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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.11 n.21 São Paulo dez. 2006

 

EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL

 

A psicanálise e o tratamento de crianças e adolescentes autistas e psicóticos em uma instituição de saúde mental1

 

Psychoanalysis and the treatment of autistic and psychotic children and adolescents in a mental health institution

 

Psicoanálisis y el tratamiento de niños y adolescentes autistas y psicóticos en una institución de salud mental

 

 

Jeanne Marie Costa Ribeiro*, I; Katia Álvares**, II; Angélica Bastos***, III

I Escola Brasileira de Psicanálise
II
Instituto Municipal Philippe Pinel
III
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta o trabalho realizado em uma instituição de saúde mental com crianças e adolescentes autistas e psicóticos. Aborda a questão do tratamento da psicose e da prática da psicanálise em instituição. A partir de fragmentos de casos clínicos, discute as coordenadas de um trabalho em equipe orientado pela “prática entre vários”.

Palavras-chave: Psicanálise, Instituição, Autismo, Psicose, “Prática entre vários”.


ABSTRACT

This paper presents the work carried out in a mental health institution with autistic and psychotic children and adolescents. It addresses the question of psychosis treatment and the practice of psychoanalysis in institution. Starting with fragments of clinical cases, it discusses the coordinates of a team work, guided by the “practice shared by many”.

Keywords: Psychoanalysis, Institution, Autism, Psychosis,“Practice shared by many”.


RESUMEN

El artículo presenta el trabajo realizado en una institución de salud mental con niños y adolescentes autistas y psicóticos. Trata de la cuestión del tratamiento de la psicosis y de la práctica del psicoanálisis en institución. A partir de fragmentos de casos clínicos, discute las coordenadas de un trabajo de equipo, orientado por la “práctica entre varios.”

Palabras clave: Psicoanálisis, Institución, Autismo, Psicosis,“Práctica entre varios”.


 

 

No final da década de 80 um grupo de profissionais assumiu a responsabilidade de elaborar um projeto de hospital-dia para o acolhimento de crianças e adolescentes com graves transtornos mentais. Surgido dentro do espírito da reforma psiquiátrica, o NAICAP – Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica, serviço do Instituto Philippe Pinel foi a primeira iniciativa do setor público para o atendimento dessas crianças. As psicoses na infância e o autismo colocaram impasses e indicaram, ao longo de vários anos, as metamorfoses por que passou o serviço até que se alcançasse a forma do dispositivo encontrado pelo NAICAP.

A Freud não escapou a questão do tratamento das psicoses e da prática da psicanálise em instituição. Em relação às dificuldades da transferência na psicose afirmou: “não considero de modo algum impossível que mediante modificações adequadas do método possamos ser bem sucedidos em superar essas contra-indicações – e assim podermos iniciar uma psicoterapia das psicoses” (Freud, 1905/1980a, p. 274).

Quanto à psicanálise em instituição, Freud traça as bases para o que viria a ser sua extensão além dos consultórios particulares. Os psicanalistas teriam que adaptar a técnica da psicanálise às novas condições, sendo necessário “fundir o ouro da psicanálise com o cobre da sugestão direta” (Freud, 1919/1980b, p. 211). Ele termina por nos advertir: “quaisquer que sejam as formas que essa psicoterapia para o povo possa assumir, os seus ingredientes mais efetivos e mais importantes continuarão a ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa” (p. 211).

Seguindo essas recomendações, balizamo-nos pelos três elementos destacados por Freud como princípios de uma prática analítica: a análise das resistências, a operação segundo a transferência e a análise dos sintomas em sua natureza de substituto da satisfação, entendida aqui como a relação entre as produções e manifestações que encontramos nas crianças e o gozo que veiculam, atestam e localizam.

Em um contexto institucional cujo movimento espontâneo seria o de responder a uma demanda social, médica ou parental, a ausência de demanda por parte do sujeito seria substituída pela demanda do corpo social. O projeto de criação do serviço entendia essa ausência como resistência do lado da equipe, confirmando a idéia de Lacan de que, além da inércia do gozo própria ao sujeito, há resistência do lado do analista.

Em relação à transferência, trata-se de pensar, no caso das crianças autistas, como produzi-la. Algumas não dirigem demanda ao outro e qualquer iniciativa deste pode ser vivida como intrusão. O saber do lado da equipe, além do mais, leva nessa clínica a um agravamento do quadro, pois consolida a posição da criança como objeto do saber e do gozo do Outro, situação a ser evitada se o tratamento assume uma direção analítica.

Daniel2, uma criança autista de oito anos, apresenta períodos de intensas crises, muitas vezes chegando ao NAICAP aos gritos. Ele se automutila, abrindo feridas em seu próprio corpo com o dedo ou utiliza a mão do outro para fazê-lo, numa tentativa de fazer furo. Em outros momentos, é capaz de apresentar-se como um menino “brincalhão” e “provocador”. Nos momentos mais difíceis seus gritos e suas automutilações provocam, tanto na equipe como em outras crianças, um grande desconforto.

Todos se apressam em retirar objetos que poderiam machucar Daniel ou os próprios adultos, numa atitude pretensamente protetora. Foi necessário um trabalho para barrar, esvaziar o Outro invasor que a própria equipe passou a presentificar. Da mesma forma, esse trabalho estendeu-se aos momentos em que Daniel se encontrava mais apaziguado e a equipe demandava demais dele, entendendo como um apelo o olhar que ele dirigia ao outro.

A gravidade do quadro de Daniel colocava a equipe em trabalho, mas esta desanimava com as sucessivas crises da criança, tomada por um excesso de gozo insuportável. Nas reuniões de equipe observou-se que as crises ocorriam em momentos de separação: férias, feriados prolongados ou quando sua mãe o deixava no NAICAP, saindo às pressas para o trabalho. Aí Daniel demonstrava que não queria permanecer no serviço, gritava, andava de um lado para o outro e se machucava muito.

Algumas estratégias foram utilizadas na direção desse caso. Primeiro, a mudança de seu horário no NAICAP permitiu a permanência de sua mãe na sala de espera, garantindo a Daniel a escolha de entrar ou sair. Segundo, a fim de barrar o horror e o fascínio da equipe, somente um técnico o receberia em sua chegada. Essas estratégias possibilitaram sua participação em algumas atividades e a solicitação aos adultos de um curativo com o esparadrapo utilizado por sua mãe para cobrir uma ferida aberta em seu pescoço. Esse esparadrapo, tomado por Daniel como um objeto que o apaziguava, mediou sua relação com o outro e permitiu sua permanência, à sua maneira, entre crianças e adultos, sem sentir-se tão invadido. Dirigiu, então, suas primeiras palavras ao outro, chamando “vem cá”.

No fragmento a seguir, veremos como a direção do trabalho na psicose caminha no sentido da construção de um sintoma, substituto do gozo invasivo, que passa a ser localizado em algum laço social.

Devido ao seu comportamento considerado anti-social, Pedro3 é encaminhado ao NAICAP aos nove anos, depois de uma longa peregrinação por instituições para deficientes mentais e escolas especializadas. É agitado, agressivo e fala bobagens, segundo o pai. Ambos são acolhidos na instituição por uma técnica de referência4 que irá por um longo período acompanhá-lo e escutar seu pai. Pedro constrói seu percurso na instituição por meio do trabalho individual com essa técnica e entre os “vários” do NAICAP. Descreve, para a técnica, o que lhe acontece nos momentos em que passa ao ato, ficando agressivo. São vozes que lhe falam injúrias: “mulherzinha”, “bichinha” ou “burro”. As alucinações e a transferência do tipo erotomaníaca com a técnica, fazem-nos pensar em um caso de paranóia.

Com as crianças e os demais adultos da equipe é sempre agressivo e tem muita dificuldade em se submeter às regras institucionais. A qualquer demanda do Outro sua interpretação é sempre a mesma: o Outro quer agarrá-lo, fazer dele mulherzinha ou persegui-lo. Na posição de objeto de um Outro caprichoso e sem lei, que goza dele, qualquer “não” é vivido como uma catástrofe. A equipe se vê às voltas com a dificuldade de lidar com o medo que ele provoca nas outras crianças, com suas falas repetitivas sobre temas sexuais e a intensa erotização nas relações com as pessoas.

No trabalho individual, a primeira questão foi o manejo da transferência erotomaníaca com a técnica de referência. A posteriori, foi possível localizar um momento de virada no trabalho com Pedro, a partir de uma intervenção. Diante das constantes demandas de Pedro para levar os brinquedos do NAICAP para casa, que resultavam em cenas de desespero incontornáveis, a técnica responde que ela também não pode leválos, já que há uma lei do hospital proibindo crianças ou adultos de levarem os brinquedos. Essa intervenção tem efeitos surpreendentes sobre esse sujeito. A técnica se apresenta aqui também submetida a uma lei além dela e de Pedro, escapando ao lugar do Outro que goza dele como objeto. Ele se mostra bastante apaziguado. Negociações e substituições são possíveis quando há demanda. Inventa brincadeiras, como a de que é um gerente de banco e diz à técnica que ela não tem salário para receber, desfalcando o Outro. Em uma dessas brincadeiras, constrói uma carteira de identidade na qual, a seu pedido, são colocados seus dados. Mas recusa-se a colocar seu sobrenome paterno. A recusa atesta o fato de que ele tem um nome, mas este é rejeitado, foracluído. Que direção de trabalho tomar para que Pedro construísse um ponto de ancoragem sem o pai?

Uma primeira elaboração da perda se faz quando a técnica não pode comparecer ao NAICAP. Ele lhe conta que pensou que ela havia morrido. Ao invés da certeza erotomaníaca, agora surgem perguntas: ela sentiu saudades dele? A transferência toma a via do amor, permitindo uma subtração de gozo.

Em um momento subseqüente, vem dizer à técnica, com enorme satisfação, que está virando mulher e que raspou os pêlos pubianos. Surge o empuxo à mulher como uma forma de apropriar-se do gozo do qual era objeto na injúria: “bichinha”. Posteriormente, diz estar se transformando em um cantor popular. Pedro, agora, nomeia-se Fabio Junior. Apaixona-se por uma estagiária e diz que quer namorá-la. Passa ao ato, tentando agarrá-la e beijá-la. A estagiária propõe-lhe, então, uma conversa dos dois com a técnica de referência. A técnica intervém: “para namorar é preciso que o homem e a mulher queiram. É preciso saber conquistar uma mulher...” Pedro inicia um novo tipo de relação com a estagiária, na qual ele a corteja com pequenos presentes, doces e flores. Ela consegue sustentar essa transferência amorosa, sem dizer-lhe “não”. Fica assim adiado, como um ideal a ser atingido, o dia em que iriam namorar.

Essa direção de trabalho, entre vários, permite que Pedro encontre uma maneira “singular” de regulação e localização do gozo, mesmo que não tenha acesso ao falo, por falta da metáfora paterna. A partir daí, apaziguou- se muito e conseguiu realizar um trabalho no espaço de duas oficinas, criadas a partir de interesses indicados por ele – a oficina de música e de fotografia – que lhe possibilitou a construção de um laço diferente com o Outro.

Na oficina de música criava raps, que relatavam acontecimentos da sua vida e do cotidiano institucional, endereçados a algum membro da equipe ou criança, podendo assim expressar seus temores ou enamoramentos, sem precisar passar ao ato. Esse lugar de “cantor de raps e funks” passou a não se restringir apenas a um lugar junto à equipe, mas também na comunidade em que morava. Na oficina de fotografia realizou um minucioso trabalho fotografando ônibus, significante sempre presente em seu discurso. Seu pai havia trabalhado como trocador de ônibus. Nessa época, Pedro passou a ir ao NAICAP vestido com o uniforme de motorista. Ele iria trabalhar e ser motorista, quando crescesse. Parou de se referir às vozes que o chamavam de bichinha. Há alguns anos mora em um lar abrigado para meninos, indo para a casa do pai nos fins de semana. Conseguiu incluir-se na série dos meninos, sem sentir-se ameaçado de ser transformado em “mulherzinha”. Participa das atividades da casa, tendo conseguido uma estabilização em seu quadro. A direção de trabalho “entre vários” permitiu que Pedro encontrasse não só um ponto de ancoragem no NAICAP, mas uma invenção própria que lhe possibilitou a construção de algum laço social.

Ao longo de muitos anos de trabalho, o NAICAP construiu algumas respostas às questões aqui levantadas, organizando um funcionamento clínico-institucional orientado pela “prática entre vários” 5. Essa prática é uma tentativa de sair do impasse ligado ao saber na transferência própria à psicose e visa ao esvaziamento do gozo a que a criança está submetida. Partimos da premissa de que a criança já realiza um tratamento do gozo e, portanto, uma tentativa de esvaziamento do Outro que se apresenta para o autista e o psicótico pleno de gozo. A direção do trabalho entre “vários” implica a deslocalização do saber, fazendo com que nenhum profissional da equipe detenha o saber sobre a criança. Os “vários” da equipe podem assim tornar-se parceiros, na medida em que a criança os inclua no trabalho que já empreende. Isso permite a produção de novas respostas, saídas possíveis para ancorar-se como sujeito no Outro e circunscrever o gozo.

Vale sublinhar que essa direção de trabalho traz conseqüências não só para o sujeito, mas também para a equipe. Destituída de qualquer saber prévio, a equipe deve caminhar na direção oposta àquela de um trabalho multiprofissional ou interdisciplinar, em que o profissional de cada disciplina comparece com um saber de especialista, construindo-se, então, um somatório de conhecimentos teóricos e práticos que se complementam. O que sustenta a “prática entre vários” no NAICAP não é a multiplicação de intervenções, nem um trabalho coletivo que compete a muitos. Os vários não constituem um grupo, no sentido freudiano de reunião em torno de um ideal; ao contrário, estão reunidos em torno de um lugar vazio de saber: o supervisor como êxtimo6. Além disso, a ética dessa prática não comporta a autorização ou garantia do ato pelo grupo, pois a responsabilidade compete a cada um, posição que exige de cada profissional abrir mão da complementaridade, da coletividade, do “o que é bom para um é bom para todos”, do “um” que faz apelo ao todo.

 

Referências

Barros, M.R.C. (2003). A prática lacaniana nas instituições: uma experiência de vários. Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 37. São Paulo: Edições Eolia.        [ Links ]

Freud, S (1980a). Sobre a psicoterapia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 265- 278). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905)         [ Links ]

____ (1980b). Linhas de progresso da terapia psicanalítica. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 17, pp. 197-211). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919)        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
e-mail: jeannemarie@uol.com.br
e-mail: kafer@centroin.com.br
e-mail: abastosg@terra.com.br

Recebido em agosto/2006
Aceito em outubro/2006

 

 

NOTAS

* Psicanalista, mestre em teoria psicanalítica pela UFRJ, membro correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise
**
Psicanalista do Instituto Municipal Philippe Pinel, fundadora do NAICAP
***
Psicanalista, prof. Adjunta no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ
1
Este artigo retoma o trabalho apresentado no Simpósio Nacional de Psicanálise e Psicoterapia no Campo da Saúde Mental e reexamina a discussão de um dos fragmentos de caso clínico
2 Fragmentos deste caso clínico já foram citados em: Ribeiro, J. M.C & Monteiro, K.A.C. (2004). Prática entre vários e a invenção do sujeito. In J.M.C. Ribeiro & K.A.C. Monteiro (Orgs.), Autismo e psicose na criança. Trajetórias clínicas. Rio de Janeiro: Editora 7 letras
3 Sobre esse caso clínico ver: Ribeiro, J.M.C. (2005) A criança autista em trabalho, Rio de Janeiro: Editora 7 letras, e Anais do V Colóquio LEPSI, USP, 2004
4 Técnico de referência foi o nome encontrado, no NAICAP, para designar o membro da equipe que acolhe e acompanha o percurso da criança na instituição, realizando também o trabalho com os pais e familiares
5 Essa expressão foi cunhada por Jacques- Alain Miller referindo-se à prática nas instituições da Rede Institucional Infantil do Campo Freudiano
6 As reuniões de equipe no NAICAP se fazem com a presença de um supervisor no lugar de “êxtimo”. O termo corresponde a um neologismo de Lacan que designa topologicamente um exterior íntimo, uma exterioridade interna. A função de êxtimo não se refere apenas ao fato de tratar-se de alguém de fora da equipe, mas é a que “permite fazer aparecer a hiância própria do inconsciente, convocando o sujeito, a partir da causa do seu desejo, a se engajar no processo de construção do caso clínico e do projeto institucional” (Barros, 2003)

 

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