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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.11 n.21 São Paulo dez. 2006

 

DOSSIÊ

 

Transmissão da psicanálise a educadores: do ideal pedagógico ao real da (trans)missão educativa1

 

Transmission of psychoanalysis to educators: from the pedagogic idela to real educational (trans)mission

 

La transmissión del psicoanálisis a los educadores: desde el ideal pedagógico a lo real de la (trans)misión educativa

 

 

Sandra Francesca Conte de Almeida2

Universidade Católica de Brasília
Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A transmissão da psicanálise a educadores interroga o analista quanto ao sentido de seu ato e aos destinos da transferência, já que a transmissão do saber da psicanálise dirige-se a um outro, o educador, situado em uma cena estranha ao campo psicanalítico. O artigo estabelece uma distinção entre transmissão e ensino, demarcando a diferença radical entre a formação do analista, cujo dispositivo coloca em ato a transmissão da psicanálise em intensão, nas três dimensões que a compõem, pela via da transmissão de um estilo, e a formação de educadores, mesmo que estes se deixem afetar transferencialmente pela transmissão da psicanálise em extensão, na sua dimensão de ensino.

Palavras-chave:Transmissão da psicanálise, Formação do analista, Formação de educadores, Estilo, Transferência.


ABSTRACT

The transmission of psychoanalysis to educators interrogates the analyst as to the meaning of his/ her act and the destination of the transference, as the transmission of psychoanalysis’ knowledge is directed towards another, the educator, who is situated in a setting, which is foreign to the psychoanalytic field. The article sets up a distinction between transmission and teaching, pointing out the radical difference between the formation of the analyst, that puts into action the transmission of psychoanalysis in its intention, taking into account the three dimensions that encompass it, by means of the transmission of a style, and the formation of educators, even when they allow themselves to be affected by the transference process in the transmission of psychoanalysis in extension, in its teaching dimension.

Keywords: Transmission of psychoanalysis, Formation of the analyst, Formation of the teacher, Transmission and style, Psychoanalysis and education.


RESUMEN

La transmisión del psicoanálisis a los educadores interroga el analista cuanto al sentido de su acto y los destinos de la transferencia, ya que la transmisión del saber del psicoanálisis se dirige a un otro, el educador, situado en una escena extraña al campo psicoanalítico. El artículo establece una distinción entre la transmisión y la ensenãnza, demarcando la diferencia radical entre la formación del analista, cuyo dispositivo pone en acto la transmisión del psicoanálisis en intensión, en las las tres dimensiones que la componen, por la via de la transmisión de un estilo, y a formación de educadores, aunque estos se dejen afectar, transferencialmente, por la transmisión del psicoanálisis en la extensión, en su dimensión de enseñanza.

Palabras clave: Transmisión del psicoanálisis, Formación del analista, Formación de profesores, Transmisión y estilo, Psicoanálisis y educación.


 

 

“Qualquer retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno desse nome só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais oculta manifesta-se nas revoluções da cultura. Essa via é a única formação que podemos pretender transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama: um estilo.” Lacan (1966/1998a, p. 460)

 

O que pode ser transmitido e ensinado em psicanálise?

Ensinar envolve sempre um saber. Que saber é esse a ser ensinado senão aquele relativo aos fundamentos teóricos da psicanálise, cujo ensino é realizado não somente nas instituições psicanalíticas, que visam à formação de analistas, mas também nas universidades, com um relativo (in)sucesso? Pode-se afirmar, no entanto, que há uma singularidade da psicanálise que a distingue dos demais saberes e exige, na formação do psicanalista particularmente, algo mais do que um ensino, diríamos: uma transmissão.

Um ensino digno do nome de Freud, como reitera Lacan (1966/1998a), é aquele capaz de produzir uma verdade subjetiva, isto é, de resgatar ou restaurar a enunciação de um desejo singular, que se manifesta na cultura pela via da transmissão de um estilo. Eis, então, o que Lacan define como sendo o único ensino capaz de formar um analista: aquele que transmite um estilo.

A idéia de transmissão da psicanálise, no sentido empregado por Lacan ao reportar-se à formação de analistas, referenda o famoso tripé enunciado por Freud, em seu texto Sobre o ensino da psicanálise nas universidades (1919/1976a): análise pessoal, supervisão e estudo teórico. transmissão da psicanálise é, portanto, muito mais do que ensino, pois o estilo que se transmite enreda, por conta e obra da relação transferencial, o saber – da psicanálise e do analista como semblante de Sujeito-suposto-saber – e a verdade – do desejo do sujeito e de sua castração fundante. A transmissão de um estilo supõe a presença, em ato, do desejo do analista, isto é, de um desejo que não se orienta por nenhum tipo de ideal, que não se deixa (im)pressionar ou seduzir pelas demandas de amor do analisando, que não se reduz ao desejo da cura analítica: trata-se de um desejo “menos dependente do Outro, para o qual, no fantasma, cada um se faz objeto” (Chemama, 1995, p. 79). Ao transmitir um estilo, o analista transmite a sua singular relação com a psicanálise e também os modos pelos quais, intra e intersubjetivamente, regula a tensão entre prazer e gozo, fantasia e realidade, pulsão e desejo, ou seja, dá testemunho de como obtura a falta no Outro.

A transmissão de um estilo, tal como Lacan nos indica (1966/ 1998a), significa a transmissão de marcas, de marcas de desejo; a transmissão de uma herança, de uma filiação, de um nome – o de Freud, obviamente – por meio da qual um analista transmite a experiência analítica e seu efeito real sobre a economia pulsional de um sujeito, reestruturando os destinos de sua sexualidade e de seu desamparo fundamental. A partir de uma posição ética e operando o discurso analítico, o estilo que se transmite convoca um outro a vir a ocupar esse lugar, na medida em que esse outro esteja, ele próprio, atravessado pela experiência psicanalítica e disponha-se a conquistar a sua parte da herança, manifestando um desejo que não seja anônimo; um desejo em ato, um desejo em palavras, isto é, um desejo de analista. Assim se “completaria” a transmissão da psicanálise na formação de um analista, segundo nos lembra Freud, em Totem e tabu (1913/1974a), ao recorrer às palavras de Goethe: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu” (p. 188).

A conquista da herança permite, por meio de um ato de criação, que o sujeito imprima àquilo que herdou, pela via do estilo do Outro, as suas próprias marcas de desejo; o que Birman (1997) designou como sendo a produção de um estilo existencial, que promove no sujeito a possibilidade de invenções, no plano simbólico e no plano dos objetos, para se defrontar com o horror do desamparo.

Em um texto escrito em 1966, com o qual inicia a abertura da coletânea de artigos que compõem seus Escritos, Lacan (1966/ 1998b) cita a célebre frase de Buffon, “o estilo é o próprio homem”, para, em seguida, ampliá-la em uma interrogação: “o estilo é o homem; (...) o homem a quem nos endereçamos?” (p. 9). A resposta de Lacan à pergunta formulada vai conduzi-lo a declarar-se em discordância com Buffon: “na linguagem nossa mensagem nos vem do Outro, e para enunciá-lo até o fim: de forma invertida”. Mais à frente, Lacan escreve: “... a divisão onde se verifica o sujeito pelo fato de um objeto o atravessar sem que eles em nada se penetrem (...) se destaca sob o nome de objeto a ...” (p. 11). E Lacan conclui que é o objeto a que responde à pergunta por ele formulada no início do texto: “A esse lugar que, para Buffon, era marcado pelo homem, chamamos de queda desse objeto, reveladora por isolá-lo, ao mesmo tempo, como causa do desejo em que o sujeito se eclipsa e como suporte do sujeito entre verdade e saber. Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a uma conseqüência em que ele precise colocar algo de si.” (p. 11).

Pensar na originalidade do estilo que caracteriza o sujeito permite- nos retomar a resposta de Lacan a Buffon e compreender melhor a sua afirmação de que o estilo tem a ver com o inconsciente enquanto discurso do Outro, e com o objeto a, objeto causa do desejo, resíduo enigmático, inassimilável, resto que cai da relação do sujeito com o Outro. Para dar conta da opacidade da mensagem apreendida do desejo do Outro, o sujeito é obrigado a valer-se da linguagem para se endereçar a esse Outro, a formular demandas. Para não sucumbir à traumática radicalidade do desamparo e fazer face à angustia infligida pelo Real do desejo do Outro – “o que o Outro quer de mim?” – o sujeito produz um estilo próprio, singular, que o diferencia do Outro e situa os limites, as bordas de sua relação com a alteridade, e, paradoxalmente, o sujeito guarda as marcas, o traço daquilo que foi transmitido pelo Outro.

Em interessante trabalho intitulado Da elipse de Kepler ao estilo na transmissão da psicanálise, Soares e Silva (2005) escrevem que “o estilo é convocado pelo sujeito a vigorar onde a ausência do objeto instaura a implacabilidade da falta” (p. 6). Os autores citam Porge (2001), para quem o estilo implicaria uma espécie de suplemento de desejo empregado ao sentido que se fixa à maneira de dizer, fazendo-se ao mesmo tempo suporte do desejo e causa da divisão do sujeito. E concluem, apropriadamente, que “empreender um estilo e apossar- se dele representa o único artifício possível para suavizar a vulnerabilidade da condição humana” (p. 7).

Ao conceber a formação do analista pela via da transmissão de um estilo, Lacan aponta a eficácia desse dispositivo que, pela sua peculiaridade, permite a recriação da psicanálise e sua transmissão, por herança e sucessão, colocando em ato o desejo do analista e do analisando, ambos implicados na experiência da transferência. Conseqüentemente, o que está em jogo na transmissão da psicanálise não é apenas o ensino de um saber teórico, que poderia se desdobrar em suas dimensões clínicas, metodológicas e técnicas, mas a possibilidade de continuar a transmitir a experiência do inconsciente inaugurada pelo saber psicanalítico (Birman, 2003). De outro modo dito, ao transmitir um estilo, no campo psicanalítico, o analista revela a maneira pela qual se deixa afetar pela psicanálise e pela experiência de sua transmissão, dando provas de sua posição subjetiva frente à dívida simbólica contraída com o Outro.

Retomar a questão complexa, e fundamentalmente ética, da transmissão da psicanálise – do que se designa como da ordem da formação do analista em Freud e Lacan – obriganos a rever, a repensar, sobretudo nas universidades e nas diversas modalidades de formação continuada, a questão problemática da transmissão da psicanálise a educadores.

Ora, se a transmissão da psicanálise, segundo a tradição freudo-lacaniana, e a radicalidade do discurso analítico supõem a transmissão da experiência do inconsciente, e se este se constitui como discurso do Outro, não haveria, à la limite, transmissão, propriamente dita, da psicanálise em extensão. A transmissão da psicanálise, stricto sensu, dar-se-ia tão somente em intensão, neologismo lacaniano que enfatiza a dimensão de tensão permanente e inesgotável do inconsciente e aponta para uma formação que jamais se acaba, que é permanente; e é o próprio Lacan que, em 1975, estabelece uma espécie de retificação no seu ensino ao afirmar que jamais havia falado da formação do psicanalista, mas sim em formações do inconsciente. A expressão psicanálise em intensão aplica-se à própria experiência psicanalítica, eixo fundamental da formação. Isto porque a análise pessoal é a única experiência subjetiva que permite ao sujeito (re)conhecer de que modo obtura ou fantasia a falta no Outro, “suavizando” a trágica condição humana de desamparo e abandono, imposta pelo Real da castração. Somente a experiência analítica pode transformar “a angústia do real” em “angústia do desejo”, permitindo que “um sujeito possa se constituir a partir da experiência limite do desamparo” (Birman, 2003, pp. 44-6). É essa experiência de atravessamento pela angústia do Real que obriga o sujeito a inventar um estilo de existência marcado pela singularidade e pela diferença, maneira pela qual se transforma o real em desejo. Em Freud, a produção de algo que seja dessa dimensão implica a sublimação e o sublime.

Para Birman, a transmissão da psicanálise, no restrito campo das instituições de formação psicanalítica, representa uma encruzilhada trágica e decisiva com a qual se defronta a psicanálise. Os destinos (e as vicissitudes) da transferência nas práticas de transmissão colocam em pauta o destino da transmissão da psicanálise e, até mesmo, a possibilidade de sua transmissibilidade, isto é, “de se continuar a transmitir a experiência do inconsciente inaugurada pelo saber psicanalítico” (p. 106).

Se nos deparamos, tal como analisa Birman (2003), com impasses de ordem ética, teórica e política na transmissão da psicanálise em intensão, podemos imaginar os impasses e os limites que se impõem à transmissão da psicanálise em extensão. De fato, parece- nos muito mais apropriado, seguindo a lógica lacaniana do retorno a Freud, referir-se à psicanálise em extensão como ensino, divulgação ou difusão da psicanálise e de seus desdobramentos no campo da cultura e das instituições sociais. Assim concebidos, o estudo da teoria, sua aplicação na clínica, sua articulação com outros saberes e produções culturais – particularmente com as ciências humanas e as artes, e com algumas práticas sociais como a educação, por exemplo – seriam objeto de ensino e de difusão; e contam com uma diversidade de meios e recursos para atingir esse fim específico: seminários, cartéis, ciclo de palestras e de debates, jornadas, cursos introdutórios e avançados, reuniões temáticas, disciplinas acadêmicas, dentre outros meios.

Estabelecer a distinção entre transmissão e ensino significa demarcar a diferença radical entre a formação do analista, cujo dispositivo coloca em ato a transmissão da psicanálise em intensão, nas três dimensões que a compõem e a formação de educadores ou outros especialistas; mesmo que estes se deixem afetar, transferencialmente, pela transmissão da psicanálise em extensão, na sua dimensão de ensino, inserida em cursos de formação, especialização ou outros, nas Universidades ou instituições afins.

Pode-se admitir, no entanto, na psicanálise em extensão, o uso do termo transmissão por homologia estrutural e discursiva com a psicanálise em intensão, na medida em que um analista encarna, presentifica a psicanálise no mundo, ensinando, pela transmissão de um estilo, a teoria psicanalítica e suas aplicações aos mais diversos campos (clínico, institucional, social...) e suas conexões com outros saberes e conhecimentos. Essa é, por exemplo, a posição adotada pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, cuja proposta esclarece o entendimento acerca da transmissão da psicanálise em extensão, notadamente no contexto acadêmico-universitário: “A Psicanálise na Universidade pode, portanto, cumprir em paz sua tarefa de transmissão do saber psicanalítico, e de estabelecer condições de pesquisa neste campo, desde que não procure substituir o lugar da instituição psicanalítica, à qual cabe, com exclusividade, estabelecer as condições de funcionamento dos dispositivos capazes de verificar a passagem do psicanalisante a psicanalista, a autorização do psicanalista, e demais questões relativas à formação de psicanalistas.” (IP/UERJ - PPG-PSA, 2006)

Desse modo, a distinção que estabelecemos leva-nos a afirmar, em conseqüência, que a inserção da psicanálise em contextos ou instituições que não se destinam à formação de psicanalistas pode acontecer pela via de uma transmissão possível ou, simplesmente, pela via de um ensino corriqueiro, trivial.

No caso de ensino, o da psicanálise não se diferenciaria, necessariamente, na formação de educadores, do ensino das outras disciplinas do currículo. Seu conteúdo, normalmente restrito aos fundamentos teórico-conceituais básicos, seria ensinado com maior ou menor rigor conforme o grau de conhecimento e de exigência do professor responsável pela mestria. É freqüente, no entanto, nota-damente nos cursos de formação de professores (licenciaturas), encontrarmos o ensino da “teoria psicanalítica” inserido nos programas de Psicologia da Educação ou Psicologia Educacional, sob a responsabilidade de docentes sem nenhuma transferência com a psicanálise. Muitas vezes, apesar das melhores intenções, esse ensino se reduz dito espirituoso, ao mote: “Freud explica!”.

Ora, distinguir entre ensino e transmissão na psicanálise em extensão não nos parece ser um detalhe de menor importância, já que marca uma diferença entre o saber psicanalítico e os outros saberes, uma vez que designa a posição de quem transmite ou ensina; o lugar do outro, a quem se dirige a fala; e o produto, enquanto resto, daquilo em que consistiria o que se nomeia transmissão da psicanálise a educadores, suas condições mínimas de produção de sentido e o seu interesse para o campo das relações e práticas educativas.

Reproduzimos, aqui, uma pequena passagem do resumo enviado à organização do VI Colóquio do LEPSI, para melhor precisar o destino final ao qual fomos conduzidas no percurso reflexivo-teórico acerca da transmissão da psicanálise a educadores: “Considerando que o discurso analítico, na sua radicalidade, não se deixa reduzir a qualquer outra forma discursiva, que a transmissão da psicanálise só é possível se feita por analistas, que os educadores, na maioria das vezes, não passaram pela experiência do inconsciente, em uma análise, defende-se a posição de que a transmissão da psicanálise a educadores só é possível se forem criadas algumas condições mínimas: um analista na posição de Mestre Nãotodo, um educador que se interroga sobre o sentido de seu ato, um dispositivo clínico de fala, de escuta e de escrita pelo qual se metabolizará a angústia da posição ‘ensinante’, e uma finalidade assim constituída: uma mudança subjetiva do educador na sua relação com os ideais narcísicos e educativos, de modo a que o encontro com o real da educação não se reduza a uma experiência de profundo e funesto mal-estar, mas, ao contrário, que lhe permita viver a relação educativa como uma experiência única, singular, de criação e (por que não?) de prazer.”

A hipótese aí construída – da possibilidade da transmissão da psicanálise a educadores – apóia-se em uma posição discursiva na qual um analista ocupa o lugar de Mestre Nãotodo, sujeito barrado cuja função simbólica não é outra senão a de tornar operante, no cenário educativo, a castração, base fundamental de toda ação educativa. De outro modo dito, para suportar a angústia de renunciar à onipotência narcísica dos ideais de grandeza e de perfeição; para estar na posição de transmitir o legado cultural da psicanálise, sendo fiel a Freud e digno de seu nome, há que se ter vivido, em análise, a experiência do inconsciente e do desamparo primordial, marcas do humano por excelência. Confrontar-se com a impossibilidade estrutural de felicidade permite que o sujeito estabeleça “uma relação produtiva com o impossível”, tal como assinala Voltolini (2002, p. 5), ou, ainda, como nos ensina Freud (1930/1974b), transformar a nossa infelicidade neurótica em uma infelicidade banal. O fato é que a análise revela a nossa verdadeira condição: um parlêtre, como diz Lacan, um “ser falante”, estruturalmente submetido ao registro do Real, que nos condena “ao impossível tudo dizer, tudo ser, tudo ter, tudo satisfazer, tudo saber” (Rouzel, 2003, pp. 14-5).

Evidentemente que não pretendemos, ao assumir essa posição, idealizar o processo analítico ou recomendá- lo a todos os educadores. Mas não podemos nos furtar a afirmar que essa experiência autoriza o sujeito, no horizonte de uma cura impossível, a trilhar “o caminho entre o Sila da nãointerferência e o Caríbdis da frustração” (Freud, 1933/1976c, p. 182), se esse for o seu desejo e a sua verdade. Um autorizar-se que é, sobretudo, ético, porque o ideal educativo irá esbarrar, sempre, em algo da pulsão que é indomável, ineducável, fazendo da educação uma tarefa impossível, tanto quanto governar e psicanalisar (Freud, 1937/1975).

O que esperar, então, de um analista na posição de Mestre Não-todo, que intervém na formação de educadores?

Primeiramente, que ele lhes transmita a castração, fazendo corte, estabelecendo limites, separação (Rouzel, 2003), suportando a falta-a-ser, condição instituinte do desejo, à qual estamos todos submetidos. Essa transmissão se faz, por exemplo, falando da própria angústia diante dos impasses da trajetória educativa, invocando o educador a falar; em suma, restaurando a palavra a as possibilidades de enunciação. O analista, nessa posição, produz um resto de saber, um saber furado que se endereça ao outro, ao educador, que poderá vir a responder ao enigma do desejo do Outro, implicando-se, por conta da relação transferencial, no ato educativo e nas suas possibilidades de realização; ou, como disse Lacan (1966/1998b), colocando aí algo de si. Em segundo lugar, ao dar testemunho de sua posição frente à castração, isto é, de que está submetido à Lei, o analista legitima o Nomedo- Pai e transmite a função paterna, restaurando os limites, possibilitando escolhas e julgamentos, condições essenciais para a sustentação simbólica da práxis educativa. Por fim, pode-se dizer que, ao encarnar o impossível da educação como ideal pedagógico a ser atingido, apontando para o real da falta que atravessa toda e qualquer (trans)missão educativa, o analista poderá vir a transcender seu ensino e transformá-lo em transmissão de um estilo.

A relação transferencial entre o analista Mestre Não-todo e o educador será o dispositivo fundamental sobre o qual se apoiará a mediação simbólica e a transferência ao trabalho – pessoal, coletivo e institucional – no quadro de uma formação que pretendemos ser orientada por uma atitude clínica; atitude que compreende fazer-falar o outro e a escuta clínica dessa fala (Almeida, 2003), ou, tal como propõe Cifali (1998, 2001), uma conduta clínica, em que “importa, sobretudo, um trabalho sobre si em relação com um outro em torno de um saber mediador” (Cifali, 1998, p. 286).

O que chamamos de dispositivo clínico-ético de formação (Almeida, 2003) privilegia uma ética da ação educativa que visa colocar em prática experiências no campo da fala, da escrita e da escuta, restaurando, no sujeito, as possibilidades de enunciação. Desse modo, podem ser criadas as condições mínimas, um espaço para “metabolizar” a angústia que comparece no lugar da falta, reduzindo, “suavizando” o mal-estar na educação e abrindo brechas para que algo de novo, criativo, singular, e mesmo prazeroso, possa advir no campo das relações e das práticas educativas. Assim, talvez como uma resposta possível à angústia, ao enigma, à interrogação sobre “o que o Outro quer de mim?”, algo inesperado, sublime, possa nos surpreender no ensino da psicanálise a educadores e nos revelar, ao final de um percurso, as marcas de desejo, transmitido pela via de um estilo, refletidas em um espelho... algo estranhamente familiar!

Aprendemos, com Freud (1925/ 1976b), a lição de que “o trabalho da educação é algo sui generis: não deve ser confundido com a influência psicanalítica e não pode ser substituído por ela”; que toda pessoa que se interessa pela educação de crianças “deveria receber uma formação psicanalítica”, mas que “uma formação desse gênero é mais bem executada se a própria pessoa se submete a uma análise e a experimenta em si mesma”, pois o ensino ou a “instrução teórica em análise fracassa em penetrar bastante fundo e não traz convicção” (p. 342). Podemos nos perguntar, então, para finalizar, mas não para concluir: seria a demanda de análise um dos destinos privilegiados da relação transferencial na transmissão da psicanálise a educadores?

 

Referências

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Endereço para correspondência
e-mail: sandraf@pos.ucb.br

Recebido em setembro/2006
Aceito em novembro/2006

 

 

1 Trabalho apresentado no VI Colóquio do LEPSI - Psicanálise, educação e transmissão em novembro de 2006
2 Psicanalista. Docente da Universidade Católica de Brasília. Professora aposentada do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília

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