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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.11 n.21 São Paulo dez. 2006

 

ARTIGO

 

As novas configurações da família e o estatuto simbólico das funções parentais

 

The new configurations of the family and the symbolic statute of the parental functions

 

Las nuevas configuraciones de la familia y lo estatuto simbólico de las funciones parentales

 

 

Michele Kamers*

Universidade Regional de Blumenau – FURB

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ao levar em conta as modificações históricas e sociais que incidiram sobre a família, este artigo visa a refletir sobre o estatuto simbólico das funções parentais na atualidade. Para tanto, discute as modificações discursivas produzidas sobre a família a partir da Modernidade, primordialmente no que se refere ao novo lugar assumido pela criança e à instauração de um novo imaginário relativo às funções parentais. Ao diferenciar modelo e estrutura, o artigo também busca subsídios para refletir acerca da função simbólica e estruturante da família, o que difere radicalmente de uma fenomenologia relativa a seus personagens.

Palavras-chave: Psicanálise, Modernidade, Família, Estatuto simbólico, Funções parentais.


ABSTRACT

When it takes into consideration the historical and social changes that relapses on the family, this article has the objective to reflect about the symbolic statute of the parents functions nowadays. Therefore it discusses the changes of the speech about the family starting from the modernity, mainly when it refers to a new place given to the child and the construction of a new imaginary related to the parents functions. To differentiate standard and structure, it searches for subsidies to reflect about the family symbolic and structurant functions which differs radically of a phenomenology relating to its personages.

Keywords: Psychoanalysis, Modernity, Family, Symbolic statute, Parents functions.


RESUMEN

Al llevar en cuenta las modificaciones históricas y sociales que incidieron sobre la familia, este artículo visa reflejar acerca del estatuto simbólico de las funciones parentales en la actualidad. Para tanto, discute las modificaciones discursivas producidas sobre la familia a partir de la Modernidad, primordialmente en lo que se refiere al nuevo lugar asumido por el niño y la instauración de un nuevo imaginario relativo a las funciones parentales. Al diferenciar modelo y estructura, busca subsidios para reflejar acerca de la función simbólica y estructural de la familia, lo que difiere radicalmente de una fenomenología relativa a sus personajes.

Palabras clave: Psicoanálisis, Modernidad, Familia, Estatuto simbólico, Funciones parentales.


 

 

 

A problemática relativa às transformações da família e o estatuto simbólico das funções parentais apresentaram-se a nós a partir do percurso realizado na pesquisa “Do universal da maternagem ao singular da função materna” (Kamers, 2005), em que investigamos, por meio da teoria lacaniana, as condições estruturais necessárias para a inscrição do outro como agente da função materna para a criança.

A partir da psicanálise, sabemos que a família é uma estrutura responsável pela transmissão e inserção do infans na cultura. Nesse sentido, cumpre a função fundamental de inscrição da criança no universo simbólico através das funções parentais. Entretanto, mesmo em se tratando de funções simbólicas, é curioso notar que há certa tendência em querer localizar na mãe biológica o agente da função materna, assim como no pai da realidade o agente da função paterna. De modo inverso, ainda é possível encontrar uma série de formulações que versam sobre as funções parentais que poderiam ser realizadas por “qualquer um”, desde que alguém compareça; o que nos parece um equívoco, já que, em se tratando de uma função parental, ela jamais pode ser “anônima”, visto que pressupõe uma função de “nomeação”.

Desde os clássicos estudos de Ariès (1981) e Postman (1999), sabemos que a Modernidade, ao instituir um novo lugar para a criança, inaugura, em relação à família, novos discursos em que as funções parentais adquirem novas exigências imaginárias. A partir da Filosofia das Luzes, o amor materno foi pensado como essencial para a organização da família, pois dele dependia o futuro da sociedade, até então insensível às particularidades da criança.

Nesse contexto, a Modernidade se define a partir de uma nova clivagem entre público e privado, em que o privado torna-se o lugar da conjugalidade, enquanto ao público está reservada a parentalidade. Assim, se “(...) o terreno privado era um refúgio contra os terrores da sociedade como um todo, um refúgio criado pela idealização da família, podia-se escapar da carga desse ideal por meio de um tipo especial de experiência: passava-se por entre estranhos, ou, o que é mais importante, por entre pessoas decididas a permanecerem estranhas umas às outras” (Sennett, 1988, p. 39, grifo nosso). Todavia, é justamente essa referência à intimidade como ideal de vida privada e familiar que constituiu as bases precursoras para a intervenção de um terceiro especializado, já que o “... o bem-estar familiar depende da maravilha deste ‘ninho’ que constituem o corpo e o coração da mãe: paraíso originário que se deve perder, por certo, mas cuja experiência inapagável dá ao adulto equilíbrio e estabilidade” (Julien, 2000, p. 15). E se a mãe é, como dizia Rousseau (1999), fonte de cuidados da qual depende toda a educação dos homens, é necessário que um terceiro social passe a intervir para o bem e o futuro da sociedade.

A parentalidade passa a depender desse terceiro social, representado pelos peritos chamados a intervir e dizer sobre como se deve “educar” uma criança. Então, quanto mais a conjugalidade é privada e íntima, mais a parentalidade se torna pública (Julien, 2000). Em outras palavras, se a conjugalidade pode ser exercida de qualquer forma, a parentalidade é um dever público, cabendo ao Estado oferecer o bem-estar, a segurança e a proteção da criança, “... fazendo ao mesmo tempo do filho um sujeito cuja educação sua nação é encarregada de assegurar. A atribuição da autoridade torna-se então motivo de uma divisão incessante entre o Estado e os pais, de um lado, e entre pais e mães, de outro” (Roudinesco, 2003, p. 19).

Nessa nova ordem, as mulheres passaram a ser consideradas guardiãs da moral e a influência materna passou a ser um recurso contra os problemas de ordem pública e privada. A crescente privatização do espaço público produziu um novo ideal doméstico, primeiramente utilizado pelas mulheres como uma tentativa de afirmação de sua própria autoridade através de sua influência materna. Elas passaram a ter como aliados os especialistas, principalmente os médicos – tributários de um “suposto” saber sobre a vida doméstica. Entretanto, foi justamente essa aliança que produziu uma desautorização da mulher e uma crescente dependência em relação aos médicos e terapeutas. “A tendência para a privatização da família foi acompanhada de uma invasão completa da mesma, permitindo o triunfo de um ethos terapêutico que funciona como um sustentáculo da nação-estado liberal” (Lasch, 1999, p. 21).

As modificações da sexualidade e do olhar dirigido à mulher e à criança precederam uma grande transformação das relações de aliança, em que a mulher, em vez de ser reduzida ao papel de esposa ou de mãe, foi se individualizando, na medida em que dissociava, a partir da contracepção, prazer e procriação.

Sobre o movimento feminista, Mannoni (1999) nos diz que seu grande êxito foi ter dessacralizado as mães, ampliando os horizontes da mulher para fora do lar. Entretanto, a autora adverte que a representação da mulher como ser fraco, maligno e associado à morte persiste nas crenças populares e mitos até os dias atuais, ressaltando, até mesmo, que coincide com certas teorizações psicanalíticas, quando Freud insiste no Penisneid das mulheres. Mannoni esclarece que os critérios adotados para a teorização sobre a sexualidade feminina encontram-se atados a critérios extremamente anatômicos e biologizantes. “Como sabemos, o ponto cego de Freud quanto à feminilidade teve como efeito nele a cristalização das suas defesas em relação à mulher. Defesas que se encontram no inconsciente do homem: por trás da mulher sedutora, está, para ele, a sombra da víbora perigosa” (Mannoni, 1999, p.105).

As transformações nos lugares do masculino e do feminino na família resultaram ainda na perpetuação de antigas fantasias acerca da diferença sexual; fantasias em que o “mimo” supostamente prolongaria a fusão da criança com a mãe, mantendo a crença de que o pai seria o único ser capaz de arrancar a criança dos excessos maternos.

Nesse contexto, foram necessárias as contribuições de autores como Winnicott para corrigir os excessos desse olhar maniqueísta e que resultava numa visão perversa e psicótica das relações de parentesco (Roudinesco, 2003). Trata-se de um excesso que implicou também e, de forma “reativa”, a obra de Jacques Lacan, numa tentativa de relativização dessa feminilização e maternalização crescente através da valorização do pai. E sobre isso, Mannoni (1999) acrescenta que “Não há como evitar: a mulher, como mãe, encontra-se na origem da ‘guerra dos sexos’ que ocorre no inconsciente dos homens. Em nome da ‘mãe excessivamente presente’ e do ‘pai ausente’, ela está também na origem da relação de amor-ódio que as mulheres têm entre si mesmas. Sua função de educadora é sempre marcada por ‘ter mãe demais ou de menos’.” (p.103). Foi justamente quando a suposta verdade da autoridade masculina passou a ser questionada, o que de fato produziu seus avessos, que assistimos a reações tão contestatórias1.

Segundo Roudinesco (2003), trata- se de representações que se inscrevem na obra freudiana como uma “hierarquia” de valores entre paternidade e maternidade, em que o pai dá seu nome ao filho que se torna seu herdeiro, cabendo à mãe a primazia da vida sensorial com a criança. Nesse contexto, o axioma do ideal patriarcal pode ser escrito da seguinte maneira: natureza - mulher - mãe. Dessa forma, na obra freudiana, a mulher está ligada ora à maternidade, ora à morte, já que ela seria a única que transmitiria ao filho a relação entre vida e morte. À vista disso, podemos afirmar que não foram somente as idéias iluministas que supuseram as mulheres como seres de natureza, mas o próprio Freud, que, permeado pelos ideais de seu tempo, associou feminilidade e maternidade.

Sobre esse aspecto, Kehl (1998) acrescenta que “... para o criador da psicanálise as mulheres permaneceram atadas a esse ‘estado de natureza’ pela força das representações das funções do corpo materno, enquanto, para os homens, a psicanálise oferece a esperança de que sejam promovidos ao estatuto de ‘seres de razão’ (no que o pensamento lacaniano não avança muito, ao supor uma falha no acesso das mulheres ao simbólico).” (p. 315). Conforme a autora, Freud não se deu conta da inexistência de outras possibilidades para a mulher no discurso de sua época, já que a única promessa de realização era a conjugalidade e a maternidade.

Segundo Knibiehler (2001), a palavra maternidade não existia nem em grego nem em latim. A aparição da palavra maternitas no século XII assinala o momento em que os clérigos inventaram uma palavra simétrica a paternitas para designar a função espiritual da maternidade sem depreciar a maternidade carnal dos filhos de Eva. Entretanto, foi no Iluminismo que se pretendeu construir um modelo terrestre para a boa mãe; todavia, ao continuar submetida ao pai, era valorizada apenas em função dos filhos.

“É em função das necessidades e dos valores dominantes de dada sociedade que se determinam os papéis respectivos do pai, da mãe e do filho. Quando o farol ideológico ilumina apenas o homem-pai e lhe dá todos os poderes, a mãe passa à sombra e sua condição se assemelha à da criança. Inversamente, quando a sociedade se interessa pela criança, por sua sobrevivência e educação, o foco é apontado para a mãe, que se torna a personagem essencial, em detrimento do pai. Em um ou outro caso, seu comportamento se modifica em relação ao filho e ao esposo. Segundo a sociedade valorize ou deprecie a maternidade, a mulher será, em maior ou menor medida, uma boa mãe”. (Badinter, 1985, p. 26)

Foi no século XVIII que a Filosofia das Luzes questionou todas as tradições e hierarquias. A mulher, que estava subordinada ao homem, passou a ser valorizada em função do filho a partir de um novo discurso relativo à maternidade. Através dos ideais de Rousseau, o amor materno se converteu tanto em ideal valorizado socialmente, quanto em código de boa conduta para a mulher: a boa mãe.

O amor materno passou a ser exaltado como um valor, ao mesmo tempo “natural” e social. Assim, deslocou-se o valor dado à autoridade paterna para o amor materno, entendido, a partir desse momento, como condição para a sobrevivência e a educação da criança. E muitas mulheres encontraram, desse modo, uma forma de reconhecimento de sua importância no discurso. A influência materna foi colocada como decisiva para a criança e valorizada mais ainda após a Revolução Francesa, que promulgou a limitação do poder paterno. Assim, “... a dedicação à prole, levada ao extremo da renúncia a qualquer interesse por seu próprio destino de mulher, a consagração de todas as energias à preservação, sobrevivência e proteção dos filhos ante os perigos com que os ameaçam o destino, o acidente ou a malevolência, tais são, nas histórias e nos contos, as qualidades da ‘boa mãe’ ideal”. (Dolto, 1996, p. 213)

A Filosofia das Luzes valorizou a mulher como mãe e, nesse contexto, Rousseau insistiu na preponderância do papel natural da mãe na educação dos filhos.

“Desde que as mães, desprezando seu primeiro dever, não mais quiseram alimentar seus filhos, foi preciso confiá-las a mulheres mercenárias que, vendo-se assim mães de filhos alheios, por quem a natureza nada lhes dizia, só procuraram furtar-se ao incômodo. (...) mas, quando ela está bem amarrada, jogam-na a um canto sem se preocuparem com seus gritos. Contanto que não haja provas sobre a negligência da ama-de-leite, contanto que o bebê não quebre nem o braço, nem a perna, que importa que ele morra ou permaneça doente o resto da vida?” (Rousseau, 1999, p. 17, grifo nosso).

Então, se por um lado Rousseau advertia sobre os maus-tratos sofridos pelas crianças nas casas das amas, é interessante notar que ele não atribuía o descaso à quantidade, nem às condições sociais em que essas amas viviam, mas, ao simples fato de elas não terem um laço natural com essas crianças. Ou seja, o que literalmente Rousseau sustentava era que a condição para a função materna consistia nos laços naturais produzidos pela maternidade!

A partir de Rousseau, a maternidade no século XIX, passou a ser entendida como uma experiência “feliz” e que implicaria, necessariamente, um sacrifício feminino, na medida em que comportaria dores e sofrimentos. “Se tanto se insiste nesse aspecto da maternidade, com uma certa benevolência, é sempre para mostrar a adequação perfeita entre a natureza da mulher e a função de mãe” (Badinter, 1985, p.249).

Para Rousseau, a mãe que não cumprisse sua árdua tarefa, afastarse- ia de sua natureza, apontando para a idéia de um masoquismo feminino, de um sacrifício materno como algo inerente à natureza da mulher. “Mas como poderá uma mulher saber que expiou suficientemente e que se sacrificou o necessário para cumprir seus deveres maternos? A resposta lhe é dada pelo filho. Como o destino físico e moral depende totalmente dela, o filho será o sinal e o critério da sua virtude ou de seu vício, de sua vitória ou de seu fracasso” (1985, p. 272).

Para a mãe, a condição de responsável a culpada era apenas um passo. Os erros do filho passam a ser explicados como fracassos dela, seja pelo egoísmo, maldade ou vaidade. E para combater esses vícios femininos, era necessário que toda menina, desde cedo, fosse educada para ser esposa e mãe. Aquelas que escapavam ao seu destino natural eram condenadas, principalmente, as trabalhadoras e as intelectuais.

“As intelectuais são mais culpadas do que as operárias: não só não têm justificativa econômica, como, sobretudo, recusam-se voluntariamente a restringir seu universo aos limites do lar, e circunscrever sua vida à maternidade e a casa. Essa atitude monstruosa foi considerada a fonte e a razão de todos os flagelos sociais, pois se a mulher despreza suas funções naturais, disso só pode resultar a desordem para a sociedade” (Badinter, 1985, p. 281).

É indiscutível a influência do Iluminismo sobre a constituição de determinado discurso sobre o feminino e sobre a idealização da maternidade. Parece que uma espécie de essência e natureza feminina continua sendo defendida até os dias atuais. A maternidade aparece sacralizada não apenas pelo discurso, mas por todo um imaginário social que pressupõe a existência de uma vocação natural da mulher que lhe permitiria a condição de cuidar de seus filhos e de educá-los.

Para os defensores da norma da boa mãe, há uma natureza feminina, portanto, imutável e não submetida às transformações discursivas. “Aos seus olhos, a maternidade e o amor que a acompanha estariam inscritos desde toda a eternidade na natureza feminina. Desse ponto de vista, uma mulher é feita para ser mãe, e mais, uma boa mãe. Toda exceção à norma será necessariamente analisada em termos de exceções patológicas” (Badinter, 1985, p.15). Prova disso são as inúmeras possibilidades de diagnósticos sobre os “desvios” da maternidade apresentados nos manuais de desordens mentais, os conhecidos DSM, que classificam, tipificam e qualificam os desvios da norma da “boa mãe”. Do mesmo modo que não é raro encontrarmos embates judiciais em torno de “quem” e “quais” casais estariam aptos ou não para a adoção de uma criança. Parece que o critério que prevalece é sempre o dito “amor”!

Entretanto, como pensar as funções parentais hoje, quando as mulheres vão ao mercado de trabalho enquanto os homens ficam em casa cuidando dos filhos e realizando as tarefas domésticas? Do mesmo modo que atualmente mulheres e homens realizam tarefas sociais, outrora traduzidas rigidamente como pertencentes, impreterivelmente, ao domínio do masculino e do feminino.

À vista disso, se agora são os homens que assumem as funções sociais ditas femininas e vice-versa, o que diríamos das funções parentais no que tange à clivagem: função materna e paterna? Ou seja, que à função paterna caberia a palavra de lei e à função materna o amor e o gozo com a criança?

Investigar as novas configurações das funções parentais na atualidade não nos parece tarefa simples, mas muito complexa. Enquanto a dinâmica social nos permitia localizar a mãe como agente da função materna e o pai como agente da função paterna, tudo parecia caminhar muito bem. Entretanto, como pensar hoje, quando é o pai que fica mais tempo com a criança e a mãe quem dá as ordens e até mesmo a última palavra? E as novas formas de parentalidade? Como pensar as funções parentais num casal homossexual?

Pensar as funções parentais como pertencentes a um modelo de família com “papéis” estritamente delimitados não se sustenta mais, ou pelo menos não deveria. Falamos isso, pois, ao tentar encontrar na atual conjuntura familiar uma espécie de modelo, é inevitável que se caia numa normatização, numa conceitualização do que seriam as “ditas” famílias estruturadas e desestruturadas. A nosso ver, essa nostalgia é o fundamento de todos os “psicologismos” de plantão que visam justificar as atuais problemáticas da educação, familiar ou escolar, como relativas a uma suposta inadequação da família em relação às “necessidades” da criança. Portanto, não se trata de pensar uma função do adulto junto à criança – o que pressupõe que haveria uma “natureza” infantil que deveria ser posta em funcionamento –, mas de pensar as funções parentais como relativas à estrutura; portanto, uma função simbólica como dimensão estruturante. A questão consiste em saber quais as configurações que essas funções podem assumir na atualidade.

 

A Estrutura Familiar e a Contemporaneidade

No seu artigo “Os complexos familiares”, escrito em 1938 para a Encyclopédie française consagrada à vida mental, Lacan (1985) insiste na primazia das instâncias culturais em relação às naturais, sustentando a idéia de que a cultura introduz uma nova dimensão na realidade psíquica. Assim, designa a família como uma estrutura social privilegiada de coação do adulto sobre a criança, cuja organização consiste nos modos de transmissão da autoridade familiar a partir das leis da cultura. Nessa obra, Lacan relaciona o nascimento da psicanálise ao surgimento de uma crise psicológica resultante do declínio social da imago paterna. Esse texto indica a constituição, senão o fundamento da obra lacaniana, na qual podemos encontrar uma teoria da estruturação subjetiva que progride segundo os complexos familiares que funcionam como organizadores do psiquismo.

Lacan compreende a família como uma instituição social de estrutura complexa, que não pode ser reduzida nem a um fato biológico e nem a um elemento teórico da sociedade, mas uma instituição social privilegiada na transmissão da cultura. “Entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura. (...) Com isso, ela preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico” (1985, p. 13), esclarecendo que a família estabelece uma continuidade psíquica entre as gerações, a partir de uma hereditariedade psicológica e social.

A família, independente de sua configuração fenomenológica, mas como estrutura discursiva, é a matriz simbólica fundamental à constituição do sujeito, já que é a partir dela que serão transmitidos os interditos necessários à cultura. Assim, a família pode ser considerada uma instituição humana universal, na medida em que é sobre ela que repousam as bases da ordem social.

Foi a partir da leitura de As estruturas elementares do parentesco de Lévi- Strauss (1982) que Lacan, em meados de 1949, descobriu o instrumento teórico que lhe permitiu pensar o conceito de função de uma maneira estrutural. A virada conceitual produzida em 1953 a partir de seu encontro com o estruturalismo conduziu a inúmeras mudanças em sua leitura da obra freudiana. Essa virada conceitual permitiu a Lacan separar o poder social do pai de sua função ou eficácia simbólica, pondo em relevo a discordância estrutural entre o pai real e o pai simbólico. Distinção que culminou na diferença entre o pai real, o simbólico e o imaginário. Essa eficácia simbólica, Lacan medirá junto ao valor de sua posição no sistema de símbolos. O valor estrutural de sua função não será nem familiar nem social, mas seu valor no registro simbólico.

Nesse sentido, apesar das diversas transformações que sofreu, a família, como estrutura, é um fenômeno universal presente em todos os tipos de sociedade; é sobre ela que repousa a ordem social, na medida em que pressupõe um “não anonimato” na relação entre pais e filhos, na transmissão dos interditos necessários à cultura para que uma família não se encerre em si mesma.

A família é uma estrutura que se caracteriza como um sistema de parentesco que delimita lugares simbólicos e pressupõe um discurso que organiza esses lugares. Portanto, pressupõe lugares estruturalmente determinados, mas que necessitam de pessoas “concretas” para ocupá-los (Tanis, 2001). No entanto, parece-nos fundamental ressaltar que nem sempre essas pessoas coincidem com pai e mãe biológicos.

Segundo Lacan (1998), o homem fala porque o símbolo o fez homem. A realidade humana, diversa da natureza, é uma realidade simbólica. Se a sociedade tem por condição biológica a família, é para negá-la e perpetuar-se assim de geração em geração. É somente a partir da lei do interdito do incesto que uma sociedade pode se instituir, na medida em que designa aqueles com quem a aliança conjugal é possível ou não. Trata-se de uma interdição que ordena as relações sociais e de um sistema de parentesco que distribui os membros da estrutura familiar em diferentes categorias, de forma que a categoria dos pais defina direta ou indiretamente a categoria de filhos (Lévi-Strauss, 1980). Delimitações que se apresentam como condição para que esse filho possa romper com os vínculos familiares originários e fundar uma nova família. Logo, “... a conjugalidade, ao fundar a parentalidade, permite à geração seguinte abandonar pai e mãe e fundar publicamente uma nova família” (Julien, 2000, p. 57).

A estrutura familiar não pode ser confundida com o modelo da família conjugal e nuclear, já que esta é uma construção histórica e social. Sobre esse aspecto, constatamos que, se por um lado há um inflacionamento imaginário em torno do que seriam as “funções parentais”, por outro, pensamos que atualmente assistimos a uma espécie de relativização do lugar do outro tutelar junto à criança. Trata-se de uma relativização que, se de uma maneira “esvazia” o sentido imaginário contido no discurso sobre como deveriam ser os agentes que realizam as funções parentais; de outra, isenta-os completamente da implicação subjetiva frente ao infans. Sobre essa questão, cabe destacar que não são poucos os autores que, em vários trabalhos sobre as funções parentais, organizam suas idéias a ponto de afirmar que essas funções serão realizadas independente de quem encarne esse outro para a criança. O que produz uma total isenção da posição subjetiva desse outro na posição tutelar, assim como confirma a exclusão do sujeito de uma posição discursiva e, portanto, desejante.

Parece-nos que esses discursos insistem num mesmo ponto: manter a ilusão cientificista de controle e isenção da implicação do adulto frente à criança. Ilusão que denuncia a sobreposição de um saber técnico sobre uma narrativa singular (Lyotard, 2002). Tratase de uma ilusão que não deixa de produzir seus efeitos, já que uma criança não pode prescindir da relação com seres mais velhos e mais poderosos para se humanizar (Elias, 1994). Sobre essa questão, Arendt (2001) afirma que do ponto de vista dos mais novos, o que quer que o mundo adulto lhe proponha de novo, esse novo consiste necessariamente na introdução da criança num mundo velho, pois, “pertence à própria natureza da condição humana o fato de que cada geração se transforma em um mundo antigo, de tal modo que preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo” (p. 226).

Dessa forma, sem transmissão geracional não há transmissão da cultura. A transmissão implica um não-anonimato, na medida em que pressupõe uma nomeação que insere o sujeito numa filiação e assegura o seu lugar nesse mundo velho; por conseguinte, uma transmissão historiciza o sujeito.

É curioso notar que apesar de atualmente assistimos a um inflacionamento imaginário circunscrito ao que seriam as funções parentais, como freqüentemente podemos observar a partir da vasta literatura que circula socialmente – “Inteligência Emocional”, “Múltiplas Inteligências”, “Guia para pais” etc. –, cada vez mais vemos proliferar um exército de pais desesperados que não se autorizam junto a seus filhos. Diante de tantos saberes, os pais ou agentes tutelares só podem estar em falta: em nome da EDUCAÇÃO prometida por esses discursos, os pais não se arriscam a educar, na medida em que não se sentem no direito de vir a errar junto à criança. Essa situação implica, segundo Lajonquière (1999), uma demissão do ato educativo, uma renúncia da dimensão educativa em nome das ilusões (psico) pedagógicas: ilusões que sustentam a promessa de que haveria um modo adequado (diga-se natural!) de o adulto intervir junto à criança.

“Afinal os adultos também querem se recuperar narcisicamente à custa de seus filhos; na cultura do individualismo e do narcisismo, os filhos são nossa esperança de imortalidade e de perfeição. Ninguém quer errar, ninguém quer se arriscar; portanto, poucos pais sustentam o ato necessário para fazer de seu filho um ser de cultura, um sujeito barrado em seu gozo” (Kehl, 2001, p. 37).

Portanto, se narcisicamente ninguém está disposto a sustentar o ato necessário para fazer de seu filho um sujeito barrado em seu gozo, não há subjetivação que se faça possível.

As funções parentais, ao consistirem em funções simbólicas e inscritas na cultura, implicam necessariamente a presença de um outro de “carne e osso” que possa encarná-las; o que pressupõe uma transmissão da cultura e a introdução da criança na ordem societária, portanto, na introdução da criança no campo da palavra e da linguagem. Assim, se a transmissão implica uma ordenação simbólica que delimita lugares, de modo que a categoria dos pais defina diretamente a categoria de filho, parece que atualmente assistimos a um desvanecimento da diferença necessária a esse ordenamento. De fato, quando o adulto toma a criança como reverso especular de si mesmo fica impossibilitado de sustentar o ato necessário para introduzir o pequeno na ordem societária; em outras palavras, fica impossibilitado de sustentar os interditos necessários para fazer de seu filho um sujeito barrado em seu gozo. A nosso ver, esse fato está intimamente relacionado ao delírio moderno do sujeito sem origens, ou seja, com a ilusão de que seria possível ao sujeito inventar sua existência dissociada de uma filiação.

Sobre essa questão, Lajonquière (1999) afirma que a ilusão individual é inerente à modernidade, em que o narcisismo que passa a sustentar a relação dos adultos com as crianças é um efeito articulado a essa ilusão. Portanto, “o homem moderno pensa- se a si mesmo como um indivíduo a quem por direito nada pode faltar, uma vez que na sua origem está, precisamente, em causa a recusa de toda dívida para com uma tradição filiatória” (p. 192).

A recusa dessa dívida, a recusa da transmissão geracional, faz com que o adulto passe a sustentar sua existência individual na imagem ideal de uma criança, depositária da capacidade de encarnar o reverso especular do adulto: ser o adulto que eu não fui a quem de fato e de direito nada poderia faltar. Conforme Lajonquière, “a imagem ideal desse ao menos um adulto do futuro resulta ser o somatório das infinitas feridas narcísicas que todo homem moderno sofre em razão do semelhante não ser sua réplica” (1999, p. 192).

Diante da tentativa de equacionamento das faltas e feridas narcísicas próprias do homem moderno, este se endereça à criança na tentativa de equacionar o mal-estar próprio de sua condição humana: ter que renunciar ao seu gozo para viver em sociedade.

Ao esperar que a criança seja esse ao menos um não castrado, o adulto condena-se a renunciar ao ato necessário para a introdução do pequeno na ordem societária, já que pretende recuperar a satisfação narcísica perdida devido ao fato de não ser aquilo que os outros esperavam dele (Lajonquière, 1999); e recuperar um pouco do gozo perdido em não ser o falo para o Outro. Como assinalou Freud (1914/1996), “o amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela toda sua natureza” (p. 98).

Entretanto, os adultos que se encarregam de educar uma criança cumprem a responsabilidade de introduzi- la em um mundo e dele garantir a continuidade. Portanto, cumprem a responsabilidade de garantir a transmissão da Lei necessária à vida civilizada, necessária à manutenção da cultura. Enfim, uma transmissão que assume a forma de uma autoridade fundada na responsabilidade assumida por esse mundo (Arendt, 2001).

Todavia, ao esperar que a criança encarne de fato esse ao menos um adulto do futuro (Lajonquière,1999), o adulto acaba por recusar a sua responsabilidade diante deste mundo, negando à criança a possibilidade de ser introduzida nele. Conforme Arendt, “a autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças” (2001, p. 240).

A constituição subjetiva implica uma particularização do lugar do adulto junto à criança. Uma transmissão que ordena lugares, na medida em que consiste numa nomeação. Trata-se de uma implicação do adulto, de uma autoridade sustentada pela Lei simbólica como dimensão constituinte da cultura. Logo, uma implicação que se constitui a partir de uma dívida para com a cultura, para com a civilização.

No entanto, parece que atualmente assistimos a uma espécie de delírio de exclusão da sustentação simbólica necessária para a humanização da criança; delírio este fundado na ilusão de que o adulto poderia intervir de forma adequada, diga-se, asséptica junto à criança. É nisso que, a nosso ver, consiste a ilusão de que seria possível “poupá-la” dos interditos necessários à cultura, pois quando um adulto se endereça a uma criança como semelhante e lhe diz: “Eu não posso frustrar você, porque isso me frustra”, é como se esse adulto estivesse dizendo: “Eu recuso a diferença que há entre mim e você, portanto, não posso encarnar a função simbólica necessária para te introduzir na cultura”. Em outras palavras, “Eu me recuso a ocupar o lugar de seu pai ou de sua mãe na estrutura do parentesco”. Mas, o que os adultos esquecem aí é que essa negação implica para a criança a impossibilidade de ocupar na estrutura o lugar de filho!

É importante notar que se os pais, ou quem cumpra essa função, recusam-se ou não se autorizam a ocupar o lugar de representantes do simbólico para o pequeno, isso acontece graças à atual hegemonia discursiva que pressupõe que haveria um modo ideal de o adulto posicionarse e intervir junto à criança. Desse modo, trabalhar com a noção de função parental consiste em ressaltar a dimensão simbólica e estruturante dessa função. Ao ser lida a partir de um inflacionamento psicológico, portanto, imaginariamente, as funções parentais acabam sendo qualificadas como boas ou más, já que, segundo essa reflexão, seriam normatizadas a partir dos comportamentos dos pais em relação à criança. Portanto, o que é da ordem de uma função parental acaba se confundindo com a figura real dos pais.

 

O Estatuto Simbólico das Funções Parentais

Desde Lévi-Strauss (1980), sabemos que o estudo da família suscitou algumas das maiores polêmicas e controvérsias de toda a história do pensamento antropológico. Durante muito tempo tentou-se localizar nas culturas européias o ideal evolutivo da família dita estruturada, na medida em que qualquer diferença encontrada em relação a esse ideal era cuidadosamente relacionada a um vestígio de atraso cultural. Entretanto, nas palavras de Lévi-Strauss, “... depois de terem sustentado durante cinqüenta anos que a família, tal como a conhecemos nas sociedades modernas, era a conseqüência recente de uma evolução lenta e prolongada, os antropólogos atuais inclinam-se para a convicção contrária, isto é, para a idéia de que a família, constituída por uma união mais ou menos duradoura e socialmente aprovada de um homem, uma mulher e os filhos (as) de ambos, é um fenômeno universal que se encontra presente em todas e em cada um dos tipos de sociedade” (1980, p. 9).

O autor adverte-nos de que é possível conceber uma sociedade perfeitamente estável e ordenada sem a existência da família conjugal. Dito de outro modo, a família conjugal não é condição para a existência da sociedade. Contudo, uma família como grupo social deve necessariamente possuir pelo menos três características: 1) Ter sua origem no casamento. 2) Ser formada pelo marido, pela mulher e pelos filhos, biológicos ou não. 3) Apresentar laços legais, direitos e obrigações econômicas, assim como direitos e proibições sexuais.

A complexidade da questão reside no fato de que as condições acima descritas, sendo universais, ao mesmo tempo apresentam variantes em diferentes culturas. E aqui o recurso à noção de estrutura adquire toda a sua importância, na medida em que não se trata de localizar essas condições na realidade, já que elas só constituem condição para a existência da família quando tomadas como pertencentes ao domínio do simbólico. Trata-se de pensar a família como uma estrutura e, portanto, com leis universais que constituem uma sincronia, mas que possui variantes (diacronia) em diferentes culturas. Essa distinção é fundamental, já que implica não cair no engodo de encontrar essas condições na realidade, mas, no universo simbólico.

Um belo exemplo dessa universalidade da família e do modo como sua organização não pode ser localizada na realidade é dado por Lévi-Strauss (1980), quando descreve a organização do grupo Nayar, que vive na costa de Malabar, na Índia. Nesse grupo, o casamento era apenas uma cerimônia simbólica que não criava laços permanentes entre o homem e a mulher. O ato permitia que as mulheres casadas tivessem tantos amantes quantos quisessem e os filhos pertenciam exclusivamente à linha materna. O antropólogo esclarece que jamais podemos considerar as características desse grupo uma anomalia ou exceção, mas, o contrário, já que cumprem as condições estruturais e não fenomenológicas para a existência da estrutura familiar. “Na realidade, os exemplos que escolhemos respeitam, todavia, pelo menos até certo ponto, a dualidade de sexos que nos parece ser um dos requisitos para o casamento e para o estabelecimento de uma família” (1980, p. 27).

Entretanto, não podemos confundir essa dualidade de sexos na realidade, mas no simbólico, já que em algumas tribos é uma mulher que se converte em esposo e pai na família, utilizando-se de um varão apenas para a procriação. Como descreve Lévi-Strauss no seguinte exemplo: “Mas em alguns pontos da África certas mulheres de classe elevada estavam autorizadas a casarem-se com outras mulheres que, mediante o uso de amantes varões não reconhecidos, lhes dariam filhos (as) da sua ‘esposa’ e transmitiria a estes, de acordo com o direito paternal vigente, o seu próprio nome, o seu estatuto social e a sua riqueza” (1980, p. 27).

Os exemplos acima descritos ajudam-nos a problematizar a tão recorrente idéia de querer localizar na realidade as condições estruturais necessárias à existência da família. Portanto, a condição é a existência e a universalidade da regra, e não uma fenomenologia relativa aos personagens. Essa regra obriga uma família a não se encerrar sobre si mesma, já que a proibição do incesto afirma que as famílias (qualquer que seja a configuração) podem casar entre si, mas não dentro de si mesmas (Lévi-Strauss, 1982).

Desse modo, conceitualizar a família como uma estrutura simbólica e, portanto, constituída por uma realidade discursiva, implica problematizar definições que nos parecem tão universais e naturalizadas. Por isso, a importância de a psicanálise dialogar com a antropologia, com a sociologia, com a história, etc., disciplinas que nos ajudam a tencionar e a contextualizar conceitos que nos parecem tão universais e a-históricos.

À vista disso, se não investigarmos e levarmos em conta as transformações históricas e sociais que incidiram sobre a família, só nos resta a saudade e a nostalgia de uma família que um dia supõe-se que tenha existido e que não existe mais; nostalgia própria do neurótico que pressupõe a existência do paraíso, mas que agora se perdeu! Uma família que era estruturada, e que agora estaria em desordem! Entretanto, “Se a língua está sujeita às modificações e evoluções impostas pelas práticas falantes, está aberta na teoria a possibilidade de uma dialética entre narrativa(s) e estrutura. Dito de outra forma: a inscrição dos sujeitos, homens ou mulheres, no discurso do Outro, não é rigidamente fixada. Ela passa por modificações ao longo da história que, se não alteram a estrutura da linguagem, alteram certamente o uso da língua e, com isso, os lugares que a cultura confere aos sujeitos” (Kehl, 1998, p. 29).

Desta forma, levar em conta a historicidade das formas subjetivas; em outras palavras, a historicidade do sujeito e sua relação com as transformações discursivas produzidas na atualidade e que são relativas aos modos de estruturação social e familiar, implica para a psicanálise tencionar suas formulações a partir do discurso dos sujeitos de sua época. Caso contrário, não se poderá fazer outra coisa senão proclamar o apocalypse now! Entretanto, um apocalipse só é possível na ordem do divino, já que, na ordem dos humanos, o que se produz é história!

 

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Endereço para correspondência
e-mail:michelekamers@yahoo.com.br

Recebido em abril/2006
Aceito em outubro/2006

 

 

NOTA

*Psicóloga, mestre em educação pela USP e professora do curso de Psicologia da Universidade Regional de Blumenau – FURB
1 Sobre essas reações contestatórias, sugerimos a leitura do capítulo 8 do livro A família em desordem de Elizabeth Roudinesco (2003), no qual a mesma descreve a reação de alguns psicanalistas, que ao defenderem uma família dita “normal”, se apresentaram como especialistas no assunto, assumindo posições radicais e moralistas frente à mesma. “Os cruzados eram portanto eles próprios psicanalistas, e era em nome de Freud e de sua doutrina que atribuíam aos homossexuais a intenção mortífera outrora atribuída às mulheres” (p. 193).

 

 

 

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