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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.11 no.21 São Paulo Dec. 2006

 

DOSSIÊ

 

O ato no texto analítico: siginificação e autorização1

 

The act on the analytical text

 

El acto en el texto analítico: significación y autorización

 

 

Anna Carolina Lo Bianco*

Tempo Freudiano Associação Psicanalítica
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica - UFRJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo procura examinar a diferença entre o discurso universitário e o discurso analítico tal como ela pode ser apreendida na articulação de um texto. Estabelece a diferença entre um trabalho realizado tendo em vista as formulações prescritas pelo procedimento universitário e o achado trazido por um texto analítico. Conclui que enquanto o primeiro se dirige ao conhecimento regido pela intenção e pela razão, o segundo é proferido de um lugar em que o sujeito se encontra não só excluído pela razão mas abolido pelas leis da linguagem - lugar de exílio de onde só pode sair

Palavras-chave: Ato, Ato teórico, Texto analítico, Razão, Achado.


ABSTRACT

The article examines the difference between the discourse held by the university and that held by the analyst, as comprised in a text. It establishes the difference between a work in accordance to the prescriptions of the academic procedures and the findings brought about by an analytic text. It concludes that while the further is addressed to knowledge, guided by intention and reason, the last is proffered by a subject who occupies a place where he is not only precluded by reason but abolished by the laws of language. This subject can only leave that place by making an act.

Keywords: Act, Theoretical act, Analytic text, Reason, Finding.


RESUMEN

El artículo pretende examinar la diferencia entre el discurso universitario y el discurso analítico, tal como ésta puede ser aprehendida en la articulación de un texto. Asimismo, establece la diferencia entre un trabajo realizado de acuerdo con las formulaciones prescritas por el procedimiento universitario y el hallazgo que un texto analítico introduce. Se concluye que, mientras que en el primero se trata de un conocimiento regido por la intención y la razón, el segundo es proferido desde un lugar en el cual el sujeto se encuentra no sólo excluido por la razón, sino, también, abolido por las leyes del lenguaje –lugar de exilio del cual sólo puede salir mediante su acto.

Palabras clave: Acto, Acto teórico, Texto analítico, Razón, Hallazgo.


 

 

A psicanálise nem sempre esteve presente nas universidades. Nascida há cem anos, somente nas últimas décadas passou a ser considerada uma disciplina universitária. E, ainda assim, não foi em muitos contextos que ela surgiu e se manteve no meio acadêmico. Como sabemos, em vários países, apesar de muitas vezes enraizada em suas culturas, não integra os currículos universitários, ao contrário do que acontece na cena brasileira, em que a psicanálise marca um lugar, responsabilizando-se pelo que dela se exerce nos cursos universitários. Apesar disso, psicanálise e ensino universitário estão longe de oferecer uma via contínua através da qual a primeira seria um objeto a ser veiculado pelo segundo. Por ter características que fazem dela um saber pouco afeito aos procedimentos das disciplinas empíricas, a psicanálise não se deixa facilmente apreender pela teia dos métodos acadêmicos. Sua presença nas universidades, portanto, se nelas se mantém, não pode ser sem uma tensão que requer constante elaboração.

Não nos dirigiremos a essa situação, que já foi alvo de alguns estudos anteriormente (cf. especialmente a recente tese de doutorado de Sbano, 2004), mas a tomamos como o cenário da questão que abordaremos neste artigo. Trata-se de pensar a diferença entre o discurso universitário e o discurso analítico, tal como pode ser apreendida na articulação de um texto. Procuraremos estabelecer a diferença entre um trabalho realizado tendo em vista as formulações prescritas pelo procedimento universitário e o achado trazido por um texto psicanalítico, ao circunscrevermos as vicissitudes enfrentadas pelo sujeito que se produz numa escrita analítica.

Num seminário em que Lacan (1991) se propõe exatamente a estabelecer uma diferença entre os discursos universitário e analítico, encontramos uma passagem que ilustra exemplarmente a mencionada diferença. Trata-se de um pequeno relato feito por André Caquot em 1970 e anexado ao referido seminário. A pedido de Lacan, Caquot – diretor de estudos de ciências religiosas da Ecole des Hautes Etudes, em Paris – faz uma breve exposição sobre o livro de Sellin (1922, citado por Freud, 1938/1996). Sellin havia escrito um trabalho sobre Moisés e sua significância para a história da religião judaico-israelita e Lacan, interrogando-se sobre como e por que Freud havia precisado recorrer a Moisés e, mais ainda, ao
assassinato de Moisés, viu-se interessado em ouvir a opinião de um professor de religião; motivo pelo qual foi ouvir o que Caquot tinha a dizer sobre a obra em que Sellin mencionava o assassinato de Moisés.

Acompanhar brevemente o trajeto de Caquot, portanto, vai nos permitir figurar a diferença entre o que se pode ressaltar num texto, do ponto de vista analítico, e o uso que dele é feito por um autor universitário (no caso, Caquot).

A análise de Caquot (1991) começa por delimitar o que seriam a ideologia e a opção metodológica usadas por Sellin – e, nessa intervenção, deparamo-nos freqüentemente com a mesma preocupação, com a mesma crítica: não encontrar em Sellin uma prova mais segura, uma demonstração mais cabal de que Moisés houvesse sido morto. Considera a hipótese de Sellin “frágil”, chegando a encontrar nela uma “imaginação desenfreada” (p. 200), e refere- se ao assassinato como um “pretenso assassinato” que Sellin “pensa” circunscrever (p. 201) – enfim, uma “conjectura gratuita” (p. 202). Respondendo a uma pergunta de Lacan, Caquot menciona ainda que, a despeito do rigor e da clareza, o argumento é “falso” (p. 130). Chama mais atenção, no entanto, o fato de que, por duas vezes, Caquot afirma que Freud teria recorrido a Sellin pelo prestígio acadêmico deste último, já que talvez a lembrança de Freud tivesse como referência uma passagem de Goethe; passagem em
que esse autor “imaginava” (p. 202) que Moisés havia sofrido uma morte violenta.

Em contraposição às observações de Caquot, por outro lado, encontramos um curto comentário de Lacan, no qual nos oferece uma visão diferente acerca do que teria Freud encontrado no texto de Sellin: em seguida à exposição de Caquot e depois de alguns comentários, Lacan (1991) observa que “Freud não se baseia em nada dessa articulação” realizada por Sellin nas várias edições de sua obra (p. 130). Freud procura no texto, ao contrário, a “extraordinária latência” implicada na maneira de proceder de Sellin, e até certo ponto é muito concebível que haja valorizado justamente uma lembrança, uma suposição que ressurge a despeito de todas as resistências (Lacan, 1991, p. 130).

Nesse ponto, é importante lembrarmos o que estava em jogo no passo que Freud (1938/1996) deu ao afirmar o assassinato de Moisés: basta mencionar as conseqüências de sua afirmação para que se conceba a religião judaica como fundada num real (o assassinato do patriarca) que se tentou encobrir. Essa formulação, ademais, tem efeitos importantíssimos para várias questões relacionadas ao tema, como as referentes aos conceitos psicanalíticos de recalque e de recusa, e para todas as considerações psicanalíticas sobre tradição e a transmissão, por exemplo. Podemos reconhecer em Freud uma maneira de operar que implica quem escreve para além de sua vontade; vale dizer, a operação não é automática e a garantia não está dada de fora: o que garante o achado que o texto traz é o ato de quem escreve. Ao supor o assassinato de Moisés – a partir da leitura de Sellin ou de Goethe – Freud usa esses autores como pontos de apoio para se lançar numa decisão conceitual
audaciosa e corajosa e, nesse momento, o ato freudiano é ao mesmo tempo um ato ético e um ato teórico (Lacôte, 1998).

Nesse ponto ainda, torna-se marcante a diferença entre o domínio do discurso universitário e a incidência do discurso analítico sobre o texto que está sendo produzido. Por um lado, encontramo- nos em busca da coerência e da consistência, como podemos considerar que é o caso de Caquot; por outro lado, ao tomarmos o discurso freudiano, estamos em outra dimensão. Não encontramos mais o apaziguamento assegurado pela citação, pelas referências aos grandes autores, às grandes investigações, às precisas verificações; a menos que se esteja incluindo nelas uma relação de transferência, de reconhecimento de filiação, que, por sua vez, não se confunde com a crença e a adoção cega do ponto de vista da(s) autoridade(s) no assunto.

O que vemos Freud fazendo em seu texto é menos significar o assassinato de Moisés do que autorizá-lo. Usamos aqui a distinção lacaniana
entre significar e autorizar (Lacan, 1991), porque acreditamos que tenha ecos importantes, por apontar a diferenciação entre uma operação
que é comandada pelo saber universitário e outra, proferida pelo analista, quando este vem ocupar o lugar que causa a possibilidade de irrupção
de um novo movimento. Para darmos um exemplo, Lacan, ainda no mesmo texto, é enfático ao dizer que não vai irritar a sua audiência fazendo-
a entender o que quer dizer quando usa o conceito de nomes-dopai, uma vez que no “fazer entender” as chances de alguma mudança se
operar são mínimas. Na maior parte das vezes, a característica do que é dito a partir de um saber estabelecido é, segundo Lacan (2001, p. 26),
que, o que quer que se diga, “dos temas mais ardentes, até mesmo da atualidade política, por exemplo, seja apresentado, seja posto em circulação, de forma tal que não leve a qualquer conseqüência”. Justamente, acerca do discurso freudiano, ao contrário, pode-se falar tudo ou mesmo já se falou muito, mas não se pode dizer que não teve conseqüências.

No entanto, é necessário um passo a mais em nosso argumento para não cairmos num maniqueísmo simples cindindo e colocando, de um
lado, um “bom discurso”; de outro, um “mau discurso”. Ou ainda, é importante que não se atribua à (boa) vontade ou à (boa) intenção daquele que articula um texto a decisão de escolher um ou outro. Há ainda que se levar em conta novas questões para situarmos o que estamos considerando o ato no texto analítico. Porque por ser ato ele não comporta um sujeito, menos ainda um eu da vontade ou da intenção.

Tomaremos o trabalho de Melman (1992), apresentado em um colóquio sobre “a filiação entre a fé e a razão”, em que esse autor menciona uma disjunção/conjunção entre o conhecimento e a palavra, que acaba por situar o sujeito num lugar de exílio; isto é, num lugar foracluído pelo conhecimento e abolido por sua própria palavra. Os elementos dessa apresentação permitem-nos circunscrever com mais precisão que é de um ato que se trata no texto analítico.

Melman (1992) começa por examinar o que Ibn Rushd2 considera um texto religioso, quando esse filósofo afirma que num tal texto pode-se reconhecer uma ordem interna à sua redação. Uma ordem que não lhe é imposta de fora pela vontade divina, por exemplo. Ao contrário, trata-se de uma ordem necessária, requisitada pela escrita mesma, que, recorrendo ao silogismo, permite a decifração do texto, percorrendo um caminho que segue do desconhecido ao conhecido. Método que permite, portanto, a retificação do texto literal e, ao mesmo tempo, estabelece os
limites da interpretação. Esse método rejeita as proposições que estão em contradição com as premissas, e Melman (1992) afirma que essa rejeição é comandada por um “automatismo inerente ao jogo de escritura”(p. 25). Trata-se, pois, de um método que reconhecendo um automatismo no jogo de escritura garante que haja um “comando automático” que exclui qualquer intervenção do sujeito (p. 26).

Nesse momento, o autor lança uma interrogação que para nossos objetivos torna-se preciosa: pergunta se um texto, com as características desse de que trata Ibn Rushd, poderia ser usado para falarmos do fenômeno da Revelação. Vale dizer, desse fenômeno referido a uma lei que não se articula a partir de um jogo de escritura, mas a partir da emergência de uma voz. Melman procura a resposta no filósofo árabe e diz que este é ambíguo ao tratar do assunto. Refere-se, então, a trechos de São Tomás de Aquino e Maimônides3, que afirmam que esse texto – que se articula a partir da voz – é de uma ordem outra e, portanto, vem de um lugar diferente daquele do qual viria a razão.inconsciente.

O que nos interessa na leitura de Melman é que para fazer valer sua leitura desses dois filósofos, toma uma difícil e arriscada decisão: não irá se apoiar na lógica da demonstração, mas em sua própria palavra. Continua, então, o seu texto afirmando que se o sujeito é foracluído pela lógica, ele também é abolido pelo jogo significante, na medida em que é sujeito às leis da linguagem. Tais leis comportam prescrições, bem como interditos, e chegam ao sujeito sob a forma de uma Lei que lhe é revelada do real.

Melman reconhece nesse momento o conflito marcado por uma oposição-disjunção, ou por uma junção- disjunção, entre o que se profere
pela boca como palavra – com a autoridade, a paixão, o caráter assertivo, que a acompanham quando ela é proferida –, e a racionalidade,
através da qual se procura dela defender- se. Se de um lado encontramos o saber intuitivo espontâneo, que anima essa palavra, que é sempre
persuadida de seu saber, de seu bem-fundado, de seu direito, de sua legitimidade – mesmo que não saiba nada; de outro, deparamo-nos
com o conhecimento através do qual o sujeito pode tentar ceder ao “fanatismo que habita intrinsecamente sua palavra” (Melman, 1992, p. 30).
Falar de um fanatismo que perpassa a palavra é reconhecer um sujeito tomado por ela.

Se, por um lado, ao considerarmos a lógica que regula a demonstração e a racionalidade que guia o conhecimento, deparamo-nos com uma operação que foraclui o sujeito, em contrapartida, conclui, Melman, esse sujeito também é abolido por sua própria palavra, na medida em
que ela o arrebata, deixa-o sem recursos; o que é atestado pela constante surpresa com o seu dito, seu próprio dito que o ultrapassa. Logo,
vemo-nos em face de um sujeito que habita um lugar entre o conhecimento e a lógica que o foraclui, e a palavra, que o sujeita e o abole –
um lugar de exílio, portanto.

Reencontramos aqui a mesma oposição que notávamos na discussão de Lacan com Caquot; nela estava em questão o “ato freudiano” (Harly, 1996) de fundar um real para a religião mosaica; de reconhecer para ela o trauma que viria a causá-la. A partir dessa “construção de uma cena real”, Freud (1919/1994) explica a força da tradição judaica ao se difundir e atravessar os séculos, e concebe uma substância nessa tradição que se encontra além dos registros escritos e da comunicação oral de uma geração à próxima. Freud faz assim um ato em seu texto, ao escrevê-lo, autorizando- se a dizer que desse exílio do sujeito – entre a lógica da demonstração cabal, que exigia Caquot, e o seu desaparecimento ao
proferir uma palavra apaixonada – só se pode sair por um ato que, com sua dimensão de real e sua ponta de significante, oferece como efeito um lugar para o sujeito.

 

Referências

Augé, C. & Augé, P. (1952). Nouveau petit Larousse illustré. Paris: PUF.        [ Links ]

Caquot, A. (1991). Exposé de M.Caquot. Anexe B. In J.Lacan, Le séminaire, livre 17: L’envers de la psychanalyse. (pp.198-202) Paris: Seuil.

Freud, S. (1994). De la historia de una neurosis infantil. In S. Freud, Obras Completas. (J.Etcheverry, trad., Vol. 17, pp. 1-112) Bs. As: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1919)        [ Links ]

______ (1996). Moisés y la religión monoteísta. In S.Freud, Obras Completas. (J. Etcheverry, trad., Vol. 23, pp.1-132). Bs. As: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1938)        [ Links ]

Harly, A. (1996, outubro). Le Moïse, un acte freudien. Texto recuperado em 15 ago. 2002: http://www.freud-lacan.com.        [ Links ]

Lacan, J. (1991). Le séminaire, livre 17: L’envers de la psychanalyse, 1969-1970. Paris: Seuil.

______ (2001). L’acte psychanalytique. Séminaire 1967-1968. Paris: Éditions de l’Association freudienne internationale.

Lacôte, C. (1998). L’Inconscient. Paris: Flammarion.

Melman, C. (1992). Ce que nous avons oublié. In C. Melman, Le colloque de cordoue. Ibn Rochd, Maïmonide, saint Thomas ou la filiation entre foi et raison. Paris: Climats/Association freudienne internationale.        [ Links ]

Sbano, V. (2004). Psicanálise nas universidades. Tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, UFRJ, Rio de Janeiro.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
e-mail: teoriapsi@psycho.ufrj.br

Recebido em maio/2006
Aceito em agosto/2006

 

 

NOTAS

* Psicanalista. Membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica. Professora do Programa de Pósgraduação em Teoria Psicanalítica - UFRJ
1 A Marcela Decourt
2 Médico e filósofo árabe, nascido em Córdoba (1126-1198). (Nouveau petit Larousse illustré, 1952)
3 Médico, teólogo e filósofo judeu, nascido em Córdoba (1135-1204). (Nouveau petit Larousse illustré, 1952)

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