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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.11 no.21 São Paulo Dec. 2006

 

DOSSIÊ

 

“Deuses de prótese”: sobre os mestres de nossos tempos

 

"Prosthetic gods": about the masters at this time

 

"Dioses de prótesis": sobre los maestros de nuestros tiempos

 

 

Marcelo Ricardo Pereira*

Faculdade de Educacão/Universidade Federal de Minas Gerais

Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalítcas e Educacionais sobre a Infância/USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto pretende entender o declínio dos mestres na modernidade ou o quanto eles próprios se dizem “desvalorizados”, “desmoralizados” e “desautorizados”. O mestre nostalgicamente idealizado e abnegado de outrora cedeu lugar a um profissional sucumbido à atual massificação educacional e à crise política da autoridade. “Deus está morto”, diria Nietzsche, ou o “Pai está morto”, diria Freud. Seria, então, o mestre uma contínua tentativa do humano de revivificar pai e Deus? Isso não é senão condená-lo indefinidamente à impostura? Será este, pois, o tempo para admitirmos o mestre em sua real condição contingente e provisória?

Palavras-chave: Declínio do mestre, Psicanálise do vínculo, Social, Ética do provisório.


ABSTRACT

The text attemps to identify the reasons for the master’s decay in the modern time or the intensity of “depreciation”, “demoralization” and “desauthorization” that the masters find themselves into. The master, nostalgically idealized at the present times, turned into a professional succumbed in the current massification of education and in the political authority crisis. “God’s dead”, would say Nietzsche, or “Father’s dead”, would say Freud. In that case, would be the master a non stoping human experience to revivify father and God? Isn’t that do condemn indefentely the master as an impostor? Is this the moment to admit the master’s real condition contingent and temporary?

Keywords: Decay of the master, Psychoanalysis of the social entail, Temporary’s ethics.


RESUMEN

El texto pretende entender la decadencia del maestro en los tiempos modernos y/o cuanto ellos mismos se dicen “desvalorizados, “desmoralizados” y “desautorizados”. El maestro nostálgicamente idealizado, abnegado de otrora, cede lugar a un profesional que sucumbe a la actual masificación de la educación y a la crisis política de la autoridad. “Dios esta muerto”, diría Nietzsche, o “el Padre esta muerto”, diría Freud. ¿Seria entonces el maestro una continua tentativa humana de revivificar al padre o a Dios? ¿No es esto sino condenarlo indefinidamente a la impostura? ¿Será este pues, el momento para admitir al maestro en su real condición contingente y provisoria?

Palabras clave: Decadencia del maestro, Psicoanálisis del vínculo social, Ética de lo provisorio.


 

 

Elôï, Elôï, lema sabachthani?

(Deus, ó Deus, por que me abandonastes?)

Jesus Cristo

O discurso docente atual é permeado de produções imagísticas e amplamente alardeadas – principalmente em tempos de nossa modernidade tardia – de como os professores e as professoras sentem-se “desvalorizados”, “desmoralizados”, “desrespeitados” e, sobretudo, “desautorizados”. Esse discurso, com efeito, é igualmente ressonante junto aos teóricos da profissão docente que entendem que a função de professor em nossa história próxima sofreu considerável desgaste intelectual, social, cultural e econômico. No imaginário social, ao que parece, o “mestre” nostalgicamente idealizado de outrora cedeu lugar a um profissional sucumbido à atual massificação industrial, comunicacional e tecnológica, bem como à inabilidade em lidar com as manifestadas identidades e diversidades culturais emergentes e que fazem parte das instituições educativas.

A desautorização docente é tema recorrente. Professores se vêem às voltas com o ostensivo desgaste de seu ofício, além de terem de lidar com o indisfarçável desinteresse pelos estudos por boa parte do alunado. Os estudantes são reputados como agentes de desautorização e desrespeito à figura do professor, que se vê impossibilitado de dar cumprimento ao seu exercício de mestria ou de domínio. Há sempre um escárnio, uma zombaria, um boicote, uma afronta ou uma omissão discente, que induz ao que se vem denominando “sintoma social” que atinge a maior parte dos processos educacionais, qual seja, um dissenso na relação professor- aluno.

A contingência pedagógica forja um docente que tende a desaparecer, não tanto por sua permanência a priori fugaz, por ser uma consciência dividida que substitui o que realmente sabe por uma prática negadora de seu saber efetivo, mas em virtude de um apagamento de si como índice de autoridade ou de governo. Um professor precisa fazer um esforço cotidiano para que seu lugar permaneça inteiro, antes de vazio. Há diariamente um exercício severo de restituir um lugar discursivo apagado pelo escárnio, pelo desinteresse ou pela indiferença de uma parcela de alunos, bem como de boa parte das políticas institucionais que os orientam. O trabalho docente – antes mesmo de se fazer falta para tornar possível o preenchimento desse lugar por todos aqueles que estão dele excluídos e que por ele aspiram, a saber, os estudantes – é investido de inúmeros estratagemas a fim de recobrar algum ponto estável que se imagina nostalgicamente ter havido em um passado evocado como crepuscular.

Nesse sentido, muitos desses professores desdobram-se para estudar novas prescrições formativas; instituir outras modalidades de planejamento; desenhar metodologias e estratégias de ensino menos tradicionais, capazes de satisfatoriamente garantir aprendizagens sob condições as mais adversas possíveis; buscar aquecer as aulas com novas tecnologias educacionais e novas “criações” dos tentáculos psicopedagógicos; bem como estabelecer práticas avaliativas menos ortodoxas, de acordo com alguma teoria efêmera, que contagia de tempos em tempos o discurso pedagógico. Mas a realidade é precária. O fato é que nenhum docente domina completamente o que ensina e nem tem tempo e estímulo para se aprofundar em questões acerca do conteúdo que ministra. No decorrer do tempo letivo, muitos não conseguem cumprir todo o programa previsto nos planos de curso, ministrando aulas sem muitos recursos ou inovações. Em grande parte, avaliam mal o que foi ensinado, improvisando provas, repetindo exercícios ao longo dos vários anos e corrigindo superficialmente os inúmeros trabalhos e avaliações acumuladas no decorrer dos períodos. Alguns revelam dificuldades de manter a disciplina e uma rotina de trabalho que envolva seus alunos e alunas. São profissionais que tendem a transformar suas tarefas em meras rotinas, e boa parte deles considera sua profissão um complemento de subsistência, por possuírem outros empregos em áreas diversas e revelarem outros interesses.

Disso resulta uma aporia que convém ressaltar. De um lado, instaura-se um laborioso exercício de vivificação da mestria, induzida por novas mentalidades pedagógicas referentes à concepção de planejamentos, de didáticas, de avaliações, de recursos tecnológicos, entre outras. Do outro, um desvalor histórico e uma realidade precária impõem-se. Os tempos exíguos, os repetidos estratagemas, o domínio de conhecimento cada vez menos ostensivo em favor de pedagogias muito genéricas forjam certo declínio docente cuja vivificação não parece ser suficiente para revertê-lo.

De modo análogo ao dito sobre o declínio docente, o prenúncio nietzschiano “Deus está morto” vem sendo também repetido em grande parte da literatura acadêmica dos campos da filosofia, da sociologia, da antropologia, da história, como também da psicanálise, quando se debruçam sobre temas afins. Teorias sobre a falência de instituições sociais, o aumento da violência urbana e da criminalidade, a perplexidade de projetos educacionais ante a diversidade cultural, entre outras, em regra, vêm associadas a uma crise de autoridade, a um declínio de um deus-pai ou a uma deposição da sociedade eminentemente patriarcal. Somos marcados hoje por evidentes indícios de uma Vatersehnsucht (nostalgia do pai) – termo de Freud (1913/1980a, p. 176; 1923/1980b, p. 52). Somamse a isso as idéias sobre fratria, concernentes ao vínculo social da pólis, que entendem a civilização humana instaurada sob princípios de uma ética fraterna. Tal ética é revivificada na modernidade pelos ideais burgueses e liberais estabelecidos em suas revoluções. Fundamentalmente, são três: a “Gloriosa”, de 1688, em solo inglês, que garantiu que o poder da Coroa seria definitivamente repartido com o Parlamento, e que doravante nunca mais seria absoluto; a da “Independência”, proclamada em 1776 pelos norteamericanos, que resultou na mais liberal (e talvez plagiada) constituição suprema de um Estado moderno; e, sobretudo, a “Revolução Francesa”, de 1789, maior inspiradora política, cultural e intelectual da mística da modernidade, em cujo brasão cintila a tríade imortalizada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a saber, “liberdade, igualdade e fraternidade”.

O Pater Pantôcrato (pai onipresente) de Platão, ou o Zeus, pai de todas as coisas, ordenador grego do cosmos, que se tornou o Deus do destino na revelação judaico-cristã, parece ter perdido seu fôlego em tempos modernos. Será mesmo? Será que esse Deus – mestre e pai – foi morto pelos revolucionários ao reinventarem o homem na liberdade, igualdade e fraternidade?

Talvez não seja tão simples assim. Mas o fato é que o declínio do pai é impudentemente anunciado pela mística modernizadora. Há de se reconhecer que sua autoridade, como símbolo de domínio, desgastou-se em nossos tempos. Podemos suspeitar que a crise do mundo atual, de natureza essencialmente política, consiste também, e de modo fundamental, numa crise da autoridade. Eis um espectro da derrocada de uma sociedade regida pelo pater, que assiste ao solapamento das fundações políticas e das instituições sociais. Então, as revoluções da época moderna parecem gigantescas tentativas de reparação. Visam, se assim for, renovar o fio rompido da tradição e restaurar essas instituições mediante a fundação de novos organismos políticos. Ora, mas em que consiste uma reparação senão no íntimo desejo de restituir a Coisa, lá onde ela é miticamente fundante?

Em nossa sociedade contemporânea, o pai parece mesmo ter sido deposto do poder. A imagem paterna torna-se cada vez mais esgarçada, vaga, desnaturalizada e desacreditada. Do ponto de vista da experiência, quanto mais os denominados pelos historiadores de “pais sociais” forjam-se tirânicos, mais se vêem intimidados e desautorizados. E quem são esses pais sociais destituídos senão as autoridades educativas, religiosas e de governo? O problema é que tanto prática como teoricamente não estamos mais sequer em posição de saber o que a autoridade realmente é, como nos alerta Hannah Arendt (2002). A autora chega a asseverar, categoricamente, que a autoridade desapareceu do mundo moderno. E ela não está só. Suas idéias convergem também para um ponto nodal, a saber, a tese do declínio da imago paterna, já apontada por outros autores, inclusive por Lacan (2003), no início de seus trabalhos.

É Freud, contudo, quem salva o pai, ao manter, ao longo de seus estudos, um enigma tão impenetrável quanto impreciso: o que é um pai?

O autor de Moisés e o monoteísmo (1939/1980c) reconhece que os historiadores de então falam do envelhecimento da antiga civilização tanto paterna quanto deífica. Disso deriva- se uma suspeita de que esses mesmos historiadores aprenderam apenas causas acidentais e contribuintes desse humor deprimido dos povos. Talvez Freud estivesse mesmo preocupado com o crescente aspecto de desilusão deixado no rastro das instituições contemporâneas. Em vez de fazer coro com pensadores da época que anunciam um pai decaído como a grande razão para tal desilusão, Freud parece ter revivificado o pai ao instituí-lo como morto. Aqui temos, pois, uma aporia categórica, ressonante do desejo de reparação da tradição, encontrado no seio dos intentos das revoluções modernas.

“No princípio foi o ato”. Freud, ao final de seu Totem e tabu (1913/ 1980a), aposta na fórmula de Goethe para afirmar que o assassínio do tirano inventa o gênero humano ao instituir o pai como morto – fundamento da imagem providencial de Deus. Não existe pai a não ser morto, somente revivificado em nível simbólico. Isso institui a cultura, bem como uma antropologia da origem do humano.

Seguindo numerosas pistas de análise antropológica de sua época, Freud recoloca a problemática dual, de caráter hobbesiano, do “estado de natureza” e do “estado de cultura”, no centro dos debates sobre o nascimento do homem e da mulher como tais – notadamente, recoloca também o ponto de origem do sujeito psicanalítico.

Sob a forma de mito, o autor apóia-se na concepção darwiniana de um tirano sexual, violento e enciumado, que guarda as fêmeas e expulsa os machos, suas crias, à medida que crescem. Daí, para além de Darwin, narra-se toda uma cena dramática em que os filhos, revoltados, matam o tirano, canibalizam-no irmamente e passam a gozar de todas as suas fêmeas de modo incestuoso. O rito de antropofagia gera poder e culpa. Agora, não se trata apenas de se desfazer de um estorvo, mas de incorporá- lo. A prole revolta renega seu ato ao edificar um totem proibitivo e simbólico como substituto de um morto, que não é qualquer um, mas um pai inventado. Ninguém pode substituí-lo, sob o risco se ser igualmente morto. Para isso, o bando fraterno precisa de um esforço cotidiano para que seu lugar permaneça vazio, pois sua instituição é tornar possível o preenchimento desse lugar por todos aqueles que estão excluídos dele, que aspiram por ele e pelo qual não poderiam aspirar se já estivesse preenchido por um pai, mestre ou Deus. Porque existe o lugar do pai, sob a condição de exceção, inventado pela ordem fraterna como lugar vazio, todos podem desejá-lo e ninguém pode preenchê-lo senão sob o risco de destruí-lo, bem como de se autodestruir. A sociedade fraterna passa, pois, a impedir-se, em virtude de uma “obediência adiada”. O pai morto, como polemiza Freud, torna-se mais poderoso do que jamais fora em vida.

Esse pai morto, todavia, parece ser tomado com visível embaraço pelos valores modernos, que o vêem muitas vezes apenas como o tirano encarnado, vivo e atuante, subordinando todos à sua lei opressora. De Moisés a Cristo, de Genghis Khan aos imperadores romanos, de Napoleão a Hitler, de Tiradentes a Vargas ou mesmo de Piaget a Freud, cada um a seu modo, todos impuseram suas leis, suportaram por alguns instantes ser idênticos ao pai morto, e sofreram eles mesmos constrangimentos sociais sob a pena de uma impostura: revolta, renegação, ostracismo, perseguição ou morte. Daí ser curioso perceber como quase toda essa literatura, da filosofia à história, da antropologia à psicanálise, induz à idéia de que o declínio paterno e, conseqüentemente, do mestre – como aquele que se apresenta e encarna a sua lei – é sucedido por uma fraternidade revelada. A isso, porém, procedeu outra questão: será que o pai ou o mestre foi mesmo morto pelos modernos? Ou será que, desde sempre morto, assim como instituiu Freud, ele atualmente apenas vestiu-se de novas modalidades traduzidas e pós-modernas, e permanece sendo o mesmo grande estofo da vinculação social?

Na esfera educacional, o dilema do declínio docente parece alinhar- se ao dilema do declínio do pai ou, mais precisamente, da sua imago, o que recoloca o debate sobre o enigma paterno no epicentro desta investigação. Coloca também, imbricado a esse enigma, o conceito tradicional de mestre como autoridade que faz garantir a sua lei. Porém, é necessário que façamos a disjunção entre pai e mestre, e também entre ambos e Deus; disjunção que revolve as concepções mais tradicionais, que inevitavelmente tendem a fundi-los.

Ao que parece, a idéia de mestria vem sendo tomada pela tradição do pensamento contemporâneo, talvez desde Santo Agostinho, como aquele elo comum que conjugaria o Deus-pai à sublime abnegação do homem e da mulher ordinários. De um lado, temos Deus, pai e mestre, guardado e glorificado como tal, através de seu vaticínio flamejado pela sarça ardente – “Eu sou o que sou” – como também através do seu nome próprio impronunciável, “YHVH”. É um mestre per si, livre de suspeita ou dúvida. Deus, dizendo essa frase bíblica e esse nome a Moisés, ao mesmo tempo prenuncia e recusa, mas, nem por isso, deixa de induzir uma certeza. Do outro lado, temos o homem-mestre, como aquele que, mesmo terreno, abnega sua banalidade e eleva-se à condição de semelhante Àquele que é. À diferença do primeiro, esse mestre só o é à custa de esforço e de demonstração. Torna-se, em regra, governante de pessoas, exemplo a ser seguido, o mesmo exemplo que se reclama à docência de nossos tempos e a todo aquele que exerce, desde os romanos, o governo do outro. Ainda que a modernidade seja marcada pelo signo do “pensamento raciocinante” – diria Hegel em seu Fenomenologia do espírito (1999) –, é possível afirmar que os valores românticos estendem-se até nossos dias e emprestam aos professores, comuns e terrenos, as mais altas exigências de sublimação abnegada para que galguem o elevado lugar de mestre como sublime imagem e semelhança de Deus.

Essas questões conduzem, por sua vez, a outras indagações: um professor, uma professora, ao se conservarem na condição de mestres, só o fazem ao se forjarem Deus-pai? Seus esforços não se voltam sempre ao intento de assemelhar-se a Ele? Em outras palavras, o ato de educar, como uma exigência desmedida de uma sociedade de irmãos, restabelece em si a ordem paterna?

Dessas inferências, pode-se abstrair uma primeira hipótese: mestres sempre serão pequenos tiranos escarnecidos. Ao tentarem cegamente encarnar o “ao menos um”, lugar de exceção, outrora supostamente ocupado por um pré-homem terrível e gozador, assim como tantos outros pequenos tiranos testemunhados pela história, é possível que esses mestres ordinários e terrenos condicionem-se efetivamente a ser desmoralizados, desvalorizados ou desautorizados, uma vez sendo eles meros impostores daquele que jamais pode ser encarnado por exceder- se como morto.

Se constatamos um declínio do mestre em nossa época, é possível vêlo como resultante de uma desautorização política de sua autoridade. A imanência liberal e racionalista da mística moderna emparelhou todos nós, essa confraria de republicanos, como propriamente iguais. Mas longe de sermos idealizados como tal, a descoberta freudiana já nos revelara que somos iguais tão-somente na precariedade e na insuficiência. O mestre deixa de ser o exemplo de magnificência, próprio da conjunção de pai e Deus, e passa a ser também um precário, tanto quanto são seus comandados, nessa massa de irmãos. Algo de sua autoridade é erodida, escarnecida e cinicamente debochada por parte dos não-mestres. O imperativo republicano legifera em favor do apagamento de nossas diferenças. Já não mais se pode notar tanto o degrau entre mestres e comandados. Além disso, a modernidade, que separa Estado e Igreja, solapa igualmente a fusão entre mestre e Deus. Mas, se o passo histórico foi inevitável e fundamental, ele não parece ter munido o mestre de estratagemas ou de um novo conceito que o fizesse não ser mais um nostálgico de uma tradição ou de uma ancestralidade perdida. Sobre isso, a peregrinação meticulosa de Dom Quixote, talvez o primeiro mestre entre os modernos, parece ser representativa. Ele é o herói do mesmo, o herói da mundanalidade de todos nós, de nosso quixotismo.

 

Os muitos nomes da impostura

Poderíamos apelar aos ideais de sublimidade quando falamos dos mestres. Muitos dirão que seu ato é efeito da dessexualização de intenções, voltado para dizer o bem, desprovido romanticamente de narcisismo e entregue aos artifícios da idealização moral. Freud mesmo ousou empregar o termo “sublimação” ao longo de seu ensino. Mas não o fez desavisadamente. A sublimação que inventa é tida como uma das vicissitudes da pulsão – uma contingência, ao mesmo tempo que um destino. Isso a faz ser não apenas uma mudança de objeto, como também uma mudança de alvo. Não se pode dizer então que tal condição se dá às expensas da dessexualização desse alvo e da idealização daquele objeto. Colocar um objeto no lugar do outro é a arte da sublimação. Embora ela possa ser comumente concebida, à maneira diacrônica, como uma troca de um objeto sexual por um não-sexual, talvez seja possível pensar, a partir de Freud, que a sublimação, antes desse fim último, possa ser concebida como passagem: a passagem de um objeto a outro, de uma condição a outra. A sublimação é o ato mesmo do Verschiebung (deslocamento), da mudança, da passagem, que de alguma forma faz encobrir o horror ante o vácuo, ante a incompletude deixada, em última instância, na relação que se dá com o outro. Se for assim, a sublimação pode mesmo ser elevada à condição ética de bem-dizer, em vez de ser colada ao efeito moralizador de um dizer do bem, desprovido de erótica e empanturrado de código.

A ordem pedagógica cuida para que a sublimação seja equacionada ao nível do inexcedível, da transcendência dos valores morais, intelectuais e estéticos. Trata-se de uma ordem que respeita a mística moderna e o retorno aos ideais romanos de ter a magnificência sublime como fim. O mestre estabelecido e revivificado pelas valências pedagógicas, segundo as leis clássicas que até agora as consubstanciam, é aquele fixado ao seu discurso, a saber, ao discurso do mestre que o emparelha ao pai e a Deus. A abnegação exigida dos mestres tornaos dóceis e devotados a uma causa sacrificial. Pode-se até mesmo fazer vista grossa a algum tolerável ímpeto colérico, próprio do exercício, desde que seja assegurada “a sagrada missão pedagógica” (Lopes, 2003).

Obviamente, as teorias didáticas, por sua própria natureza, desabonam qualquer prática de incivilidade vinda dos mestres que formam. Mas é possível tacitamente tolerar algum infortúnio desarrazoado desde que os valores régios da ordem pedagógica sejam mantidos e até reforçados pela cólera de uns poucos. É extraordinário perceber como as valências pedagógicas levam seus mestres a tentarem a todo custo abnegar sua banalidade e elevar-se à semelhança do que é sagrado. À maneira romana, tornam-se exemplos a seguir, ao discursarem a partir do lugar de garante da lei ou do lugar da certeza. Trata-se, porém, mais de uma tentativa do que de uma conquista. Por mais que o discurso pedagógico incuta valores românticos à formação e ao exercício docente, conferindo aos seus profissionais as mais altas exigências de sublimação e de apoteose, todo esse esforço não conhece êxito razoável, quem dera absoluto. A impostura não tarda. Dessa herança, o mestre não se furta.

Entretanto, se for possível extrair da sublimação esse sentido deífico e, de mesmo golpe, emprestar-lhe uma causa ética, talvez seja exeqüível entender, tão-somente assim, o ato do mestre que teorizo como um ato sublime. Para tanto, guardar as noções de contingência, de deslocamento e de passagem torna-se essencial. Tais noções podem melhor admitir nossa mortal, finita e precária existência. O nada – o ex-nihilo – pelo qual somos estuporados por conta da ordem real dos acontecimentos, das insurreições cotidianas, da opacidade subjetiva, pode, quem sabe, ser melhor assentido quando colocamos sobre ele uma “peça destacada” (Miller, 2004-05), uma peça suplente ou contingente, que jamais terá valor amalgamador de uma verdade capital. A modernidade tardia, como a que vivemos, não reconhece mais uma só e única moral possível em seu pensamento, tampouco reduz as leis que nos regem a um único código moralizante a que devemos todos irmamente obedecer. A imanência parece ter libertado o real. Não que ele não estivesse lá desde sempre, mas a nossa mundanalidade faz-nos vê-lo em nossa própria carne. É necessário que isso sofra nominação, que o sentido ou a verdade ceda ao nome: o nome como furo.

Para que tal feito se cumpra, o mestre precisa provavelmente se nivelar não à condição de Deus, mas à condição de causa de desejo. Não creio que seja possível que se exceda nessa posição por um tempo maior que um instante. Essa causa impinge ao mestre seu caráter provisório e igualmente destacável. Temos aqui a “exsistência” antes da existência. Isso não é senão um átimo fora do sentido que não se inscreve nos códigos e nas verdades imanentes. A abnegação, a disciplina e a polidez podem perpetuar a existência de um mestre, entretanto, não são capazes de subtrair-lhe a impostura. Nem alguma outra forma é capaz de fazê-lo. Assentir como “ex-sistente” é, quem sabe, abandonar não a impostura, mas o drama que ela causa.

Evidentemente, a modernidade fez do mestre, à semelhança de todo mortal, um “Deus de prótese” (Freud, 1930/1980d, p. 111) que nega a si essa condição. A época moderna impeliu nele um gozo da imortalidade, senão física, pelo menos a da palavra. Incitou-lhe o trunfo de ter o domínio da natureza e de ter o signo da inversão do nosso destino antropológico prematuro. (Im)pulsionou-lhe igualmente o gozo de identificar-se com o significante primeiro (s1), o Einsieger zug, levando-o a proferir o discurso do comando, nem que, para isso, tivesse de afundar com seu próprio barco e morrer por ele. E mais: a modernidade fez o homem- mestre espelhar-se no mestre per si, causa maior conferida ao discurso pedagógico de nossa época. Desde as reformas religiosas e de seus motivos protestantes e jesuíticos, o “mestre interior” de Santo Agostinho, qual seja, o filho de Deus, tornou-se não apenas um objeto de referência, mas um alvo. Como afirmei em Amor e rigor (2005), quem mais poderia ser senão aquele que, mesmo sendo filho, como cada um de nós, permanece sendo mestre? Quem mais poderia ser tão inesquecível ou tão imortal ao mesmo tempo em que é carne e caminha entre os seus como igual? Quem mais mereceria o maior e mais inculcado espelhamento?

O mestre moderno, o mestre forjado e idealizado pelo discurso pedagógico, encarcerado no corpo de um professor urbano, de um governante burocrata, de um religioso mais crente do que fiel pode bem descer dessa cátedra – “desser”, conforme o neologismo lacaniano. Ele pode bem deixar de ser: de ser o que tudo sabe, o que tudo domina, o magnificente, para assentir com o lugar de “prótese” que lhe dá termo. Mais uma vez, tomo Freud ao pé da letra. O termo não poderia ser mais pertinente. Uma prótese é provisória, ao mesmo tempo em que é suplente, contingente e destacável. Essa foi a idéia principal a partir da qual desejei compor um mestre e imputar-lhe uma substância ética.

Orbitamos em torno de um tempo no qual não vejo mais como o mestre pode alongar-se interminavelmente no seu exercício de governo do outro sem se dar à derrisão. É fato que ele ainda ocupa quase fixo os mais diversos postos de comando; que igualmente cria estratagemas para se manter nesses postos; que forja uma onda quase acéfala de discípulos para que seu lugar não seja colocado a prêmio; no entanto, é fato também que a chamada pós-modernidade, por sua própria natureza desiludida e cínica, vem criando novos mestres menos “institucionalizados”, crônicos e perenes, ao mesmo tempo mais pontuais, imediatos e provisórios. Cada vez com mais freqüência, nota-se o surgimento de mestres à frente de projetos sociais específicos e sem detença, na condução de trabalhos de organizações não-governamentais, na gestão de programas acadêmicos de extensão e de interface comunitária, na direção de querelas culturais, identitárias e de movimentos políticos, enfim, cada vez mais se nota a presença de mestres cujo provisório passa a ser o imperativo ético de seu exercício. Os diretores eternos, os chefes de seção imutáveis, os acadêmicos conservadores e fixos em condutas e saberes que não se alteram com o passar dos anos, como também todos aqueles que crêem no amestramento, seguramente sofrem cedo ou tarde os efeitos do desmentido e do saldo cínico.

Tais efeitos ocorrem das mais diversas formas. Se considerarmos apenas o espaço acadêmico, para efeito de ilustração, perceberemos que os dramas cotidianos individuais; o depauperamento das condições de trabalho; o pouco reconhecimento profissional por parte das instâncias contratantes; a sobrecarga de tarefas e o exíguo tempo livre para se dedicarem aos planejamentos; os ínfimos recursos destinados à pesquisa e à extensão; a necessidade de multiplicar empregos para manutenção de despesas; a proletarização da profissão, bem como a ausência de políticas públicas mais sólidas que legislem e regulamentem as estruturas e os sistemas de ensino não deixam de ser formas de um desmentido, de um cinismo social e de uma desautorização política dos mestres.

E ainda: “Os alunos não querem saber de nada”. Esse é outro assombro por parte dos desautorizados. O escárnio, a zombaria, o boicote, o desinteresse ou a omissão discente também é mais um nome disso que fundamenta uma impostura.

Evidentemente, não sou nem um pouco solidário com esse depauperamento dramático que vem acometendo o labor docente. Denuncio igualmente as formas cínicas de desmentido e de desautorização pela qual passa cada professor no exercício de sua profissão, e entendo as forças que as provocam. Entendo também a “fabricação” de um discurso pela época moderna que acelera essa dramática e lança cada mestre que forja à solidão de seus próprios recursos. A ordem pedagógica perece corroborar o esvaziamento do debate político do trabalho docente. Sou, desse esvaziamento, um incessante combatente. Trata-se de uma peleja diária e não há como abrir mão dela. Entretanto, reconheço que toda essa empiricidade não é outra coisa senão mais um efeito de nossa finitude e inacabamento antropológico. Isso não é o mesmo que naturalizar uma estrutura. Não preciso recorrer a esse mote e a esse “sono” como forma determinista de argumentar o real. Consentir com a impostura como fundamentalmente própria do ato de governo do outro é, quem sabe, consentir igualmente com nosso inacabamento humano. Tal fato não pode ser índice de abatimento nem de prostração. Se a humanidade inventa para si mestres e guias que possam nos amar, nos educar e nos governar, dando-nos alguma ilusão de antecipação jubilatória, é porque talvez tenhamos que fazer regurgitar, a cada momento possível, um “nome” provisório, em vez de nos vendermos exclusivamente aos ideais megalômanos que “fabricam” os mais iludidos impostores.

Mas, afinal, voltando à idéia, como podemos definir e caracterizar essa impostura do mestre? As análises, as especulações e as teorizações realizadas no meu trabalho de doutorado remontam a uma perspectiva antropológica específica, movem-se por conceitos de difícil entendimento, criam uma nova possibilidade de estabelecer um mestre que não seja mais os abnegados de outrora e culminam num exame dos efeitos da modernidade na ordem pedagógica e no ato de mestria. Devo reconhecer que, na realidade, teorizei sobre a impostura do mestre de diversas maneiras. É impossível amestrar sem se deixar ser um impostor. Esse impossível não é mais do que o de um ofício desmentido, incapaz de dar cabo de um alvo, como se pode perceber no ato de educar e de governar. Enumero as causas que motivaram minha investigação:

1. De início, constato a impostura atribuída à ordem da Vatersehnsucht (nostalgia do pai), empunhada por Freud (1913/1980a). O sucessor pode chamar a si o preenchimento do vácuo deixado pelo Urvater (pai primeiro) e, com isso, tentar eliminar todo e qualquer tipo de nostalgia. No entanto, esse é o menor de seus problemas. Garantir-se nesse lugar torna-se seu martírio. O drama do sucessor não é propriamente matar o pai, mas certamente reinventá-lo. Esse pai primevo, esse “ao menos um”, não é mais do que um cálculo de contagem impossível. Ele é o número zero (0), que entra na cadeia dos números absolutos, mas que não se conta, mantendose como enigma ou exceção. Ele não se reduz efetivamente ao número três (3) do ternário edipiano racionalista. Não é um pai do corte, um pai que se iguala à lei. Antes, é um pai suplente, aquele que está lá como destacável, assim como o é a própria linguagem.

Eis o pai que embaraça Freud, dito que é enigma. O autor se depara com uma inversão lógica. Se haveríamos de dizer “o pai está morto, então tudo é permitido”, no revés, constatamos uma impossibilidade: “o pai está morto, então nada mais é permitido”. Percebemos que ao irmos ad patrem (à morada do pai), passamos a nos ver como finitos, mortais e contáveis um a um, para além do zero que nos excede. Desse modo, não nos é mais possível admitir inteiramente o pai como o representante simbólico da lei, à maneira de Freud, quando desenvolveu sua teorização sobre Moisés. Se assim fosse, não restaria outra coisa senão fazer confluir o pai e o mestre. Ao instituir esse pai como morto em nível real, Freud realmente tenta responder ao vácuo deixado pelo ato assassínio através, sobretudo, da ordem simbólica. Mas, assim procedendo, ele depara uma opacidade real não redutível a nenhum sentido. O “rochedo da castração”, a “pulsão de morte”, o “id” (isso) são alguns dos nomes dessa opacidade que reconhece, teoriza e, às vezes, deixa-se surpreender. O real não precisa necessariamente ser lido ou interpretado pelo simbólico, então é possível operar uma disjunção entre pai e mestre, de modo a reservar ao primeiro o lugar lógico, não-contável, de exceção. Ele está lá, porém fora da consistência histórica e também fora do sentido que o encapsule. Ele está lá, e só sabemos disso pelos seus efeitos.

O mestre, diferentemente, não se encontra lá, mas se apresenta. Ele reivindica para si alguma consistência ou alguma função de representação, que inevitavelmente sofre desmentido. Todo mestre é mais um que se conta. Ainda que ele se apresente como um genuíno substituto do pai primevo, e que suscite, graças a isso, confiança em sua palavra e em sua pessoa, além de adesão amorosa a um mito do qual ele é porta-voz, cedo ou tarde ele será escarnado. Ele pode ser o melhor condutor de homens e mulheres, o mais seguro representante da lei, o mais democrático legislador ou o mais abnegado educador. Mesmo assim, a interrogação não lhe tarda e o eclipse será seu destino. Não há nenhuma posição de magister que o chancele a emparelhar-se ao pai. O mestre pode querer dar-lhe um invólucro corporal, mas não se livra, nem a ele, nem às suas leis circunstanciais, do envelhecimento e do desaparecimento contínuo. A história é testemunha.

2. A tomada do falo imaginário como um emblema de si pode ser considerada outro nome da impostura do mestre. O falo não se reduz ao pênis, mas à sua ausência. Como debati longamente no terceiro capítulo, a noção de falo é crucial para Freud, que o trata como “primazia”, e recebe de Lacan uma verticalidade e um desdobramento necessariamente fundamentais. O falo alberga em si um caráter simbólico, como significante; um caráter real, como “peça destacada”; e um caráter imaginário, como emblema de poder. Evoco esse último caráter para mostrar seu efeito de desmentido. O falo como figuração de poder e suas correlações, como o saber, a virilidade, a masculinidade, a superioridade, entre outras, encontra considerável expressividade e consistência junto a várias formas de relações sociais, inclusive as concernentes à relação pedagógica e à de governo.

Um mestre reclama para si uma inflação fálica, uma identificação imaginária com essa condição, e por causa disso não recua de seus expressivos emblemas de potência. É comum, no que concerne à empiricidade, o mestre querer abusar de seus recursos de domínio e de governo do outro, ao reclamar para si uma identificação dessa natureza. Se considerarmos a esfera pedagógica, os conhecimentos reproduzidos, as metodologias aplicadas, as sanções, as coerções, as checagens de aprendizagens, as avaliações não deixam de ser modos de como um mestre não cessa de lembrar aos discípulos o quanto uma tecnologia de si se presta à presunção fálica. Entretanto, a pouca serenidade desse exercício mostra o quanto a ameaça de esvaziamento e declínio de sua pretensão imagética lhe é muito iminente.

Alem do mais, como é bastante difícil reconhecer nesse falicismo algum caráter especificamente lógico, destacável, de exceção, o mestre vê-se sempre suscetível de “colar-se” numa imagem virilizada ante a freqüente ameaça de destituição. Ele passa, sim, a acreditar textualmente que o falo possui consistência ôntica, que seus emblemas têm valor de verdade e que aquilo que ele representa deve tudo submeter. Essa crença na materialidade fálica, em sua consistência explícita, é o seu ponto cego, que o deixa abraçado com a impostura. No entanto, não será a reversão dessa crença ou a tomada de uma posição lógica – que jamais se reduz a alguma metodologia ou a alguma obediência pedagógica – que levará o mestre a furtar-se profilaticamente a seu destino. Não existe profilaxia para isso, pois o juízo racional não alcança essa posição. Ademais, o mestre parece sempre gostar das imagens que forjam para ele, seja a de um tirano virulento, a de um condutor doce, a de um democrata flexível ou mesmo a de um laissez-faire. Ao governar o outro, ele tenderá a portar o emblema de um objeto que vagueia pela ordem humana sem que este jamais encarne em qualquer um que se apresente como seu portador.

3. Examinemos a impostura também de outro modo. Tratase da análise do vínculo social, especialmente aquele que se refere à entrada do homem e da mulher na modernidade, e a prevalência de seus ideais em nossos dias. A “igualdade”, entre os tantos valores republicanos e revolucionários, guarda um importante princípio que, em certa conta, contribui para uma desautorização política do mestre. O igualamento das diferenças tende a nivelar mestres e discípulos, de maneira tal que sobre os primeiros recai uma exigência de rebaixamento de autoridade necessário para que a “fraternidade” se consuma. Os mestres não compõem mais a sublime imagem e semelhança divina. Livraram-se disso. O preço dessa “liberdade” não é outro senão o de um aviltamento político de sua autoridade. Um emparelhamento dessa natureza somente pode efetivar- se às expensas desse rebaixamento.

O rebaixamento golpeia o mestre, sobretudo em seus valores mais tradicionais, ao mesmo tempo em que o lança de saída, sem mediações, ao domínio da inventividade. Se for verdade que o mestre parece situar-se hoje entre o apagamento da diferença e a necessidade de uma reparação, há de se considerar em seu exercício diário o objetivo de recuperar algo dessa autoridade política golpeada. Criam-se incessantemente diversos estratagemas para que se possa levar tal objetivo a cabo: formas de governo mais ágeis, novas linguagens tecnológicas e de exposição, pedagogias mais reflexivas sobre a experiência, bem como modos mais provisórios de manutenção de poder. É óbvio que muitos desses e outros estratagemas mostram-se inócuos e reclamam constantes revisões, dados seus efeitos movediços. Entretanto, pode-se considerar que essa invenção diária talvez espelhe uma grande intenção das próprias revoluções modernas, que se traduz como reparação da tradição. Em outras palavras, assim como tais revoluções acionam suas forças para restaurar alguma forma de autoridade política que nos funda desde os romanos, os estratagemas que os mestres efetivam em suas “revoluções diárias” podem bem representar essa mesma intenção, qual seja, a de restaurar para si alguma forma de autoridade perdida.

Se considerarmos especificamente a cena pedagógica, entenderemos o quanto o mestre moderno, reduzido à docência e aos gestores educacionais, tem não só sua autoridade interrogada, como também seu conhecimento e sua experiência. Creio que o discurso pedagógico e a própria “ciência” que leva esse nome contribuem desastrosamente para que sua impostura se faça ainda mais rápida. Forjar um domínio geral do ensino e da aprendizagem, subtrair ou exigir do mestre cada vez menos densidade de conhecimentos, de saberes e de experiências só o faz estar um passo adiante de quem comanda. Somando-se ao fato de que mestres e discípulos são vistos cada vez mais como semelhantes, irmanados quase que na mesma condição, não há como negar que o apressamento de sua impostura não lhe tarda. A queixa de desvalorização, desmoralização, desrespeito demonstra ser tão-somente a superfície mais aparente que desemboca num saldo cínico e num aligeirado desmentido, reforçados pela ordem e pelas fundações pedagógicas.

4. O caráter institucional também merece algum juízo que atualize a idéia da impostura. Sabemos que a época moderna, pela própria ideologia liberal-republicana, “fabricou” e multiplicou as instituições de maneira que pudessem garantir a prevalência dos novos modos de sagrado, a saber, o Estado e a razão. O sagrado, que alberga em si o duplo sentido de inviolável e execrável, remonta também à noção de pai, de pátria, como fundamentalmente necessária para fazer-se prevalecente. Se o sagrado remonta ao pai e a instituição remonta ao sagrado, então deduzo que a instituição recupera para si a noção de pai, a fim de levar a termo o propósito de perpetuar o princípio liberal que a rege e, de mesmo golpe, perpetuar-se nele. Parece haver, então, um dispositivo ou uma tecnologia bastante sutil e igualmente eficaz, sobre a qual as instituições modernas não deixam de lançar mão. Eis o que denominei “linha de frente” ou “exército de defesa”. Para tal, vale recuperar, em parte, a noção de Vatersehnsucht freudiana.

As instituições, no interior de suas organizações, induzem personificações mestras e as legitimam como reais substitutos do pai primevo, para transferirem a elas, com efeito, o peso da sua destituição. Desse modo, protelam ao máximo um destino. É notável o quanto essas organizações sempre elegem este ou aquele indivíduo como mestre, como figura central, para quem o interesse da maioria de seus organizados se volta com mais freqüência. A individualização de condutas demonstra ser um preceito da instituição. Trata-se de uma tecnologia sofisticada, própria da aliança fraterna, segundo a qual sujeitos são transformados em mestres, eleitos de acordo com os seus dispositivos peculiares e individualizados como substitutos do Urvater.

Mestres, uma vez individualizados, passam a ser alvos de um desmentido. Ao mesmo tempo, a instituição solapa quase a olho nu sua função de autoridade política em favor dos ideais de igualdade e de fraternidade. Sua bancarrota é certa. No interior das organizações, os mestres passam da condição de objeto à condição de dejeto, pois, como tais, expiam uma outra impostura, além das suas próprias. A instituição e as organizações que forja são igualmente impostoras, posto que clamam a si o lugar sagrado à altura do pai morto. Mas elas precisam de tempo para que os ideais modernos se perpetuem. Não podem se dar tão rapidamente à impostura. Para isso, elas precisam de uma “linha de frente”. Quem, senão os pequenos “deuses de prótese”, os narcisistas das pequenas diferenças, enfim, quem, senão os mestres, poderiam alinhar- se em sua defesa!

Eis uma obra da cultura. Os mestres pagam por sua impostura e pagam igualmente pela impostura da instituição, já que nem ela, nem alguns deles, são as permutas de algo que não se conta, que não entra na cadeia de substituição. Os mestres talvez sejam esse “exército de defesa”, para que a instituição viva tempo suficiente de modo que a ordem fraterna seja assegurada e a sociedade não pereça na entropia. Enquanto a instituição forja seus mestres encarnados e esses são desmascarados antes dela, sua força permanece vigente e a civilização procrastina. As instituições, desse modo, prolongam a sua vida, revigoram- se intermitentemente, ao adiarem a sua impostura, repassando- a então aos seus eleitos.

5. Afastando-nos um pouco desse debate sobre o vínculo social e institucional, poderíamos entender a impostura do mestre com base na idéia antropológica do inacabamento e incompletude humana. A natureza achou-se incapaz de nos munir de uma tecnologia física e genética suficientemente necessária para ultrapassar os próprios obstáculos que lhe estão na origem. Essa debilidade imputou-nos dependência. Somos, graças a isso, carentes de um outro que nos eduque, nos guie, nos ame e nos governe. Trata-se de uma exigência cultural que forja os “mestres de disciplina”, cujos atos de cuidado de um adulto em relação à criança não se reduzem àqueles que um mamífero qualquer empresta ao seu rebento. Nossos atos de cuidado requerem transmissão. São atos revestidos de palavras que nos inculcam um governo de si, uma apreensão significante do corpo ou uma apreensão “jubilatória” da existência. O mestre, muito mais do que um zeloso mamífero ou uma perspicaz e instintiva nutriz, torna- se aquele que permite transformar a necessidade do animal humano em demanda de sujeito.

Se for assim, o mestre precisa ser o garantidor da palavra, seu guardião, uma vez que a recebeu dos mestres que cuidaram de si, que igualmente receberam dos mestres que cuidaram de seus mestres, nessa infinita ancestralidade em que reside a alma e a odisséia humanas. Temos, portanto, uma dívida jamais saldada, por terse perdido na origem. Pode-se até elevar a palavra à categoria de lei a ser transmitida, mas, uma vez posta na cadeia significante, algo se perde no ato. A repetição nunca se dá a termo. Ela sempre está em estado de erosão, uma vez que a insurgência real e a singularidade do acontecimento não reconhecem palavra, nem lei, nem ancestralidade suficientes para recobri-la. A impostura do mestre talvez resulte dessa antinomia que se dá entre a lei ancestral que ele transmite – e à qual deve tudo submeter – e a impossibilidade de essa mesma lei acondicionar o real.

Inscrevemo-nos como sujeitos culturais ao libertamo-nos da natureza. Em função disso, pagamos um ônus referente a essa subtração de nosso estado natural. Porém temos aí uma dívida impossível de quitar, pois jamais se salda aquilo que a lei cultural nos subtrai. Para tal, forjamos o requinte da transmissão. Transmite- se uma dívida: a própria lei é a materialização dessa dívida. Logo, mais uma vez, o mestre é um impostor, na medida em que paga o ônus de uma dívida impossível de saldar com a palavra.

6. Uma outra maneira de teorizar sobre a impostura achou-se, por exemplo, na “produção dos quatro discursos”, estabelecida por Lacan (1992). Defendo que, ao pretender fixar-se no discurso que leva o seu nome, o mestre, à maneira perversa, tenta nivelar-se ao pai e a Deus. Passa a ser a todo custo o dono da lei, seu guardião e transmissor, demandando que o outro para quem exerce governo submeta-se a ela incondicionalmente. O destino de ambos é o gozo; o gozo que se traduz como objeto produzido fora da lei. O mestre será mesmo um impostor ao anunciar o impossível: tudo, inclusive o gozo, deve se regular por essa lei que representa.

Algo da mesma natureza parece ocorrer quando o mestre pretende fixar-se no “discurso da universidade” ou no “discurso da histérica”. Ambos, assim como o anterior, também o conduzem a um desmentido e, por isso mesmo, a uma impostura constitutiva. A pedagogização é intrínseca ao discurso universitário.

De modo paranóico, o mestre recorre às grandes obras e aos autores clássicos para apresentá-los àqueles que ele supõe nada saberem, aos não-mestres, aos que “não fazem nada que preste”. Mas o que produz é um sujeito, ali onde deveria ser apenas um objeto. É esse sujeito que o contesta, zomba dele, afronta-o e, enfim, desmente- o. Fixado por sua vez na posição histérica, o mestre passa a ser um queixoso, um lamuriento. Na realidade, trata-se de uma posição neurótica, cuja fantasia sempre incide em nunca achar-se suficiente para o outro e, igualmente, nunca achar o outro suficiente para dar-lhe aquilo de que tanto se queixa. A falta e a divisão são a rubrica de seu discurso, que jamais pode deixar que o outro governe, já que não tem o saber da verdade de sua forma de gozo. Repetese nesse jogo indefinidamente: em vez de operar, queixa-se – isso revela sua impostura. De modo anacrônico, temos o “discurso do analista”. É o discurso de passagem ou o próprio lugar da passagem, do provisório, do contingente. Ele não é o discurso final, tampouco o melhor entre eles e, também, não segue uma linha sucessória, nem progressiva. Ele surge no intervalo de um discurso a outro, uma vez que é impossível fixar-se longamente em cada um dos discursos, dado seu caráter de impostura. O que surge é a causa de desejo: um instante em que talvez o mestre possa fazer valer o seu nome. Através desse discurso, que não se reduz aos psicanalistas, o mestre pode nomear sem excesso de sentido, sem prevalência simbólica sobre o imaginário e o real. Isso tem o mesmo estatuto lógico do anúncio da sarça ardente a Moisés – “Eu sou o que sou” –, quando Deus se nomeia sob forma de recusa; ou do episódio da mulher adúltera – “Atire a primeira pedra” –, quando Cristo legisla sem julgar. É uma forma de tudo e nada saber ao mesmo tempo. É um lugar de passagem, ou seja, um lugar de impossível captura pelas metodologias pedagógicas e pelas ciências do ensino.

 

O mestre provisório

Nisso reside o coração mesmo deste trabalho – quem sabe, sua maior ousadia. Há um mestre que não se reduz a nenhum mestre xamã de nossas sociedades ancestrais; nem a nenhum mestre simbólico que restaure uma ordem e uma sociedade eminentemente paterna; tampouco a um mestre abnegado, como quer a desmedida moralidade pedagógica. Não há como requerer mais um mestre do excesso de sentido ou do abuso do código e das prescrições. O mestre que invento é um “mestre provisório”, cujo trato etimológico remonta ao termo provisu, no sentido em latim de uma provisão passageira, como creio ser o próprio efeito do ato de nominação.

O mestre comum apresenta-se visando repetir o que já foi nomeado por outros mestres que o antecederam. Mas são todos mestres terrenos, precários em sua condição humana, insuficientes ao serem nivelados à imagem do que é per si. A repetição que o mestre empreende é sempre mal feita, mal-acabada, tanto quanto o é a sua humanidade. Isso faz dele um impostor ao nunca conseguir elevar sua transmissão – a transmissão da palavra – à altura do que deva ser transmitido. Não há sequer alguma instituição que conceda plenamente tal investidura, nem alguma formação pedagógica ou política que fixe a transmissão como um ato preciso, sem arestas, sem resíduo. O mestre repete mal. Talvez seja isso que o salve, ou seja, que o faça vestir-se como um “deus de prótese”.

Se assentirmos que a expressão “Eu sou o que sou”, atribuída a Deus, funciona como um ato de nominação, à semelhança do “atire a primeira pedra”, dito por Cristo, ou à semelhança da invenção de Édipo, estabelecida por Freud, é possível concebermos que o mestre, qualquer que seja ele, pode igualmente fazer “furo”; furo real no nível do simbólico, tão ao sabor do que se acha nas últimas teorizações lacanianas sobre o Nome-do-Pai (Lacan, 1974-75, 2005). O tempo não pode lhe ser maior do que o de uma impostura. Seu ato não excede ao que é provisório, destacável ou suplente. Se for assim, o mestre não pode se apresentar como aquele que tudo sabe; nem o contrário, como aquele que nada sabe. Sua posição é a de passagem, de provisão passageira, movida por sua causa de desejo que o induz à mestria, sem necessariamente fixar-se nela. Dizer, por exemplo, “Eu sou o que sou” em absoluto é apresentar-se como todo-saber, tampouco é apresentar- se como o que nada sabe. Eis um lugar estranho, de anúncio e de recusa ao mesmo tempo, que contraria qualquer um que queira fazer seu lugar de mestria durar o tempo maior do que aquele que a própria mestria exige: o tempo do gozo do poder ou do mais-gozar que isso engendra.

O ato de nominação, que faz Lacan retornar ao pai freudiano e refundá- lo como nomeante, não se reduz estritamente ao ato de dar sentido às coisas. Não é por isso uma nomeação da monotonia do código, nem de um excesso de simbólico, como o conhecemos no apressamento psicologizante ou sociologizante de nossas condutas. O ato de nominação é o ato do redemoinho, que, através de seu “furo”, suga o nome do sentido e cospe um nome do real. Através desse redemoinho, os atos e as palavras dos mestres são tragados pelo furo, no que concerne ao turbilhão simbólico, e regurgitado de volta como um resto, um resíduo, um suplemento provisório. Só aí, repito, o mestre pode emparelhar-se ao pai da invenção freudiana; esse pai que fora subtraído de seu patronímico de sentido ao ser-lhe dada uma função de “ex-sistência”.

Freud forjou um mito, emprestou- lhe uma arquitetura antropológica, do mesmo modo que “comentou” Sófocles e desenvolveu um complexo justamente sobre o ponto opaco de sua teoria. Nela, a verdade é meio-dita, já que necessariamente não descreve nem explica algo racional e tecnicamente estabelecido. Antes, ela é potência de criação tanto quanto modificadora da realidade. Com Édipo, por exemplo, é provável que Freud inscreva e dê nome à sua própria neurose, ao mesmo tempo em que a remete à singularidade própria do sintoma ou do sinthome, como diria Lacan. Talvez o complexo edipiano, como também o mito do Urvater, sejam alguns dos nomes do pai. Eles funcionam justo no ponto em que falta à teoria um nome estável e genérico que explique o real, cabendo- lhe, então, um nome passageiro, inusitado, quando regurgitado do furo provocado pelo ato de nominação.

Se tomarmos o pai da horda, assim como o complexo de Édipo, somente no nível do significantemestre, com base no discurso que leva esse nome, não afastaremos a psicanálise de um sentido doutrinal, unívoco e religioso. Freud embaraçou- se nessa causa, pelejou para desenovelar- se dela, conseguiu magistralmente teorizar o real por meio da pulsão de morte, mas, ainda assim, foi obscura a disjunção que fez entre pai e Deus e entre pai e mestre. O pai está morto e, em vez de nos enlutarmos com sua morte, como a humanidade fraterna que o sucedeu, substituímo-nos a ele, perpetuando perante o outro sua vontade de castração. Para tal, damos-lhe a imagem do destino como Deus e, igualmente, a sublimação abnegada como mestre. É provável que assim possamos mascarar melhor nosso próprio e íntimo gozo maligno. O silêncio de um Deus-pai na origem ou de um homem-mestre sempre impossibilitado de exercer seu governo, endossa, de alguma maneira, a face letífera de cada um de nós. Que pai é esse que não comparece diante da morte do filho na cruz? Que não interdita Auschwitz? Que, no nosso caso, não paralisa os navios negreiros, nem as mortes nos morros e favelas? Que pai é esse que deixa o céu vazio diante dos inócuos projetos escolares e da ausência de políticas públicas que visem a eqüidade social?

Esse pessimismo sociológico pode ser encontrado em Moisés e o monoteísmo, de Freud (1939/1980c). Já sabemos. O livro ilustra bem seu embaraço quanto às vicissitudes do pai. Não há como negar que a força oracular do significante impôs ao autor, muitas vezes, uma mestria no seu sentido mais clássico. Poderíamos responder a esse silêncio do pai morto com um excesso de sentido. Mas talvez não seja mais preciso. Lacan dispôs de boas chaves para desatar esse nó. Ele convocou a estrutura no lugar do mito, indo além do complexo de Édipo, desmontando-o; subtraiu de ambos uma composição excessivamente simbólica, de igual apelo imaginário e mítico, para dar-lhes uma estruturação lógica. Isso provavelmente recupera e descortina uma noção posta na origem: a de “complexo-pai”, como bem quis a letra freudiana.

Tudo isso, na verdade, “cospe” o mestre que invento. Se for possível assentir a um mestre como um “deus de prótese”, que se demite do sucesso pedagógico e de toda política capaz de universalizar a sua função, logo ele não será outro senão um mestre provisório. Não falo aqui de algo deliberado, voluntário ou planejado, capaz de ser garantido nos cursos de formação e nas instâncias de exercício continuado. Trata-se muito mais de algo admitido como efeito que, por isso mesmo, não conhece nenhuma prescrição. O provisório não se encerra num plano, nem é um ato programável, passível de compor as agendas dos cursos de formação e os infindáveis seminários de aprimoramento e “reciclagem” metodológica – esse termo assombroso. É impossível poder capturar o que enuncio por meio de aulas para saber como ser provisório, nem é possível capturar esse caráter interino da mestria, dando- lhe a devida “vazão”, como é comumente dito no foro pedagógico. Dar vazão à contingência, ao avesso ou à sombra: soa patético!

O “princípio da razão desinteressada” pode ser aquele que conduz o mestre provisório. A expressão é de Rancière (2002, p. 121), mas evoco- a mais no sentido da consistência ética proposta por Badiou, segundo sua idéia que diz do “interesse desinteressado” (1995, p. 60). Evidentemente, o ato do mestre depende de um interesse, como também de uma razão para se efetivar. No entanto, é no sentido radical do desinteresse que se há de induzir uma verdade imanente como efeito. O mestre apresenta- se aos seus e à instituição que o acolhe como “inteiro”, num excesso de si sobre si mesmo. Mas igualmente ele se encontra lá, sempre um pouco suspenso, não muito vigilante de si, um tanto destituído e, quem sabe, por demais desinteressado. Nisso, a cultura de sua razão pode se opor à exatidão das analogias, das metáforas, das referências mestras, que a política de seu exercício exige como positividade. Não é “dizer do bem”, como requer o cientificismo da razão, mas “bem-dizer”, como talvez queira a sublimação de uma razão desinteressada.

Abrem-se, então, muitas outras perspectivas de análise endereçadas à causa do ato do mestre. Todas fustigam o cogito, mas nem por isso deixam de ser igualmente parciais. Mesmo aquelas que apelam às intenções poéticas não escapam de tal destino. Há, porém, uma vantagem em elevar essa razão, estranhamente desinteressada, não mais à condição do que se espera da grande e reta razão, mas do que se espera da licença artística. A arte parece estar intimamente ligada ao ato tal como ele se dá. Ela parece ser um lugar de passagem sobre o qual saberes – sempre provisórios – são sobrepostos ao inusitado daquele que a concebeu. Como diz René Char, evocado por Barbié (1998): “O poeta vivifica e depois desaparece no momento do desfecho...”.

Pouco sei se há um sentido artístico no ato do mestre. Quem sabe haja um sentido dessa natureza mais propriamente num foro específico e recortado como o pedagógico! Lá, o mestre encarcerado por esse discurso talvez possa fundar-se segundo uma epistemologia da prática ou das circunstâncias que clamam, ao induzir singularidades, por algum tino ou intuição poética. Lá, quem sabe, o mestre possa ser o poeta de si e das coisas, como quis Rancière.

Um poeta não se delonga no tempo. Sua obra, talvez. Isso parece ser o avesso da tirania, que busca reinar absoluta e dilatadamente, mesmo que a deposição lhe seja o fim. Se o mestre pode se apresentar no avesso da tirania ou se o mestre pode se apresentar no estado da arte que seu exercício invoca, talvez seja possível concebê-lo como realmente provisório. De mesma forma, deverá ser também o coletivo sobre o qual exerce domínio. Não creio que grandes organizações, grupos e movimentos mais complexos, de vida mais alongada, corroborem o mestre, no sentido de fazê-lo exercer sua arte menos tiranicamente e de modo mais provisório. É difícil imaginar o quanto a “causa de desejo” do mestre pode ser escrita quando o mais-gozar da vontade de poder sacia-se, sobejamente, através da democracia programada, da burocracia política, da verticalidade institucional ou das hierarquias pedagógicas.

Infiro que pequenas fundações, organizações mais artesanais e cooperativas, movimentos culturais, identitários e sociais, menos complexos e mais pontuais, com causa e conceito mais bem delimitados e divulgados no coletivo, talvez sejam mais favoráveis à face interina da mestria. Isso não extrai o caráter impostor do mestre, mas pode quiçá arrancá-lo do drama que tal impostura lhe imprime. O governo do outro, em tese, parece ser mais palatável quando exercido sobre um coletivo mais reduzido, estabelecido em organizações menores, nas quais os integrantes são suficientemente próximos e identificados por um projeto específico ou por categorias como as profissionais, raciais, sexuais, de gênero, de formação etc.

Torna-se pouco provável que um mestre desça de seu lugar, como igualmente torna-se improvável que ele deixe de apresentar-se como mais-gozar, estando sustentado por organismos burocráticos e verticais, forjados pela própria modernidade que o desmente. A distância de seus pares, de seus comandados e do chão da realidade presta-se muito mais à tirania do que ao declínio do drama de perceber- se finito e precário em seu domínio. Ao contrário disso, cada vez mais o vínculo social característico das sociedades ocidentais contemporâneas tem-se configurado como o que Rita Kehl chamou de “circulação horizontal” (2000, p. 44). Há de se notar a transmissão de saberes e de experiências, a criação de fatos sociais, a produção discursiva e as instâncias intermediárias de poder que se dão, sobretudo, no campo dos encontros e dos embates entre os iguais e próximos. A submissão voluntária aos discursos de autoridade, revela a autora, é relativizada pela própria multiplicidade de enunciados de saber.

Então, o vigor desses organismos dependeria de sua vida curta, de sua interinidade. Uma vez cumprido seu destino, tais organismos, fundações, movimentos coletivos, deveriam se prestar à dissolução espontânea ou, no mínimo, como diz a autora, ao seu “esgarçamento”. Os vínculos fraternos fazem-se e desfazemse ao longo de uma vida, proporcionando aos seus integrantes identidade, cumplicidade, proteção e campo de reflexão. A cristalização desses vínculos tende a transformar a experimentação em certeza, ao criar o circuito fechado do amparo imaginário, além de produzir, graças a isso, segregação, intolerância e endogamia.

O mesmo juízo podemos tecer acerca da mestria. Até que ponto necessitamos de mestres perpétuos, situados verticalmente no topo da hierarquia e senhores do tudo saber e da verdade? Até que ponto esses mesmos mestres terão de ser desautorizados política e radicalmente ao serem emparelhados ao nada saber?

A civilização tem produzido, cada vez mais, novos sintomas e novas angústias, espelhadas em sua devoção aos excessos. Há um transbordamento de gozo na ordem cínica do mercado; na obsessão pela eficácia técnica, contra o esvaziamento das relações; no fundamentalismo religioso; e no paradigma apolítico do individualismo. Trata-se de um transbordamento que não mascara a debilidade do saber, e resulta numa espécie de hibridismo da figura do mestre. O mestre não consegue mais, nem mesmo ao nível das ilusões, produzir um significante suficientemente consistente para objetar a essa debilidade. Pode-se recorrer ao esmero técnico, à pedagogização de seu exercício, à virtualidade de sua função, mas, nem assim, mostra-se diferente do lugar que seu saber débil assume. O mestre, esse fundado desde Moisés, não é o representante do “ao menos um”, muito menos uma continuação do pai da horda. Ele padece de um saber impossível: de como gozar de desejo e poder, que o iguale ao suposto saber do pai primeiro, perdido na origem.

O máximo que esse mestre forja para si é o lugar de paródia. Vemos, em nossos tempos, proliferar esse efeito parodista em relação à figuração dos mestres, sobretudo, aqueles que insistem no prolongamento injustificado de sua função. A multiplicação de saberes tornou-se um dos decalques de sua impostura e deu-lhe, por isso, a categoria de quixotesco. Mas o personagem de Cervantes guarda uma primazia acima dos mestres comuns. Ele peregrina. Ele não se fixa. Ele se sabe precário e interino na longa jornada que atravessa, sob o peso do nome dessa função.

Situar-se como provisório talvez seja assentir com um lugar intermediário de poder, de passagem, segundo o qual não se exige nem o não-saber, cúmplice de uma debilidade, nem o saber tudo, expressão de uma arrogância. Isso em nada se traduz como ponto de equilíbrio ou de harmonia, como se a mestria pudesse um dia chegar à condição paradisíaca e não-castrada de um céu idealizado. Apresentar-se como um “deus de prótese” é, quem sabe, presumir- se um tanto contingente, quixotesco e, no que concerne ao ato, fora da voluntariedade do código ou do amálgama do sentido. Isso não é outra coisa senão andar sobre a corda roída: espera-se tenso pelo seu rompimento, ao mesmo tempo em que se esmera em se manter de pé.

Mesmo assim, ainda que parodista, insistimos em manter nosso dedo indicador de mestre, e não abrimos mão de sua toga. Pagamos o preço dessa impostura. Não sabemos, porém, que não há necessidade de haver alguém ali, pois a ordem humana, sua odisséia, já tratou de estabelecer seu mandamento, seu imperativo categórico, de sempre continuar a saber. Um mestre nunca é o derradeiro, ele é apenas uma passagem, uma dobradiça, através da qual se abre a janela a incitar os tantos conduzidos à travessia.

Virão outros horríveis trabalhadores,

eles começarão onde o outro fraquejou.

Rimbaud

 

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Endereço para correspondência
e-mail:marcelorip@hotmail.com

Recebido em abril/2006
Aceito em outubro/2006

 

 

* Psicanalista; Doutor em Educação – USP; Professor Adjunto de Psicologia – FaE/UFMG; Integrante do LEPSI/USP.

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