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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.12 n.22 São Paulo jun. 2007

 

DOSSIÊ

 

Considerações acerca da constituição psicanalítica de uma instituição de atendimento, inserção social e educação

 

Considerations concerning the psychoanalytical constitution of an attendance, social insertion and education institution

 

Consideraciones referentes a la constitución psicoanalítica de una institución de atención, de inserción social y de educación

 

 

Rogério Lerner*

Instituto de Psicologia-USP
Lugar de Vida.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em que medida um atendimento realizado em uma institui ção pode ser considerado psicanal ítico? Para responder a essa pergunta, este artigo utiliza elementos teórico-metodoló- gicos da análise institucional de discurso. Aponta-se a heterogeneidade dos discursos (psican álise, educação e inclusão social) que compõem uma institui ção de atendimento a crian ças autistas, o Lugar de Vida. Destacam-se embates institucionais, efeitos da heterogeneidade mencionada, que fazem com que, apesar da constitui ção psicanalítica da institui ção, haja impasses quanto à manutenção de condições de prosseguimento de um trabalho psicanalítico. Conclui-se que a melhor maneira de zelar por tais condições é levar em conta a existência de tais embates – e seus efeitos – em reuni ões clínicas.

Palavras-chave: Psicanálise, Análise institucional de discurso, Saúde mental, Educação.


ABSTRACT

What is required for an attendance carried through in an institution to be considered psychoanalytical? To answer to this question, this article uses theoretic and methodological elements of the institucional analysis of discourse. It is pointed the heterogeneity of the speeches (psychoanalysis, education and social inclusion) that compose an attendance institution for autistic children, the Lugar de Vida. Oppositions inside the institution, effects of the mentioned heterogeneity, are distinguished, despite the psychoanalytical constitution of the institution, as leading to impasses to the maintenance of conditions of continuation of a psychoanalytical work. It concludes that the best way to watch over for such conditions is to take in account the existence of such oppositions - and its effects - in clinical meetings.

Keywords: Psychoanalysis, Institutional analysis of discourse, Mental health, Education.


RESUMEN

¿Qué se requiere para una atención ejecutada en una institución que se considerará psicoanalítica? Para contestar a esta pregunta, este artículo utiliza los elementos teóricos y metodológicos del análisis institucional del discurso. Se señala la heterogeneidad de los discursos (psicoanálisis, educación e inclusión social) que componen a una institución de atención para niños autísticos, Lugar de Vida. Oposiciones dentro de la institución, efectos de la heterogeneidad mencionada, se distinguen como llevando a, a pesar de la constitución psicoanalítica de la institución, callejones sin salida al mantenimiento de condiciones de la continuación de un trabajo psicoanalítico. Concluye que la mejor manera de preservar tales condiciones es cuenta la existencia de las oposiciones - y sus efectos - en reuniones clínicas.

Palabras clave: Psicoanálisis, Análisis institucional del discurso, Salud mental, Educación.


 

 

Em instituições que se dedicam ao tratamento de crianças com transtornos psíquicos, há várias formas de atendimento que se baseiam na psicanálise. Este artigo é uma discussão acerca das seguintes questões: Em que medida um atendimento realizado em uma instituição pode ser considerado psicanalítico? Mais especificamente, em que medida o trabalho chamado de “referência” na Pré- escola Terapêutica Lugar de Vida do IPUSP pode ser considerado psicanalítico?

O profissional de referência é alguém que realiza entrevistas com a criança e sua família quando passam da triagem para o tratamento institucional propriamente dito, abordando assuntos que dizem respeito ao atendimento. Ele é, também, quem estabelece contato com profissionais que atendem a criança em outras instituições.

Esse profissional serve como referência tanto para a família como para os colegas de instituição. Quando algum profissional deseja saber algo sobre a história ou cotidiano da criança ou da família para planejar sua atividade, é com o profissional de referência que procura falar. As pesquisas que têm lugar na instituição contam com o profissional de referência para a coleta e sistematização dos dados das crianças e famílias envolvidas.

 

Diversidade metodológica de fundamentação dos atendimentos

Numa definição presente na obra de Michel Foucault, um método é uma estratégia de pensamento. São diversas as estratégias de pensamento ensejadas para fundamentar atendimentos que têm lugar em instituições. Uma parcela significativa delas parte da teoria psicanalítica para fundamentar tais atendimentos, tanto para defender que sejam feitas intervenções consideradas psicanalíticas quanto para defender que não. Nesses atendimentos, a psicanálise prevalece tanto na leitura dos casos clínicos quanto na compreensão dos laços estabelecidos entre agentes institucionais e clientela.

Um exemplo da perspectiva mencionada acima pode ser obtido com o trabalho de Stevens (1996): “As condições da cura passam por uma castração necessária da instituição: digamos simplesmente seu reconhecimento como ‘não–toda’. É isso que nos permite afirmar que a cura psicanalítica de crianças tem seu lugar estruturalmente fora da instituição, de qualquer maneira, ainda que seu desenrolar concreto passe-se dentro dos muros ou fora deles. Mais precisamente, se ela não é colocada desta maneira fora da instituição, ela não pode ser uma cura psicanalítica.” (p. 59)

No recorte adotado pelo autor mencionado, considera-se que a criança psicótica está inscrita na linguagem, mas não se inscreve como sujeito na palavra. A criança é arrebatada pela petrificação significante e isso a condena a um gozo desmesurado. Sua submiss ão à fantasia do outro traduz-se de várias maneiras. Assim sendo, a proposta é fundamentar a clínica em instituições que estabeleçam como um dever a instalação de “um ‘dizer não’ ao gozo, introduzir um elemento terceiro que favorece a elaboração significante e situar o trabalho na perspectiva de suplência à falta da psicose”(Stevens, 1996, p. 61). Essa é a orientação para as atividades cotidianas, para os ateliês com as crianças e para a separação a que se visa com o trabalho com pais.

O presente artigo parte de uma perspectiva diversa da apontada acima. Preliminarmente, os laços estabelecidos entre agentes institucionais e clientela – incluindo-se o atendimento em suas diversas formas – são entendidos como resultantes da ocupação dos lugares que compõem o cenário institucional. Os lugares componentes, sua cenografia e os laços que daí decorrem podem ser investigados por meio da análise do discurso dos partícipes da realidade institucional, na qual podem ser incluídos documentos que regulamentam sua ocorrência.

Várias configurações de instituições de saúde mental decorrentes dos lugares que as compõem têm sido investigadas por diversos pesquisadores. Souza (2003, p. i) investigou as relações que se estabelecem entre usuários e profissionais de um Centro de Aten- ção Psicossocial (CAPS) nos “espaços informais” da instituição, aqueles nos quais não há atividade programada: “São espaços como a sala de televisão, a lanchonete, os corredores ou os jardins da instituição. No CAPS, onde foi realizada essa pesquisa, há um projeto no qual os profissionais são designados para estarem nesses espaços (...). A análise das representações nas entrevistas aponta as dificuldades dos profissionais ao atuarem nos “espaços informais” da instituição, espaços que são mencionados como solitários, violentos e de indiscriminação entre os funcionários e os usuários do CAPS (louco x não-louco). Porém, os “espaços informais” tamb ém aparecem como lugares que possibilitam a criação de novos projetos e estratégias de tratamento da instituição.”

Vechi (2002, p. vi) pesquisou o discurso de três duplas de agentes de saúde mental de três diferentes Hospitais-Dia: “Cada dupla falou a respeito de um caso concreto de primeira internação, decorrente de problemas de saúde mental (...). O objetivo geral do trabalho foi atingido ao se caracterizar o lugar instituído para os casos considerados no discurso dos entrevistados como aquele em que foram tornados, principalmente, como representantes de uma clientela predefinida por contingências específicas. Tal lugar favoreceu sua introdução em certas antecipações no discurso dos entrevistados como as de existência de doença, de uma doença com a qualidade de se conservar, da condição de objeto de conscientiza- ção, da condição de objeto de observação, da condição de melhora e da condição de objeto de adaptação. Também o objetivo específico foi alcançado ao se identificarem, no discurso dos entrevistados, fatores associados a iatrogenia. Uma iatrogenia que, por hipótese, favoreceria a conservação desses doentes na condição de usuários de serviço de saúde mental.”

De Bellis (2004, p. vii) estudou como a alta – procedimento que faz parte da rotina de instituições de saúde mental – é referida no discurso legal que regulamenta o modelo de assistência psiquiátrico asilar e da saúde mental do brasileiro: “Por meio da análise do discurso legal e da contextualização histórica dos períodos em que os documentos foram elaborados foi possível demonstrar a articulação fundamental estabelecida entre a Psiquiatria e o Estado no que diz respeito ao controle e à assistência dos indivíduos portadores de doença mental. A análise das diretrizes relativas à alta, tomada como um operador médico-legal, permitiu que se discutisse as relações entre liberdade e vigilância instituídas em diferentes momentos da história em função da organização da assist ência psiquiátrica segundo as formas asilar e da saúde mental.”

Lerner (1999, publicado em 2006, p. vii) investigou a ocorrência de atendimentos ditos psicanalíticos em um Centro de Atenção Psicossocial – CAPS – do Estado de São Paulo: “As representações que mais se impuseram na análise dos discursos dos profissionais foram relativas a eles considerarem a interven- ção terapêutica como insuficiente para tratar os pacientes, que por sua vez foram caracterizados a partir de imagens de insuficiência de capacidades para fazer tarefas. Aos profissionais restaria realizar tarefas para compensar o que caracterizam ser as insuficiências do seu próprio trabalho terapêutico e as insuficiências atribuídas aos pacientes. Foram isolados e analisados alguns jogos imagin ários que se prestam a ser estrat égias dessa compensação. Concluiuse que a Psicanálise, tida como um dos elementos do universo estritamente clínico, não é vista como um trabalho que instrumentaliza o profissional no seu fazer terapêutico, sendo caracterizada principalmente como impossível de ter lugar no âmbito da instituição.”

O mesmo autor (2004, p. vii) investigou a construção institucional de um caso clínico de autismo ao analisar como os lugares assumidos e atribuídos pelos agentes institucionais constituem os diagnósticos, os prognósticos e as indicações terapêuticas que ocorrem, ensejando um estudo institucional de caso clínico: “A análise revelou que elementos do discurso psicanalítico são hegemônicos, mas não exclusivos, na constituição das cenas de atendimento; revelou haver embates e tensões entre as distintas modalidades discursivas que compõem a instituição; os embates discursivos tendem a recrudescer os lugares que os agentes assumem e atribuem aos colegas e aos clientes, fazendo com que haja repetição e insistência na caracterização tanto dos agentes como dos clientes ao longo do atendimento. Considerações etiol ógicas, diagnósticas, indicações de tratamento, intensificação da import ância da fala e do atendimento a familiares evidenciaram-se como aspectos institucionais que se prestam ao mencionado recrudescimento dos lugares. Atitudes dos clientes distintas de atitudes coerentes com os lugares atribuídos pelos agentes são consideradas resistência ao tratamento, sinal de piora do quadro clínico e confirma ção de diagnóstico. Duas caracteriza ções recorrentes dos lugares, percorrendo distintas formações discursivas, são a insuficiência (tanto de clientes como de agentes) e a compensa ção da mesma (pelos agentes).”

As pesquisas mencionadas acima utilizaram a análise institucional do discurso formulada por Guirado (1987, 2000, 2004, 2006).

 

Heterogeneidade da constituição dos lugares institucionais e embates decorrentes

A fim de compreender o trabalho do profissional de referência, propomos que se considere a heterogeneidade discursiva que compõe a institui ção em que ocorre. A Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida é uma institui ção que tem os discursos da psican álise, da educação e da inclusão social como marcas originárias.

Em relação ao discurso psicanal ítico, pode-se destacar que quase todos os membros da equipe são psicanalistas. Há atendimentos psicanal íticos na instituição e a teoria que prevalece na leitura dos casos é psicanalítica. Diversos psicanalistas procuram membros da equipe para supervisões e cursos acerca do atendimento psicanalítico da clientela em questão. As supervisões buscadas pelos membros da equipe para tratar dos atendimentos são psicanalí- ticas.

No que diz respeito ao discurso da educação, merece menção a pertin ência do Lugar de Vida ao Departamento da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do do Instituto de Psicologia da Universirdade de São Paulo, cuja área de concentração do programa de pós-graduação é Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. As raízes desse departamento remontam à cadeira de Psicologia Educacional que fazia parte do Curso de Professores criado em 1933 no Instituto de Educação, agregado à USP em 1934. (Ver site do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em / /www.ip.usp.br/instituicao/instituicao.htm).

Em 1938, o Curso de Professores deu origem ao Curso de Pedagogia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. O curso de Psicologia foi criado em 1957 pela lei nº 3.862 de 26 de maio e iniciou seu funcionamento na Faculdade de Filosofia da USP em 1958. Esse curso foi formado pela Cadeira de Psicologia Educacional (Curso de Pedagogia) e pela Cadeira de Psicologia (Curso de Filosofia), que se desdobrou em Psicologia Clínica e Psicologia Experimental e Social. Em 1969, foi criado o Instituto de Psicologia (IP) pelo decreto nº 52.326, sendo instalado em 1970. Formam esse Instituto quatro departamentos: Departamento de Psicologia da Aprendizagem, Desenvolvimento e da Personalidade, oriundo da Cadeira de Psicologia Educacional e os Departamentos de Psicologia Clínica, Psicologia Experimental e Psicologia Social, oriundos da Cadeira de Psicologia Clínica e da Cadeira de Psicologia Experimental e Social.

O discurso da educação faz-se presente no Lugar de Vida, entre outras razões, pela influência da história do departamento ao qual pertence, e que conta, entre os membros de sua equipe, com dois docentes e dois psicólogos de seus quadros. Ainda, deve-se citar que diversas atividades (de escrita, de expressão e de recrea- ção) realizadas com as crianças na instituição têm um caráter educacional, e muitos professores buscam o Lugar de Vida para cursos e assessorias acerca da educação das crianças.

No que concerne ao discurso da inserção social, a inspiração do Lugar de Vida vem do trabalho de Maud Mannoni, que queria fazer da Escola de Bonneuil uma instituição explodida; “um lugar para se viver”, em oposição às instituições que eram consideradas lugares para tratar crianças que, segundo a autora, acabavam sendo caracterizadas fixamente como doentes pelo discurso dos profissionais. A equipe do Lugar de Vida ocupa-se da inserção escolar das crianças, buscando locais adequados para matriculá-las e auxiliando pais e educadores a construírem a melhor maneira de a criança estar em escolas. São realizados passeios e festas com a finalidade de promover a inserção social das crianças.

A heterogeneidade constitutiva da instituição não se refere apenas aos discursos que lhe deram origem, mas também à especialidade dos membros da equipe. Embora grande parte dela seja composta por psicólogos, há também médicos, pedagogos e fonoaudiólogos na equipe. Além disso, diferentes escolas psicanalíticas têm influência sobre os membros da instituição.

A assunção de um lugar institucional é uma prática discursiva que se exerce como um dispositivo de poder. “O discurso – a psicanálise mostrou-o – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é objeto do desejo; porque – e isso a hist ória desde sempre ensinou – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de domina ção, mas aquilo pelo que e com o que se luta, é o próprio poder do qual nos queremos apoderar” (Foucault, 1996, p. 10).

O que falar, a maneira de falar, quando falar, com quem falar e o que fazer, tudo isso legitima as formas de ser dos agentes institucionais, e é a partir disso que são reconhecidos na instituição: assim se pode ser. Segundo a especificidade dos dispositivos com que se assumem os lugares determinados, o agente passa a fazer parte da realidade institucional, exercendo o poder de estabelecer as considera- ções consideradas verdadeiras na instituição.

Os diferentes discursos que comp õem a instituição são ocasiões distintas do exercício do poder enunciativo, uma vez que engendram, legitimam e reconhecem verdades diversas. Pesquisas mostram que tal diversidade engendra um campo de interroga ções profícuas de um discurso a outro, dado que o poder de cada um limita ou relativiza o poder de determina ção de verdades dos demais. Mas as pesquisas também evidenciam que tal diversidade dá lugar a um embate entre os dispositivos de exercício do poder enunciativo. Não se trata apenas de haver diferenças, mas de haver diferentes formas de exercício do poder que competem entre si pelo estabelecimento de uma hegemonia na instituição.

No que diz respeito ao atendimento, o pólo psicanalítico de constitui ção da instituição faz com que haja uma tendência predominantemente psicanalítica na forma como se atende; na leitura que se faz do sentido dos sintomas das crianças; nas hipó- teses etiológicas que se supõem; na concepção dos mecanismos de defesa e nas intervenções propostas. Na medida em que a transferência é um elemento constitutivo fundamental do cenário da clínica psicanalítica, não há como o profissional que faz o atendimento institucional a partir da psican álise deixar de tecer duas considera ções: o sentido do que diz seu cliente refere-se à lógica decorrente da sua posição fantasmática e é essa mesma lógica que orienta os efeitos das intervenções que se fazem. Tais considerações marcam a singularidade do dispositivo psicanalítico e transmitem-se mesmo para circunst âncias diferentes da clínica psicanalí- tica habitual. Configuram a escuta do agente institucional, funcionando como uma antecipação inexorável do que será privilegiado na fala, seja do cliente, seja do agente, por mais que o último tente evitar intervenções interpretativas: a interpretação está no dispositivo discursivo que se instala.

O que foi exposto acima faz com que haja aspectos singulares no atendimento institucional. A transfer ência costuma estar instalada inicialmente em relação à instituição; em geral, sob a forma de que se supram, por um lado, todas as necessidades da criança gravemente comprometida e, por outro lado, a demanda dos pais de compartilhar de alguma maneira o sofrimento a que estão acometidos em decorrência da posição que assumem frente à grave condi- ção do filho. Ainda que tal instalação esteja dada inicialmente, é com o profissional que abre e sustenta o dispositivo de escuta que se desenrola o enlace transferencial: surgem suposi- ções de saber, rememorações, demandas de amor, elaborações de aspectos nunca pensados, construções. Em alguns casos, esse segundo momento permite uma ressignificação do primeiro, no sentido de proporcionar uma mudança de posição frente às expectativas idealizadas e narcí- sicas iniciais. Em outros casos, esse momento leva a um fortalecimento da tendência inicial, agora caracterizada como cobrança explícita ou velada dirigida ao agente que se põe a escutar. Em qualquer dos casos, e certamente há muitos outros a considerar, a transferência original com a instituição parece nunca ser totalmente abandonada, sendo freqüente que, para mantê-la, os pais busquem agentes distintos daquele que os escutam.

Da maneira como está organizado o Lugar de Vida, o principal dispositivo de escuta tem ficado ao encargo do profissional de referência. Assim, o desdobramento transferencial acaba estando orientado para ele. É freqüente, por exemplo, que pais de alguma criança em certo momento venham a demandar ao profissional de referência, explicitamente ou não, tratamento para si.

Uma vez que o discurso da psicanálise é marca destacada de fundação da instituição e é o profissional de referência que sustenta o dispositivo da escuta, tal trabalho é inexoravelmente psicanalítico quanto a sua constituição. Isso parece ser válido para outras instituições que têm o discurso psicanalítico como marca de fundação e propõem instâncias de escuta. Entretanto, ter a psicanálise como uma das marcas de origem e sustentar a instância de escuta não garantem as condições de prosseguimento de um trabalho psicanalítico.

Os outros lugares decorrentes das diferentes marcas discursivas que compõem a instituição não cessam de se instalar a todo instante. Tais lugares impõem que as verdades deles decorrentes se façam valer pelos agentes que os ocupam, por mais conflitante que isso possa ser, dado o fato de serem diversas entre si: o lugar de promoção da inserção escolar da criança norteia o profissional a orientar os pais na busca da escola, nas tentativas de manutenção da criança na classe, em conversas com professores e diretores, contrapondo-se aos pais quando estes vacilam nessa iniciativa. O lugar de promoção da educa- ção da criança faz com que o profissional antecipe conhecimentos a serem transmitidos para ela, busque estimul á-la a construí-los, incentive os pais a fazê-lo e a eles se contraponha quando não o fazem. Tudo isso ocorre no atendimento de referência. São diferentes formas de considerar as necessidades dos pacientes; diferentes ver dades a defender; diferentes iniciativas a tomar; diferentes direções a seguir. Todas concomitantes e em conflito pelo poder de estabelecer a realidade institucional considerada primordial.

Além das diferentes marcas discursivas originárias da instituição, há os diversos discursos decorrentes de especialidades, como fonoaudiologia e medicina, que também a integram; todos contribuem para o acirramento do embate decorrente da heterogeneidade institucional apontada.

Apesar da hegemonia da psicanálise como marca discursiva, o agente institucional pode vacilar na ocupação do lugar decorrente de tal marca. A tensão oriunda do embate causado pela heterogeneidade institucional demonstrada é uma causa importante dessa vacilação. Um elemento que a intensifica decorre do fato de as diversas marcas institucionais mencionadas engendrarem distintas demandas dirigidas aos agentes pela clientela, mesmo que cada dispositivo de trabalho tente especificar a natureza do que se faz a cada momento. Assim, os agentes são duplamente demandados em circunstâncias de tensão nos mais diversos dispositivos: pela instituição e pela clientela.

Tal vacilação pode ocorrer de diversas formas. O profissional pode julgar que deve interromper as conversas com um progenitor de uma criança pelo fato de aspectos íntimos serem referidos cada vez mais freqüentemente. A equipe pode julgar que o prosseguimento psicanalítico do trabalho iniciado em referência só deve ocorrer dirigido por um profissional de fora da instituição. Os agentes podem considerar que o compromisso de atendimento é só com a criança e não com os pais (mesmo tendo iniciado conversas para escutá-los). Os profissionais podem ficar inibidos em interromper o tratamento quando os pais não cumprem com as exigências mínimas para sua ocorrência.

O fato de haver tendências discursivas diversas na fundação da instituição faz com que a leitura psicanalítica das condutas e da relação transferencial estabelecidas pelos pais possa sofrer vieses. Isso ocorre em decorrência da simultaneidade de sistemas de leitura diversos: em vez de investigar resistências à escolarização do filho como eventuais formações sintomáticas dos pais ligadas a conflitos e angústias mobilizados pela sua participação no cotidiano escolar, o profissional incentiva tal inserção e opõe-se aos pais, quando estes não cumprem essa expectativa. Outro exemplo de tal viés apresenta-se quando os pais usam sintomaticamente a perman ência do filho na escola como uma tentativa inconsciente de livrarem- se da angústia que este lhes causa, e o profissional não se dá conta disso, uma vez que espera trabalhar para a inserção escolar da criança.

Outra conseqüência possível da tensão decorrente do embate entre as tendências heterogêneas que fazem a instituição é uma esp écie de estereotipia psicanalítica. Uma vez que diversas formas de ocupação dos lugares institucionais representam distintos dispositivos de poder, cada vez que se institui um cenário e seu conjunto de verdades, outros têm sua potência diminuída. Apesar de um determinado atendimento ser planejado, para ter como prioritária uma forma de exercício do poder enunciativo, outros cenários e respectivas verdades formadores da instituição impõem-se. Ao enfraquecimento da verdade do cenário psicanalítico (enfraquecimento decorrente dos embates das tendências que formam a instituição, como já se disse), o agente pode reagir exagerando o aspecto patológico das condutas dos clientes ou aumentando a avaliação do peso dos pais na participação das causas do transtorno do filho. Sem que se dê conta, o profissional pode tentar compensar, junto ao cliente, o sentimento de insuficiência oriundo da tensão decorrente da heterogeneidade de marcas fundamentais da instituição.

Vacilação na ocupação de um lugar marcado pela psicanálise, vieses na leitura decorrente desta ocupação e estereotipia psicanalí- tica são alguns dos fenômenos institucionais que fazem com que haja impasses na instalação de condições favoráveis ao prosseguimento de um atendimento psicanalítico na instituição. Apesar de termos tomado para discussão uma forma específica de atendimento que ocorre numa instituição determinada, acreditamos que tais considerações podem ser estendidas para diversas outras institui ções que têm a psicanálise em meio a outras marcas instituintes.

 

Conclusões

O que se conclui é que, em uma instituição que tem marcas originárias heterogêneas, um atendimento pode ser psicanalítico quanto a sua constituição, mas, em função da tensão decorrente da heterogeneidade mencionada, acabar se deparando com impasses para a sustentação das condições de sua ocorrência.

Algumas equipes acreditam que é simplesmente impossível a ocorrência de atendimentos psicanalíticos em instituições. Outras crêem que arranjos teóricos e técnicos garantem as condições de sua ocorr ência. A nosso ver, o que falta a tais perspectivas é a consideração do âmbito institucional em que os atendimentos ocorrem.

Segundo nossa experiência, a consideração do âmbito institucional em que os atendimentos ocorrem pode se dar em discussões clínicas, tanto em reuniões como em supervisões. Não se trata de um tipo de discussão ocupada apenas na transmissão dos elementos enunciativos da psicanálise, mas preocupada com os efeitos do tenso convívio de tais elementos com os diversos outros que constituem as instituições. Este parece ser um instrumento valioso no zelo para com as condições de ocorrência de um atendimento psicanalítico em instituições, uma vez que muitos impasses oriundos da heterogeneidade podem ser identificados e, assim, contornados. Pensamos que, dessa maneira, aumenta a possibilidade de o profissional amparar, com todos os recursos com que conta, os desdobramentos psíquicos da instituição da escuta.

 

Referências

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Endereço para correspondência
e-mail: rogerlerner@uol.com.br

Recebido em janeiro/2007
Aceito em abril/2007

 

 

* Psicólogo, psicanalista, docente do Instituto de Psicologia da USP e membro do Lugar de Vida.

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