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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.10 n.19 São Paulo dez. 2005

 

RESENHA

 

Leda Mariza Fischer Bernardino1

Pontíficia Universidade Católica do Paraná

 

 

VORCARO, Angela (Org.)

Quem fala na língua?: sobre as psicopatologias da fala. Salvador, BA: Ágalma, 2004 Coleção Psicanálise da Criança - vol. 15.

 

Neste volume _ que poderíamos chamar de dois-em-um - a editora Ágalma, pelo precioso trabalho de organização de Ângela Vorcaro, continua honrando sua tradição de abordar temas centrais na clínica psicanalítica de crianças.

Este número oferece-nos um raro material para a pesquisa clínica e teórica em psicanálise, que não se refere apenas à especificidade da psicanálise de crianças, atinge todos os que, na sua prática, têm de lidar com a fala e com a linguagem. Gostaria de partilhar os efeitos desta leitura com vocês, leitores da Estilos, tamanho foi o impacto que me causou. Como bem diz Gabriel Balbo neste volume: "a língua nos causa"... inquietações, poderíamos dizer.

Na primeira parte do volume, que poderíamos considerar, por si só como um volume, somos apresentados ao tema pela organizadora, que já nos aponta o fato de que, apesar de todo o interesse da psicanálise, desde seu surgimento, pelas manifestações do inconsciente na fala _ como os lapsos e chistes _ muito pouco se considerou a fala em constituição e suas relações com o corpo em desenvolvimento das crianças! Eis a que veio a publicação: tentar preencher essa lacuna, tarefa que nos obriga a traçar uma trajetória inóspita, como aponta Vorcaro: "lidar com as psicopatologias da fala é trabalhar no limbo teórico da extensão conceitual entre a lingüística e a psicanálise" (p. 19). Para os leitores, entretanto, um alento: quem nos guia neste caminho é justamente Vorcaro, com a autoridade de sua experiência de tantos anos praticando com propriedade esta interlocução.

Na seqüência, somos transportados para o clima de efervescência teórica do fórum de debates sistemático da DERDIC (Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação da PUC-SP) e podemos acompanhar cinco seminários de Alfredo Jerusalinsky, proferidos para essa equipe interdisciplinar atenta à "incidência da fala e da linguagem na estruturação do sujeito". O interessante é que, além de termos o privilégio de acompanhar a discussão das questões suscitadas pela fala sempre instigante de Alfredo Jerusalinsky, mais adiante _ na segunda parte do volume (que também poderia ser, por si só, um volume) _ podemos ler as contribuições teóricas desses mesmos participantes, mobilizados justamente por esses disparadores que acabam sendo os seminários aqui transcritos.

Podemos, assim, acompanhar a produção da equipe, a partir da reflexão de sua prática, neste lugar terceiro que é o espaço teórico desses seminários. Na medida em que avançamos na leitura, vamos nos dando conta de que estamos testemunhando _ nós, leitores _ algo infelizmente ainda raro em nosso meio: um verdadeiro trabalho interdisciplinar.

Vocês devem estar antecipando quão inspirados _ e inspiradores _ são estes seminários de Alfredo Jerusalinsky.

O primeiro deles, A cura e o discurso, traz uma discussão sobre a clínica da linguagem, a psicolingüística em suas diferentes abordagens e as posições biologicistas. É especialmente interessante a apresentação que Jerusalinsky faz do livro de Terrence Deacon, The Symbolic Species (1999), situado por ele "numa dobradiça entre as concepções biológicas e psíquicas ou psicológicas" (p. 35), no qual a linguagem tem um papel subversivo, é a partir dela que "se reconfigura o próprio ser, tanto do ponto de vista filogenético, quanto do ponto de vista ontogenético" (p. 39).

No segundo seminário, O código da língua e a função simbólica, Jerusalinsky avança na questão da terapia da linguagem, passeando pela neurolingüística, para demonstrar que "a língua é um sistema simbólico e não meramente um código" (p. 61). Em seguida, ele faz uma retomada da evolução da clínica da linguagem, chegando então a demonstrar a interdependência da condição natural, orgânica, para com a diferenciação simbólica permitida pelo "valor simbólico do traço" (p. 68). O ponto importante deste seminário, que eu destacaria, é demonstrar os efeitos do atravessamento psicanalítico no terapeuta de linguagem. Por exemplo, o autor diz, a respeito da pulsão: "se passasse a ser considerada de um ponto de vista sistemático, permitiria ao terapeuta não ser ele operado passivamente pela transferência, mas passar a operá-la como um instrumento de maior precisão" (p. 58).

O seminário seguinte, A metáfora paterna e sua relação com a alíngua, Jerusalinsky propõe abordar separadamente a metáfora paterna como fundante da fala e alíngua como ato de fala. Para tal, passeia pelas teorias de Freud, Lacan e Winnicott, situando a especificidade da criança na língua: "na criança a inscrição ainda não provocou efeito de escritura. Ela está inserida pela mãe no discurso, mas as conseqüências da escritura nela ainda não vingaram" (p. 76). Ao final desse passeio _ enriquecido pelas perguntas feitas pelo público (que às vezes faz a gentileza de perguntar o que justamente queríamos saber!) _ vemos articulados os dois conceitos: "Essa alíngua se instala por obra dessa metáfora" (p. 90).

No quarto seminário, que aborda A ortografia e as formações do inconsciente: novas considerações sobre a instância da letra, não podemos deixar de nos surpreender com o que ocorre em ato no próprio título, tendo escapado às revisões que o texto sofreu: o nome do autor do texto aparece como Jeruzalinsky! É um seminário dedicado ao difícil conceito de letra, que Jerusalinsky consegue ilustrar com exemplos muito simples, propondo um esquema que envolve o olhar, a posição significante e o significado, no après coup que cria os efeitos de significação. Encontramos observações aguçadas, tais como: "dentro da mesma palavra pode haver mais de um significante" (p. 95); "o sotaque é um acento fora de lugar na prosódia" (p. 96); "a prosódia está a serviço de marcar a posição de borda numa posição diferente" (p. 103).

No último seminário, Como se constituem as bordas do ponto de vista da linguagem, Jerusalinsky revisita um tema que lhe é caro: a psicose. Neste caso, em suas relações com o discurso: "o problema fundamental de qualquer sujeito é como se representar no discurso, ou seja, como responder à pergunta: "Quem sou eu?" ou "O que sou eu?". Ele menciona três diferenciações no campo do significante: os que representam o sujeito; os não escolhidos; os rejeitados; e propõe ainda uma quarta categoria: uma parte da série significante que desconhecemos. Ele diz: "o universo do significante é bem maior que o mundo significante no qual nós habitamos" (p. 111). Sobre a loucura, traz a seguinte precisão: "não nos enlouquece a crueldade do real, mas sim o que do real retorna em nós como ignorância" (p. 112).

Enfim, é difícil resumir em alguns pontos apenas, seminários tão ricos. Convido o leitor a conferi-los, pois se trata de uma rara oportunidade de encontrar o texto de Alfredo Jerusalinsky, autor cujas posições clínicas e teóricas na psicanálise freudiana e lacaniana lamentamos que não sejam mais difundidas.

Na segunda parte do volume, intitulada Formulações teórico-clínicas, encontramos primeiramente um texto de Gabriel Balbo, A língua nos causa. Prezado leitor: eis um trabalho de fôlego, difícil, mas que vale muito a pena acompanhar até o fim. Balbo vem sendo um dos autores em psicanálise de crianças mais produtivo e mais criativo na versão própria que constrói dos conceitos lacanianos. Para ele, a língua que nos causa é encontrada em "uma linhagem a situar do lado os totens, dos mitos, dos ancestrais, dos pais mortos e tabus, recalcados e simbólicos, mais do que do lado das mães e dos pais bem vivos, e das línguas que eles falam quotidianamente" (p. 125). Eis uma maneira de entender, com Lacan, que na origem da psicose não se trata de psicogênese nem de organogênese, mas de uma determinação simbólica que implica várias gerações.

Em Do corpo à letra, de Gabriel Balbo e Jean Bergès, somos transportados para outro seminário, desta vez na França, para acompanhar o trabalho em dupla tantas vezes realizado por esses psicanalistas que fizeram história na psicanálise francesa com sua clínica apurada e sua maneira viva e por vezes subversiva de fazer teoria. Neste seminário, Balbo e Bergès dedicam-se a explorar suas noções de função e funcionamento, para refletir sobre a relação entre a inscrição da letra e a imagem especular, mostrando como "a mãe está num lugar que é preciso que ela preencha as funções (de outro modo, há um perigo vital) e, ao mesmo tempo, ela se deixe transbordar pelo que é antecipado" (p. 153). Outra observação conceitual interessante é o relevo que os autores dão ao objeto voz: "Esse objeto voz não é somente um objeto como o seio do qual eu me separo, por exemplo. A voz, isso veicula algo, veicula justamente o que se poderia chamar as letras" (p. 157). E eles acrescentam: "não há outro objeto senão a voz a perder: o seio não é, senão, o primeiro substituto" (p. 158). Além disso, são apresentadas importantes observações teóricas sobre essa relação corpo/letra para os deficientes auditivos e para os deficientes visuais; bem como aportes à psicossomática.

O artigo seguinte é de Jean Bergès: Bilingüismo e recalcamento. Trata-se de uma pequena produção escrita, na qual o autor apresenta o bilingüismo como fato de estrutura, situado "entre a língua materna e qualquer outra língua" (p. 177). Entretanto, uma surpresa: "o sujeito do inconsciente não é bilíngüe"! Deixo assim em suspenso estas duas afirmações, para os leitores se remeterem ao texto e tentarem destrinchá-la. Autor tão profícuo, Jean Bergès nos deixou órfãos de sua palavra no ano passado, embora seus textos aí estejam para perenizar sua vivacidade clínica.

O artigo Corpolinguagem, de Nina Virginia de Araújo Leite, traz com todas as letras o projeto do grupo SEMA-SOMa, "que pretende inscrever a consideração do real do corpo e da língua no escopo dos estudos lingüísticos, a partir da experiência psicanalítica" (p. 181). Tal interface é brilhantemente trabalhada pela autora, com destaque para sua observação de que a linguagem é corpo, mas corpo faltante: "a materialidade da linguagem inclui o incorpóreo" (p. 184).

Viviane Veras, no artigo seguinte, explora em O saber do ingênuo: um saber não subjetivado as falas ditas ingênuas das crianças, traçando uma comparação com os estudos de Freud sobre os chistes e ilustrando com vinhetas ouvidas no quotidiano.

O texto Prosódia e enunciação na clínica com bebês: quando a entoação diz mais do que se queria dizer, de Julieta Jerusalinsky, apresenta um estudo detalhado da prosódia, articulada à questão pulsional da voz: "temos aí a voz, a voz como objeto da pulsão oral que produz laço com o outro e que também assume o sentido de chamado de um sujeito" (p. 207). Esse chamado vai introduzir o enigma do desejo. Julieta Jerusalinsky conceitua com muita propriedade língua materna e alíngua, além de fazer uma importante advertência _ ilustrada clinicamente _ quanto à prosódia e ao mamanhês: "'só produzem um efeito constituinte para o bebê e pequena criança se introduzem cortes e articulações simbólicas no real de suas funções orgânicas' senão, seria simplesmente `pantomima de linguagem'" (p. 221).

Em seguida, temos novamente a contribuição de Angela Vorcaro, desta vez em parceria com Lia Navegantes, em A ecorporação de uma voz, artigo que explora um fragmento clínico da análise de uma criança autista para problematizar a intervenção psicanalítica baseada no "estabelecimento de uma sincronia entre gesto e som" (p. 231). A negação enunciada pela analista, "não pode", retomada e repetida pela criança, permitiria pensar no surgimento de um julgamento de atribuição? Seria um início de recalque? Na discussão, as autoras apontam como, para essa criança, a apreensão da voz não permite a substituição significante, não se abre para substituições. Mesmo assim, sublinham o "nascimento da representação", já que o movimento corporal da criança recusa o "não pode" enunciado. A conclusão do texto merece ser destacada: "pensar-se como existente é localizar-se; é estabelecer _ como sujeito _ uma posição simbólica" (p. 242).

Sandra Pavone, autora de O brincar e suas vicissitudes, estuda o brincar e seus destinos, desde Freud até Lacan, passando por Melanie Klein. Dos textos já clássicos dedicados ao tema, Pavone destaca os dois pólos do brincar: desejo e pulsão. Ela conclui: "em Freud e Lacan o brincar revela-se como constituído e constituinte, efeito da estruturação significante e do sujeito" (p. 255) Os dois artigos que finalizam o volume: No princípio era a voz da Mãe, de Maria Cristina Solé e Um estrangeiro em sua casa, de Yone Maria Rafaeli, dedicam-se à questão da deficiência auditiva e suas relações com a construção da subjetividade. Constituem um dos poucos textos psicanalíticos sobre o tema e, como tal, são bem-vindos. Solé, por exemplo, afirma: "ascender à linguagem não depende da possibilidade de ouvir a voz materna ou poder falar: um sujeito surdo é capaz de ascender à linguagem sem essas capacidades, mas sua via de inserção na ordem simbólica será o olhar e aquilo que ele tem de imaginário" (p. 271). Já Rafaeli finaliza belamente seu texto: "enquanto portador da surdez, esse sujeito terá que acolher o estrangeiro que o habita a partir de um lugar simbólico, e deverá ser acolhido pelo outro como um estrangeiro" (p. 293).

Enfim, como se pode constatar, trata-se de uma publicação indispensável à biblioteca dos psicanalistas e demais trabalhadores da fala e da linguagem. Para finalizar, gostaria de parabenizar a editora Ágalma por este lançamento e agradecer à Angela Vorcaro pela iniciativa de reunir tantas pessoas interessantes num mesmo lugar!

Recebido em abril/2005
Aceito em junho/2005

 

 

1 Psicanalista, professora titular da PUC-PR, membro fundador da Associação Psicanalítica de Curitiba, analista membro da Association Lacanienne Internationale.

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