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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.10 n.19 São Paulo dez. 2005

 

EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL

 

O manejo clínico com adolescentes autistas e psicóticos em instituição1

 

Clinical Handling of Autistic and Psychotic Adolescents in an Institution

 

 

Angélica Bastos*I; Katia Alvares de Carvalho Monteiro**II; Mariana Mollica da Costa Ribeiro**III

* Universidade Federal do Rio de Janeiro
**Instituto Municipal Philippe Pinel -RJ

 

 


RESUMO

O artigo tem por objetivo discutir o manejo clínico de questões relativas à passagem da infância à adolescência no tratamento do autismo e da psicose em instituição. O trabalho traça as linhas gerais da trajetória de um serviço criado no final da década de 80 com o intuito de atender à clientela mais grave que se dirigia à rede pública de assistência em saúde mental do município do Rio de Janeiro. A partir de alguns fragmentos clínicos, apresenta-se a construção do caso em equipe, a intervenção e seus efeitos. Complementarmente, aborda-se o encerramento do tratamento e o encaminhamento daqueles que finalizam seu percurso na instituição.

Palavras-chave: Adolescência, Autismo, Psicose, Tratamento em instituição, Psicanálise.


ABSTRACT

The objective of this article is to discuss the clinical handling of questions relating to the passage from childhood to adolescence in the treatment of autism and psychosis in an institution. The work sketches the general lines in the course of a service created at the end of the eighties whose aim was to assist the most seriously affected clients who came to the public mental health in the municipality of Rio de Janeiro. The article proceeds to examine the direction taken by the clinical-institutional work, which conjoins the practice shared by many with the treatment of the Other carried out by children and adolescents. Starting with some clinical anecdotal examples, we present the construction of the case as a team, the intervention and its effects. Complementing this, we touch on the end of the treatment and the further guidance given to those who finished their stay at the institution.

Keywords: Adolescence, Autism, Psychosis, Treatment in an institution, Psychoanalysis.


 

 

Este trabalho aborda o atendimento de adolescentes que apresentam grave sofrimento psíquico e buscam tratamento na rede pública de assistência em saúde mental do município do Rio de Janeiro por meio da porta de entrada NAICAP - Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica - do Instituto Municipal Philippe Pinel. A partir da psicanálise, busca-se interrogar a direção do tratamento dos sujeitos atendidos no NAICAP, serviço criado no final da década de 80, numa iniciativa pioneira, com o propósito de acolher a grande demanda de crianças e adolescentes para tratamento destinado especificamente à clientela mais grave2

 

Um breve histórico da inserção do NAICAP na área de saúde mental para infância e adolescência

No Brasil, o movimento de Reforma Psiquiátrica teve início no final da década de 70, deflagrado a partir de denúncias sobre a situação dos hospitais psiquiátricos da época. Esse movimento tecia críticas à lógica da segregação e exclusão subjacente à prática nessas instituições.

Com relação à situação da criança e do adolescente, especialmente autistas e psicóticos, o trabalho institucional suscitava questões para as quais não se encontravam respostas em termos de oferta de tratamento, nem no campo da assistência, nem no das políticas públicas.

Ao buscarem tratamento na rede pública de assistência à saúde, essas crianças percorriam uma trajetória peculiar: circulavam entre os diversos serviços e nenhum atendimento lhes era oferecido, a não ser a atenção medicamentosa. Na maioria das vezes, as crianças eram tomadas sob uma vertente de déficit, submetidas a práticas pedagógicas, aprisionadas num discurso médico-pedagógico, cuja resposta aos estranhos comportamentos pautava-se em intervenções classificatórias, punitivas e corretivas. O cenário era, então, o da exclusão, restando-lhes apenas testemunhar a condição de objeto dessas práticas.

O NAICAP surge como proposta de um dispositivo clínico-institucional cujos recursos técnicos de caráter diário e intensivo diferenciavam-se da atenção ambulatorial.3 O Núcleo utiliza a psicanálise como diretriz principal de trabalho, considerando a escuta da criança, do adolescente e de seus pais como fio condutor do tratamento. Impõe-se como conduta imprescindível o acompanhamento do caso desde as primeiras entrevistas. Do ponto de vista da psicanálise, mais que criança, adolescente ou adulto, trata-se de sujeitos, à medida que estão imersos na linguagem e nela precisam encontrar uma posição. Ainda que alguns deles não apresentem a fala articulada, suas estereotipias, aparentes bizarrices e mesmo as auto-mutilações são acolhidas como uma tentativa das crianças no sentido de se produzirem como sujeitos.

O que se propõe no trabalho clínico com tais crianças não é a massificação dos cuidados, a normatização do comportamento ou a adaptação da desadaptação, mas uma postura ética na qual o mal-estar inerente à condição humana tenha um lugar de endereçamento. Ao longo de sua existência, o serviço desenvolve um trabalho de porta de entrada no qual, mesmo não chegando a absorver a criança ou o adolescente para tratamento intensivo, realiza-se a escuta do paciente e dos pais antes de qualquer encaminhamento. Essa prática possibilita maior efetividade dos encaminhamentos para outros serviços da rede. O trabalho preliminar realizado possui duração variável e privilegia acima de tudo a singularidade do caso a partir do que é construído em transferência, tendo como direção a problematização da queixa dos pais, de modo a torná-la uma demanda subjetivada. Assim, mesmo que a criança não possa ser absorvida pelo serviço por diferentes razões, a preocupação do NAICAP centra-se no acolhimento, entendido como trabalho inicial na rede de saúde mental.

Como é possível, porém, realizar um trabalho institucional balizado pela psicanálise com crianças que não falam e que rechaçam a alteridade? Em outros termos: se a psicanálise depende do campo do Outro, aqui entendido como lugar da linguagem, como ela pode, então, nortear tal projeto?

 

A direção do trabalho clínico-institucional

Partimos do pressuposto de que as estereotipias e demais produções mencionadas atestam um excesso pulsional denominado gozo. Desse modo, entendemos que o tratamento incide sobre o gozo que para alguns transborda no próprio corpo, enquanto para outros se localiza no Outro, que, ao se tomar a criança como objeto, revela-se intrusivo.

Na clínica com a criança autista, verificamos que o estatuto do Outro é da ordem de uma tal intrusão, que a criança se empenha em mantê-lo à distância (Zenoni, 1991). A criança psicótica sofre do excesso de Outro, na medida em que este se apresenta caprichoso, desregrado e sem lei.

Quando não se verifica a inscrição da falta no Outro, simbolização que esvazia o excesso de gozo, ele se constitui pleno de gozo, deixando a criança sem recursos que lhe permitam estabelecer uma certa distância em relação ao Outro. Ela é, então, capturada por um Outro tirânico, que invade, restando-lhe a tentativa de barrá-lo. Se para essas crianças o Outro se configura intrusivo ou rechaçado, como fazer operar um dispositivo institucional? A resposta a essa pergunta, encontrada pelo NAICAP, foi organizar um funcionamento clínico orientado pela "prática entre vários"4, que consiste no trabalho de deslocalizar o saber, bem como o gozo que lhe é correlato, pluralizar os parceiros, de modo que a criança associe um deles ao tratamento do Outro que ela já realiza (Baio, 1999).

A "prática entre vários" é uma tentativa de sair do impasse ligado ao peso e à localização do saber na transferência própria à psicose e visa ao esvaziamento do gozo a que a criança está submetida. Trata-se, então, de conformar os princípios que orientam a prática de modo a situá-la no campo da psicanálise aplicada à terapêutica em instituição.

O tratamento do Outro consiste, então, no trabalho que a criança já realiza para esvaziar, barrar o Outro compacto que a ameaça, numa tentativa de desvencilhar-se dessa alteridade caprichosa, seja para encontrar um lugar simbólico no Outro, seja para separar-se dele. As conhecidas estereotipias da criança autista, assim como as automutilações, bem traduzem o trabalho de localizar e reduzir o gozo de uma maneira extrema, a saber, em seu próprio corpo. Devemos estar avisados de que o tratamento do Outro não tem como propósito tratar a instituição, a equipe ou os pais. Cada membro da equipe deve colocar-se em posição de se fazer parceiro da criança, deixando-se regular pelo trabalho do sujeito, esvaziando-se de todo saber prévio e acompanhando a criança em suas construções.

 

A peculiaridade do trabalho com os adolescentes

O período que sucede o aparecimento da puberdade apresenta uma particularidade quando tratamos de casos de psicose e autismo. A adolescência é comumente vista como fase em que se dá o aparecimento de processos como a identificação do indivíduo ao grupo, o despertar da sexualidade, a revolta para com o casal parental, entre outros comportamentos observáveis. Certamente essa leitura orientaria a prática no sentido de uma intervenção adaptativa à sua nova condição.

Para a psicanálise, porém, a adolescência é formulada em termos não redutíveis às transformações físicas e comportamentais. Na puberdade vive-se a perspectiva do encontro com o outro sexo e se é confrontado com o impossível da relação sexual. Ao provocar mudanças no real do corpo, a puberdade é um tempo durante o qual o sujeito se defronta, de maneira muito particular, com sua sexualidade. É um momento lógico de construção, e não cronológico, e trata-se de dar novas respostas ao desencontro entre os sexos, à impossibilidade de complementaridade entre sujeito e o Outro. Esse momento, portanto, impõe ao adolescente um trabalho psíquico a partir das construções sobre o saber e o gozo do Outro.

No caso dos adolescentes diagnosticados como autistas e psicóticos, raramente observamos condutas próprias à adolescência, tais como o desligamento da autoridade dos pais e a contestação de seu saber. Então perguntamos: o que marca nesses sujeitos a transição da infância para a idade adulta?

Na psicose, podemos verificar que o sujeito não consegue realizar o trabalho de elaboração da perda da autoridade dos pais em razão da foraclusão do Nome-do-Pai que sustenta, por meio da inscrição de um significante, a legitimidade da autoridade da lei (Lacan, 1957-58, p. 152-3). Se partirmos da hipótese de que a inscrição do Nome-do-Pai dá legitimidade à lei e que a rejeição desse significante caracteriza a psicose, veremos que a autoridade dos pais, bem como o desligamento em relação a ela, apresenta-se problemático nesses casos. Na impossibilidade de lançar mão do Nome-do-Pai incidindo sobre o desejo materno, na ordenação edípica reeditada na adolescência, resta ao sujeito psicótico o lugar de submissão a um Outro absoluto, sem lei.

Na psicose e no autismo, não há o recurso fálico para a organização do novo circuito pulsional. Em vista disso, observa-se a irrupção freqüente de crises ou a intensificação de quadros clínicos que se manifestam das mais diferentes formas: automutilações, crises convulsivas, passagens ao ato, alucinações. Quando da irrupção dessas crises, freqüentes durante a adolescência, muitas vezes sob a forma de violenta agressividade, observamos que os pacientes parecem expressar um excesso pulsional no próprio corpo que, sem mediações, busca uma via de escape. O gozo sem barragem, que parece se intensificar no momento em que se deflagra a puberdade, precisa encontrar um "ponto de ancoragem"5 para que o sujeito não seja aniquilado. Através do trabalho penoso dos movimentos estereotipados, atos agressivos, delírios e alucinações, podemos supor a tentativa de inscrição de uma barra. Então, é no encontro com aquele que ocupa o lugar de quem recolhe os efeitos desse trabalho, que sua construção pode vir a ter alguma simbolização para o sujeito. No decorrer do tratamento, constatamos que o sujeito pode circunscrever esse gozo que retorna no real do corpo.

Podemos ilustrar a idéia aqui explicitada pela intervenção realizada por uma psicanalista do NAICAP com um adolescente que passava por um período de intensificação delirante. A partir da realização de uma festa de aniversário para comemorar seus 18 anos, a psicanalista marca na instituição a passagem do paciente da infância para a idade adulta. A idéia surgiu, justamente, da escuta dada à sua insistência em se fazer representar por meio de uma carteira de identidade. A analista acolheu a demanda de representação na carteira de identidade como um pedido de reconhecimento, ali no laço com o Outro, de sua nova condição, não mais como criança. Ele adquire, nesse momento de passagem, o marco da maioridade e passa a ocupar diante do Outro um lugar de adulto. Como permanecera em atendimento no serviço desde sua infância e a idéia de sair da instituição lhe parecia insuportável até então, essa intervenção foi muito importante para esse adolescente. Esse foi um momento privilegiado que permitiu à equipe iniciar um trabalho para viabilizar sua saída do serviço.

 

Impasses e respostas no cotidiano institucional com adolescentes

Segundo Freud, devemos entender o delírio não como um sintoma a ser silenciado, mas como uma tentativa de auto-recuperação (Freud, 1911, p. 78). É assim que compreendemos também as manifestações no autismo. Considerando os fenômenos observados no autismo como um trabalho árduo semelhante ao delírio, acreditamos que essas manifestações visam barrar a invasão insuportável que vem do campo do Outro. Com relação a essas crianças e adolescentes respondemos à convocação feita por Lacan: não ceder diante da psicose (Lacan, 1958).

Ao aceitar essa convocação, a equipe do NAICAP se deparou com uma situação peculiar, dado que o serviço se destinava inicialmente ao atendimento de crianças: o crescimento dos que lá estavam em tratamento. O trabalho de interrogar o lugar possível do analista na direção do tratamento de cada adolescente diagnosticado psicótico ou autista se impôs. O NAICAP se viu obrigado a repensar sua prática diante dos impasses clínicos: os adolescentes demandavam novo manejo clínico, re-situando cada caso a partir das discussões em equipe.

Uma das questões que se tornou visível foi a dificuldade de a equipe enfrentar a emergência da sexualidade, que se apresentava a céu aberto. A angústia produzida entre os técnicos frente às manifestações desveladas da sexualidade exigiu a construção de um trabalho, operado por vários, para evitar a instalação de um regime de funcionamento puramente disciplinar e pedagógico em suas intervenções. Apoiado apenas em regras institucionais, um tal funcionamento ficaria a serviço da anulaçãodo sujeito, relegando-o a seu anonimato e reduzindo-o a objeto de gozo da equipe. Enquanto esta freqüentemente mostrava sinais de um congelamento no tempo, esquecendo as idades dos já adolescentes, é interessante constatar que eles primavam por sinalizar o momento de passagem que viviam. Podemos, aqui, trazer à luz um fragmento clínico, a fim de fornecer elementos de verificação da construção desse trabalho junto aos adolescentes.

Tomás é um dos adolescentes que participa da oficina de música. Nessa atividade se faz presente cuspindo e empurrando quem dele se aproxima e dando barulhentos tapas em suas próprias costas. Num dos encontros semanais, todos os integrantes da oficina foram surpreendidos pelo adolescente. Diante de sua intensa masturbação, as estagiárias sugeriram que ele fosse para trás do palco de teatro de fantoches existente na sala. Atrás do palco, além de ter interrompido sua masturbação, ele olhava por entre as cortinas o que as outras crianças estavam fazendo. Esse palco, como um anteparo, serviu de mediação em relação ao olhar e à voz dos outros membros da oficina, permitindo ao menino circunscrever o excesso de gozo e introduzir a dimensão de presença/ausência, onde ele podia se fazer presente-ausente. Logo depois, ele decidiu se juntar aos demais na atividade. Tomando a atitude de Tomás como endereçada ao Outro, a intervenção das estagiárias teve como efeito seu apaziguamento. A intervenção não se fez a partir do lugar de um Outro caprichoso que dispõe do sujeito, que decide arbitrariamente por ele, coibindo ou permitindo a masturbação. Ao invés de convocar as regras institucionais diante da angústia provocada por tal situação, a direção tomada pelas estagiárias no trabalho com Tomás foi a presentificação de um Outro que respeita a lei, mas que não a dita, nem se excetua de seu campo, deixando a cada um a tarefa de encontrar um modo de nela se inserir.

A direção de trabalho construída pela equipe foi fazer-se parceira das construções realizadas por esses adolescentes, de modo a evitar que o saber do Outro anulasse a dimensão subjetiva do dizer do autista e do psicótico. Dois fragmentos clínicos exemplificam este trabalho.

Antônio, que atualmente tem 13 anos, viu suas transformações corporais da puberdade serem tomadas por sua mãe como perda do lugar de "meu bebê", que este teria para ela. A presença de um pêlo pubiano a perturba enormemente. A resposta dada por Antonio à posição de sua mãe é elaborar músicas com os palavrões que escuta e masturbar-se na frente de todos. Durante o período que está no NAICAP, Antônio mantém essa atitude. Em casa, nunca quis usar cuecas, fato que sempre deixou a mãe muito apreensiva, pois tinha receio de que o pênis de seu filho ficasse ereto o tempo todo. A escuta da mãe e as discussões nas reuniões em equipe permitiram que Antônio realizasse um contorno em seu gozo desenfreado, passando a usar cuecas no NAICAP e restringindo sua masturbação ao espaço do banheiro.

Da escuta de sua mãe, pôde-se ouvir um ato falho: "(...) eu falo para ele que não é para ficar com as cuecas" e colher as conseqüências disso. Verificaram-se tentativas de Antônio em situar seu pênis em relação ao Outro. Os efeitos desse trabalho logo foram sentidos, na medida em que Antônio passa a se masturbar apenas no banheiro e com menos freqüência, e começa a participar das atividades com outras crianças, participação antes recusada. Começa a escrever algumas letras de seu nome e da analista, a se interessar também pelo computador e a escutar músicas no rádio, permanecendo dentro de uma sala com a luz apagada para "curtir uma música". Num determinado dia, Antônio veste-se com um roupão, com uma capa e óculos escuros, se dirige ao espelho e faz poses bem de adolescente.

Da equipe, pode-se verificar também mudanças em relação ao que parecia incompreensível, sem sentido e que causava tanto mal-estar. Tais mudanças abriram espaço para que os técnicos lançassem mão dos recursos disponíveis a cada um, na solidão de seu ato, para lidar com situações imprevistas, apontando para Antônio a enunciação presente em seu trabalho de endereçamento ao Outro.

Recentemente, a equipe interveio por meio da escuta da construção de um adolescente, cuja mãe psicótica apresenta uma história de várias internações psiquiátricas. Uma estagiária presenciou, na entrada do serviço, sua mãe lhe pedir que beijasse o seu seio, ordem que ele obedeceu prontamente. Durante o dia, ao ver uma bóia na piscina do NAICAP na forma de um sapo, batizou a bóiade "sapa tarada". Nessa fase, Ricardo passou a urinar pelos espaços da instituição. Uma das pessoas da equipe trouxe uma reportagem de jornal sobre os "mijões" da cidade, onde o jornalista sugeria que fossem fotografados. A iniciativa se pautou num recurso bastante utilizado pelo adolescente que, desde pequeno, se dedicava à leitura de matérias de jornais. Em seu trabalho de endereçamento ao Outro, Ricardo afixou numa das salas do serviço, batizada por ele como "seu banco Banerj", o recorte de jornal, estabelecendo um jogo com isso. Com um gozo exibicionista, urinava em público mostrando o pênis onde cresciam seus primeiros pêlos pubianos e pedia para ser fotografado. Num determinado momento, uma pessoa da equipe lhe aplicou uma multa por estar "mijando em lugares proibidos", multa semelhante àquelas utilizadas por ele, no atraso do recebimento das contas de seu banco. Ele contou para sua técnica de referência: "Estou mijando em lugares indevidos!" Ao ouvi-lo, ela pôde apontar para a interdição presente em sua própria fala: "Então você sabe que são indevidos".

A partir daí, esse adolescente parou de urinar em público e passou a falar de sua sexualidade para a técnica de referência, numa tentativa de se situar na partilha dos sexos. Ao mencionar uma noite em que assistia a um programa de Miss Brasil e da beleza das misses, comentou sobre uma namorada da escola. Perguntava à sua técnica de referência se homem podia ser mãe. Fala sobre métodos contraceptivos e afirma ter nascido de parto normal.

O efeito produzido pela intervenção, que contou com a parceria de vários, partiu dos recursos construídos por Ricardo para dirigir-se ao Outro, lhe permitindo formular verbalmente questões a respeito de sua própria sexualidade. A saída simbólica possibilitou uma diminuição dos freqüentes atos impregnados de gozo. Ao longo de seu tratamento na instituição, Ricardo criou uma nova maneira de dizer de sua angústia frente à invasão do Outro com a qual é confrontado.

Tal como as excitações físicas, as freqüentes manifestações de agressividade também impuseram à equipe um trabalho de discussão, exigindo uma mudança no manejo clínico frente à entrada na puberdade das crianças que apresentavam agora uma nova dimensão para o gozo. A problemática do encerramento do tratamento dos adolescentes na instituição

 

Alguns adolescentes, tanto os que chegaram ainda crianças e cresceram ao longo do tratamento no NAICAP, quanto aqueles

Constata-se grande deficiência na rede de serviços de saúde mental no Rio de Janeiro quanto ao oferecimento de dispositivos de trabalho para a clientela proveniente do NAICAP. Os serviços para adultos encontram dificuldades para receber os jovens oriundos de serviços para infância e adolescência, na medida em que a dinâmica terapêutica oferecida baseia-se em atividades exclusivamente coletivas, exigindo um grau de autonomia da clientela.

 

Considerações finais

Diante de tal quadro, o NAICAP se colocou em trabalho na tentativa de responder à peregrinação dessa clientela mais grave, lançando mão de projetos que viabilizassem um atendimento mais resolutivo. Privilegiando o que era apontado pelas crianças que cresciam no serviço, fez-se imprescindível re-situar o trabalho oferecido aos adolescentes.

Verificamos, então, que cabe à equipe escutar esses sujeitos, seja na psicose, seja no autismo, de modo a extrair a lógica de suas condutas aparentemente estranhas. Não se trata de dar a elas um sentido ou adequá-las a normas institucionais, mas partir das respostas que cada sujeito formula frente à intrusão abusiva e devastadora do Outro.

Por meio do trabalho clínico desenvolvido pelo NAICAP, cada um busca fazer-se parceiro das construções do adolescente, para que a enunciação presente em cada uma das produções psicóticas e autistas possa retornar ao sujeito sob a forma de simque já chegaram com idade avançada no serviço, apontavam, cada um à sua maneira, para o momento de saída da instituição. Esse foi outro impasse que se colocou para a equipe.

Francisco chegou ao NAICAP com 8 anos de idade. Era um menino que não falava, durante as refeições vomitava os alimentos que comia, girava em torno de si enquanto tapava seus próprios olhos, boca e ouvidos com objetos. Num primeiro momento não deixava brechas para a entrada do Outro. Ao longo de seu tratamento Francisco deu mostras de maior abertura. Brincava com bonecos e interagia com outras crianças, passou a nomeá-las, a olhar-se no espelho e a pronunciar seu próprio nome. Com a chegada do momento de sair do serviço, seu quadro piorou, voltou a isolar-se e apresentou uma encoprese. A mãe muito angustiada procurou novamente o serviço, levando a equipe a reavaliar a condução clínica do caso. Concluiu-se que a partida de Francisco seria precipitada e que o mais indicado era adiar o projeto de sua saída da instituição. Esse impasse mostrou a importância de discussões mais intensas no momento do encerramento do tratamento de cada adolescente no NAICAP (Ribeiro & Gomes, 1999; Ribeiro, 2005).

Da mesma forma que a saída de Francisco exigiu um reposicionamento quanto à direção dada ao seu tratamento, a equipe vem se confrontando com outras dificuldades quando chega o momento de encaminhar os adolescentes para outros espaços de acolhimento. bolização do gozo que o invade no real. Despojando-se de um saber prévio sobre cada um dos casos, por meio de reuniões gerais que contam com a presença de um supervisor externo ao serviço, esse modo de funcionamento visa à circulação do saber, de forma que nenhum dos técnicos detenha um saber pleno sobre o paciente. Esse tipo de intervenção pretende colher, como um de seus efeitos, o saber-fazer com o gozo que cada sujeito constrói em sua trajetória singular de tratamento do Outro. Na peculiaridade da irrupção das crises testemunhadas no período da puberdade, faz-se necessário um manejo clínico específico que implica, mais do que nunca, um determinado manuseio das leis institucionais. Tais leis não devem ser utilizadas de forma caprichosa, prévia ou normativa, mas como recurso das intervenções clínicas, de modo a estarem a serviço do tratamento dos adolescentes que freqüentam a instituição. Para isso, precisam ser amplamente discutidas a cada vez e estarem submetidas à condução do caso clínico.

Tomar a criança e o adolescente autista e psicótico como sujeito, conferindo às suas produções um estatuto de invenção, é a direção de trabalho que o NAICAP vem imprimindo a sua experiência clínica.

 

Referências Bibliográficas

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Recebido em junho/2005
Aceito em setembro/2005

 

 

Notas

1 O presente artigo resulta de pesquisa realizada com apoio técnico da FAPERJ (de outubro de 2003 a março de 2004) concedido a Mariana Mollica da Costa Ribeiro, sob orientação de Angélica Bastos e supervisão de Katia Álvares de Carvalho Monteiro, então coordenadora do NAICAP.
2 A reflexão apresentada neste artigo dá prosseguimento à análise, realizada em 2004, de dados quantitativos da população de adolescentes atendidos no NAICAP, no período de 1986 a 2003. Esta análise desdobrou-se em considerações qualitativas de casos atendidos ao longo dos 18 anos do serviço.
3 O Instituto Philippe Pinel contava com um serviço ambulatorial destinado ao atendimento de crianças e adolescentes. Entretanto, no final da década de 80, foi constatado que o ambulatório não constituía um dispositivo institucional que pudesse atender de forma resolutiva a clientela mais grave, que requeria uma atenção diferenciada. Foi então, criado o Programa de Cuidados Intensivos à Criança Autista e Psicótica. Com a ampliação desse programa, no ano de 1992, o Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica (NAICAP) tornou-se um serviço independente.
4 A "prática entre vários" é o termo que J.-A Miller inventou para traduzir o que Antenne 110 lhe havia proposto como tema para as Terceiras Jornadas da Rede Internacional de Instituições Infantis, que ocorreram em Bruxelas, em 1 e 2 de fevereiro de 1997. Esse termo se refere ao modo de funcionamento ou à particularidade do trabalho desenvolvido por Antonio Di Ciaccia, a partir da fundação de Antenne 110. (Baio, 2000)
5 O termo "ponto de ancoragem" surgiu segundo Stevens (2000: 33-34), como referência a experiência naval como uma metáfora, portando a idéia do avesso do barco à deriva no momento em que este chega a um porto e joga a âncora para fixar sua parada. Foi utilizado por alguns psicanalistas do Campo Freudiano a partir de jornadas do R3 organizadas por J-A. Miller realizadas em 2000 em Bruxelas, com o intuito de nomear a suplência realizada por algumas crianças psicóticas que se tratavam em instituições de saúde mental através da construção de um sintoma. Tal termo pretende valorizar as construções dessas crianças, conferindo-lhes um estatuto de invenção. O ponto de ancoragem seria a construção de uma metáfora que permite ao sujeito se fazer representar a partir de um sintoma construído em transferência, de modo a circunscrever o gozo excessivo que lhe deixa a deriva.
I Professora adjunta do Programa de PG em Teoria Psicanalítica - IP/UFRJ.
II Doutora em Psicologia, PUC-SP; psicanalista. Fundadora e coordenadora do NAICAP (1987-2004); Preceptora da Residência em Psiquiatria e Saúde Mental Infantil do IMPP-RJ;
III Psicanalista. Mestranda do Programa de PG em Teoria Psicanalítica - IP/UFRJ; psicanalista.

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