educação: materiais, práticas e representações (Portugal e Brasil)

FARIA FILHO, Luciano Mendes de (org.). Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2004, 228 p.

 

 

Este livro representa um dos resultados da produção do Grupo de Trabalho para a História da Infância e dos Materiais Educativos e Lúdicos (GRUTHIMEL), grupo constituído por pesquisadores(as) e professores(as) de diversas instituições de ensino do Brasil e de Portugal, coordenado por Luciano Mendes de Faria Filho (Universidade Federal de Minas Gerais) e Rogério Fernandes (Universidade de Lisboa).

Diversos autores trabalham o tema infância nos contextos brasileiro e português modernos e especialmente os séculos XIX e XX. São utilizadas fontes diversificadas, de naturezas distintas, como textos legais, literatura, documentos escolares, tratados de pedagogia, entre outros, apresentando a infância na sua pluralidade. Assim, o conjunto de trabalhos reunidos nos apresenta a multiplicidade das “infâncias” na sociedade luso-brasileira, cada qual marcada por particularidades que denotam a própria complexidade na análise da infância como categoria histórica; desse modo, para além das divisões etárias, próprias de cada época e lugar, a infância é permeada pela sua condição de classe, gênero, raça e cultura, tais como crianças enjeitadas, crianças delinqüentes, alunas, meninos em internatos, crianças pobres etc.

Apesar da multiplicidade de infâncias retratadas, o conjunto dos textos apresenta eixos comuns, sendo um deles o que impõe alguns limites à pesquisa em história da infância. A infância vivida e sentida pelas próprias crianças nos momentos históricos aqui pesquisados, dificilmente deixou registros, fazendo com que as pesquisas sejam feitas a partir da visão dos adultos a seu respeito, seja pelo estudo de documentos produzidos por esses adultos, seja pela memória destes em relação ao próprio passado; o que temos acesso, então, na grande maioria das vezes, são as representações dos adultos sobre esse período da vida, o que não traduz nem esgota a vivência infantil. Nesse sentido, torna-se mais apropriado falar de uma história sobre a infância e não uma história da infância (Kuhlmann Jr., 1998).

Um outro ponto de encontro entre os textos é resultante da discussão anteriormente colocada. Na medida em que as fontes se referem ao registro do adulto sobre as crianças, os discursos acabam por se referir às possibilidades de intervenção voltadas para o sujeito infantil, seja via educação escolar, o cuidado médico/higienista, a ordenação legal/penal e moral, entre outros. A infância, no conjunto das pesquisas, é vista como momento para intervenções que têm a infância não como fim último, mas como meio para se chegar
a um adulto civilizado, uma sociedade harmoniosa.

O conjunto de nove textos foi organizado em torno de três temas, sendo o primeiro, intitulado Sentidos da Infância. O primeiro artigo é de autoria de Moysés Kuhlmann Jr. e Rogério Fernandes - Sobre a história da infância; Cynthia Greive Veiga discute, em seguida, sobre a Infância e modernidade: ações, saberes e sujeitos e, por fim, António Gomes Ferreira e Carla Cristina Lima concluem esta primeira parte com o texto: Menores em risco social e delinqüentes no século XIX e princípios do século XX à luz da legislação portuguesa.

Kuhlmann e Fernandes discutem os conceitos de criança e infância no sentido etimológico e os significados das diversas denominações utilizadas desde a Idade Média para as divisões e denominações geracionais. Os autores propõem a revisão da obra de Philippe Ariès, História Social da Criança e da Família, apontando a inconsistência em afirmar a ausência da percepção da especificidade infantil na Idade Média e na Antigüidade. Apontam a escola como importante instituição que irá marcar a distinção entre o mundo infantil e o mundo adulto, transformando a criança em aluno, sujeito esse que deve ser preparado para o mundo adulto.

Os autores discutem a categoria infância e sua utilização em pesquisas historiográficas, enfatizando a importância de relacioná- la com outras categorias, tais como a gênero, etnia, classe social e o contexto sócio-político e cultural para não tematizá-la de forma abstrata. Abstração essa que muitas vezes condiciona o olhar adulto a uma busca pela infância perfeita, idealizada, sem a qual acredita-se que ela não tenha existido _ que algumas crianças não tiveram infância.

Veiga igualmente propõe uma superação da interpretação de Ariès para a percepção da especificidade da infância e busca compreender o lugar da criança nas sociedades ocidentais modernas, a partir da reflexão sobre a própria modernidade.

Segundo a autora, a produção da infância como período geracional distinto do adulto se coloca como desdobramento de importantes mudanças de costumes que tinham como foco a produção da condição de adulto civilizado. Substituindo comportamentos rudes e primitivos pelo hábito cortês, o adulto civilizado constituiria uma sociedade civilizada. Para a manutenção dessa sociedade harmoniosa, a criança, o quanto antes, deveria também ter suprimida a instintividade pela educação do corpo. Segundo a autora, a modernidade reservou também uma condição específica de ser mulher: voltada para a vida familiar e preparada para a formação da criança civilizada. Em consonância, sobretudo no século XIX, as pedagogias formulam princípios para a educação da criança, contribuindo para a produção da infância escolarizada.

Ferreira e Lima analisam, a partir de registros judiciais de meados do século XIX às primeiras décadas do século XX, as concepções de marginalidade, as punições previstas para os atos ilegais cometidos e o lugar da criança nessa codificação penal. O estudo dos Códigos Penais do período indica mudanças que tendem para uma atenção mais cuidadosa em relação às crianças, além de um tratamento mais humano e justo, uma vez que se passa a pensar na punição tendo como fim, a recuperação do infrator e a segurança da sociedade, não unicamente como reclusão. Educação e profissionalização passam a ser recursos utilizados para a atenuação da criminalidade. Na transição entre os séculos, os autores ressaltam a elaboração de um direito penal próprio para menores, ainda que, desde meados dos oitocentos, a idade cronológica tenha sido referência para a definição das penas e para a determinação da imputabilidade.

A segunda parte do livro tem como tema Faces da exclusão e agrupa os textos de Alberto Lopes, A colônia precisa de crianças: considerações sobre o projeto de envio de menores para Angola (1927- 1934); José Gonçalves Gondra, Filhos da sombra: os “engeitados” como problema da “Hygiene” no Brasil e João Amado, Pequenos guerreiros e caçadores: folclore bélico e cinegético das crianças pobres, na obra de Aquilino Ribeiro.

Lopes investiga um projeto do Comissariado Geral de Angola (1927) que propunha o envio das crianças órfãs, abandonadas sob tutela do Estado e as internadas em casas de correção em Portugal no processo de manutenção do império colonial em Angola. Para a mesma finalidade, passariam a ser enviados para lá os criminosos condenados ao degredo, o que corresponderia
a beneficiar a metrópole duplamente: libertar-se de elementos nocivos e indesejados e utilizar essa mão-de-obra para benefício do Estado.
Era previsto também o envio de Missões religiosas para a instrução e formação moral das crianças enviadas, numa intenção de disseminar
a fé católica e combater as demais crenças religiosas e também civilizar a colônia.

Gondra analisa, a partir de teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro datadas de 1855 a 1859, os argumentos utilizados para a difusão da medicina higienista. Entre eles, a discussão em relação ao recolhimento dos expostos, cuja institucionalização explicitava o caráter moral-religioso incorporado pelo discurso médico. Essa aliança visava a difundir e reforçar o cristianismo e também legitimar, através dela, as intervenções na sociedade com práticas higienistas, prescrevendo a localização, caracterização e funcionamento dos hospícios dos enjeitados, além de propor a profissionalização das amas de leite.

Amado visita a literatura portuguesa do início do século XX e, na obra do escritor Aquilino Ribeiro, analisa como a criança pobre é retratada nas suas condições de vida e práticas lúdicas, em especial nas brincadeiras violentas e predadoras, seja dirigidas a outras crianças ou a pequenos animais. Através da análise de textos que retratam essas situações, o autor afirma poder compreender melhor as práticas e a materialidade que constituíam o universo lúdico da criança, permitindo uma aproximação da vivência cultural infantil, ou seja, a produção dos próprios brinquedos e brincadeiras.

Na terceira parte deste livro, intitulada Desafios da escolarização da infância, a literatura é utilizada também como fonte no texto O internato em algumas obras literárias portuguesas dos anos 40, de Margarida Louro Felgueiras. A autora utiliza como fonte o romance de internato, produção de caráter autobiográfico e que se caracteriza pela crítica à organização monacal e militar que marcava esses estabelecimentos. Essa crítica veiculava as transformações na sociedade e as novas concepções pedagógicas que passaram a questionar a educação dos internatos no contexto de produção dessas obras.

Esse gênero literário tem como marca a adolescência e a formação e permite, segundo a autora, aproximar-nos das experiências desses alunos internos, em confronto com o que foi instituído pelas regras e determinações do adulto, abrindo a possibilidade de conhecer os internatos por um outro viés. A concentração de produções de romances de internato no período analisado e a ausência de uma produção a partir da ótica feminina num momento em que os internatos femininos eram mais numerosos que os masculinos são questões colocadas para reflexão.

Ainda na terceira parte, Luciano Mendes de Faria Filho e Irlen Antônio Gonçalves discutem o Processo de escolarização e obrigatoriedade escolar: o caso de Minas Gerais (1835-1911). Tomando como fonte a legislação e relatórios de Presidentes da Província e do Estado de Minas Gerais no período. Os autores analisam a obrigatoriedade de matrícula e freqüência à escola na sua relação com as famílias e o pensamento pedagógico em circulação. Os autores apontam que, se por um lado a elaboração de leis demonstrava a preocupação e os esforços na organização e desenvolvimento da instrução pública em Minas Gerais, por outro, uma série de documentos apontavam as incoerências e a inviabilidade de uma série de determinações legais, tais como o pagamento de multas por parte das famílias, geral mente pobres, que descumprissem as normas. O texto nos mostra também que, desde o início do século XIX, a carência de recursos financeiros para o desenvolvimento da Instrução pública era apontada como obstáculo para o progresso do ensino.

Os autores ressaltam a complexidade inerente ao tratamento do tema, uma vez que a idéia de obrigatoriedade traz implícito um conjunto de questões: obrigatoriedade de matrícula, freqüência e/ou aprendizado. Indicam também que, ao legislar e pretender estabelecer deveres a famílias e conseqüentementeàs crianças, a partir de critérios etários, esses discursos acabam por produzir ou traduzir e reforçar a compreensão de modos adequados de socialização, tendo como referencial principal a escolarização, para os sujeitos infantis.

Maria Cristina Soares de Gouvêa, em Meninas nas salas de aula: dilemas da escolarização feminina no século XIX, discute a escolarização das meninas no contexto mineiro dos oitocentos, utilizando como fontes a legislação educacional, relatórios de delegados de ensino e mapas de freqüência de escolas elementares. A autora contextualiza o processo de escolarização das meninas articulando- o com a inserção das mulheres no mundo do trabalho desde o período colonial e desconstrói a imagem de mulher restrita ao espaço doméstico.

Ao tratar de diversos níveis e modalidades de educação da menina/ mulher — a instrução elementar, os internatos, a escola normal e a educação doméstica — a autora aponta para as distintas experiências de formação dessas mulheres, situando-as e diferenciando-as de acordo com o respectivo pertencimento social, racial e geracional. A tensa relação entre a família e a escola e o desconforto causado pela presença feminina nas escolas, seja como professoras, seja como alunas, refletia na legislação que utilizava a associação entre sexo e idade cronológica como critério para determinar a organização das escolas públicas.

Esse conjunto de trabalhos nos possibilita refletir sobre como a infância foi pensada, que lugares foram a ela(s) reservado(s) no discurso da modernidade. A impossibilidade de se pensar, pesquisar e considerar a infância do passado no singular nos remete às múltiplas infâncias do presente, cujas vivências, acessíveis a uma consulta direta, certamente nos revelariam experiências de exclusão e de privilégio, de alegria e sofrimento, entre muitas outras.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Kuhlmann Jr., M. (1998). Infância e educação infantil – uma abordagem histórica. Porto Alegre, RS: Mediação.

 

 

Endereço para correspondência
Mônica Yumi Jinzenji
R. Castelo de Lisboa n. 489/303
Bairro: Castelo
31330 340 Belo Horizonte - MG
monicajinzenji@ig.com.br

Recebido em agosto/2004
Aceito em setembro/2004

 

 

1 Psicóloga. Doutoranda na Faculdade de Educação - UFMG. Professora do Centro Universitário de Belo Horizonte, MG.

 

Creative Commons License