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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.11 n.21 São Paulo dez. 2006

 

ARTIGO

 

A "criança-problema" e o governo da família

 

The "problem-child" and the government of the family

 

El "niño-problema" y el gobierno de la familia

 

 

Ana Laura Godinho Lima*

Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste texto pretende-se discutir as seguintes questões: Como se chegou a denominar uma parte dos alunos das escolas primárias “criançasproblema ”? De que maneira uma série de pequenas dificuldades comuns na infância, tais como timidez, ciúme ou medo do escuro, tornaram-se problemas de comportamento a serem investigados e tratados pelos educadores? Quais os efeitos do emprego da expressão “criança-problema” nos discursos educacionais? O artigo baseia-se no exame de textos sobre educação e psicanálise escritos por Arthur Ramos e publicados na década de 1930. Para a análise, emprega-se o conceito de “governamentalidade”, tal como formulado por Michel Foucault.

Palavras-chave: Criança problema, Higiene mental, Governo da família, Psicanálise da criança, Arthur Ramos.


ABSTRACT

This paper seeks to discuss the following questions: How did we start to designate part of the pupils in the elementary schools as “problemchild ”? By which means a series of minor difficulties common in childhood, such as shyness, jealousy or fear of darkness became behavioral problems to be investigated and treated by educators? Which were the effects of the expression “problem-child” in the educational discourses? The article is based on the analysis of texts about education and psychoanalysis written by Arthur Ramos and published in the 1930 decade. The theoretical frame is based on the concept of “governmentality”, by Michel Foucault.

Keywords: “Problem-child”, Mental hygiene, Government of the family, Psychoanalysis of the child, Arthur Ramos.


RESUMEN

Este texto pretende discutir las siguientes cuestiones: Cómo se ha llegado a designar parte de los alumnos de las escuelas primarias como “niños problema”? De que manera un conjunto de pequeñas dificultades, comunes durante la niñez, como la timidez, los celos o el miedo a la oscuridad se convirtieron en problemas comportamentales a ser investigados y tratados por los educadores? Cuales fueron los efectos del empleo de la expresión “niño problema” en los discursos educacionales? El análisis está basado en el examen de textos sobre educación y psicoanálisis de Arthur Ramos, publicados en la década del 1930. El marco teórico está basado en el concepto de “gubernamentalidad”, formulado por Michel Foucault.

Palabras clave: Niño problema, Higiene mental, Gobierno de la familia, Psicoanálisis del niño, Arthur Ramos.


 

 

Introdução

Afirmar que se pretende estudar documentos relativos à “criança-problema” sob a perspectiva da governamentalidade significa dizer que se está considerando o governo como a “conduta da conduta” ou como “uma correta disposição das coisas de que se assume o encargo para conduzi-las a um fim conveniente”. (Guillaume de La Perrière, citado por Foucault, 1996, p. 282) O autor considera que a palavra “conduzir” possui um duplo significado. Conduzir tanto pode ser levar os outros a agir de determinada maneira, empregando-se para isso métodos mais ou menos coercitivos, como pode significar o controle das próprias atitudes num espaço de possibilidades relativamente abertas.

Para Foucault (1995, p. 244), “o exercício do poder consiste em ‘conduzir condutas’ e em ordenar a probabilidade. O poder, no fundo, é menos da ordem do afrontamento entre dois adversários ou do vínculo de um com relação ao outro, do que da ordem do ‘governo ’.” O autor atribui ao governo o significado mais amplo que possuía no século XVI, quando esse termo não se referia apenas ao Estado, mas a diversas formas de organizar a atuação de grupos variados: as crianças, as famílias, os doentes, as almas.

“Governar, neste sentido, é estruturar o eventual campo de ação dos outros. O modo de relação próprio ao poder não deveria, portanto, ser buscado do lado da violência e da luta, nem do contrato e da aliança voluntária (que não podem ser mais do que instrumentos); porém do lado deste modo de ação singular – nem guerreiro nem jurídico – que é o governo”. (Foucault, 1995, p. 244).

Essa maneira de entender o governo tem diversas implica- ções. Em primeiro lugar, significa destituir o Estado de um papel central no exercício do poder. Foucault fala em “relacionamentos de poder” para referir-se a todas as situações em que um indiví- duo, grupo ou instituição procura interferir na conduta de outro (1988, p. 11-2). Sendo assim, muitas pessoas podem governar, tendo em vista objetivos diversos: o pai governa a conduta da família, a professora a de seus alunos, o patrão governa seus empregados etc. “Existem portanto muitos governos, em relação aos quais o do príncipe governando seu Estado é apenas uma modalidade.” (Foucault, 1996, p. 280)

Neste artigo, procura-se examinar as condições que favoreceram o surgimento da expressão “criança-problema” nos discursos educacionais e discutir os efeitos de sua utilização nos textos especializados sobre os problemas de comportamento na infância. Dessa maneira, busca-se propiciar uma reflexão sobre um aspecto da educação escolar que, de tão freqüente, parece natural: a presença de um contingente de alunos problemáticos que enfrentam dificuldades de adaptação ao ambiente escolar. Às indagações recorrentes: “Como tratar as dificuldades das crianças-problema no processo de adaptação à escola?” ou mesmo “Como evitar que uma criança se torne um problema na escola?” pretende-se acrescentar outras, anteriores a essas: Como se chegou a delinear a categoria “criança-problema”? Que questões práticas e que teorias levaram ao seu aparecimento nos estudos sobre educação? Que mudanças o uso da expressão “criança-problema” provocou nos discursos educacionais? Trata-se, portanto, de verificar como, historicamente, a “criança-problema” foi produzida nos discursos especializados. Para isso, analisam-se textos de Arthur Ramos sobre educação e psicanálise, publicados na década de 1930, com base no conceito de “governamentalidade”, em Michel Foucault.

Embora tenham como princípio geral dirigir o comportamento de outros, os objetivos do governo não são sempre os mesmos. Assim como há múltiplos governos, há múltiplos objetivos. Basta retomar os exemplos do pai de família, da professora e do patrão para verificar que suas metas ao procurar intervir na conduta dos outros não são as mesmas. Além disso, se há finalidades específicas para dispor as coisas e as pessoas de maneira conveniente, é preciso adquirir conhecimentos sobre elas. O exercício do poder requer, portanto, formas de saber. Assim, conforme afirma Foucault, nos séculos XVI e XVII a arte de governo come- ça a estruturar-se em torno de uma “razão de estado”, que se fundamenta no conhecimento racional sobre o funcionamento do próprio estado e de seus componentes: “O Estado se governa segundo as regras racionais que lhe são próprias, que não se deduzem nem das leis naturais ou divinas, nem dos preceitos da sabedoria ou da prudência; o Estado, como a natureza, tem sua racionalidade própria, ainda que de outro tipo.” (Foucault, 1996, p. 286).

Pensar a educação da “criança-problema” como uma questão de governo apresenta-se, portanto, como uma perspectiva fértil, na medida em que permite compreender como foi possível associar os discursos sobre a importância do conhecimento das individualidades infantis e o respeito às tendências naturais do aluno ao controle cada vez mais sofisticado da conduta das crianças na escola. As múltiplas interferências formuladas pelos educadores a partir da década de 1930 com o objetivo de resolver os problemas de comportamento que as crianças apresentavam na escola não tiveram o sentido de cercear as liberdades. Ao contrário, foram propostas como formas de promover a individualidade e remover os entraves emocionais ou de outra natureza, que impediam a sua livre manifestação. A criança bem ajustada era aquela capaz de se conduzir com autonomia na escola, ou seja, aquela que sabia como agir num espaço de liberdade regulada. Simultaneamente, no âmbito da Escola Nova, a escola adequada era aquela na qual os alunos tinham a oportunidade de expressar a própria identidade, de descobrir e realizar o seu próprio potencial, aquela em que os professores estavam preparados e sentiam-se dispostos a atender às necessidades individuais dos alunos.

É preciso considerar, no entanto, que, como bem demonstrou Jorge Ramos do Ó em seu estudo sobre o ensino liceal portugu ês, a identidade do aluno não consiste em algo à parte, independente de sua inserção escolar, mas constitui o produto de uma elaboração que depende, entre outras coisas, das relações nas quais o indivíduo se vê implicado como estudante: “Estas práticas de identidade são, portanto, relacionais. O ser ou a alma só têm substância se entendidos como trabalho, como atividade. A grande interroga ção que o indivíduo livremente se obriga a fazer é esta: a partir de quel fondement trouverai-je mon identité? (1988b, p. 791). O conhecimento que um elemento pode ter e fazer de si passa pela comparação ou articula- ção com um outro semelhante. O cuidado de si organiza-se, invariavelmente, pela realidade do espelho. Sendo certo que tal prática não se esgota apenas nas crianças e nos jovens em processo de socialização – apresenta-se, ao contrário, antes como uma incumbência, um dever permanente de toda a vida – não é menos verdade que a relação a si próprio é especialmente treinada e reiterada pela relação pedagógica.” (Ó, 2003, p. 42, grifos do autor).

Sem dúvida, essa identidade constr ói-se também a partir da relação que o aluno estabelece com o espectro da irregularidade que o acompanha desde o início de sua jornada escolar. A relação com o outro se dá tanto com o professor e os colegas mais próximos quanto com a média estabelecida para a população na qual está inserido, uma vez que a nota de cada um nos exames fixa sua posição em rela- ção aos demais, estabelecendo sua condição de normal, subnormal ou supernormal. Assim, o conhecimento do indivíduo só é possível em rela- ção a padrões populacionais estabelecidos exteriormente. Isto é verdade tanto para a instituição quanto para o próprio aluno, encarregado de desvendar- se ao longo do seu processo de socialização escolar.

Escrito mais de vinte anos depois da aula de Foucault no Collège de France sobre a governamentalidade, o livro Governmentality: power and rule in modern society, de Mitchell Dean (1999), apresenta em sua introdução algumas considerações sobre o emprego desse conceito em diversos estudos produzidos principalmente a partir da década de 1990, enfatizando a multiplicidade desses investimentos. Afirma-se que a “governamentalidade ” caracteriza-se atualmente como um projeto coletivo, um campo de investigações heterogêneas, mas que possuem suficientes caracter ísticas em comum para que possam ser entendidas como pertencentes a uma espécie de subdisciplina na área das ciências humanas e sociais, cujo objeto é o “como” do governo; ou seja, procura responder a questões sobre como nós governamos e como somos governados. O autor registra duas características importantes comuns às pesquisas sobre a governamentalidade: a primeira é a presença de uma dimensão empírica e a segunda é a orientação para o tempo presente. A esse respeito, considera- se particularmente fértil a perspectiva defendida por Nikolas Rose (1999) sobre essas questões. Esse autor considera importante que o pensamento procure ser verificado no real, para que possa ser submetido ao juízo da crítica e a correções.

“Eu defendo que o trabalho hist órico é inventivo quando – talvez apenas quando – está ligado a algo parecido com o ethos experimental; quer dizer, quando a escrita da histó- ria é o momento de reflexão, de formaliza ção e abstração sobre uma prá- tica empírica, experimental, e quando essa prática é orientada por uma norma de verdade, atenta ao erro e, portanto, aberta à crítica e à correção. (Rose, 1999, p, 56, tradução nossa).

No entanto, isso não significa defender a existência de fatos a priori, independentes de uma teoria, mas entende-se a prática científica simultaneamente como representação e intervenção. Além disso, Rose estabelece uma distinção entre o tipo de análise empírica defendida por ele e a interpretação hermenêutica, que busca encontrar numa estratégia um interesse oculto, que precisa ser explicitado para que os objetivos reais de determinada prática possam ser conhecidos. O tipo de empirismo que o autor defende é um que procura entender as estratégias e argumentos em seus próprios termos, tendo em vista o que esses declaram como sendo suas identificações, as alianças que procuram estabelecer, os inimigos que identificam, a linguagem e as categorias que utilizam para descrever a si próprios, as formas de coletivização as divisões que operam. “Contra a interpretação, portanto, eu defendo a superficialidade, um empirismo de superfície, de identificação das diferen ças naquilo que é dito, como é dito, e o que permite que seja dito e que tenha eficácia” (Rose, 1999, p. 57, tradução nossa).

Analisar os discursos educacionais sobre a “criança-problema” a partir dessa perspectiva significa, portanto, procurar compreendê-los a partir de sua própria lógica, verificar como apresentam seus problemas, como tecem seus argumentos, a que tipos de saberes recorrem, quais os recursos teóricos, técnicos, institucionais e identitários de que dispõem para se pronunciarem dessa maneira. Em vez de tentar identificar o não dito ou procurar intenções não declaradas, sugere-se examinar as condições de possibilidade de construção desses discursos tal como são proferidos, bem como seus efeitos nas maneiras de pensar sobre as crianças e o que suas consideradas dificuldades de adapta ção à escola.

Quanto à orientação para o tempo presente, tanto quanto Foucault e Mitchell Dean, Rose entende a investigação histórica como um recurso que permite questionar aquilo que, em geral, tomamos como certo, natural, necessário. Assim, retomando as perguntas inicialmente propostas, pensar a respeito da “criança-problema” a partir da perspectiva da governamentalidade leva-nos a buscar compreender como se tornou natural, e até mesmo esperado, que uma parte das crianças que freqüentam as escolas apresente dificuldades; complicações que exigem determinadas providências quanto à pró- pria organização da escola, ao atendimento especializado à “crian- ça-problema”, e a intervenções na família. E, ainda, a compreender como se passou a considerar relevantes uma série de informa- ções sobre a criança, tais como a posição ocupada no interior da família, os hábitos de sono e de alimentação, os medos e angústias.

“Diagnosticar a historicidade das nossas maneiras contempor âneas de pensar e agir é torná-las contestáveis, é apontar a necessidade de outros experimentos de pensamentos que permitem pensar em outras formas de ser e agir. Houve e haverá ouras maneiras de falar a verdade sobre nós mesmos e agir em relação a nós mesmos e aos outros em nome daquela verdade.” (Rose, 1999, p. 59, tradução nossa).

O autor acredita que a revelação do caráter contingente dos conhecimentos disponíveis sobre nós mesmos e sobre nossas maneiras de ser pode ajudar-nos a questionar as reivindicações daqueles que nos governam em nome do nosso próprio bem; pode levar- nos a indagar, por exemplo, com que direito sabem tantas coisas a nosso respeito – até mesmo o que é melhor para nós. Simultaneamente, pode levar-nos a refletir sobre os saberes em que nos baseamos, o tipo de decisão que tomamos e as interferências que fazemos na escolaridade e no comportamento das crianças. Isso não significa defender o abandono das tentativas de conhecer a criança ou de procurar fazer o que é melhor para elas. Nem mesmo se trata da desistência de interferir no comportamento infantil – o que seria negar a própria possibilidade da educação –, mas de tomar consciência dos riscos e dos custos implicados em nossas operações de governo; operações que nos levam a avaliar as crian- ças segundo certos regimes de verdade e de acordo com critérios de normalidade de classificam, selecionam, incluem e excluem. Delineia-se, assim, uma proposta crítica orientada pela concepção de Foucault: “Uma crítica não é uma quest ão de dizer que as coisas não estão certas desta maneira. É uma questão de apontar em que tipos de concep- ções, que tipos de pensamentos familiares e não questionados as nossas práticas se baseiam.” (1988a, p. 154, tradução nossa).

Sendo assim, procura-se, no exame das fontes indicadas, pistas para compreender como se tornou tão natural que parte da população escolar seja constituída de alunos-problema e quais os efeitos do uso da categoria “criança-problema” dos discursos educacionais.

Uma série de textos publicados nas décadas de 1930 a 1960 sobre a indisciplina na escola indica que freq üentemente o mau comportamento era associado a um problema do aluno. Considerava-se a indisciplina uma anomalia, decorrência de um transtorno presente na criança. Como exemplos de títulos que indicam essa perspectiva, podem ser citados: “O ensino dos anormais” (Norberto de Souza Pinto em Revista de Educação, 1933); “A educação dos anormais e dos débeis mentais” (Norberto de Souza Pinto em Revista de Educação, 1935); “Problemas de adaptação social da criança” (Elise H. Martens em Revista de Educação, 1938); “Alguns Problemas de Perturbação do Caráter” (Ofélia Boisson Cardoso em Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), 1945); “Problemas de ajustamento à escola” (Elisa Dias Veloso em RBEP, 1958); “Causas dos desajustamentos infantis” (Túlio Expedito Liporoni em Revista do Professor, 1960). Havia basicamente dois conjuntos de causas às quais as dificuldades eram atribuídas: o primeiro continha os defeitos biológicos; o segundo, as inadequações do ambiente em que vivia a criança. Encontram-se descri- ções e classificações dos desvios de comportamento nas crianças, sempre de acordo com a divisão causa biol ógica / causa ambiental. Em um artigo publicado na Revista do Professor, em 1960, apresentam-se as seguintes categorias:

1. Normais – crianças física, moral e intelectualmente sadias, o que não constitui problema.

2. Anormais – (a) defeito físico, puramente externo, sem afetar a inteligência, mas podendo acarretar à criança complexos de inferioridade, dificultando o seu aprendizado e o seu comportamento; (b) aparentemente anormais, de constituição fraca, sistema nervoso deprimido ou exaltado, instável, emocional ou apática, crianças muitas vezes vítimas indefesas do ambiente familiar prec ário ou desajustado; (c) anormais: (1) físicos, como a cegueira e mudez; (2) mentais: taras, conseqüência hereditária de sifilíticos, alcoólatras, loucos e etc. (Castiglioni, 1960, p. 39).

Assim como na determinação das causas, a divisão biológico / ambiental também aparecia nas recomenda ções aos educadores sobre como enfrentar os problemas. Admitia- se freqüentemente que as crian- ças que apresentassem anomalias devidas a fatores internos não podiam ser educadas nas escolas comuns e deviam ser encaminhadas a institui- ções especializadas. Quanto àqueles alunos cujas deficiências eram consideradas produto de um ambiente inadequado, entendia-se que sua readapta ção era possível e poderia ser feita na escola regular. Mesmo assim, cumpria separá-los dos alunos normais, para que estes não fossem prejudicados. Sugeria-se que essas crian- ças fossem educadas em classes especiais, tão logo a percepção inicial do professor sobre as dificuldades do aluno fosse confirmada pelo diagn óstico especializado: “Identificado pelo professor em aula, o ‘aluno problema’ deverá ser encaminhado, sem alarde, para o médico, o psicologista escolar ou o orientador educacional, que pesquisarão o seu problema e traçarão o plano de recupera ção”. (Mattos, 1966, p. 413).

O aluno-problema aparecia nos discursos educacionais como um caso intermediário entre o aluno anormal e o aluno normal. Suas dificuldades na escola eram geralmente atribuídas à inadequação do ambiente doméstico e não a características mórbidas de origem biológica. Sendo assim, admitia- se que esse aluno poderia ser tratado e reajustado na própria escola, desde que houvesse uma intervenção especializada do médico ou psicólogo no sentido de corrigir a conduta dos pais e professores em relação à crian- ça. Por definição, portanto, a “crian- ça-problema” surge nos discursos pedagógicos como uma questão especificamente educacional. Trata-se da educação escolar da criança, da orienta ção educacional dos pais, do esclarecimento dos professores sobre a psicologia infantil.

Entre os textos educacionais dedicados ao estudo da “criança-problema ”, merecem consideração especial aqueles escritos na década de 1930 por Arthur Ramos, que procurou compreender os desajustamentos infantis à luz da psicanálise.

 

A criança-problema como produto da família desajustada

No ano de 1939 surgia A crian- ça problema: A higiene mental na escola primária, escrito pelo Dr. Arthur Ramos, médico formado pela Faculdade de Medicina da Bahia. Discí- pulo de Raimundo Nina Rodrigues, Ramos integrava uma geração de cientistas dedicados a buscar soluções médicas para os males da sociedade (Lopes, 2002). Assim como grande parte dos intelectuais brasileiros do final do século XIX e início do XX, empenhava-se em participar do movimento internacional e em contribuir para a incorporação no país do pensamento moderno divulgado nos países europeus e nos Estados Unidos. Arthur Ramos exerceu um papel importante na área da psicologia educacional no Brasil e no movimento de higiene mental infantil, tendo colaborado para divulgar, no campo educacional, as idéias da psican álise. O livro A criança problema foi escrito a partir da “experiência acumulada por Ramos e sua equipe no Serviço de Higiene Mental da Seção de Ortofrenia e Higiene Mental do Instituto de Pesquisas Educacionais, fundada quando da reforma do Ensino Municipal do Distrito Federal e instalada em 1934”. (Patto, 1990, p. 80)

Por algum tempo, tratou-se, de acordo com Dante Moreira Leite, do único livro disponível no país que apresentava um estudo empírico sobre os problemas de aprendizagem escolar (citado por Patto, 1990, p. 80). Conforme Arthur Ramos, a expressão que dá título ao livro havia sido criada justamente para nomear mais adequadamente as crianças que se tornavam desajustadas em função das condições precárias do ambiente em que viviam.

“Criou-se o conceito de “criança-problema” em substitui- ção ao termo pejorativo e estreito de “criança anormal”, para indicar todos os casos de desajustamento caracterológico e de conduta da criança ao seu lar, à escola e ao currículo escolar. Alguns autores tomam a expressão num sentido largo, englobando no conceito de “problema”, todas as dificuldades infantis – físicas, mentais e sociais. A expressão ficou, porém, para designar mais especialmente os casos de desajustamentos psico-sociais que não cheguem aos casos-limites do distúrbio mental constitucional ”. (Ramos, 1939, p. XXI).

Por um lado, a expressão “criança-problema” procurou tornar mais otimista a maneira de encarar o futuro de grande parte das crianças anteriormente consideradas anormais, já que os problemas de desajustamento, se não estavam inscritos no mapa biol ógico do indivíduo e deviam-se a causas ambientais, passavam a ser considerados curáveis. Por outro lado, na medida em que servia para designar crianças com todo tipo de “desajustamento caracterol ógico e de conduta da criança ao seu lar, à escola e ao currículo escolar”, a mesma expressão teve como efeito ampliar consideravelmente o alcance da “irregularidade”. Muitas crianças podiam apresentar “desajustamentos psico-sociais”. Se, virtualmente todas as crianças, em alguma etapa do seu desenvolvimento, estavam sujeitas a desajustamentos, e se grande parte desses distúrbios deviam-se a problemas na organização familiar, era legítimo intervir no ambiente doméstico preventivamente, para evitar crises previs íveis. O serviço de higiene mental dirigido por Ramos estava orientado prioritariamente para esse objetivo.

Arthur Ramos trouxe uma contribuição significativa para o campo educacional ao pôr em discussão a importância da hereditariedade na determinação dos problemas que as crianças apresentavam na escola. Assim como outros autores que escreveram na década de 1930, na percepção de Ramos, a ênfase que os compêndios científicos tradicionais costumavam dar à hereditariedade no desenvolvimento humano era exagerada. Entendia que era preciso levar em conta a ação do meio, em especial do ambiente familiar, sobre as características físicas e psicológicas herdadas. Na introdu- ção do livro A criança problema, Ramos explicava que, de acordo com as suas observações dos “escolares difíceis” nas escolas experimentais do Distrito Federal, na maior parte dos casos os desvios não poderiam ser apropriadamente designados como anomalias. Para o autor, “somente uma percentagem insignificante destas crianças mereceria, a rigor, a denominação de ‘anormais’, isto é, aqueles escolares que, em virtude de defeitos constitucionais heredit ários, ou de causas várias que lhes produzissem um desequilí- brio das funções neuropsíquicas, não poderiam ser educadas no ambiente da escola comum. A grande maioria, porém, podemos dizer os 90% das crianças tidas como ‘anormais’ verificamos na realidade serem crianças difíceis, ‘problemas’, vítimas de uma sé- rie de circunstâncias adversas, que analisaremos neste livro, e entre as quais avultam as condições de desajustamento dos ambientes social e familiar.” (Ramos, 1939, p. XI).

O autor defendia, assim, a substituição do conceito de criança anormal pelo de criança-problema e estabelecia uma relação direta entre esta e seus pais problemas. Ramos, assim como grande parte dos seus contemporâneos, afirmava que a “família é a unidade social fundamental” (1939, p.16), principal responsável pela forma ção da personalidade das crianças, e era a partir da orientação da família que se poderia corrigir ou, melhor ainda, prevenir o aparecimento dos problemas infantis. Apoiando-se nos autores norte-americanos Benson e Altender, autores da obra Mental Higiene in Teacher Institutions, in the United States: a survey (1931), afirmava que “A maior tarefa da higiene mental em educação é conservar normal a criança normal” privilegiando, assim, a função preventiva, em relação à corretiva (Ramos, 1939, p. XXII). Provavelmente a origem da expressão “criança-problema” está relacionada ao surgimento das clínicas de higiene mental infantil nos Estados Unidos, pois, em seu livro A criança problema, Ramos dá notícia da obra Problem child, de John Edward Bentley (Nova York, 1936), a qual descrevia o funcionamento dessas clínicas. A partir do momento em que assumiu a chefia do Serviço de Higiene Mental e Ortofrenia da Secretaria da Educação do Rio de Janeiro, em 1934, Arthur Ramos fundou diversas clínicas com o objetivo de avaliar as crianças nas escolas: clínicas de hábitos nos jardins de infância, com o objetivo de estudar as crianças normais, orientar as suas famílias e assim prevenir os desajustamentos; clínicas ortofrênicas, associadas às escolas primárias, destinadas à preven ção e à correção das perturbações mentais. Essas iniciativas integravam um movimento maior de ampliação das instituições, o qual, por sua vez, contribuiu para a expansão dos saberes sobre os desvios de personalidade. Não se tratava mais apenas de estudar as anomalias de conduta e elaborar recomendações higiênicas aos delinqüentes internados ou aos deficientes impedidos de freqüentar as escolas regulares, mas sim de orientar essas atividades em direção ao filho ou ao aluno comum; aquele que freqüentava a escola pública e eventualmente poderia apresentar algum tipo de “desajustamento” em rela- ção ao normal esperado. Tratava-se, sobretudo, de buscar prevenir esses desajustamentos mediante as interven ções dos especialistas junto às fam ílias das crianças.

Assim como seus contemporâ- neos, Arthur Ramos considerava que a educação escolar deveria atender às características individuais dos alunos. Por outro lado, e também de acordo com o pensamento que circulava na época, o autor frisava que o objetivo último desse investimento não era o indivíduo, mas a sociedade. Em seu livro Educação e Psicanálise (1934), declarava: “Dirigindo-se ao indivíduo, a educação visa, porém, a sociedade. E o seu esforço último estará em obter o máximo rendimento social” (Ramos, 1934, p. 14). A prevenção dos problemas das crianças era, portanto, não apenas uma providência que tinha em vista resolver as dificuldades do indivíduo, mas, simultaneamente, uma medida de governo tomada em defesa da sociedade.

Baseando-se em Adler, Ramos afirmava que a função da escola era corrigir nas crianças os excessos da “vontade de poder” e desenvolver no aluno o “sentimento de comunidade ”. As crianças com “inferioridade de órgãos”, as “mimadas” e as “odiadas” eram aquelas que representavam os maiores problemas nesse sentido, na medida em que não tinham esse “sentimento de comunidade” suficientemente desenvolvido. O autor entendia que, para intervir no estilo de vida, era preciso corrigir o “prop ósito” que a criança estabelecera para si ainda nos primeiros anos de vida. Para ele, a importância da psicologia individual para a pedagogia consistia em sua contribuição na tarefa de corrigir problemas familiares e escolares (1934, p. 54-56). Tratava-se, portanto, de mais um recurso teórico que permitiria ajustar as expectativas individuais às necessidades sociais.

No livro A criança problema, a parte dedicada às causas, que examinaremos a seguir, é composta de nove capítulos referentes aos temas: “A criança mimada”; “A criança escorra çada”; “As constelações familiares”; “O filho único” e “Avós e outros parentes”. Já na introdução da obra, Ramos atribuía os problemas infantis encontrados nas escolas às condi- ções adversas do meio em que vivia o aluno, as quais prejudicavam o seu desenvolvimento. Na parte do livro que explicita as causas dos desajustamentos, o autor procurava mostrar que as dificuldades eram originadas, sobretudo, pela dinâmica familiar em que estava inserida a “criança-problema ”. Recorrendo ao referencial teó- rico da psicanálise e à psicologia adleriana, e citando autores franceses, norte-americanos, alemães e outros, Arthur Ramos mostrava que os cuidados dispensados à criança em casa, sobretudo pela mãe, eram determinantes de sua adaptação à escola e ao meio social mais amplo. Em Educa ção e Psicanálise, afirmava que: “A mãe deve ser naturalmente a primeira educadora, com a colaboração do pai; ela deve colocar-se ante seu filho como o primeiro próximo, depois despertar o interesse da criança para os demais: pai, irmãos e pessoas da ambiência familiar, a princípio, e social, em seguida”. (Ramos, 1934, p. 58)

Se fosse atendida excessivamente em suas necessidades e desejos, a criança se tornaria mimada e sofreria de problemas de dependência exagerada da mãe, tornar-se-ia insegura ou, ao contrário, autoritária, e apresentaria atraso no crescimento normal, pois teria dificuldade em transitar da afetividade captativa (egoísta) à afetividade oblativa (altruísta). No universo das organizações familiares possíveis, havia aquelas que favoreciam a aparição da “criança mimada”: “Dentro das constelações familiares, são várias as categorias de crianças mimadas: o filho único, a que consagraremos um capítulo especial, o ca- çula, o primogênito, a criança com dotes físicos ou intelectuais, o irmão, em determinadas condições, o filho de viúva, o filho de pais abastados etc.” (Ramos, 1939, p. 29)

Acreditava-se que as atenções dispensadas às crianças pelos avós, madrinhas, tias solteironas e amas costumavam produzir crianças mimadas e constituíam motivo de preocupa ção para os higienistas, tanto que o autor dedicava um capítulo aos “avós e outros parentes”, como causas dos problemas infantis. Assim, evidenciava-se a preocupação do autor inclusive com as crianças muito bonitas, muito inteligentes, muito ricas ou muito amadas. Havia, portanto, uma justa medida das atenções, dos agrados e dos elogios, a qual deveria ser observada sob pena de se estragarem as novas gerações. No entanto, essa observação não deve obscurecer o fato de que a preocupa ção com esses excessos, embora fosse mencionada em diversas partes da obra, era menor do que aquela dirigida ao problema da carência, sofrido pelas “crianças escorraçadas”, às quais o autor dedicava quatro cap ítulos do livro.

Entre os fatores que contribuí- am para o surgimento desta categoria de crianças infelizes, estavam os castigos corporais sofridos pela crian- ça em casa, aplicados geralmente pelo pai ou, na escola, pelas professoras; a pobreza, a orfandade e o abandono. Rigorosamente contra os castigos corporais em casa e na escola, o autor afirmava, no entanto, que eram amplamente disseminados, especialmente nas escolas rurais. Dava diversos exemplos de punições sofridas pelas crianças e explicava que esses castigos tinham efeitos prejudiciais para o organismo e a formação moral da criança, de modo que as crianças que costumavam ser castigadas em casa apresentavam um comportamento desajustado na escola.

No segundo capítulo do livro dedicado à “criança escorraçada”, o autor examinava as condições físicas e morais desfavoráveis da vida na pobreza, que comprometiam a saú- de das crianças. Explicava que, na maior parte dos casos, os pequenos “escorraçados” eram pobres: “O pauperismo carrega em seu bojo múltiplas condições de desajustamento; a subalimentação, o alcoolismo, a doença, as reações anti-sociais … É por isso que os educadores e psicólogos assinalam tanta import ância ao estudo da criança vinda de meios pobres”. (Ramos, 1939, p. 71)

O trecho citado demonstra que, para Arthur Ramos, a pobreza era entendida como fator determinante de desajustamentos, ou seja, era de esperar que as crianças pobres apresentassem dificuldades, até mesmo porque a falta de recursos financeiros era invariavelmente associada a outras faltas nos discursos dos especialistas: falta de higiene, de saúde, de moralidade, de afetividade, de cuidados. Se a constatação da pobreza permitia prever o surgimento de problemas, acreditava-se que a higiene mental podia preveni-los, mediante a assistência e a orientação das famí- lias desfavorecidas.

Antes, porém, de passar ao exame das recomendações fornecidas por Ramos para a prevenção e a corre ção dos problemas, interessa verificar como se produziam os diagnósticos dos desajustamentos infantis em suas clínicas. Na introdução do livro que se está examinando, Ramos questionava a “extrema atividade ‘testologizante ’ que vinha atravancando a pedagogia da época” (A criança problema, p. XV). Entendia que os problemas infantis eram fenômenos complexos demais para poderem ser explicados por testes quantitativos e medidas estatísticas, daí a necessidade de recorrer à contribuição inestim ável da psicanálise.

Em Educação e Psicanálise, o autor expressava o seguinte ponto de vista: “Os pedagogos – e é a crítica de Jones em seu estudo sobre o inconsciente da criança – são levados geralmente a classificar os escolares em duas categorias: os que possuem aptidões intelectuais e os que não as possuem. Esquecem o dinamismo emocional subjacente. Esquecem o papel formidável do inconsciente, verdadeiramente o motor das ações humanas. As inibições intelectuais estão aí patentes, todos os dias, até na compreensão do mais simples silogismo quando há uma causa emocional atual ou remota. Todos os testes de inteligência fracassarão aqui redondamente. Nos casos pedagógicos mais complexos, nesta multidão de ‘difíceis’ escolares, e principalmente quando há defeitos mais graves de caráter, então a psicanálise, só ela, poderá resolver a situação, mostrando a decisiva influência que têm os acontecimentos da vida infantil, principalmente no domínio da sexualidade, em todos os atos da vida humana, na família, na escola e na sociedade”. (Ramos, 1934, p. 82-83)

Valorizavam-se, portanto, avaliações mais aprofundadas, que levassem em conta as condições físicas e emocionais do ambiente em que vivia a criança e outros exames complementares, médicoorg ânicos e neuropsicológicos, os quais pudessem fornecer maiores informações sobre as condições gerais de funcionamento do organismo do indivíduo. Assim, no Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental dirigido por Ramos, recorria-se a diversos métodos para a compreensão dos problemas que surgiam.

“Em nosso Serviço, não damos preferência exclusiva a qualquer método. Recorremos a métodos combinados, ou a métodos especiais, conforme o caso: observação incidental, fragmentos biográficos, observação sistemática, questionário, história de casos, testes e medidas, experimentação etc. É, porém, o método clínico, que reúne a maior soma de processos de investigação da personalidade, o mais comumente empregado por nós. Poderemos chamá-lo de método de observação ‘poligonal’, pois ele utiliza de todos os dados de observação da criança, fornecidos pelo professor de classe, pelos pais etc., tudo isso devidamente controlado pelo pessoal técnico do Serviço”. (Ramos, 1939, pp. 23-4)

Diversos tipos de saberes e procedimentos, bem como o cruzamento de informações obtidas de múltiplos informantes que viviam ao redor da criança integravam-se, portanto, na formula- ção dos estudos de caso; estudos que inscreviam e fixavam a histó- ria e as características das crianças, permitindo a realização do diagn óstico e as decisões sobre as terapias mais indicadas para resolver o problema. Nas diversas observações que ilustram as idéias do autor sobre os problemas infantis, os dados registrados sobre cada criança eram, geralmente, os seguintes: sexo, idade e cor da criança. Em seguida, nacionalidade, ocupação e características físicas e psicológicas dos pais; condições em que ocorreu a gestação da mãe; moléstias ou problemas relacionados ao crescimento, à fala, à marcha; número de irmãos, idade e sexo de cada um; tipo de habitação, se alugada ou própria, presença ou ausência de cômodo e leito para a criança; atividades da criança em casa (brincadeiras, tarefas, passeios, visitas); horário em que a criança se deita e se levanta, facilidade ou dificuldade em conciliar o sono, presença ou ausência de medo da escuridão ou do isolamento, presença de enurese noturna; presença de lues congênita; comportamento em casa e na escola: preferências, atitudes em relação aos pais, à professora, aos irmãos e aos colegas; memória, concentração e aprendizagem. Tais eram, portanto, as informações geralmente solicitadas às famílias e aos professores para a investigação das causas dos problemas das crianças, como se pode verificar a partir do exemplo a seguir:

« obs. 52 (Escola “Argentina”, ficha no. 151 do S.O.H.M.). B.V.F., menino de 12 anos, côr parda. O pai, brasileiro, faleceu há 5 anos. A mãe, brasileira, é dentista escolar. Um irmão de 9 anos, freqüenta esta escola, 5 irmãos falecidos. Uma prima, de 42 anos, mora em casa da criança, toma conta do menino, na ausência da mãe; fala em voz alta e de modo áspero. Moram em casa alugada, situada em “avenida”, sem acomodação para a criança. Recebem poucas visitas. O menino gosta muito de cinema, “fita de briga e de sôco.” Poucas informações sobre a história obstétrica materna e a história pregressa da criança. O menino dorme às 22 horas, levanta-se às 6 horas, dorme no mesmo quarto da mãe e do irmão. Brinca em casa e na escola; gosta de futebol e peteca; tendência a dominar os companheiros. É desobediente, atormenta os colegas, mente e tem o tique de piscar os olhos. É alegre, bulhento e agressivo. Funções psicológicas íntegras; aprendizagem boa. Tem 1m44 de altura e pesa 35 quilos e 800 gramas. Lues congênita; verminose, anemia secundária.» (Ramos, 1951, p. 128) Observa-se, portanto, que além das características biológicas e psicológicas da criança e de seus pais, estava presente o interesse pelas condições sociais e econômicas da moradia e pelos hábitos da criança na família. Ou seja, pelos fatores que determinam as condições de vida dos indivíduos, como parte de uma população.

A segunda parte da obra A criança problema é dedicada ao estudo dos problemas apresentados pelos alunos que, na década de 1930, freqüentavam as escolas públicas do Distrito Federal atendidas pelo Serviço dirigido por Arthur Ramos. “A criança turbulenta ”; “Tiques e ritmias”; “As fugas escolares”; “Os problemas sexuais”; “Medo e angústia”; “A pré-delinq üência infantil: a mentira”; “A pré- delinqüência infantil: o furto” são os títulos dos capítulos dessa parte do livro. Conforme já se mencionou, as causas dos distúrbios do comportamento costumavam ser atribuídas, em primeiro lugar, ao desajustamento do meio familiar em que vivia a criança. Em segundo lugar, e mais raramente, à inadequação do ambiente escolar e aos erros de conduta dos professores. É curioso observar que tanto a carência afetiva, na criança escorraçada, como o excesso de cuidados com as crianças mimadas eram apontados como causas possíveis para os mesmos problemas. Assim, as recomendações prescritas pelo autor referiam-se sempre à busca do equilíbrio entre o consentir e o reprimir. Para justificá-las, os argumentos eram encontrados na psicanálise: “Realmente, muitas conquistas da civiliza ção se fazem à força da repressão do instinto sexual. Os próprios psicanalistas não o ignoram. Freud costuma dizer que ‘a neurose é a flor da civilização’. Mas quanto mal-estar, quantas angústias não carrega em seu bojo essa atividade repressora! A pedagogia, porém, deve zelar, para que a fase da latência e da sexualidade não se hipertrofie em mecanismos perigosos para o equilíbrio da crian- ça. Nem consentir demasiado, nem reprimir demasiado.” (Ramos, 1939, p. 266)

Observa-se, no trecho citado, como a recomendação trivial de seguir o caminho do meio adquire status de conhecimento científico, proferida pelo especialista que invoca a autoridade de Freud. Resta apenas verificar em que consiste, segundo o higienista Arthur Ramos, esse meio termo desejável. Para evitar o surgimento dos problemas de ordem sexual, por exemplo, o autor apresentava uma lista de recomendações que diziam respeito à maneira adequada de organizar a intimidade familiar, em particular a relação entre a mãe e a criança: “Evitar mimos e afagos continuados, não amamentar a crian- ça além da época normal, evitar o uso de chupetas, separar o mais precocemente possível a criança do quarto dos pais, não consentir que durma no mesmo leito, evitar as intimidades conjugais em presença dos filhos, adotar uma atitude natural em face das manifestações de caráter sexual, apresentadas pela criança…” (Ramos, 1939, p. 315)

Para que pudesse, sem riscos ao desenvolvimento da criança, dispensar- lhe os cuidados cotidianos, a mãe deveria tornar-se uma “quase especialista ” em psicanálise infantil, recebendo esclarecimentos sobre s conseq üências danosas que cada simples atitude equivocada poderia provocar. Portanto, ao mesmo tempo em que se descrevia o vínculo mãe-filho como espontâneo e natural, procurava- se regular sua manifestação por meio dos saberes especializados, que expressavam o significado de cada gesto e indicavam a justa medida do afeto e dos cuidados. Para cada situação, os especialistas estavam preparados para oferecer as explicações e os parâmetros do que era considerado natural, ou seja, normal e desejável, bem como as recomendações sobre como corrigir eventuais desvios.

Conforme já se mencionou, havia comportamentos indesejáveis nas crianças que eram explicados tanto pelo excesso quanto pela falta. A turbul ência, por exemplo, tanto podia ser explicada pelo escorraçamento como pelo mimo excessivo. A crian- ça escorraçada, muito reprimida em casa e portadora de sentimento de inferioridade, ao encontrar maior liberdade na escola, acabaria expressando aí a sua revolta, reagindo contra a autoridade do adulto, tornando- se desobediente e indisciplinada para afirmar a sua personalidade. Por outro lado, era possível encontrar crianças mimadas que, acostumadas a serem atendidas em todas as suas vontades, reagiriam às primeiras restri ções impostas pela escola, tornando- se turbulentas. A correção do problema precisava ser feita, portanto, mediante a orientação dos adultos, que não deviam ser nem muito severos e nem excessivamente brandos na educação das crianças.

Ao professor cabia conseguir a transferência do afeto da criança, corrigir a imagem equivocada que ela trazia da autoridade e dos outros, e oferecer “tarefas pedagógicas” especiais, para aproveitar o “excedente de energia motora” do pequeno turbulento. O problema das “fugas escolares ” era, talvez, o único cujas causas o autor localizava primeiramente na escola, entendendo que a aus ência às aulas era uma maneira de a criança ou o adolescente manifestar o seu desgosto. Ramos afirmava que era a falta de carinho e de atenção na escola que levava os alunos a fugirem. Mesmo assim, entendia que, às vezes, as fugas eram motivadas por uma tentativa de afastamento, não da escola, mas dos pais. Esses eram os casos que exigiam maior atenção, pois podiam tornar-se graves, evoluindo para quadros de “vagabundagem ”, caracterizada como fuga permanente, como ruptura duradoura com a família e a ordem social mais ampla. Ao final do capí- tulo, Ramos explicava que a solução do problema estava simplesmente na criação – em casa e na escola – de ambientes acolhedores para as crian ças que, dessa maneira, não sentiriam o desejo de fugir.

Da mesma maneira, os problemas sexuais (onanismo, homossexualismo), o medo e a angústia, as mentiras e os furtos praticados pelas crianças, relacionavam-se quase sempre a problemas ambientais e apenas raramente a uma patologia do organismo. Por isso mesmo, a solução estava na correção do ambiente e não em intervenções diretas junto à criança, como se verifica na seguinte observação feita pelo autor a propósito das mentiras infantis: “A não ser nas categorias, raras, de mentiras patológicas, em que deve ser feito o tratamento individual da crian ça, a correção da reação mentirosa é mais do ambiente, dos adultos, do que da criança. E devemos evitar, mesmo, na grande maioria dos casos, intervir diretamente na criança. Porque cessadas as causas do desajustamento, cessarão os efeitos que desembocam na mentira.” (Ramos, 1939, p. 372)

Na conclusão do livro, Arthur Ramos defendia a idéia de que a “crian ça-problema”, cujas dificuldades derivavam, sobretudo, do meio familiar desajustado, deviam ser mantidas nas escolas regulares, onde poderiam ser assistidas e estudadas pelos higienistas e outros profissionais que pudessem auxiliar na sua recupera ção como médicos, psicólogos e assistentes sociais. O autor explicava que, no atendimento prestado pelas clínicas de Higiene Mental às crianças desajustadas, o primeiro conjunto de causas a serem identificadas e eliminadas era o daquelas determinadas por problemas “médico-orgânicos”, cuja resolução dependia do auxílio da escola e das organizações “peri-escolares ”, tais como os “pelotões de saú- de”; as “cooperativas e caixas escolares ”; as “merendas e sopas escolares ”; as “organizações várias de ‘amigos da escola’; ‘círculos de pais e professores ’ etc.” (Ramos, op. cit., p. 406).

Para Arthur Ramos, sem resolver esses problemas iniciais, a higiene mental pouco poderia ajudar, pois, no seu entender, “Não se pode ajustar psicologicamente uma crian- ça doente e desnutrida, fatigada e defeituosa, sem o trabalho prévio da correção das suas ‘inferioridades corpóreas’” (p. 406-407). Era preciso iniciar, portanto, pelos problemas mais aparentes, que se manifestavam no próprio corpo da criança, para depois atingir o plano mais sutil de sua emotividade e de sua alma. Em segundo lugar, cabia intervir na família e esclarecê-la quanto às causas dos problemas de seus filhos e quanto às medidas para a sua corre- ção. No entanto, para o autor, essa era uma tarefa extremamente difícil, uma vez que os pais custavam a admitir que eram os responsáveis pelas dificuldades enfrentadas pelos filhos na escola. Assim, era preciso agir devagar, com cuidado, e até disfarçadamente: “Quase sempre convidamos os pais a discutir questões de ordem puramente médico-orgânico dos filhos, e por aí, insensivelmente, eles recebem os influxos benéficos do Serviço. Os resultados têm sido excelentes. A visita social, em muitos casos, completa a obra.” (Ramos, 1939, p. 412)

Finalmente, restava intervir no ambiente escolar. No caso das crian- ças “escorraçadas”, por exemplo, afirmava- se que a escola e a professora tinham um papel vital no tratamento, cabendo-lhes a função de compreender a criança e de substituir o lar e a mãe desajustados. A função da professora era, ainda uma vez, a de exercer um poder de tipo “pastoral”, responsabilizando- se pela salvação da alma de cada um de seus alunos. E o fundamento para o exercício desse poder era dado pelo conhecimento especializado da psicanálise.

“A escola completará a obra, procurando compreender a criança, não como uma entidade isolada, portadora de ‘vícios hereditários’, de ‘constituições delinqüenciais’ e outras coisas cerebrinas, mas como um ser vacilante, afetivo, em formação, no meio de constelações afetivas dos adultos. O papel fundamental da professora, como temos de repetir tantas vezes neste trabalho, será o de se superpor aos pais sádicos, principalmente à mãe madrasta que não compreende os problemas do seu filho. A professora conseguirá da criança a ‘transferência afetiva’ e dará assim uma compensação a uma alma órfã de afeto. A compensação afetiva dos problemas da criança é o primeiro passo para a sua correção educativa”. (Ramos, 1939, p. 125)

A leitura de A criança problema permite identificar, portanto, transforma ções importantes na maneira de tratar os problemas infantis. Os problemas serão cada vez mais interpretados como pertencendo não ao plano hereditário ou biológico, mas ao domínio emocional e social, e o tratamento será pensado principalmente em termos de uma terapia para a família, em vez de correção da criança. Conforme já se mencionou, os higienistas defendiam a idéia de que a tarefa da higiene mental era conservar normal a criança normal, ou seja, preservar a criança biologicamente saudável, evitando o surgimento de vícios de conduta e favorecendo, dessa maneira, a sua adapta ção ao meio social, a começar pela escola. Nesse contexto, entendiam que grande parte dos desajustamentos mais corriqueiros devia-se à má forma ção do ambiente familiar e, assim, era este que cumpria curar, mediante a transformação dos hábitos familiares, em especial no que se referia às relações entre pais e os filhos. “Resolvidas as causas, cessam os efeitos”, era o que não se cansavam de dizer os educadores. Nesse empreendimento, todos os fatores que influenciavam as condições de vida da criança em sua família deveriam ser observados. O bem-estar da crian- ça, que incluía seu ajustamento emocional, estava conectado ao bom funcionamento da sociedade, de maneira que o que fosse proposto para ajudar a “criança-problema” deveria favorecer a organização social. A mesma idéia pode ser encontrada em Educa ção e Psicanálise.

Nesse livro, o tema da educação sexual merecia um tratamento mais detalhado. Recomendava-se que os pais tomassem para si a delicada tarefa de instruir os filhos a respeito de questões acerca do ato sexual e do nascimento. De outra forma, as crian ças acabariam sendo informadas da pior maneira possível, pelos criados ou por colegas da escola. Para Ramos, além disso, a repressão violenta da sexualidade infantil, em especial do onanismo, acarretava severo sentimento de culpa e era considerada a principal causa de diversos tipos de angústia, que se refletiam nas dificuldades escolares das crianças.

Com base nas indicações de Anna Freud e Mme. Bonaparte, o autor elaborava recomendações sobre como lidar com o onanismo infantil. Explicava que era preciso não proibir e não estimular, mas apenas observar. Mesmo nos casos anormais, que despertavam preocupação, a solução não estava em reprimir, mas em descobrir e resolver as causas profundas, por meio da psicanálise da criança e o esclarecimento ou mesmo a psicanálise dos próprios pais. Além disso, era preciso evitar estimular as zonas erógenas das crianças “especialmente nas fases oral e anal da libido”. Era preciso evitar tanto o excesso de rigor no recalcamento, como o mimo excessivo. Impunhase ainda o cuidado de privar a crian- ça de presenciar as manifestações da sexualidade entre os adultos. Finalmente, recomendava-se “derivar a energia libidinal para as atividades de jogo” por meio da sublimação (Ramos, 1934, p. 153).

Esse processo tornava possível canalizar os impulsos agressivos para atividades compat íveis com as exigências sociais, dentre as quais destacava-se o esporte. Era ainda por meio da sublima- ção que a tarefa educativa poderia ser completada, mediante a orientação do indivíduo para um ofício útil à coletividade: “Mas a sublimação mais perfeita deve ser para um trabalho de rendimento à comunidade. A tarefa do educador é de adivinhar logo cedo as sublimações para que tendem as forças instintivas de cada criança, qual será esse trabalho social, que deve ser escolhido não como uma tarefa pesada e desagradável, mas com alegria, com participação de toda a personalidade, pois que ele tem raízes instintivas, tendências elementares que se transformaram por via da sublima- ção. É todo um capítulo novo de orientação profissional.” (Ramos, 1934, p. 157) Verifica-se, portanto, o valor pedag ógico e social de que se revestia a psicanálise. Não se tratava apenas de uma nova maneira de compreender as dificuldades de desajustamento infantil, mas de toda uma reorientação da prática educativa, visando não apenas à correção, mas à prevenção dos desajustamentos. Segundo declaração de Ramos (1934, p. 152), a psicanálise “tem alcance profilático, evitando a neurose, e pedagógico, modelando um caráter normal. Em suma, a educa ção de base psicanalítica não só completa a análise, como deve precedê- la”. Dessa maneira, todas as crianças, e não apenas as desajustadas, deveriam ser submetidas a uma educação de base psicanalítica, para se tornarem indivíduos bem ajustados emocional e socialmente.

Finalmente, um outro aspecto importante a ser sublinhado na passagem anterior consiste na idéia de empregar os conceitos da psicanálise para promover a orientação profissional dos indivíduos. A psicologia experimental praticada na época tinha como uma das suas áreas de maior interesse a orientação profissional, empenhando-se na elaboração de testes que permitissem identificar as aptidões naturais dos indivíduos. Esses instrumentos serviriam ao governo na medida em que permitiriam pôr “o homem certo no lugar certo ”, como se gostava de repetir na época. Por esse processo de ajustamento ganhava o indivíduo, que trabalhava mais satisfeito, e ganhava o país, que recebia de cada cidadão os seus melhores préstimos. Alternativamente, Ramos propunha que, em vez do emprego de testes para verificar as aptidões naturais, os professores utilizassem os conhecimentos da psican álise para identificar as “forças instintivas” das crianças com o mesmo propósito, o de canalizar sua energia para fins produtivos pelo processo de sublimação e, assim, ajustar os desejos dos indivíduos aos interesses da Pátria.

 

Considerações finais

Neste artigo tratou-se de examinar as maneiras pelas quais os discursos divulgados entre os educadores a partir da década de trinta tornaram visíveis e governáveis as “criançasproblema ”. Verificou-se como a crian ça difícil de educar foi “mapeada”, mediante o recurso às observações de suas atitudes na escola, o emprego de testes psicológicos e a elabora- ção de estudos de caso que procuravam registrar as múltiplas determina ções dos desajustamentos escolares. Aspectos cada vez mais profundos e sutis da personalidade passaram a ser descritos em categorias que se tornavam progressivamente mais numerosas. As técnicas recomendadas para administrar as crianças irregulares incluíam a identificação das causas das dificuldades e a tentativa de solucioná-las, conforme a expectativa de que suprimidas as causas, acabavam os problemas. Para prevenir os desajustamentos, cabia intervir na família, cuja desorganização era entendida como uma das principais causas das dificuldades escolares.

Modificar a conduta da “crian- ça-problema” exigia, em primeiro lugar, transformar a conduta de sua mãe, dos seus familiares e de sua professora. A partir da psicanálise, as transformações necessárias incluíam mudanças não apenas na maneira como o adulto lidava com a crian- ça, mas também na forma como se relacionava consigo próprio, com a sua história de vida, com as lembran- ças que tinha de sua infância, de seus pais etc. Nesse sentido, o governo da “criança-problema” era insepar ável do governo das famílias e das professoras.

Eliane Lopes considera, com razão, que “A grande contribuição de Arthur Ramos inscrita na década de 30 foi ter voltado sua atenção para a criança dita anormal para tirá-la dessa situação. Não foi pouco. Podemos, hoje, até dizer que a criação do termo “criança-problema” não é bom, já que nomear é fazer existir. Mas a revisão de casos de crianças registradas nas escolas como anormais tirou 90% de crian ças dessa condição e sobretudo do tratamento a elas imposto. As crian- ças com desempenho escolar insatisfat ório, inquietas, mentirosas, seriam ‘crianças-problemas’ e a atenção que requeriam era outra muito diferente daquela que obtinham (ou não obtinham) quando portavam o título de anormais.” (Lopes, 2002, p. 334)

Sem discordar da autora, gostaria, porém, de chamar mais uma vez a atenção para outros efeitos do uso da expressão “criança-problema” nos discursos pedagógicos. Se, por um lado, parte das crianças anteriormente excluídas do sistema educacional por portarem o rótulo de anormais pôde ser preservada e, eventualmente, receber algum auxílio para superar uma dificuldade; por outro lado, um tipo de controle mais extenso e mais profundo passou a ser recomendado. Esse controle dirigia-se aos aspectos mais íntimos da subjetividade, procurando avaliar e regular inclusive as fantasias, os desejos e as motivações inconscientes da criança, dos seus pais e professores. Justificavam-se, em nome da prevenção, interferências de diversos tipos da organização da família, antes mesmo que qualquer dificuldade fosse percebida.

É verdade que as crianças pertencentes às camadas desfavorecidas da população continuaram sendo aquelas que se considerava necessá- rio vigiar mais de perto, pois as suas condições tornavam-nas especialmente predispostas aos desvios. Mesmo assim, o governo da “criançaproblema ” não teve em vista apenas uma parcela da população infantil, mas todos os indivíduos, na medida em que incluía a prevenção dos desajustamentos e, em princípio, nenhuma criança estava livre do risco de se tornar um “problema”. Mais do que isso, todas poderiam ser orientadas a um ajustamento não apenas normal, mas ótimo. Os conhecimentos e as recomendações sobre a criança-problema deveriam estender-se a todas as crianças com vistas a promover uma boa adaptação à escola e, como decorrência, o melhor ajustamento possível entre as inclinações do indiví- duo e os interesses da sociedade.

 

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Endereço para correspondência
e-mail: alglima@usp.br

Recebido em março/2006
Aceito em outubro/2006

 

 

* Professora na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.

 

 

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