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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.12 n.22 São Paulo jun. 2007

 

EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL

 

Intervenção psicanalítica em grupo em uma clínica-escola: considerações teórico-clínicas

 

Group psycoanalytical intervention in a school-clinic: theoretical considerations

 

Intervención psicoanalítica en grupo en una clínica-escuela: consideraciones teórico-clínicas

 

 

Leônia Cavalcante Teixeira1

Laboratório de Estudos e Intervenções Psicanalíticas na Clínica e no Social da Universidade Fortaleza

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo discute o campo de atuação do psicanalista em institui ções, tomando como refer ência o trabalho em grupo com crianças em uma clínica-escola. A pesquisa foi desenvolvida a partir do projeto “Oficina terapêutica Conto e Traço”, centrado no atendimento de crian ças em grupo, com base nos pressupostos teórico-clínicos da psicanálise, tendo sido privilegiadas as atividades de contar e desenhar histórias. O estudo deu ênfase à discussão sobre o encaminhamento clínico das queixas e sobre os agenciamentos institucionais que atravessavam a clínica. Concluímos pela importância da interven- ção psicanalítica extra-consult ório em instituições, ressaltando a escuta em grupo como dispositivo de agenciamento de subjetividades.

Palavras-chave: Psicanálise, Subjetividade, Instituição, Infância, Clínica-escola.


ABSTRACT

This article discusses the field of performance of the psychoanalyst in institutions. It has as a reference group work with children in a school-clinic. The study was developed based on the project “Tale and Trait Therapeutic Workshop” focusing on the care of children in groups. The basis was on the theoretical-clinical presuppositions of psychoanalysis, being enhanced by the activities of telling and drawing stories. The study gave emphasis to the discussion on clinical recommendation for complaints and about the institutional negotiation which influence office work. We’ve come to the conclusion that the importance of the outside-the-office psychoanalytic intervention in institutions resulted in the observation of the group as a device for the negotiation of subjectivities.

Keywords: Psychoanalysis, Subjectivity, Institution, Childhood, School-clinic.


RESUMEN

Este artículo discute el campo de actuación del psicoanalista en instituciones,cogiendo como referente el trabajo con grupo de niños en una clínica-escuela.La investigación fue desarrollada desde el proyecto “Oficina terapeutica Conto e Traço”, con foco en la atención a grupos de niños, teniendo por presupuestos teórico-clínicos el psicoanálisis, privilegiando a las actividades de cuentar y dibujar historias. El estudio ha dado énfasis a la discusión acerca del encaminamiento clínico de quejas y aun sobre los agenciamientos institucionales que atravesaban la clínica. Concluimos sobre laimportancia de la intervención psicoalitica extra-consultorio en instituciones, resaltando la escucha en grupo como dispositivo de agenciamento de subjetividades.

Palabras clave: Psicoanálisis, Subjetividad, Institución, Niñez, Clínica-escuela.


 

 

Das peculiaridades de uma escuta analítica de crianças em grupo em uma clínica-escola.

O Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade de Fortaleza – SPA – situa-se no Núcleo de Assistência Médico Integrada Universidade de Fortaleza – NAMI – e reúne atividades nos campos da clínica, visando ao atendimento de crianças, adolescentes, adultos e idosos em várias modalidades de inserção clínico-institucional. Com o objetivo de incluir crianças em um trabalho terapêutico que não se conforma aos modelos do consultório individual, foi implantada em 2003 a Oficina terapêutica “Conto e traço”, que constitui um espaço de intervenção clínica junto às crianças e suas famílias. Tal proposta mostrou-se interessante devido ao alto número de crianças em lista de espera para atendimento e às dificuldades de aderência ao tratamento; sem contar que o engajamento terapêutico encontra-se vinculado ao modo como são recebidas as queixas trazidas por sujeitos que sofrem e demandam ajuda, sendo importante que não haja um tempo de espera prolongado entre o momento inicial da inscrição e o encaminhamento do caso.

Esses fatores, somados ao compromisso que o SPA, na fun- ção de instituição de assistência psicológica, tem com aqueles que o procuram justificam a revisão contínua de seus modelos de atendimento, objetivam propiciar adequação dos serviços à caracteriza- ção da clientela, bem como uma formação mais sólida dos estagi- ários em clínica.

Sabemos que a escassez de serviços psicológicos destinados à comunidade carente constitui um dos sérios problemas enfrentados pelas clínicas-escola das universidades, causando listas de espera infindáveis e obstaculizando a operacionalidade institucional (Herzberg, 1996; Santos, Moura & Ribeiro, 1993; Silvares, 2000). Entretanto, reconhecemos que, em muitos fluxogramas da formação do psicólogo, não é atribuída ênfase à pluralidade de formas de intervenção psicológicas, sendo ressaltado, particularmente, o atendimento em consultório individual e privado. Mesmo o acompanhamento de pacientes realizado em ambulatório público não se diferencia, necessariamente, do modelo clínico privado não institucional, daí o caráter institucional dever ser considerado nos vínculos desde a recepção do paciente e, especialmente, na aliança terap êutica propriamente dita.

Encaramos o SPA como campo estratégico de formação de recursos humanos para trabalhos de saúde mental, já que constitui um centro de prestação de serviços psicológicos, formação e aperfei çoamento profissional, bem como de investigação de temas relativos a práticas psicológicas e suas vicissitudes. Ressaltamos a import ância nuclear do estudo e pesquisa no campo da experiência clínico-institucional, destacando as especificidades da clientela, das queixas apresentadas, das fontes de encaminhamento, do curso e particularidades dos atendimentos e das especificidades do fazer clínico em uma instituição de formação universitária.

A oficina terapêutica “Conto e traço” constituiu espaço clínico de acolhimento de crianças inscritas na instituição, as quais, após se submeterem ao processo de triagem institucional, são encaminhadas ao trabalho clínico de grupo (Peres, 1997; Salinas & Santos, 2002). Como objetivos da oficina terapêutica, podemos citar: acolher e intervir junto ao paciente, sua família e seu sofrimento; facilitar a afiliação institucional; possibilitar estratégias de inclusão social; avaliar a demanda clínica e encaminhar para outros serviços de saúde; contribuir para o desenvolvimento das capacidades instrumentais; incrementar pesquisas clínicas e institucionais.

A oficina terapêutica consistiu no atendimento clínico grupal com crianças que apresentavam sofrimento, expresso em sintomas como não adaptação à escola, dificuldades de aprendizagem e resist ência a participação em grupos. Como um modo diverso de abordagem da clínica psicológica individual, a oficina buscava a expressão através da fala e da criação, acolhendo as formas de que a criança dispõe e através das quais pode se apresentar. A oficina terapêutica visava propiciar o enquadramento clínico no qual a atenção a criança e a sua família não se restringia ao reconhecimento e remissão dos sintomas, mas ao oferecimento de um lugar de subjetiva ção no qual os sujeitos envolvidos – pacientes, familiares e terapeutas – vivenciassem possibilidades de elaboração do malestar através da produção, da criação e do fazer. Com a ênfase na contação de histórias (Bettelheim, 1996; Gutfriend, 2003; Mengarelli, 1998; Rodino, 2003; Santos, 1997; Teixeira, 1991) e no desenhar, na oficina o fantasiar podia ser experienciado sem ameaças de culpabilidade paralisante, desagregação e aniquilamento, abrindo espaço para mudanças de posição quanto ao que afeta o sujeito na sua infância (Dolto, 2003; Mannoni, 1999; Winnicott, 1975).

Neste texto, é privilegiada a discussão acerca das queixas da não-adaptação das crianças às expectativas familiares e escolares, sendo estas problematizadas no contexto de possibilidades da clí- nica de orientação psicanalítica em instituições. Ressaltamos que a trajetória clínica de cada caso acompanhado na oficina terapêutica não constitui o foco deste escrito, cujos objetivos incidem na argumenta ção teórico-clínica sobre a escuta analítica em grupo na realidade institucional de uma clínica de psicologia.

 

Considerações metodológicas: quando o criar fala...

Freud fundou a psicanálise não se conformando à leitura do sintoma de sua época, inaugurando um sujeito que se configurava no campo da indeterminação e imprevisibilidade do inconsciente – “objeto teórico do discurso freudiano” (Birman, 1993, p. 33) –, do erotismo, do afeto, do desejo, da pulsão e da linguagem. Escutar além dos sintomas que enrijeciam, paralisavam, ruborizavam e faziam formigar os corpos orgânicos de suas histéricas possibilitou-lhe a abertura de horizontes no tratamento do pathos (Berlinck, 2000) antes não vistos e enfrentados.

A técnica nunca foi negligenciada por Freud (1914/1976a, 1940/ 1976c), que se ocupava dela ora em momentos específicos de sua escrita, ora de modo diluído na análise de casos e considerações conceituais acerca de temas particulares. Entretanto, o movimento de elaboração teórica freudiana tem a marca do privilégio da clínica, da escuta do sofrimento em sua excentricidade. Da clínica chegavam as interrogações que o faziam pensar analiticamente, não constituindo esta um espaço de mera aplicação do já elaborado em termos conceituais. Daí o refazer teórico caracter ístico da obra freudiana que, ainda hoje, propicia a existência de perspectivas plurais de conceber a psicanálise, constituindo um campo de investigação e tratamento não homogêneo.

Seguindo a preocupação que consideramos fundamental na recria ção da psicanálise (Birman, 1991, 1999) em cada possibilidade de escuta do sofrimento em seus aspectos singulares e coletivos, abordamos possibilidades clínicas que interrogam a hegemonia da prática de consultó- rio individual, reconhecendo tais lugares como instigadores de pesquisa. Partimos da consideração de modalidades de atuação junto a pacientes em tratamento ambulatorial, que marcaram e ainda constituem preocupa ção na instauração de modelos de acompanhamento psicológico, seja ele médico ou psicológico. Entre os campos de intervenção que fogem da hegemonia da adaptação, os efeitos mobilizados pelo espaço da oficina terapêutica receberam atenção especial, já que pensamos que esse dispositivo de intervenção junto a crianças sofredoras e demandantes de ajuda mostra-se bem interessante e fértil na prática clínica institucional.

O presente estudo baseou-se na análise do atendimento de seis crianças, entre cinco e onze anos, de ambos os sexos, no projeto oficina terap êutica “Conto e traço”, durante um ano e meio, desde julho de 2003 a dezembro de 2004, sendo de caráter clínico e tendo como método priorizado o estudo de caso. Foram analisados os relatos de cinqüenta e duas sessões clínicas dos atendimentos em grupo que eram realizadas semanalmente com duração de uma hora. A sessão consistia na recepção das crianças e discussão do modo como o encontro iria se desenrolar. Cabia às crianças, juntamente ao analista, decidir quanto ao material usado, sendo possível realizar atividades em comum, como também individualmente. Eram escolhidas ora hist órias específicas e elaboradas por desenhos, ora as crianças construíam seus próprios enredos, ora o analista fazia proposições quanto a temáticas que eram lançadas aos participantes e estes as desenvolviam como desejassem.

Habitualmente ao fim de cada sessão, eram retomados os temas trabalhados e as crianças eram incentivadas a construir relações com suas vidas. Ressaltamos que o desenrolar de cada encontro ocorria de modo não padronizado e que eram colocados à disposição das crianças uma grande variedade de livros e de material gráfico que possibilitassem a expressão. Cada criança tinha ao seu alcance uma caixa de papelão – de uso privado – na qual era guardado o material que desejasse. Após cada sessão, era feito o relato da dinâmica do grupo, das modalidades de participa ção das crianças e das interven- ções do analista. Do mesmo modo, os encontros com os pais das crianças atendidas na oficina terapêutica também eram relatados, consistindo em rico material para análise do manejo clínico com cada criança.

Os dados obtidos foram organizados nas seguintes categorias: queixa, criança/família, criança/grupo e encaminhamento terapêutico. A interpretação de tais dados clínicos, oriundos da abordagem qualitativa (Bardin, 1977; Rey, 2005a, 2005b), contribuiu de modo importante para a avaliação dessa experi- ência, mostrando que a avaliação do processo é imprescindível para a construção de um espaço de constru ção de conhecimentos sobre a clínica com crianças em sofrimento. Os encontros com os pais, juntos ou separadamente, consistiam em dar espaços a palavras, já que os sintomas nas crianças, geralmente, são suportes das palavras caladas dos pais. Apesar de o trabalho clínico ser em grupo, às singularidades era dada ênfase, não sendo privilegiada a idéia de “grupismo”, de homogeneiza ção das histórias de vida, tampouco das questões expostas pelas crianças. O manejo do analista, muitas vezes, limitava-se à escuta, já que as próprias crianças “cuidavam” do setting, do material e decidiam quanto à dinâmica da sessão.

Como resultados da experiência de três semestres do projeto da oficina terapêutica “Conto e traço”, ressaltamos as categorias: queixa, criança/família, criança/grupo e encaminhamento terapêutico. Em relação à queixa formulada pelos pais da criança, enfatizamos que todas apresentavam, implícita e muitas vezes explicitamente, um pedido de socorro; uma solicitação de ajuda no sentido de serem eles, os pais, instruídos a como lidar com as dificuldades de seus filhos, bem como de às crianças serem proporcionadas técnicas de correção dessas dificuldades. Nesse sentido, é importante destacar que a queixa, quando mais bem discutida entre pais, criança e analista, ia tomando rumos diferentes e que, durante o processo terapêutico, puderam ser delimitadas especificidades subjetivas que diziam respeito à história de cada um dos pais e do casal parental. Também pôde ser observada a forte influência da cadeia geracional na constituição dos modos de padecimento da família (Corrêa, 2001; Käes, 2001; Meira, 2003). Quando enfocamos o lugar da queixa na condução do tratamento, já estamos incluindo a relação criança-pais, já que a fantasmática parental pareceu-nos constituir um pano de fundo no qual as possibilidades de construção de identificações e identidades eram apoiadas. É interessante notar que a função do terceiro, tão importante para a estrutura ção subjetiva (Dolto, 2001; Freud, 1923/1976b; Lacan, 1987, 1998), pôde ora ser exercida pelo analista, ora pelo grupo, já que as crianças detinham a possibilidade de intervir junto à dinâmica dos encontros e às outras crianças, participando ou não das atividades acordadas pelo grupo. Em especial, foi observado que as crianças intervinham com constância nas atitudes de uma menina de seis anos, trazendo, elas próprias, alternativas de remanejamento da posição subjetiva ocupada por ela, lugar este que era intocável para seus pais e madrinha, figura primordial no arranjo dessa família. Podemos lembrar ainda, tomando um menino de oito anos em atendimento, o quanto a vivência de perdas e o trabalho de luto podem constituir o foco de experiência presente em plurais atividades, resgatados por histórias e desenhos que falavam da dor que não podia ser falada; da ferida que não podia ser tocada na família do pequeno garoto que, até então, permanecia envolto nas malhas do segredo e da mentira, não conseguindo levar a vida do seu modo, mas desempenhando papéis que lhe eram destinados inconscientemente pela orquestra- ção familiar.

No decorrer das sessões de grupo e dos encontros com pais – com ou sem a presença da criança, de acordo com o momento clínico –, verificamos que o enredamento imaginário que sustentava o(s) sintoma(s) inicialmente apresentado(s) como queixa, iam sendo desmistificados; aos poucos, iam dando lugar a dizeres menos estereotipados sobre o sofrimento das crianças e abrindo possibilidades de desfocalização da criança como detentora do lugar na família no qual as coisas não funcionam. Podemos observar que para alguns homens e mulheres foi possível exercer a função paterna e a materna (Lacan, 1987, 1998), inaugurando dinâmicas familiares antes impensáveis. Um caso pode aqui ser destacado: um menino de 11 anos, há quatro em atendimento na instituição, recebeu o comunicado de que seu processo ali estava finalizando, o que foi muito trabalhado por ele, já que lutos tinham que ser sofridos. À mãe, por sua vez, foram dedicadas seis sessões, uma vez que ela se mostrava refratária à idéia, afirmando não ter condições de criar seu filho sem o SPA.

Ao final do processo de um ano e meio de atendimentos na oficina terapêutica, ressaltamos que a quatro crianças foi dada alta e duas continuaram com o atendimento individual, tendo sido encaminhada a mãe de uma delas para atendimento individual.

Indicamos aqui algumas questões que consistiam em temas de análise pela psicanálise: criança ideal e o narcisismo dos pais; processos identificatórios com pais, irmãos e crianças do grupo e analista; construções identitárias; lugares na organização familiar e na da oficina terapêutica, dentre outras. O grupo era considerado “uma situação de trabalho psíquico” (Käes, 2001), possibilitando o trabalho com resistências singulares e institucionais. A transferência foi problematizada a partir dos escritos freudianos (Freud, 1976b), bem como pelos atravessamentos transversais que se atualizavam nos discursos, nas ações, no material lúdico e nos próprios conceitos que norteavam o projeto e a ação do analista.

Ressaltamos que o brincar expresso pela contação de histórias e pelo desenhar não consistia em um espaço de catarse, tampouco era entendido como terapia pelo brincar, mas era focalizado no campo do desejo, da fantasia, da repetição e da elaboração. O desenhar da criança era visto tal qual o brincar poético de Freud, sendo a articulação entre o brincar e a verbalização uma produ- ção discursiva da criança, possibilitando a intervenção do analista, quando necessária. Os desenhos eram elaborados pelas crianças e pelo analista a partir dos comentários, da insistência com o que retorna e não pelo desenho em si. As atividades desenvolvidas nas sessões visavam possibilitar o surgimento de sentidos novos, de remanejamentos imaginários dos fatos da realidade. Ratificamos que o trabalho desenvolvido tinha como pressuposto a experiência psicanalítica como possibilidade de incidência sobre o sujeito do inconsciente (Lacan, 1998).

 

Resultados e discussão: sobre a intervenção psicanalítica grupal

Para que serviços como o da oficina terapêutica sejam implantados, a instituição precisou rever seus objetivos, avaliando seus modos de estruturação e funcionamento, devendo estes ser postos a serviço de um trabalho terapêutico que contribua para o reconhecimento institucional como lugar de enquadre de práticas e saberes em saúde. Nesse sentido, coube à instituição indicar as possibilidades e os limites, estando aberta para acolher as transgressões e as singularidades que são agenciadoras de mudanças e instauradoras de novos olhares clínicos e teóricos.

Pensamos que as intervenções em instituições de saúde abrem espa ços para o repensar das formas de atendimento que são oferecidas pelos profissionais da área psi. A forma ção do psicólogo, em nosso país, parece apresentar-se através da ênfase nos moldes de atendimento clínico de consultório privado (Figueiredo, 2002). Claro que as possibilidades de escuta e intervenção nesses espaços são muito importantes e insubstitu íveis, quando constituem, de fato, um espaço clínico produtor de efeitos agenciadores da construção de outros percursos de subjetivação daqueles que nos procuram.

A clínica de orientação psicanalítica em instituições (Escóssia, 2005; Figueiredo, 2002; Pinheiro, 2001; Vieira, 2003) merece constituir objeto de estudo na formação do psicólogo, já que apresenta aspectos interessantes quanto à escuta e a seus efeitos. Optamos por pensar as especificidades mobilizadas pela variedade de lugares institucionais em relação à clínica. O fazer analítico não está, a nosso ver, dependente do espaço físico em que é exercido. Aliás, seria reduzir a complexidade do campo clínico-teórico psicanalítico ao modo como se estrutura e organiza o estabelecimento em que se exerce a profiss ão.

O espaço da psicanálise é iluminado pela reflexão de Bezerra Jr. (1994, p. 33), ao escrever que: “Não podemos deixar de reconhecer que a clínica na psicanálise é uma maneira de organizar a escuta para que esta possa ser capaz de se desviar do evidente, do óbvio aparente, da literalidade para permitir a surpresa, o paradoxo e o insólito”.

É tentando não abdicar da “surpresa e da possibilidade de criação” (Bezerra Jr., 1994, p. 33) que pensamos que a psicanálise constitui um campo de saber; campo de saber que nos instrumenta com ferramentas te- órico-clínicas capazes de romper com as tentações de impormos modelos assistenciais aos quais tenham os pacientes que se adequar.

Que a psicanálise participa como influência, base conceitual, inspiração ou manancial complexo de ferramentas teórico-clínicas da vida de nossas instituições de assistência ao psíquico não constitui novidade, até porque a história da psiquiatria nos últimos cinq üenta anos, bem como a da psicologia, escreveu-se em diálogo com pressupostos psicanalíticos (Russo, 2002). Nesse sentido, as contribuições da psicanálise passeiam por meio das ênfases atribuídas às várias metapsicologias, seguindo, normalmente, demandas que chegam da clínica – do sujeito e do social – clamando por teorizações conceituais que possibilitem a escuta dos sintomas que interrogam os analistas e praticantes da clínica.

Nesse trajeto, o tratamento de crianças e as questões desafiadoras por elas expostas em direção ao saber ortopédico e higienista tonalizaram os movimentos da reforma dos modelos assistenciais, exigindo diferentes enfoques e espaços de acolhimento.

Geralmente falamos em croniciza ção quando abordamos os espa ços asilares e hospitalares; ressaltamos, porém, que esse aspecto mostra-se revelador quando abordado em relação aos dispositivos de trabalho psi nas instituições de tratamento psicológico; destacando ainda a importância da reflexão sobre o quanto a tendência à psicopatologiza ção das crianças e das famílias pode guiar intervenções que visam à adaptação e à ratificação do sintoma (Kupfer, 2000a, 2000b; Levin, 2001; Rosa, 2000; Vorcaro, 1999). A diversificação de espaços a serviço de um trabalho terapêutico em instituições constitui um passo importante rumo à disponibilização de recursos de acolhida das variadas e singulares formas do adoecer na criança; contudo, não podem resumir-se ao oferecimento instrumental de novidades, tampouco de lugares de uso e manuseio de matérias e estímulo da criatividade.

 

Considerações finais

Concomitante ao consultório individual, podemos pensar em territ órios que também cumpram esse papel e que se estabeleçam, quanto aos objetivos, estruturação e funcionamento, diferentemente daquele, oferecendo possibilidades alternativas de acolhida do sofrimento e de circulação social.

Pensamos a instituição como lugar de trocas, de encontro e de agenciamentos de subjetividades. Nesse sentido, a oficina terapêutica mostrou-se um dispositivo clínico que, buscando apreender e intervir junto à complexidade das formas de sofrimento psíquico na infância, consistiu em um espaço de escuta das queixas, demandas e mesmo pedidos de socorro fugazes e pontuais por parte de pais e escolas. Tais modos de expressão do mal-estar, quando escutados em sua singularidade, puderam sofrer intervenções cujos efeitos possibilitaram o re-posicionamento do sujeito frente a si próprio e ao outro.

Possíveis atravessamentos institucionais (Volnovich, 1995) incidiram no grupo/oficina em relação ao material, datas e horários de funcionamento do grupo/oficina; às supervisões e às incidências nos corpos das crianças e analista – “a brincadeira e o brincar põem em questão a dinâmica do desejo tanto no singular como no coletivo, sendo o corpo e seus ‘atos’valores simbólicos desse desejo ” (Volnovich, 1995, p. 68), dentre outros. Ressaltamos, nessa via de análise, que a oficina terapêutica, encontrando-se atravessada pela instituição em que ocorreu, também era, constantemente, tocada pela instituição família e pela instituição escola. Tais reflexões acerca do fazer clínico na oficina terapêutica denunciam a importância do lugar do analista; nesse caso, para que ele tenha possibilidade de “escutar” a complexidade do funcionamento do dispositivo clínico em questão, sua inserção institucional clama por estar constantemente sendo problematizada, especialmente quando as metas institucionais referem-se a práticas de ortopedização e adapta ção. Assim, a implicação do analista mostra-se, como em toda práxis de atendimento em psicanálise, imprescindível, frente aos múltiplos cruzamentos de queixas e demandas.

Pensamos que a experiência da oficina terapêutica “Conto e Traço” consistiu em um dispositivo clínico na instituição SPA; um dispositivo interessante e fértil como mote de reflexão acerca dos trabalhos clínicos em instituições clínica-escola possibilidades e dificuldades, incitando a produção de um saber, inerente à construção da fantasia segundo a metapsicologia freudiana, por parte dos sujeitos-crianças e do analista, bem como desdobramentos dessa construção, consistindo nas possibilidades de ação pela via da elaboração que irrompem na repetição sintomática. Claro que a produção de um saber e a elaboração são efeitos das incidências do analista sobre a repetição. Nas palavras de Figueiredo: “... o analista incide sobre a repetição produzindo esse diferencial que abre a possibilidade da construção da fantasia e da elaboração. Ou seja, do trabalho que produz uma ‘ação sobre a realidade’, como propôs Freud. Esta ação, por um lado, se articula ao saber que se constrói. E, por outro, relança o sujeito a novos acontecimentos que provocam a desestabilização desse saber-já-sabido” (2002, p. 150).

À guisa de conclusão, acolhemos as considerações desenvolvidas por Féres-Carneiro e Lo Bianco (2003) quando afirmam que a psicologia clínica e, conseqüentemente, a formação do psicólogo, encontra-se às voltas com a questão de sua definição, não sendo produtiva sua cristalização em modalidades padronizadas de interven ções; a nosso ver, o ofício da clínica e daqueles que a exercem diz respeito à disponibilidade de acolhimento do sofrimento, marca da concepção de sujeito da psicanálise freudiana.

 

Referências

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Endereço para correspondência
e-mail: leoniat@unifor.br

Recebido em novembro/2006
Aceito em fevereiro/2007

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