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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.10 n.18 São Paulo jun. 2005

 

DOSSIÊ

 

Enredos, narrativas e subjetividade: os contornos da cena

 

Plots, narratives and subjectivity: the outlines of the scene

 

 

César Donizetti Pereira Leite1

Universidade Metodista de Piracicaba

 

 


RESUMO

A partir do Filme Ser e Ter, de Nicolas Philibert, este texto procura discutir os contornos indicados nos enredos das histórias/vidas de crianças e professor, espaços para uma reflexão dos tecidos do fio da educação e da constituição da subjetividade que se apresentam nos modos de composição de sentidos e narrativas.

Palavras-chave: Infância, Educação, Constituição da subjetividade.


ABSTRACT

Based on the film Être et avoir, by Nicolas Philibert, this text discusses the outlines of the plots involving the lives/stories of children and their teacher, spaces for reflecting on the interwoven threads of education and the constitution of subjectivity that present themselves in the ways feelings and narratives are composed.

Keywords: Childhood, Education, Constitution of subjectivity.


 

 

Primeiras Palavras

Ser e Ter é um filme encantador. Ser e Ter me encanta porque tem o que não parece ser. Ser e Ter é um documentário que parece ficção. É um filme que nos aproxima, que provoca, que nos toca, porque tudo nele parece distante de nossa realidade. A "autoridade" do professor, a "obediência" dos alunos, o rumo em que a sala de aula "caminha" e a sensação constante de um tempo que corre sem os atropelos de nosso ritmo urbano, desmedido, alucinando as vidas de adultos e crianças.

O filme nos coloca no movimento das crianças que circulam pelas tarefas, nos ensina os diferentes ritmos das diferentes famílias em torno das tarefas das crianças, nos revela as reações do professor e das crianças diante de seus afazeres, de seus deveres. O filme mostra com leveza o que ocorre nas relações entre adultos e crianças, entre crianças e crian ças e entre adultos e adultos. O filme fala de educação, ou seja, de tudo aquilo que envolve a vida das pessoas, que liga as pessoas, da tessitura do "ser" no "ser do outro", tecido que cria suas malhas naquilo que acaba sendo o mais constitutivo do que nos faz "ter" no outro a possibilidade de nossa história, de nosso "ser".

Falar desses enredos _ que não precisam ser escritos, pois, como no documentário, se inscreve em nossa própria vida, fazendo-se no tecido de nossa escritura _ é falar das narrações, povoadas de sentidos, abertos e possíveis que se abrem no percurso da própria história vivida e sentida, que educa, que insere o outro nessa esfera daquilo que, na forma final, parece ficção, o próprio filme. A pergunta sempre aparece: o que é que narramos em nossas práticas educativas que nos coloca nas tênues linhas entre a ficção e realidade, entre o educar e o aprender, entre o adulto e a criança, entre o "ser e o ter"?

 

Do real e do não real: contornos da educação da infância

Como podemos saber se os enredos e os sentidos que vemos no filme de fato se fazem presentes na sala de aula/ateliê? Em que medida aqueles sentidos que contornam as vidas das crianças e do professor se fazem presentes no cotidiano daquela escola? Quais sentidos produzimos e que sentidos as cenas/vidas produzem em nós? Como falar deste filme sem falar de nossas escolas, nossas crianças, nossos professores?

Quando entramos na sala de aula/ateliê do professor Lopez, numa zona rural da França, tudo parecia bem claro: o contato com a sala de aula, seus contornos, com o que estava lá de forma oculta, (re)velada, foi nos apontando novos e interessantes aspectos do/no processo educativo. A sala de aula foi se revelando para nós de outro modo, de tal sorte que ao olhar pela câmera de Nicolas Philibert, já não era certo mais se o que assistíamos era o que foi filmado ou o retrato invertido do filme que assistimos quotidianamente em nossas escolas. Ficamos "soltos", como que com uma câmera na mão e guiados por desejos e interesses também ocultos/velados. Esse olho humano e eletrônico, que passei a entender como o flanêur de Benjamin, perambulava pela ordem da sala de aula/ateliê de Lopez e pela desordem da sala de aula de nossa realidade tão próxima, pelos seus sentidos e também pela falta deles.

Na verdade, sabíamos que para entender/viver o filme/realidade e suas nuances era necessário ver, observar os processos de aprendizagem da leitura e da escrita por parte das crianças, dos conceitos científicos nos adolescentes, dos sentidos das vidas ali tecidas. Para isso precisaríamos entender os modos pelos quais essas crianças atribuíam sentidos.

Calvino diz que "não devemos ser apressados com o que está oculto, é melhor deixar que eles se depositem na memória, examinar pacientemente cada detalhe, meditar sobre seu significado sem nunca sair de sua linguagem imagística" (1990, pp. 16-17). Quando percebi, o filme foi me levando às questões da infância, seus modos de ser e de ter, aos seus processos educativos e foi assim me capturando. Pude, com isso, apreender a lição do herói Perseu da mitologia grega, retomada por Calvino "Perseu consegue dominar a pavorosa figura mantendo-a oculta, da mesma forma como antes a vencera, contemplando-a no espelho. É sempre na recusa da visão direta que reside a força de Perseu, mas não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os quais estava destinado a viver, uma realidade que ele traz consigo e assume como um fardo pessoal" (p. 16).

Ver a nossa escola sem olhar para a sua agonizante realidade era isso que o filme me provocava. A câmera e nosso olhar foram nos revelando as contradições do processo de ensino, seus sucessos e fracassos, seu fracasso no sucesso e seu sucesso no aparente fracasso. Ou seja, fomos aprendendo que o que poderíamos ter ali eram apenas fragmentos de uma realidade também fragmentária que, composta pelas mãos de Philibert, me fazia olhar para um documentário-ficção, e esses "cacos" da sala de aula/ateliê me ensinaram que o processo, de ensino-aprendizagem e mesmo de constituição da subjetividade não é linear, consistente e coeso, pois o que nele se compõem são histórias e narrativas que se criam na tentativa de atribuir algum sentido para o que se vê e mesmo o que não se vê. Esses sentidos, porém, são produto das histórias que vivemos e dos modos pelos quais vivemos essas histórias. Assim mesmo as posturas do professor, que muitas vezes eram "autoritárias", se justificavam nas suas próprias histórias, na realidade concreta da sala de aula/ateliê assim como na realidade de nossos professores e professoras.

Em suma, nunca chegamos à realidade dos fatos, nunca temos em mãos a totalidade da história, mas fragmentos com os quais montamos nossas próprias narrativas. Compreendemos estar diante de uma das reais e mais importantes contribuições desse filme para a escola e as questões da sala de aula: a de indicar uma narrativa que rompa com a narrativa que em nosso cotidiano encontramos e escutamos, nesse sentido, conhecer a realidade. Como ensina Calvino, "é inserir algo no real; é, portanto, deformar o real" (1990, p.123). Conhecer é narrar o real a partir das histórias dele e nele presentes.

De que lugares produzem-se as histórias narradas, vividas da/na sala de aula? Como a produzimos? Que fragmentos são esses que capturamos pelos olhares e sentidos? Ginzburg nos ensina que "apenas observando atentamente e registrando com extrema minúcia todos os sintomas _ afirmam os hipocráticos _, é possível elaborar `histórias' precisas de cada doença: a doença é, em si, inatingível" (1989, p. 155).

É este nosso caminho e é assim que pensamos que nunca teremos a leitura exata da escola, das salas de aula, das crianças/alunos e dos adultos/professores; quando muito, teremos sempre leituras de olhares recortados por nós, pelos nossos desejos e interesses. Como afirma Wallon: "não há observação sem escolha, nem sem uma relação, implícita ou não. A escolha é determinada pelas relações que podem existir entre o objeto e o fato e nossas expectativas; em outros termos, nosso desejo, nossa hipótese ou mesmo nossos simples atos mentais" (1986, p. 74). A partir desse processo, a sala de aula e nossos olhares foram ganhando novas imagens, novos sentidos.

Esses modos de olhar para a escola e de pensar sobre o que lá olhamos, me remete ao diálogo entre Sherlock Holmes e Watson:

_ Você parece ter visto nela uma série de coisas invisíveis para mim.

_ Não invisíveis, mas desapercebidas, Watson. Você não sabia para onde olhar e por isso perdeu tudo o que era importante. Eu nunca consigo fazer você perceber a importância das mangas das roupas, o caráter sugestivo das unhas dos polegares ou as grandes pistas que estão atadas aos cadarços de uma bota... (Truzzi, 1991, p.26).

As observações da sala de aula/ateliê e os modos de compor os sentidos nelas implícitos e explícitos me fizeram concordar em parte com Holmes, pois foram me ensinando que, ao perder o que queria olhar é que pude encontrar e ver o que era mais importante para mim. É como se fosse verificando a importância das mangas das roupas e das pistas dos cadarços e apenas depois me despreocupar delas. Em outras palavras, ao me distanciar e me perder é que pude verificar dois ícones interessantes presentes no filme, (1) o lugar da infância e da prática pedagógica e (2) o lugar da narração.

 

Infância e escola

É interessante observar em muitas cenas do filme que enredos ocorrem paralelamente, em momentos em que o professor, ao dar atenção ao grupo de adolescentes, as crianças menores perambulam pela sala, com os dois olhos dirigidos para lugares diferentes, um apontando para o professor que segue, mesmo sem ver, os passos das crianças na sala de aula, e outro para o desejo que caminha por entre carteiras, fichas e deveres. Em outros momentos, enquanto o professor trabalha com as crianças estas mesmas divagam num mundo distante e, mesmo quando solicitam a atenção do professor, não a têm,mar o real" (1990, p. 123). Conhecer é narrar o real a partir das histórias dele e nele presentes.

Nessa dispersão das crianças e no excesso de objetivação do professor meu olhar passeou e pôde encontrar os contornos da pluralidade de modos de ver e sentir a infância, tanto por parte do professor como das famílias e das próprias crianças. A dispersão no olhar indicava a necessidade de multiplicidade para compreender a infância. Para Gadda, citado por Calvino, "as catástrofes inopinadas não são jamais as conseqüências ou o efeito, como se costuma dizer, de um motivo único, de uma causa singular: mas são como um vórtice, um ponto de depressão ciclônica na consciência do mundo, para as quais conspirava toda uma gama de causalidades convergentes [...]. A opinião de que era necessário `reformar em nós o sentido das categorias de causa' [...] e substituir a causa pelas causas" (1990, p. 119).

O que foi possível observar no filme é que essa diversidade/pluralidade se manifestava de muitos e diferentes modos. O mais marcante aparece na postura do professor que oscilava entre distintos modos de "ser", do ponto de vista pedagógico, para as crianças. É por vezes nítido ver em Lopez um professor que leu e aprendeu com Comenius (1997). Fica evidente, em outros momentos, a visão naturalista e também a construtivista na postura do professor. Por vezes vemos também um professor entremeado por posturas durkheimeanas, vigotskianas e wallonianas, psicanalíticas.

É neste contexto que observo o lugar de uma infância que não é mais única, definida e dada, mas que é plural, o que não justificava de modo algum uma prática eclética, mas que acena para a necessidade de vermos nessa pluralidade, nessa diversidade, nos modos pelos quais agimos e sentimos a infância, canais, sendas para uma educação que não coloque a criança em um lugar correspondente e único, mas que cria na sua prática este lugar, para não cairmos no erro de, ao "pluralizar" a infância, não a perder.

Nesse sentido, vários autores têm trabalhado na perspectiva de um fim da infância. Entre eles, destaco Guiraldelli Jr. Segundo esse autor, se por um lado o sujeito enquanto cogito perdeu seu lugar, não faz mais sentido preocupar-se com a pedagogia, pois esta se ocupa com a construção desse sujeito, com a educação deste in-fans que também já não existe, pois em uma sociedade do mundo administrado, "não é mais possível pensarmos em uma infância daquelas programadas pelo liberalismo. Se se pensa na família burguesa tradicional, deve-se conferir algum poder econômico, e muitas vezes político, ao pai, do qual se entende derivar seu respeito da sociedade e na família perante esposa e filhos. Corresponde a esse tipo de família uma necessária insurreição dos filhos, que ocorrendo em algum nível e com intensidade variável é partícipe da construção de suas individualidades. Ora, [...] se se pensa na família no mundo contemporâneo, sabe-se que ela participa bem menos da formação dos filhos. O pai, [....] não possuindo a mesma mobilidade que lhe confere o horizonte liberal, já não é digno nem mesmo de um enfrentamento dos filhos na disputa pelo amor da mãe, o que resulta entre outras coisas na impossibilidade do complexo de Édipo e na impossibilidade da estruturação individual" (Guiraldelli Jr., 1996, pp. 27-28).

Guiraldelli Jr. argumenta que um sujeito em si já não existe mais, pois o que passa a existir é um sujeito para si. Portanto, este sujeito em si, marca da modernidade, e em que também se constitui a noção de infância tal qual a entendemos hoje, também já não existe. Para o referido autor, na "falta de uma nova subjetividade, o homem continua acoplando em suas experiências individuais a velha noção de sujeito _ a do homem seguro e de sua autonomia _, mesmo que se saiba o quanto tal noção é um fantasma em um mundo em que a autonomia é impossível" (pp. 29-30).

Desse modo, poderíamos simplificar o pensamento de Guiraldelli (1996) dizendo que boa parte da Pedagogia se apóia na idéia de uma infância estabelecida na primeira metade do século. A idéia de criança como um ser ativo _ eis uma condição existencial transformada em essência. Ela já não existe mais, porque esse sujeito também não existe. Consideramos essa idéia factual, porém não participamos da compreensão de que a infância tenha acabado. O argumento que acredito ser mais forte é o de uma pluralidade de coisas que constituem a subjetividade e a própria criança e, desse modo, em uma época marcada por múltiplos olhares, a noção de sujeito e de sua constituição ganha novos contornos. Conseqüentemente, surge um novo sujeito, uma nova criança.

Desse modo, se pensarmos a noção de infância como algo constituído socialmente, as práticas sociais e pedagógicas ganham novos contornos e apontam um novo olhar para a infância e, conseqüentemente, para a sua relação com a linguagem na sala de aula.

Assim, perde força a postura "autoritária", que se traduz muitas vezes em uma palavra que se pretende unívoca e acaba por "anular" os processos dialógicos de produção de sentido e constituição da subjetividade. Isto posto, procuro entender quais possibilidades dialeticamente se efetivam nesse processo, quer dizer, que sentido circula na sala de aula, objetivando-se a partir dessas relações, e possibilitando espaços para a subjetividade? O que vemos de fato é que, mesmo ocupando um lugar que aparentemente cala a criança, Lopez indica uma perspectiva aberta e narrativa da constituição da subjetividade de seus alunos.

Um interessante exemplo disso aparece na cena em que, trabalhando a leitura com Axel, interrompe-a para conversar com ele sobre os pesadelos. Nesses momentos de diálogos abertos e livres sobre tal assunto compõe os sentidos e tece modos de encontro com a criança. Nessa mesma cena, aparece Marie que insiste em vários momentos em entrar na conversa, sendo sempre "calada" pelo professor que a chama para seu lugar, não atendendo imediatamente a solicitação do professor porém, basta um olhar deste para que Marie, segundo Axel, fique com medo. Aqui aparece o Lopez que, ao ocupar seu lugar como professor, também coloca Marie no seu lugar de aluna. Esse lugar surge pela palavra/olhar que aparentemente "cala", mas surge também o professor que dialoga com Axel, que produz novos e interessantes sentidos para os pesadelos.

Outro momento que chama atenção nessa mesma direção e que aponta que o lugar que o professor Lopez ocupa foge de uma visão autoritária é quando retira o recreio de Jojo e efetiva uma postura que "cobra", que "determina" ações para a criança. Aqui vemos apenas um professor que faz seu papel de educador. O interessante na cena é a postura do aluno, que procura meios de convencer, de se livrar do que lhe ordena o professor, usando muitos argumentos e processos de negociação que não se esgotam. Desse modo, pode-se perceber que o que aparentemente "cala", "institui" na e pela palavra do professor, se revela na postura como "narrativa", como palavra aberta, abre um campo para a constituição da subjetividade.

Portanto, o filme, ao mesmo tempo em que abre uma possibilidade para pensarmos sobre a questão da constituição da subjetividade, revela-nos também que a prática pedagógica se concretiza além dos seus processos metodológicos, pois ela não é apenas uma ação "consciente, deliberada e planejada" (Fontana, 1996, p. 124). No entanto, nas relações de ensino, verifica-se que essas ações, muitas vezes, escapam, fogem a esse planejamento, assim revelando que o professor não consegue chegar sempre ao seu objetivo como pretendia, assim como também em outros momentos o ultrapassa. Desse modo observa-se que os processos de elaborações conceituais e dialógicas ocorrem dentro de um "redimensionamento que faz da significação um fato sócio-ideológico e promovido em uma esfera de enunciações (que são) sempre parte de um diálogo social ininterrupto" (pp. 125-26).

Nesse contexto, falamos de dialogia que não se limita à conversa entre duas pessoas colocadas face a face, mas vai além. Diz respeito às diversas formas como duas vozes se encontram e entram em contato. Faz-se de algum modo, sob o ponto de vista das interações cotidianas, que só se efetivam, de fato, quando ocorre compreensão entre as pessoas envolvidas, e só pode ser entendida em um espaço em que os ouvintes confrontam as enunciações. Isto significa dizer que, para cada palavra que vamos compreender, confrontamos e formulamos um conjunto de outras palavras.

Desse modo, podemos dizer que compreender é, então, um processo que requer uma orientação, tanto por parte dos ouvintes como por parte do enunciador. Ou seja, o processo de enunciação pressupõe uma série de palavras e réplicas nossas e de outros interlocutores, e deste modo quem constrói seus discursos, seu texto, não é um sujeito isolado, mas um sujeito na interlocução com outros sujeitos. Além disso, compreender é também confrontar, opor de forma dialógica os sentidos envolvidos nas enunciações, para construir novos significados, novos sentidos para as palavras e para as coisas. Por isso, muitas vezes, mesmo fora do que consideramos adequados como modo de aprendizagem pelas crianças, elas aprendem, atribuem sentidos às coisas do mundo e mesmo àquelas da própria escola, formas que se efetivam no filme e que compõem a sala de aula no espaço de um grande ateliê, uma grande oficina da palavra e da subjetividade.

A existência de uma infância, na atraente zona rural francesa assim como a existência de uma ou muitas infâncias nos povoados das periferias brasileiras, parece indicar-nos na e pela obra cinematográfica que a criança não nos garante um lugar seguro, mas nos coloca em um divagante movimento em que nos fazemos "ser" ao "ter" que a ela educar.

Nesse sentido, não vejo ecletismo na prática de Lopez, vejo sim um tecido que se apresenta não como "camisa de força" de uma metodologia pedagógica que engessa e cria suas armaduras, mas observo um fio, como o de Ariadne no labirinto, que indica modos e posturas nas práticas educativas com a criança, fio que acredito se revelar em uma postura que nos ensina a pensar que _ diferente do que em um primeiro momento observamos em nosso mundo contemporâneo _ a infância não acabou mas sim ganhou a forma de uma pluralidade de coisas que constituem a subjetividade e a própria criança, e desse modo, em uma época marcada por múltiplos olhares, a noção de sujeito e de sua constituição ganha novos contornos. Conseqüentemente, surge um novo sujeito, uma nova criança.

Portanto, educar a criança deixou de ser um modelo a ser seguido, modelo que muitas vezes procuramos no filme e na postura de Lopez, um modo que nos assegure que a educação é um possível, um determinado, um fim garantido, e nos coloca diante dessa impossibilidade, mas também acena para uma perspectiva de uma educação possível, no sentido de que ela é e se faz no tecido dos fios da linguagem, que recortam as relações, que marcam os sentidos das vidas das crianças e do professor, linguagem que vai sendo a tessitura do próprio lugar do "ser" que se apresenta no "ter" de ser no/do olhar do outro. É esse sentido que circula nas práticas dialógicas do dividir sonhos e vida, nos enlaces das histórias contadas e ocultadas na materialidade concreta do dia-a-dia da sala de aula/ateliê.

Desse modo, este trabalho faz alguns apontamentos. Se pensarmos a noção de infância como algo constituído socialmente, no tecido da relação com o outro e pelo outro, as práticas sociais e pedagógicas ganham novos contornos e apontam um novo olhar para a infância e, conseqüentemente, para a sua relação com a linguagem na sala de aula, o que educa, no sentido de o que circula entre adultos e crianças e entre crianças e crianças, não são saberes e conceitos fechados, mas sim palavra.

Assim, perde força a postura "autoritária" que se traduz muitas vezes em uma palavra que se pretende unívoca e acaba por "anular" os processos dialógicos de produção de sentido e constituição da subjetividade. É nessa perspectiva que o que pedagogicamente pode parecer autoritarismo do professor na verdade é constituição de referências: não há um professor que cala, mas um professor que cria referências nas quais os sujeitos/crianças se pautam, se encontram, se fazem.

 

A sala de aula e a produção da narrativa

Esse princípio dialógico descrito por Bakhtin (1981) pode nos ajudar a entender as possibilidades de sentido que surgem na esfera concreta da sala de aula, aquele professor que parece calar Marie com apenas um olhar, marcado pela dureza, também se revista da leveza das brincadeiras postas no ateliê da cozinha, em que toda a dimensão do controle desaparece em nome de um encontro com as crianças.

Por outro lado, as possibilidades dialógicas não se encerram nessa suposta orientação da leveza, mas podem estar inclusive no interior de uma palavra isolada, solta que se choca dialogicamente com outras palavras, outras vozes. Este fato relativo à dialogia e a leveza/dureza pode ser observado nas cenas em que o professor Lopez insiste com as crianças que através de seus modos mudar o percurso das cenas da vida.

Longe de querer legitimar práticas docentes que não possibilitam deliberadamente a situação dialógica, percebemos que a postura do professor "pode" ainda assim ter produzido os confrontos necessários, encontros e contrapontos de vozes que se anunciam e vão a um processo aberto de constituição de sentido na e pela palavra, no e pelo outro se fazendo e, se o fazem é porque houve palavra que circulou.

Os caminhos que essas colocações nos apresentam indicam que a possibilidades da subjetividade, ou seja, da própria constituição do sujeito, se encontra não só no que se revela no dito pelo próprio sujeito e pelo outro, mas também no que se oculta nele, em que o dito e o não dito convivem, em que o eu e o outro, em uma relação de complementaridade, se efetivam, ou seja, no tecido da própria relação de sala de aula.

 

Um outro autor cujas afirmações seguem esta mesma direção é Rancière (1995). Ao falar sobre o escrito/linguagem, o autor trata o tema de modo inovador, trazendo uma reflexão sobre relação entre escrita e política. Sua abordagem permite uma proposição diferente sobre a nossa temática. No prefácio de seu livro Políticas da escrita Rancière introduz o seguinte comentário "a palavra política, assim como a palavra escrita, é certamente tomada em uma multiplicidade de sentidos e a conjunção das duas está submetida à lei dessa multiplicação. No entanto, quando se fala aqui de política da escrita não se quer inferir da polissemia da escrita esão saberes da dispersão do poítico que a conjução das duas é indeterminada. Pelo contrário, [...] O que liga a supradeterminação do conceito de escrita ao pensamento da ligação comunitária. O conceito de escrita é político por que é um conceito de um ato sujeito a um desdobramento e a uma disjunção essenciais. Escrever é o ato que aparentemente, não pode ser realizado sem significar, ao mesmo tempo, aquilo que realiza: uma relação da mão que traça linhas ou signos com o corpo que ela prolonga; desse corpo com a alma que a anima e com os outros com os quais ele forma uma comunidade; dessa comunidade com sua própria alma" (1995, p. 7).

Ora, nesta belíssima passagem de Rancière, podemos verificar um novo olhar para escrita/linguagem, como aquilo que dá forma à sociedade, às relações humanas, e como algo que passa fundamentalmente por uma atividade de significação do sujeito, mas que, nesse processo de significação, liga esse sujeito a outros de uma determinada comunidade.

Para mim, é interessante, o modo como Rancière aponta não só possibilidades extremamente ricas em relação ao escrito e à escrita, mas também pelo fato de que sua afirmação aponta algo que vai além da proposição organizada e trabalhada pela escola, a que vê e pensa a escrita/linguagem como instrumento social.

Dessa forma, o olhar para a linguagem remete a um olhar para o sujeito que atua no processo de significação e aqui o lugar do sujeito vai muito além do que, freqüentemente, tem sido tratado pela escola, ou seja, não como uma competência física e cognitiva, mas como uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação (p. 7).

Tais questões apontadas por esse autor permitem uma reflexão sobre as inter-relações entre linguagem e constituição da subjetividade, pois amplia a questão da linguagem enquanto cogito e construção da razão e do sujeito como ser da razão, abrindo para uma dimensão da linguagem enquanto "encontro", enquanto "lugar", ou seja, onde tocamos o outro, e nesse tocar partilhamos com o outro e constituímos sentidos e, nesse processo, vamos dando formas às relações humanas.

É aqui que a sala de aula/ateliê de Lopez se apresenta como esse tecido, como esse fazer político que se encena nas práticas dialógicas e educativas da sala de aula. Aqui vemos não o encerrar de uma proposição de uma educação, mas a abertura de novas e interessantes possibilidades, que se tecem sem o medo de enfrentamento de coisas e fatos desconhecidos e incertos. É Lopez que chama para si esse fazer e se envolve nele; é o professor que _ assim como Ariadne indica os fios do labirinto _ que por sua vez "revela a estrutura misteriosa do desejo humano que não cessa com a obtenção de sua meta, mas se compraz em inventar desvios, imagens, gestos, palavras; ele é o outro lado da cultura, outro mas conjunto. A Infância Berlinense descreve esse avesso, [...] o avesso e o direito são inseparáveis como o "lembrar" que forma a trama e o esquecimento que forma a urdidura no tecido do mesmo texto. [...]. O fio de Ariadne que guia a criança no labirinto não é somente o da intensidade do amor e do desejo; também é o fio da linguagem, às vezes entrecortado, às vezes rompido, o fio da história que nós narramos uns aos outros, a história que lembramos, também a que esquecemos e a que, tateante, enunciamos hoje" (Gagnebin, 1994, p. 105).

 

Referências Bibliográficas

Bakhtin, M. (1981). Problemas da poética de Dostoievski (Paulo Bezerra, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.        [ Links ]

Calvino, I. (1990). Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, SP: Companhia das Letras.        [ Links ]

Comenius, C. (1997). A didática magna. São Paulo, SP: Martins Fontes.        [ Links ]

Fontana, R. C. (1996). Mediação pedagógica na sala de aula. Campinas, SP: Autores Associados.        [ Links ]

Gagnebin, J. M. (1994). História e narração em W. Benjamin. São Paulo, SP: Perspectiva.        [ Links ]

Ginzburg, C. (1989). Mitos, emblemas e sinais. Morfologia e história. (Federico Carotti, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.         [ Links ]

Guiraldelli Jr, P. (1996). O que é Pedagogia. São Paulo, SP: Editora Brasiliense.        [ Links ]

Leite, C.D.P. (2002). Labirinto: infância, linguagem e escola. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP.        [ Links ]

Rancière, J. (1995). Políticas da escrita. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34.        [ Links ]

Truzzi, M. (1991). Você conhece meu método - uma justaposição de Chales Peirce e Sherlock Holmes. In Eco U. e Sebeok, T. A (org.). O signo de três. São Paulo, SP: Perspectiva.        [ Links ]

Wallon, H. (1986). Coleção grandes cientistas sociais. São Paulo, SP: Ática.        [ Links ]

Recebido em outubro/2004
Aceito em dezembro/2004

 

 

1 Professor da Faculdade de Ciências Humanas UNIMEP. Doutor em Filosofia da Educação pela UNICAMP.
Psicólogo com atuação na Secretaria de Educação

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