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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.11 no.20 São Paulo June 2006

 

ARTIGO

 

O não violento

 

The violent no

 

El no violento

 

 

Isabel Kahn MarinI

Pontíficia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo analisa o aumento das manifestações de violência em nossa sociedade, relacionando-o à tendência de negar a própria violência que, de acordo com a psicanálise, é condição para a constituição subjetiva. Essa hipótese articula-se com as expectativas criadas pelo imaginário contemporâneo, narcísico por excelência, que leva os sujeitos a negarem as manifestações associadas ao sofrimento, ao ser desagradável. Torna-se cada vez mais difícil para o sujeito contemporâneo colocar-se como referência para o outro que dele depende. Analisa-se como alguns sujeitos, ao buscarem escapar do enfrentamento da violência fundamental, ficam expostos ao desamparo, restando-lhes como alternativa para afirmação da singularidade e alívio de sua tensão pulsional a destruição do outro.

Palavras-chave: Violência, Psicanálise, Contemporaneidade, Desamparo, Educação, Pulsão, Limites.


ABSTRACT

We propose to analyse the increasing manifestations of violence in our society, connecting it to the tendence to deny one’s self violence which, according to psychoanalysis, is a necessary condition for constituting the subject. This approach is related to the expectations raised by contemporary social imaginary, narcissistic par excellence, which leads subjects to deny manifestations associated with displeasure, suffering, or being disagreeable. It is very difficult for the contemporary subject to place itself as a reference for the others who depend on him (husband or wife, children, pupils, etc.). When subjects try to avoid facing this fundamental violence, they are exposed to unbearable helplessness and may see the destruction, the annihilation of the other as the alternative to assert their own singularity and relieving their pulsional tensions.

Keywords: Violence, Psychoanalysis, Contemporary, Helplessness, Pulsion, Education.


RESUMEN

Este artículo analiza el aumento de manifestaciones de violencia en nuestra sociedad,relacionándolo con la tendencia a negar la propria violencia que,desde el punto de vista psicoanalítico,es condición para la constitución subjetiva.Esta hipótesis se articula com las expectativas creadas por el imaginario contemporáneo,narcisista por excelencia,que lleva a los sujetos a negar las manifestaciones asociadas al sufrimiento,a ser desagradable.Asi,se vuelve cada vez mas difícil para el sujeto contemporáneo colocarse como referencia para el outro que de él depende.Se analiza también como los sujetos,al buscar escapar del enfrentamiento de la violencia fundamental,quedan expuestos al desamparo restándoles como alternativa para la afirmación de la singularidad y alivio de su tensión pulsional destruir el outro.

Palabras clave: Violencia, Psicoanalisis, Contemporaneidad, Desamparo, Educación, Pulsión, Limites.


 

 

A proposta deste trabalho é refletir sobre a violência e posicionar-se quanto a esse sintoma social marcante da atualidade. Apesar de a tradição psicanalítica assumir a violência como fundante da civilização e condição para a constituição subjetiva, muitos psicanalistas furtam-se a manifestar-se quanto a questões políticas e sociais, evocando tanto a suposta abstinência necessária para a escuta quanto o princípio de que a psicanálise não deveria ser uma visão de mundo. Freud, no entanto, que nunca deixou de analisar as diferentes manifestações sócio-culturais, interrogando-se sempre sobre as vicissitudes da civilização e posicionando-se frente a ameaças à dignidade humana (1915, 1930, 1933), ensina-nos como a palavra recalcada está intrinsecamente vinculada à violência e à dor, afirmando que “tudo que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra” (1933, p. 208).

Assumindo o mal-estar que esse tema sem dúvida provoca é que me propus a pesquisar o aparente paradoxo no qual se configura o cenário contemporâneo: índices crescentes de manifestação de violência e a preocupação de todos em negar qualquer afeto que possa relacionar-se à violência, aliados às mais diversas propostas políticas suposta mente engajadas em favor da paz. Coloca-se como desafio, então, pensar em como o psicanalista pode contribuir com seu trabalho para a questão da violência no cotidiano. Nesse contexto, é útil retomar um dos conceitos fundamentais para a psicanálise – o de pulsão (Trieb). Conforme Luís Hanns, Trieb, tal qual é usado em alemão, entrelaça quatro momentos que conduzem do geral ao singular. Abarca um princípio maior que rege os seres viventes e que se manifesta como força que coloca em ação os seres de cada espécie; que aparece fisiologicamente ‘no’ corpo somático do sujeito como se brotasse dele e o aguilhoasse; e por fim, que se manifesta ‘para’ o sujeito fazendo-se representar ao nível interno e íntimo como se fosse sua vontade ou um imperativo pessoal. No texto freudiano também a palavra mantém essas características de uso. Trieb evoca a idéia de força poderosa e irresistível que impele. (Hanns, 1996, p. 338; os grifos são meus).

Esse conceito, que aponta para a dobradura entre o social e o biológico, dá o caráter imprevisível, insistente, inquietante dessa força que pode, assim, ameaçar com tamanha intensidade a ordem esperada na idéia de civilização. Em sua origem, portanto, a pulsão não é boa nem má, ela só busca satisfação. Ela se torna destruidora apenas quando o sujeito não consegue encontrar um objeto adequado ou quando o objeto se lhe apresenta inadequado.

Ora, encontramos no sentido primeiro da palavra violência a idéia de “irrupção de uma força intensa que deixa o sujeito submisso aos efeitos dessa força sem que ele possa se livrar dela” (Toubiana, 1997, p. 167). Essa concepção retoma, no fundo, a etimologia do termo violência, que vem do latim, em que vis quer dizer a força. Aliás, Jean Bergeret pesquisa o termo e deriva-o do radical indo-europeu âßF, que, passando pelo grego â e o latim vita, define a vida, a força vital, o impulso de sobrevida – reportando, portanto, na origem, a idéia de vida sem a conotação destrutiva ou erótica que assumiria mais tarde (Bergeret, 1995).

A questão crucial, que convoca a psicanálise a se posicionar, refere-se justamente ao manejo pulsional ou, dito em outras palavras, à possibilidade criativa do amansamento das pulsões. Sabe-se o quanto a tentativa incessante do sujeito humano de se fazer único e singular implica o confronto contínuo com as exigências da civilização. O dilema que se impõe ao sujeito contemporâneo é buscar formas criativas de inscrever-se na cultura, enfrentando o sofrimento da renúncia pulsional, na esperança de encontrar formas prazerosas de viver sem aniquilar o outro que põe obstáculos à sua satisfação. Com essa preocupação, desenvolvi uma tese que procurou explicar o aumento das manifestações da violência da sociedade, relacionado à tendência para negar a própria violência1.

Por mais que seja importante considerar as condições sociais – as falhas do tecido social que levam às manifestações violentas como formas de defesa ou denúncia –, por mais que denunciemos a violência presente nos mecanismos de controle social, é preciso considerar que nos fundamentos do sujeito humano encontra-se uma força vital absolutamente necessária para sua sobrevivência. É preciso ter a coragem, penso eu, de chamar essa força de violência, não só pelo seu sentido etimológico, mas pelo que ela também denuncia e tanto incomoda a civilização: seu caráter de “destruir o outro”, de constituir uma força poderosa que “impõe o um” – ou é um, ou é nada –, o princípio narcisista por excelência, como bem aponta Bergeret em seu texto “A violência fundamental”: “o primeiro objeto é fundamentalmente rival no sentido narcisista, o mais primitivo; ele impõe a lei do ‘ou ele ou eu’. É a vida mesmo que está em questão aqui e não ainda o amor.” (1995, p. 222).

É nesse enfoque, sem negar os determinantes sócio-políticos e econômicos da violência, que minhas reflexões vêm se desenvolvendo. São idéias que encontram seu fundamento analisando as expectativas criadas pelo imaginário social contemporâneo, narcísico por excelência, que leva os sujeitos a negarem qualquer possibilidade de manifestação associada ao desprazer, ao sofrimento, a ser desagradável. Tomo como princípio as concepções correntes sobre a contemporaneidade, uma espécie de império do narcisismo, no qual triunfa o individualismo e a sociedade é regulada mais por critérios estéticos do que éticos, o que a define como “sociedade espetáculo” (Debord, 2000). Nesse tipo de sociedade reina a busca do prazer incessante e a obsessão pela imagem perfeita – de corpos e almas –, reforçados pelas ilusões farmacológicas para regular o mal-estar. Considerando as características dessa sociedade em que predomina o ideal de autonomia e o individualismo é a meta, a idéia de submeter o outro à própria vontade parece ser uma violência inominável que, a meu ver, contribui para explicar o tão falado declínio da função paterna2. Interpretar a necessidade do outro, buscar as possíveis formas de satisfazê-la, ir ao encontro das leis de regulação social implica ser desagradável, causar sofrimento; vale lembrar que o conceito de sofrimento pressupõe a noção de padecimento e submissão ao outro.

O que se quer demonstrar é que essa situação leva o sujeito a um grande desamparo, provocado pelas exigências pulsionais crescentes impostas pela própria sociedade contemporânea (“seja sempre mais feliz”, “seja o que quiser”, “consuma”, “tenha prazer”, “transe todas”, etc.), e que expõem esse sujeito a um excesso de excitação3. O ato violento destrutivo acaba sendo a forma que o indivíduo submetido a forças pulsionais intensas encontra para afirmar sua singularidade, eliminando o outro que lhe é desagradável e fonte de sofrimento.

A tese que defendo é a de que frente a esse cenário deve-se resgatar o que chamo de “Violência Fundamental” e mesmo correndo o risco de mal-entendidos e de críticas por talvez banalizar o mal, reafirmo a importância de estarmos atentos às manifestações dos afetos associados à Violência Fundamental, que refletem o jogo entre violência pulsional e civilização, tanto na constituição subjetiva quanto na social. Só assim estaremos garantindo que o encontro com a diferença, com o outro que se constitui num você e não num ele, possa criar alternativas civilizadas e éticas. Assim, podemos pretender alternativas amplas de paz, não de passivação, que venha a exterminar qualquer “ele” que por algum motivo ameace. Como observa Zygouris (1999, p. 119), “o nós que engloba os racistas autóctones não faz frente a nenhum ‘vocês’. Existe somente ‘eles’. A partir do momento em que aparece o ‘vocês’ já existe interlocução possível, discussão de paz e, sendo assim, esboço de um reconhecimento”.

Observo em minhas análises, porém, o quanto tem sido difícil, na contemporaneidade, a disponibilidade de os sujeitos se fazerem “objetos” e enfrentarem a Violência Fundamental, chegando a abandonar seus parceiros significativos (filhos, cônjuges, alunos etc.) à solidão e ao desamparo em nome do “respeito às suas vontades”. O ato de crueldade é seu último avatar (do Jogo Pulsional – Eros e Tânatos) última tentativa de um

fazer erótico, de um ir rumo ao outro, nem que seja para destruí-lo; quando, na falta desse outro inacessível, o “eu” tornado impotente se abraça a si próprio num gesto último de potência. Abandonado a si próprio em sua solidão, o sujeito subjugado pelo forte entrelaçamento de Pulsão de Vida e de destrutividade só terá a si próprio ou aos que lhe são próximos para esse perigoso exercício (Zygouris, 1999, p. 25). Assumir a violência não quer dizer que, pelo fato de ela ser constitutiva das relações humanas, justifiquem-se e desculpem-se os atos de violência e aniquilamento. Ao contrário, é preciso responsabilizar-se pelos encontros humanos e pelos restos de violência que deles resultam.

Esses restos, se puderem ser assumidos, pedirão continência, representação e tolerância. Nossa profissão, ao cuidar de quem sofreu o mal ou ao escutar quem praticou o mal, coloca-nos muitas vezes do lado daquele que justifica qualquer ação pelos traumas e, assim, des-responsabiliza-se por qualquer posicionamento ético.

Embora a ética da psicanálise não se restrinja à relação unívoca de causa e efeito, colocando em evidência a complexidade do inconsciente, em que não há tempo e espaço, não se escapa muitas vezes à tentação de explicar tudo que falta e tudo aquilo que o outro fez faltar. E mesmo que “Este por quê, por quê obsedante, que solicita um porquê nunca satisfeito, remeta a núcleos pulsionais radicalmente inconscientes, não ligáveis, densos e petrificados, onde se alojam inveja, destrutividade, raiva, desejo de morte ou de assassinato” (Enriquez, 1999, p. 82), lembro com

Freud (1939, p. 133) que “a ética é uma limitação do instinto” A dimensão ética funda-se justamente em função da alteridade. Portanto, é no enfrentamento, confrontando, encontrando o outro, resgatando a dimensão fundamental do ser humano – que é a de sua dependência em relação a outro ser humano –, que se podem encontrar soluções de paz para esses embates tantas vezes violentos. Por isso não se pode fugir à responsabilidade desses encontros, mesmo que isso pareça ser tão insuportável nos dias de hoje.

A clínica nos traz essa experiência cotidianamente. Os pacientes nos procuram para encontrar alívio para seu sofrimento e muitas vezes esperam explicações que justifiquem seus sintomas; explicações do tipo “Freud explica”. Há também aqueles que já negam a proposta de uma psicanálise evocando os supostos sucessos das terapias medicamentosas ou de outros métodos terapêuticos para supressão do sofrimento. Nesse cenário, fala-se muito da crise da psicanálise, e são inúmeras as discussões sobre as novas psicopatologias e sobre a possibilidade de a psicanálise oferecer uma escuta ou manejo técnico adequado para os sintomas que se apresentam. Ora, é justamente na escuta de pacientes em análise que, através da transferência, experimentamos essa violência que suscita o processo de subjetivação. Suportar a violência, levar o paciente a buscar o sentido de seus sintomas e encontrar outras formas de realizar suas pulsões não significa desresponsabilizá-lo por seus atos. A experiência clínica permite entender que suportar o desamparo, tanto quanto oferecer um colo, continência, amor, é tolerar a violência das exigências pulsionais que mobilizam também a sua própria violência, essa necessidade de opor-se ao outro que tanto assusta, provavelmente por evocar o ódio pela paz perdida. O encontro com um analista permite ao paciente reviver através da transferência sua experiência de sofrimento, de paixão que o constitui como sujeito único, e que ele quer, paradoxalmente eliminar. Pode-se, portanto, pensar no paradigma da formação do sujeito referido à dinâmica da transferência que ocorre entre paciente e analista numa psicanálise. Se o analista quiser contribuir para que seu paciente se torne sujeito, ele precisa ousar ser violento, romper com o pacto de paz, do encontro total. É essa ética, portanto, que pode e deve ser compartilhada em nossa cultura, combatendo, portanto, algumas ilusões que acabam por sustentar, indiretamente, práticas aniquiladoras.

Assim, é importante analisar o imaginário moderno que persiste na perspectiva de que se é livre para conquistar o que quiser; a sociedade de consumo globalizada está organizada na promessa de acesso a todos. O dinheiro, cada vez mais abstrato, oferece ilusões de preenchimento e possibilidade imediatista de satisfação, ao mesmo tempo em que acena com novas e crescentes exigências – certamente não possíveis de ser realizadas.

A Psicanálise ajuda-nos a pensar no desamparo suscitado pelo transbordamento das moções pulsionais e em como o Eu sozinho não é capaz de dar conta de administrar toda essa excitação. Quando falham as funções recalcantes, o outro é apenas obstáculo à satisfação e precisa ser eliminado, principalmente se representar alguém que goza mais. Isso explica filhos que matam pais, pais que torturam filhos, adolescentes que matam o portador de um tênis de marca, e assim por diante.

Sabemos que o processo de recalcamento tem seu ápice na revolução edípica, e as vicissitudes desse processo são bem conhecidas. Se a partir do pacto edípico o sujeito (criança) descobre que precisa adiar a plena satisfação pulsional ou, até mesmo, renunciar a ela em nome de um lugar em sua comunidade social, da garantia de um reconhecimento e de certa proteção; como fica esse processo quando o discurso social e – até certo ponto – as leis (se pensarmos nas leis de mercado que regulam o capitalismo) dizem “goze mais”? Os pactos sociais parecem ficar comprometidos, conforme análise perspicaz de Hélio Pellegrino (1987). O princípio que impera na organização psíquica seria então o do Ego Ideal, do tempo em que o sujeito vive o princípio da onipotência, da realização plena das necessidades regulada pelo ideal dos pais. Em outras palavras, seria possível retomar a tradição freudiana que desde Totem e Tabu indica que o que funda a civilização não é só um assassinato (o do pai tirânico), mas também a comunhão dos irmãos em torno do crime. Nesse cenário é que se projeta a criação de um pai (bom e protetor) e o conseqüente acesso à lei paterna que regula o acesso ao gozo, além do possível retorno da violência entre e contra os irmãos.

Mas como ficamos numa sociedade em que tudo parece poder ser reparável, recuperável? A oferta obcecante de consumo, que garante o controle de qualquer sofrimento e o acesso ilimitado ao poder, não se constituiria ela a imagem do pai tirânico dos tempos primevos? Quem será o filho privilegiado? A comunidade fraterna perde seu pacto social, o irmão privilegiado precisa ser eliminado e os critérios para isso são subjetivos (típicos do individualismo) e discutíveis: desde o portador de um objeto fetiche que eu não possuía, até aquele que, pela sua estética (ou posição social), compromete o ideal de perfeição, ou até mesmo o fracasso dos ideais democráticos modernos. Lembro dos meninos de Brasília que, após atearem fogo em um índio que dormia num ponto de ônibus, justificaram seu ato dizendo pensar que se tratava de um mendigo. O caso da jovem paulista de classe média alta que não só planeja o assassinato de seus pais, mas dele participa, alegando que eram contra o seu namoro, também ilustra o que quero dizer. É mais fácil eliminar os pais que incomodam do que brigar com eles, sair de casa, fugir com o namorado etc. Casos, entre muitos outros, que demonstram que nem só quem é excluído dos meios de acesso ao consumo por condições socioeconômicas comete atos de violência.

É imprescindível analisar, então, em relação à adolescência, os impasses do processo de subjetivação na contemporaneidade, em função de os pais e educadores tentarem escapar à Violência Fundamental, oferecendo-se como referência e suporte para os investimentos pulsionais dos jovens. A voz corrente que considera “aborrescentes” os adolescentes revela justamente o caráter de negação da violência. Penso que os jovens, hoje, ocupam o lugar que os estrangeiros4 tão freqüentemente ocupam como depositários de conteúdos que não podemos reconhecer em nós mesmos. O social sempre encontrou formas de exterminar o estrangeiro ou de colocá-lo no lugar de exótico como aquele que representa e atua tudo aquilo que a cultura de dada sociedade reprime. A noção do “estranho” (unheimlich) que Freud (1919 b, p. 258) desenvolve em relação ao psiquismo também trabalha essa questão: “Na realidade, não é nada de novo nem de estrangeiro, é algo que muito tempo atrás foi familiar à vida psíquica e se tornou estrangeiro a ela pela repressão”.

Penso que, hoje, o adolescente pode estar ocupando o lugar do estrangeiro, tanto nos seus aspectos idealizados quanto execrados. Idealizados porque têm a capacidade de gozar, de lutar, de expressar seu descontentamento, de buscar o prazer de forma incessante através do consumo de grifes, de drogas; porque buscam realizar a promessa de um mundo sem conflitos e sofrimento. Execrados porque transgridem, protestam violentamente e cometem atos criminosos para realizar o seu desejo, eliminando o que os incomoda. Por isso, é melhor deixá-los de lado, “livres”, e fugir dos embates que provocam. Afinal, eles aborrescem.

Retomo a questão freudiana de que foi preciso matar um pai, assumir sua morte, ou seja, a orfandade, para criarmos as leis de reciprocidade, respeito às diferenças e reconhecimento do semelhante – Violência Fundamental. Por outro lado, quando existem promessas de uma sociedade que satisfaria plenamente as necessidades preenchendo todas as faltas e saberes, não seria mais difícil “matar o pai”? Sabemos, entretanto, que essas promessas se fazem à custa de sedução, submissão ao poder pela demanda de amor, jogos perversos, apatia, preconceitos com tudo o que for diferente, segregação, exclusão de estrangeiros – mesmo que sejam eles os nossos próximos, como tenho apontado, ou seja, a partir de violência. Violência que às vezes nem costuma ser interpretada como tal, por isso chamei-a de Violência Branca (Marin, 1998, 2002), mas que, quando aparece nas suas formas sangrentas, torna-se banalizada nos discursos e imagens divulgados pela mídia, apesar de criticada e de provocar indignação. Então, ao mesmo tempo em que o homem contemporâneo se vê assustado com a violência tão próxima de si; assiste fascinado ao espetáculo da violência que traz não somente as imagens de guerra de um país longínquo, de povos mais primitivos ou brutais, como também dos assaltos a seus vizinhos, morte de amigos ou parentes próximos… Como explicar?

A partir dessa indagação, discuti a função do espetáculo como possibilidade de regulador pulsional e levantei a possibilidade de o manejo da violência pela mídia estar mobilizando não só a negação (Verneinung) como o retorno do recalcado, mas como uma tentativa de negar (Verleugnung) a percepção das representações da violência e destrutividade. Penso, assim, que a sociedade contemporânea, embora exclua a violência do discurso oficial, ao expor tantas imagens violentas, siderando o olhar de todos, contribui para ativar mecanismos de cisão do Eu que, ao mesmo tempo em que vê, critica e goza com a violência, nega-a.

Os sujeitos, dessa forma, podem ficar poupados de enfrentar sua violenta condição de desamparo que os remeteria à Violência Fundamental e a assumir a alteridade. Qualquer ameaça de romper esse desconforto precisa ser negada, e aí, sim, o estrangeiro/o próximo é ameaçador, porque retorna de forma contundente com aquilo que tão fortemente se tenta esquecer: a possibilidade de reivindicar o prazer total, a onipotência para sempre perdida.

Como então tentar garantir a possibilidade de dar significado a essas faltas e resgatar o laço social? Proponho resgatar a Violência Fundamental que caracteriza os encontros humanos. Não se trata evidentemente de processos conscientes e controláveis, mas a experiência psicanalítica sem dúvida assume essa posição, e pode ser talvez compartilhada na comunidade social como patrimônio cultural. As reflexões socioeconômicas, políticas e, especialmente, as jurídicas – e as ações decorrentes: políticas e práticas sociais mais justas, políticas de segurança pública, garantia de educação, etc. – competem não apenas aos responsáveis formais por esse processo, mas se fazem no exercício cotidiano de cidadania. Para tanto, é preciso resgatar essa noção de cidadão, de participante de um processo social do qual fazem parte infinitos sujeitos, diferentes entre si, mas capazes de participar de um pacto social, pois todos querem sentir que fazem parte de uma comunidade, que são reconhecidos, aceitos, alimentados pela ilusão de serem únicos, mas com o direito, sim, de expressarem sua singularidade. Para isso ser possível, reafirmo a necessidade do reconhecimento da alteridade, da dependência dos outros e, até certo ponto, da submissão ao desejo do outro. Ser autônomo implica conquistar um espaço a partir da relação com o outro, da radicalidade do outro que amo/odeio. O que começou na relação mãe/bebê não termina nunca, conforme já discuti, e passa pela busca do amor da união, mas não se faz sem “Violência fundamental”.

É nesse ponto que a Psicanálise pode contribuir, sustentando que esse processo passa, sim, pela violência, mesmo que negada. Como sabemos, a negação pode ser uma forma de expressar justamente o que está recalcado. Temos, portanto, que facilitar ao sujeito os meios para entrar em contato com o que esse possível mal-estar (e o esforço em negá-lo) expressa, assumir os afetos envolvidos (muitas vezes o ódio, a raiva, a inveja…) e o que representam, para que possa encontrar modos socialmente aceitos de expressá-los. Em última instância, não deixa de ser esse o papel da educação, que será exercido nos mais diferentes contextos. Deve-se procurar garantir que os sujeitos, em seus diferentes encontros humanos necessários para sua socialização, possam encontrar formas de expressão para o que estão sentindo, através das representações e ações culturais. Além disso, é preciso buscar formas de relação com o outro que não tenham necessariamente em vista eliminar os sentimentos hostis, aniquilar o outro visto como bode expiatório responsável por todo o mal, ou mesmo segregá-lo, nem que seja com base em critérios científicos para julgá-lo incompetente, doente, louco, carente, delinqüente etc.

Por isso, penso que essa posição precisa ser compartilhada nos mais diferentes contextos em que as experiências humanas acontecem: família, escola, encontros científicos, supervisões etc. Essas situações estruturam-se em relações em que há uma assimetria em que a dependência se estabelece – o que não necessariamente significa domínio. É importante, porém, que alguém assuma a condição de suporte frente às crianças e aos jovens – em geral, adultos como pais e professores; pode ser o analista, o supervisor –, para depois se deixar morrer.

Essa posição pode assim garantir a continência e a referência, constituindo-se em Violência Fundamental. É um momento que paradoxalmente reativa o desamparo, muito embora seja imprescindível para que o homem encontre a sua radical condição de existência. Essa condição de suporte é essencial para que o sujeito possa buscar sentido para essa sua experiência, buscando símbolos, representações, palavras, e assim compartilhar da sua cultura. Se não for assim, o ato violento pode calar esse sofrimento, tantas vezes inominável.

Mas outro ensinamento que a Psicanálise nos traz é o de que se temos as forças criativas de investimento, de busca e união que a Pulsão de Vida representa; temos também a Pulsão de Morte, que quer calma, controle, apaziguamento, desligamento daquilo que excita e incomoda. A tendência à submissão, nessa perspectiva, pode se fazer muito tentadora, uma vez que ilude com o preenchimento. Nessa perspectiva, gostaria de retomar neste momento a questão do pai, ou melhor, da Função Paterna, que vai representar justamente o corte na sensação onipotente de plenitude que o narcisismo – representante da primitiva e idealizada relação mãe/bebê – evoca. Essa função é, portanto, condição para subjetivação, visto que introduz a falta, a possibilidade da criação – momento de “Violência fundamental”. Ora, freqüentemente o pai é evocado, não nessa perspectiva, mas muito pelo contrário, como aquele que ilusoriamente pode restituir um sentimento onipotente de controle sobre os excessos. É nesse lugar que o líder fanático – religioso, político, e até mesmo o educador – pode entrar, encarnando então o poder. Parece ser uma saída confortável para o desamparo, e penso ser esse um dos impasses da contemporaneidade. Mas a tradição freudiana ensina justamente que o Pai não existe. Ele foi criado como símbolo, depois de morto, e só assim se torna um organizador da cultura, uma referência para a subjetivação. O pai então precisa ser forte, deixar-se morrer, para que o filho sobreviva, e é esse o ponto que parece tão comprometido nos dias de hoje.

Contudo, quando falo nas referências necessárias, na “Violência fundamental” e até mesmo na necessidade de um pai, não referendo o pai da horda – por mais tentador que ele seja – como representante do gozo absoluto que é. Por isso, muitas afirmações sobre o declínio da função do pai parecem tantas vezes reivindicar nostalgicamente esse pai todo poderoso como solução mágica para as misérias e desamparo contemporâneo.

O risco de o totalitarismo substituir as conquistas dos avanços democráticos, dos direitos humanos etc., é grande. Não gostaria, evidentemente, de ser identificada com essa proposta. Por isso talvez seja útil rever nossa nostalgia em relação ao declínio da função paterna e pensar, como Freud, que matar o pai é movimento necessário para a civilização avançar.

A psicanálise pode contribuir, então, para a compreensão do desamparo no qual a família contemporânea se encontra, mostrando que ela tem que suportar o lugar daquele pai. Ela é ainda a referência, mesmo que apresentando novas configurações, e isso é interessante para as possibilidades de subjetivação complexa que a sociedade contemporânea tão diversificada oferece, ou melhor, exige.

A ambivalência vivida pela família moderna burguesa é enorme: ao mesmo tempo em que precisa garantir tudo a suas crianças – amor, carinho, educação e principalmente liberdade para decidir seu destino – sua realização afetiva passa pelo amor desses filhos. O sucesso de um pai e mãe dependerá, portanto, da realização pessoal e da felicidade de seus filhos. As contradições ampliam-se, porque na contemporaneidade temos cada vez mais especializações profissionais e mais necessidades de consumo vinculadas à garantia de felicidade e sucesso pessoal. Sabemos, por outro lado, do desequilíbrio na organização econômica e social e de suas conseqüentes injustiças e fracassos na real absorção de seus cidadãos para que realizem essas promessas. Sabemos também como a infância e a adolescência, como seres que precisam ser protegidos e satisfeitos, são a referência e o alvo predileto da mídia. Nunca “Sua majestade o bebê” foi tão forte e a tirania da juventude esteve tão em pauta.

Nesse contexto, o desamparo tende a ser fortemente suscitado, já que ao mesmo tempo em que se tem a promessa de poder ser tudo o que quiser, também se é responsável sozinho para descobrir aquilo que é melhor para si. As exigências pulsionais fazem-se crescentes, pois não se deve esquecer que novas possibilidades de viver a sexualidade também fazem parte do universo da sociedade de consumo. Paradoxalmente, ainda se espera da família a garantia de prover e permitir o acesso ao prazer, ao consumo e ao preenchimento de necessidades. Vejo justamente aí o porquê de se falar tanto do seu fracasso. Penso que os psicanalistas podem contribuir nessa questão, revelando as tentações e o engodo que a questão narcísica traz. Digo isso porque tenho observado como hoje, para não causar “traumas” aos seus filhos, as famílias se debatem na angústia, e evocam mesmo a psicanálise para como mentor dessa preocupação. É cada vez mais freqüente o número de famílias que querem ter apenas um filho para poder garantir-lhe tudo o que precisam. Muitos dizem querer, assim, poupar o primogênito da perda de seu espaço, para se pouparem das possíveis brigas entre irmãos. Os pais mostram-se absolutamente impotentes para lidar com as “vontades das crianças”, querendo escapar aos conflitos inerentes ao processo de educação. Sem dúvida, os filhos mobilizam o narcisismo dos pais, que sofrem justamente para tentar garantir o não sofrimento. Poderiam, quem sabe, começar a pensar na sua responsabilidade não frente à felicidade geral e irrestrita dos filhos, mas na construção de sujeitos sociais.

Em todas as suas configurações, a família contemporânea deve, portanto, abrir-se para a diversidade que a sociedade apresenta, não assumindo como fracasso a possível infelicidade de seus filhos. Dentro de um projeto amoroso, acredito ser possível incentivar essas crianças a investirem no mundo, buscando outras relações, já que o universo não se restringe à segurança e ao aconchego absoluto que ilusoriamente a relação mãe/bebê, a relação conjugal que a criança inveja ou o olhar da mãe para o irmão que parece preferido, parecem representar. Para isso, é importante que descubram que a possibilidade de se estabelecerem laços fraternos passa necessariamente por uma vivência familiar, se não de suporte, ao menos de pertinência.

Retomo o mito freudiano: o pai morto que garantiu a união dos irmãos foi idealizado pela culpa, e é esse ideal que de certa forma sustenta a fraternidade; caso contrário volta-se à horda. “Febem, família e identidade” (1999) é um trabalho em que reflito sobre a possibilidade alternativa de as crianças institucionalizadas não esperarem apenas o reconhecimento de pai e mãe, mas de buscarem entre elas mesmas relações de identificação. Contudo, essas relações precisariam ser sustentadas pelo olhar “desejante” dos agentes institucionais, que valorizassem cada criança, etc., uma vez que, segundo Kehl, “a função fraterna não substitui a função paterna, que opera para fundar o sujeito” (2000, p. 39). A autora descreve detalhadamente o lugar do irmão no processo de subjetivação, numa perspectiva lacaniana que não deixa de lado a violência desse processo. Os pais devem, assim, “suportar os ataques dos filhos” e renunciar ao lugar de pleno poder para garantir satisfação total e convidar seus filhos a olhar para o mundo.

É importante analisar, também, o lugar da educação formal, isto é, aquela exercida pelos equipamentos educacionais institucionalizados na formação dos sujeitos e, portanto, no manejo da violência. É também voz corrente e objeto de inúmeras pesquisas o aumento da violência no meio escolar; desde a depredação dos equipamentos, passando pelo desrespeito aos professores e culminando no assassinato de colegas e professores. Isso acontece tanto nos países pobres, cuja oferta de ensino é precária; quanto nos países ricos da Europa e nos Estados Unidos, em que as condições objetivas de escolarização e o apreço à cultura são garantidos. São muito interessantes as análises históricas que discutem o lugar crescente que a escola vai ocupar na modernidade como regulador social, tanto na responsabilidade da transmissão da cultura como na organização dos costumes e moral, ou seja, das regras sociais (Ariès, 1981; Postman, 1999); o que sem dúvida remete a escola ao papel de representante da “violência da civilização”, como agente repressora que é. Os métodos pedagógicos variam de acordo com a ideologia, com maior ou menor tolerância à manifestação subjetiva no processo de socialização e adaptação/submissão ao conhecimento. As ilusões sobre o controle das emoções ou a tolerância à sua expressão, para garantir uma maior eficácia na aprendizagem dos alunos ou na eficiência do método, também acompanham a história da pedagogia, buscando o “justo termo” da disciplina, conceito que ordena a violência, como analisa Foucault primorosamente no capítulo “Os recursos para o bom adestramento” (1977, pp. 153-172), em “Vigiar e punir”. Encontra-se uma forma de ajustar a multiplicidade dos homens por meio da docilização, das especializações, da divisão do conhecimento e do ordenamento, mascarando muitas vezes as práticas da violência que eram claras quando se restringiam aos castigos corporais, etc.

As críticas ao sistema massificante e violento do ensino tradicional intensificaram-se no início do século XX, e as propostas da Escola Nova, que culminaram no chamado Socioconstrutivismo, buscam resgatar na noção de sujeito a possibilidade de o educando ser participante e construtor de conhecimento. É o fim da violência na Educação? Ou, ao contrário, é o que explica o aumento da violência entre os jovens no meio escolar, já que falta disciplina, como tentam justificar algumas análises, apoiando-se no argumento de que, em função dos códigos de defesa à infância, falta ao professor o recurso de disciplinar o aluno?

A Psicanálise não se absteve desse processo de interlocução com a educação5, servindo de referência para justificar práticas mais ou menos repressivas, oferecendo parâmetros para se pensar uma forma de melhor interpretar e acolher os educandos, de acordo com suas necessidades, conflitos etc. Mesmo a idéia de que práticas não repressivas pudessem contribuir para a saúde mental foi e tem sido ainda em alguns meios considerada. Essa não é a vertente que assumo aqui; pelo contrário, parece-me que essa posição está justamente na direção de escamotear a questão incômoda da Violência Fundamental, servindo eventualmente para propósitos totalitaristas, quando se recorre, em última instância, à nostalgia da disciplina perdida. Quero, sim, resgatar o lugar da Educação e do encontro com o educador como um possível momento de Violência Fundamental, que, se assim assumido, permitirá aos sujeitos o encontro de sua possibilidade de expressão e de representação, dentro das regras da cultura; em outras palavras, a organização de seu acesso ao simbólico.

Dessa forma, penso que a Psicanálise pode ser mais útil à Educação se em vez de ser usada apenas para justificar os comportamentos inadequados ou as dificuldades de aprendizagem como reações de “frustração frente ao recalque”, puder refletir, para os educadores, o lugar de referência, de “suposto saber”, que ocupam frente aos educandos. Assumir o lugar de sustentação simbólica, ou seja, daquele que não vai “ensinar tudo” e preencher o vazio que a renúncia narcísica determinou, mas sim levar o sujeito a pensar sobre o que lhe falta, e a encontrar respostas para satisfazer seus desejos e/ou entender as regras de funcionamento do mundo, remete – penso eu – à Violência Fundamental. E como sustentar esse lugar? Deixando-se destruir, devorar, canibalizar; única forma, como aponta a Psicanálise, de o sujeito poder pode aprender.

Se o professor se furtar a essa sistematização, a ocupar o lugar de quem sabe e deseja transmitir, evocando equivocadamente o mote contemporâneo de que cada um sabe o que quer, ou de que o aluno pode saber sozinho, “do seu jeito”, evitando o confronto, lançará sem dúvida esse aluno ao desamparo. Lembro aqui Jacques Hassoum e seu trabalho “O obscuro objeto do ódio”, quando retoma Lacan ao afirmar que “aquele a quem eu suponho o saber, eu amo” (1997, p. 18, minha tradução). É nessa perspectiva também que proponho refletir sobre o aumento de violência nos meios escolares. Os professores encontram-se desmotivados pelos mais diferentes motivos, desde os econômicos (no nosso país são aviltantes as condições de trabalho; por exemplo, o salário nas escolas públicas), até o próprio imaginário contemporâneo, que supervaloriza a criança na projeção narcísica e relativiza a autoridade do professor como representante do ideal social. Hassoum declara, ainda citando Lacan, que “Se eu disse que me odeiam, é que eles me ‘de-supõem’ o saber” (p.18). Essa afirmação fornece-me elementos para confirmar que a não suposição do saber de ninguém pode fazer aumentar o ódio, e que o ato violento responde a essa situação. Por isso afirmei tantas vezes que o educador precisa tolerar a Violência Fundamental que a ação educativa provoca. Fazer pensar sobre o que não se sabe (isso é aprender!), propor enigmas, apresentar conhecimentos infinitos que a humanidade produziu é romper com a onipotente ilusão narcísica, provocando sofrimento, sim, mas ao mesmo tempo anunciando um saber, uma possibilidade de encontro. Cabe então às instituições educacionais organizarem-se de forma a dar suporte para esse processo – garantir a expressão subjetiva, organizando as formas de representação que caracterizam a cultura, criada justamente para dar conta do manejo violento das pulsões humanas. Se não for assim, elas se organizam na forma de Violência Branca, buscando não criar situações de conflito, abandonando os educando aos seus próprios impulsos.

Deve-se ter consciência de que permitir a expressão subjetiva e incentivar formas de representação que dêem conta do desamparo de cada sujeito que se depara com sua perda de estabilidade é uma experiência violenta. Nessa perspectiva, o educador precisaria ter um suporte para dar conta desse processo de reconhecer a violência envolvida, as manifestações de ódio possíveis pelo contato com a frustração que surge em ambos, educador e educando. A experiência psicanalítica, na qual se é submetido à riqueza da interpretação transferencial, seria a via régia, mas as experiências de supervisão permitem-me afirmar que o compartilhar desses conhecimentos – ou seja, resgatar e assumir com os educadores esses encontros com a própria violência – pode contribuir para a sua formação. Dessa maneira, pode-se talvez evitar que eles acabem por contribuir para a violência de seus alunos, que atuam destruindo o objeto de suas frustrações, por estarem de certa forma gozando com isso. Se a experiência de se submeter a uma psicanálise não é possível e acessível a todos, isso não significa que a experiência psicanalítica não possa ser compartilhada. A violência da interpretação, a violência primária que Piera Aulagnier (1975) tão bem trabalhou, traduz-se em palavras que buscam dar sentido a uma experiência de falta vivida. O educador não pode sentir-se fracassado por não preencher ilusoriamente os conflitos; ao contrário, deve se oferecer como alguém que convide a pensar, a criar, o que só se faz com símbolos tentativos de re-ligar, de apresentar soluções provisórias, já que o sujeito não deixa de insistir em seus porquês, na busca da onipotência perdida. “Por que perdi minha ‘unidade’?”, “Onde estão minhas certezas?”, são questões de nossos pacientes e de todo ser humano. Suportar essa ruptura, o ódio que daí provém, encontrar as palavras que dão sentido a essa vivência significa interpretar a necessidade do outro e buscar as possíveis formas de satisfazê-las dentro dos princípios das leis de regulação social, é também o papel do educador.

Então, apesar de os saberes contemporâneos fazerem-se tão rapidamente descartáveis em função dos avanços científicos crescentes, que têm suscitado tanto desamparo na sociedade pós-moderna, a Educação, na figura de seus agentes, não deve fugir de seu papel organizador de saber. Em outras palavras, a Educação deve apresentar-se como representante de uma cultura que se organiza na tentativa de “reencontrar” um pai para sempre perdido, que representava a segurança, a pertinência, a proteção e a resposta para os enigmas, ou seja, a solução para o desamparo. Esse pai, todos sabemos que não existe, mas é na procura daquilo que ele representa (a estabilidade, a onipotência) que se cria. Contudo, isso só é possível a partir da ilusão, mesmo que momentânea, de tê-lo encontrado, de viver um momento em que se sabe. Ocupar esse lugar transferencial, que é o lugar do edupossibilidade de simbolização, de transcendência – condição que parece tão difícil na sociedade de consumo – e de promessa de satisfação imediata no mundo desiludido da pós-modernidade.

 

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Endereço para correspondência
Isabel Kahn Marin
R. Antonina, 241 – Sumaré
São Paulo, SP – Brasil
bel.kahn@terra.com.br

Recebido em novembro/2005
Aceito em março/2006

 

 

NOTAS

1 Marin, I. K. – Violências. São Paulo: Escuta, 2002.
2 Lacan desenvolve essas idéias em 1938 no trabalho sobre os complexos familiares, comentando a redução da família ao seu grupo biológico, paralelamente ao grande progresso cultural. Ele pensa esse declínio social da imago paterna como o efeito do extremo progresso social de determinadas coletividades sobre os indivíduos, principalmente a concentração econômica e as catástrofes políticas (Lacan, 1977, pp. 112-113)
3 Esta análise considera a concepção freudiana de desamparo que, em última instância, estabelece-se quando toda a possibilidade de simbolização está abolida e o sujeito se vê à mercê de suas forças pulsionais (1926 e 1939 entre outros).
4 Ver mais sobre o lugar do estrangeiro em Otávio Souza (1994) e Caterina Koltai (2000).
5 Desde os seus primórdios foi objeto de discussão a questão da possível pedagogia psicanalítica, sendo históricos os debates entre M. Klein e Anna Freud, nesse sentido.
I Psicóloga e psicanalista. Professora Doutora PUC/SP. Pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental - PUC/SP. Supervisora de profissionais que trabalham em hospitais, instituições educacionais e Varas de infância e juventude e/ou família.

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