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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.11 n.21 São Paulo dez. 2006

 

RESENHA

 

Da metafísica à metapsicologia

 

 

Leda Mariza Fischer Bernardino

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Endereço para correspondência

 

 

Sobre o livro: Metafísica dos tubos, de Amélie Nothomb Rio de Janeiro, RJ: Record, 2003

O que é um tubo? No dicionário, temos a definição: “recipiente alongado de forma cilíndrica”. Um filhote, do ponto de vista estritamente biológico e descritivo, funciona como um tubo: um recipiente dotado de uma entrada e de uma saída por onde entram nutrientes e saem dejetos, através do qual seu organismo tem energia para funcionar minimamente.

Falar assim de um bebê humano produz um grande desconforto. Desconforto maior ainda é quando este bebê, já adulto e dotado de escrita, descreve essa experiência com todas as suas letras. É o que faz Amélie Nothomb, em seu livro A metafísica dos tubos (1999/2003). Já na orelha do livro somos informados de que ela “leva a autobiografia às últimas conseqüências ao contar a história dos três primeiros anos de sua vida”. Filha de um embaixador e escritor belga, a autora nasceu no Japão em 1967. Até os dezessete anos seguiu seu pai da China à Birmânia, passando por Nova York. Começa a escrever justamente no momento em que volta à Bélgica e vive um choque cultural (www.linternature.com/sortir/auteurs/nothomb).

Essa autora vem sendo aclamada pelo público como um dos expoentes atuais da arte da escrita: seis milhões de livros vendidos em 35 países, entre os quais o Brasil. É algo surpreendente, na medida em que seu texto é composto de inúmeras descrições do real, sem quase nenhum recurso imaginário ao qual possamos nos ancorar – pelo menos no que diz respeito ao que a autora nos fornece. Claro que nos defendemos e entramos no jogo com todos os recursos que nosso próprio imaginário nos fornece. Na contracapa do livro, os vários jornais citados demonstram esse efeito: “escritora fantástica”, “a lucidez, a inteligência e a loucura pacífica de Amélie Nothomb”, “estranho”. Não podemos deixar de nos fascinar com afirmações suas que são pura metapsicologia freudiana e lacaniana. Por exemplo: “viver é recusar. Aquele que aceita tudo não vive mais que um orifício de pia” (p. 15, 16).

É uma ficção sem sujeito; uma ficção cujo sujeito surge na medida em que ela evolui. Como diz Melman (2002), “ninguém é capaz de inventar sua própria fala, a menos que seja um grande poeta, um grande artista” (p.147). Pode-se dizer que é o caso de Nothomb. Por isso talvez a autora se autodenomine, no início de sua autobiografia, “Deus”: seria o Deus antes da criação, antes do Outro simbólico. Uma descrição de Das Ding.. Literatura do futuro?

É possível para ela transitar no campo simbólico de modo apenas descritivo, para falar do indescritível: o real do corpo, da pura percepção. Cito um parágrafo: “os olhos dos serres vivos são dotados da mais espantosa das propriedades: o olhar. (...) Qual a diferença entre os olhos que têm um olhar e os olhos que não o têm? Esta diferença tem um nome: é a vida. A vida começa onde começa o olhar. Deus não tinha olhar” (p. 7).

Seus livros são repletos de personagens sem valores, sem moral, sem história própria. Nisto ela se aproxima de um outro escritor contemporâneo, também de língua francesa, Michel Houellebecq, que por sua vez não foi autista, mas uma criança abandonada.

Em Metafísica dos tubos, no início, a personagem “Deus” é assim descrita em seu gozo: “Deus era a absoluta satisfação. Ele nada queria, nada esperava, nada percebia, nada recusava e não se interessava por nada”(p. 5). “Deus” permanece até os 2 anos, quando começa a urrar no berço e alerta a família: “A planta já não é mais uma planta”, diz a mãe (p. 21). Entra então em cena a avó paterna, com seu “chocolate branco da Bélgica”, que a tira finalmente do “estado de legume”. Com essa personagem da avó, a autora apresenta seu primeiro encontro com o Outro e começa sua aventura no campo simbólico, com peripécias tais como saber falar japonês e não contar para ninguém.

A história se faz na própria tessitura da escrita, que busca nos outros um testemunho dessa relação tão estreita e ao mesmo tempo tão longínqua com um Outro não mediado por faces imaginárias.

Poderíamos dizer que Nothomb faz sinthoma, tal qual Joyce?

Primeiro teríamos que considerar que não estamos aí no campo da psicose, estrutura na qual a ausência de inscrição do significante do Nome-do-Pai impede um enodamento dos registros RSI (Real, Simbólico, Imaginário) de maneira borromeana. Como Lacan tentou demonstrar, ainda assim é possível manter juntos os registros, através da invenção de um quarto nó, outro que não o borromeano Nome-do-Pai, que por faltar devido à foraclusão acima descrita, pode ser suprido por algum outro elemento que faria as vezes do Pai, o sinthoma. Para Joyce, teria sido sua escrita.

No caso do autismo, seria possível algo da mesma ordem? Há possibilidades de fazer sinthoma? É uma questão que deixaremos em aberto, trazendo apenas alguns elementos para reflexão.

Se pensarmos no autismo como uma estrutura diferenciada da psicose, na qual algo anterior à foraclusão atuou como defesa, bloqueando certas funções do campo perceptivo; anterior ainda aos registros psíquicos das inscrições, como o mecanismo da elisão proposto por Laznik (1997), podemos conceber que um dos registros da realidade humana propostos por Lacan – o imaginário – passa a ter uma entrada muito pequena. No registro do Imaginário encontramos tudo o que se refere à expressividade do rosto humano, da fala humana, das emoções aí transmitidas, de modo que as sensações internas e externas vão sendo organizadas e simbolizadas em um processo de enlaçamento do corpo do filhote humano ao campo da linguagem; enlaçamento que se dá por meio daquele que representa seu Outro e fornece sentido através de seu próprio corpo, olhar, voz – ou seja, de todos os elementos imaginários que fazem a intermediação entre os registros do real (corpo e “realidade bruta”) e do simbólico. A barreira autística bloqueia justamente essas entradas. O processo de humanização propriamente dito – a transmissão das significações por um outro da espécie, através de uma especial relação erógena com o bebê – entra em curtocircuito. Não vamos discutir aqui, porque excede o propósito desta resenha, as causas desse bloqueio, mas sabemos que ele ocorre. A partir daí, temos um proto-sujeito, dotado de sistema nervoso central e de alguns imprintings da espécie, mas que não tem e não reconhece em algum semelhante sua sede subjetiva; não é antecipado como sujeito e não tem suas necessidades transformadas em demandas e em desejos. Está no real, com o imaginário pobre dos imprintings que sua espécie no decorrer dos séculos substituiu por processos de linguagem; mas entra no simbólico de um modo direto, sem a intermediação da chamada função materna. Como descreve a autora, não sabe então fazer escolhas (o que está a cargo do desejo daquele que encarna o Outro do bebê): “Para viver, é preciso ser capaz de deixar de situar no mesmo plano, acima de si, a mamãe e o teto (...) a única escolha ruim é a ausência de escolha” (p. 16).

É muito difícil imaginar toda essa teoria em uma vivência possível. Amélie Nothomb nos dá acesso a esse horror através da descrição de seus primeiros anos de vida nesse livro. Como muitos outros humanos, essa autora nos conta um pesadelo que viveu e do qual saiu, mas com marcas que deixam rastros em sua escrita, que compõem seu texto e, ao que parece, seu estilo de vida.

Evidentemente, trata-se de uma construção a posteriori daquilo que ela lembra e do que ouviu contar desses primeiros anos. Mas não se pode negar que ela se aproxima muito do que lemos em autores como Klein, Meltzer, Bettelheim, Dolto, para citar apenas alguns psicanalistas cuja produção é bastante respeitada no campo do autismo.

A leitura desse livro, por aqueles que praticam a clínica com crianças autistas, é particularmente indicada pela imersão que promove nesse universo totalmente estranho do pathos autístico (Bernardino, 2006).

A grande lição desse livro é o próprio fato de ele ser lido, e por tão grande número de leitores. Sua leitura é suportável nos tempos atuais, provavelmente porque demonstra na prática o alcance absoluto do sonho científico contemporâneo: um distanciamento tal das experiências pesquisadas, de tal modo que a pura descrição, neutra, sem interpretações pessoais, de determinada realidade, é apresentada ao público. O interessante é que se trata de um livro de ficção, não de um relato de caso. Vale ressaltar ainda que essa personagem, nesse livro, em nada se distancia de outros personagens propostos pela autora em seus outros livros (veja-se, por exemplo, Dicionário de nomes próprios, ou A higiene do assassino); todos apresentam-se nesse estilo. E mais: são esses personagens que cativam os leitores dessa autora que se pode realmente chamar de moderna, se levarmos em conta a acepção de Charles Melman sobre a condição subjetiva moderna: “O sujeito não recebe mais sua mensagem do Outro” (p. 147). Na maior parte dos casos, nós a recebemos, segundo esse autor, do “consenso social”, da “opinião pública”; ou seja, trata-se de um Outro que não é mais necessário interpretar. Amélie Nothomb o inventa. Faz sinthoma?

 

Referências

Bernardino, L.M.F. (2006). De que pathos se trata no autismo? In Anais do II Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental. Recuperado em 05 set. 2006: http://www.fundamentalpsychopathology.org/anais2006/4.35.3.3.htm

Laznik, M. -C. (1997). Rumo à palavra: Três crianças autistas em psicanálise. São Paulo: Escuta

Melman, C. (2002). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC

 

 

Endereço para correspondência>
e-mail: ledber@terra.com.br

Recebido em setembro/2006
Aceito em outubro/2006

 

 

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