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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.12 n.23 São Paulo dez. 2007

 

DOSSIÊ TERAPÊUTICA E ESTÍLOS DA CLÍNICA

 

Dimensão institucional de uma clínica da queixa escolar: a prática psicanalítica revisitada

 

Institutional dimensions of psychological services to school demand: revisiting psychoanalytic practices

 

Dimensiones institucionales de una clínica de la queja escolar: el ejercicio del psicoanálisis revisitado

 

 

Marlene Guirado1

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste texto é pensar o atendimento da clínica-escola à queixa escolar, considerando que a relação entre quem oferece esse serviço e quem o demanda é uma prática institucional que supõe: uma relação básica e expectativas cruzadas, sobre determinadas pelo contexto. Implicação de assim considerar uma clínica da “queixa escolar”: fazer cortes que façam pensar os lugares que aí se instituem, as demandas cruzadas e as propostas possíveis nessa compreensão. O alvo é produzir um atendimento que seja, no limite, analítico, e em benefício de quem procura nossos serviços.

Palavras-chave: Instituição, Discurso, Analítico, Clínica-escola, Queixa escolar.


ABSTRACT

The objective of this text is to evaluate the school-clinic care of school demand, considering that the relation between the one who offers this service and the one who demands it is an institutional practice: the expectations are overdetermined by the context. There is an implication in considering the school demand in a school-clinic cuts that lead people to think, cross demands and the proposals of this comprehension. The goal is to produce a care that, on its limit, is analytic and benefits who searches for our services

Keywords: Institution, Discourse, Analytic, School-clinic, School demand.


RESUMEN

El objetivo de este texto es evaluar el cuidado de la clínica-escuela a la demanda de la escuela, considerando que la relación entre quién ofrece este servicio y quién demanda es una práctica institucional: las expectativas son determinadas por el contexto. Hay una implicación en la consideración de la demanda de la escuela en una clínica-escuela: hacer los cortes que conducen a gente a pensar las demandas y las propuestas de esta comprensión. La meta es producir un cuidado que, en su límite, sea analítico y traga beneficios a quién busca nuestros servicios.

Palabras clave: Institutión, Discurso, Analítico, Clínica-escuela, Demanda de la escuela.


 

 

1. O contexto deste texto

Este trabalho foi originalmente escrito para apresentação na Sessão de Abertura do III Encontro Inter-Institucional de Atendimento Psicológico à Queixa Escolar, em outubro de 2006.

No confronto com duas outras orientações de intervenção, formuladas, por sua vez, nas redes conceituais e discursivas da análise experimental do comportamento e da compreensão sócio-histórica, minha participação havia sido proposta, a princípio, para tratar do atendimento à queixa escolar, do ponto de vista da psicanálise.

Como o leitor poderá notar no decorrer da exposição que se segue, esse objetivo foi alcançado por meio da inevitável recolocação de certo modo de pensar a e de pensar com psicanálise.

Privilegiou-se o fato de o atendimento psicológico àqueles que o procuram, por um encaminhamento feito pela escola, constituir- se a partir de um contexto de demandas nascidas de práticas institucionais diferentes e cruzadas: (a) a escola e o que ela reconhece como desvio ou desarranjo no curso de suas expectativas e propostas de bem formar; (b) o atendimento psicológico e o que – em diferentes linhas teorico-técnica- se reconhece como o que deve ser feito para dar conta dessa e de outras demandas que se lhes coloca a clientela; (c) o contexto concreto em que demandante e serviço oferecido travam seus encontros e desencontros (mais especificamente, no caso de clínicas-escola e de atendimentos no interior de outros serviços de saúde).

A consideração de que os contextos institucionais em jogo e as demandas/expectativas nele e por ele geradas produzem sentidos para as condutas leva a propor que se pense o atendimento psicológico à queixa escolar como um bricabraque, um campo de tensões que inevitavelmente descaracterizará as formas modelares de atendimento aprendidas na universidade. Inclusive a psicanálise. Ela jamais será a mesma se o contexto de forças do campo criado pela sobreposição das instituições e seus objetos institucionais for levado em conta.

Com isso, e nisso, configura-se uma proposta para pensar e intervir nessas circunstâncias: quaisquer que sejam os sentidos que se construam na relação concreta de atendimento, há que se considerar o complexo de expectativas cruzadas entre as instituições em jogo, bem como aquele que se define entre agente e cliente no interior de uma prática em particular.

Daí que se fará a afirmação de que a psicanálise, no atendimento à queixa escolar, jamais será a mesma dos limites estritos e fronteiras imaginárias do consultório. E creio, o mesmo raciocínio poderia ser ponto de partida para pensar outras modalidades de atendimento que não a psicanálise.

Daí, também, o título do presente texto.

Para fins de publicação escrita, foi mantida a linha de argumentos que se prestou a marcar, no momento da apresentação, como parte da mesa de debates, as diferenças inevitáveis quando se trata da consideração de um mesmo tema, em redes discursivas diferentes. Alterou-se, no entanto, a face formal do texto, buscando garantir, ao mesmo tempo, o calor do debate ao vivo e o rigor conceitual do confronto teórico. Em verdade, nada se perde e nada se ganha com as alterações formais; mas, com certeza, respeitamse os contextos em que um texto se formula. E isto, sim, é muito.

Finalmente, ainda a título de introduzir as idéias, cabe antecipar que o leitor pode deparar-se, aqui, com um ponto de vista sobre a questão do atendimento psicológico à queixa escolar; o que aponta para uma espécie de “parcialidade construída” pela própria exigência de pensar, sempre, por e com recortes conceituais e metodológicos. Aliás, todo o desenvolvimento de argumentos a justificar um discurso psicanalítico sobre o atendimento psicológico à queixa escolar apóia-se no pensamento de Michel Foucault sobre saberes regionais, constituídos em relações de poder, que investem jogos de verdade (Foucault, 2004). É fundamentalmente esse o campo conceitual que permitirá revisitar a psicanálise para com ela pensar nosso tema.

 

2. O percurso das idéias

2.1 A dimensão institucional do atendimento clínico

Normalmente, quando se ouve falar dos atendimentos a quem vem encaminhado pela escola onde estuda, conseguem-se identificar algumas posições.

(1) Há os que, absolutamente imersos nas práticas clínicas (independentemente de trabalharem com modificação de comportamento, terapia cognitiva ou psicoterapias de orientação psicanalítica), recebem esses clientes como clientes potenciais para uma terapia; e, como tal, serão submetidos aos procedimentos habituais da clínica psicológica e, habitualmente, passarão por um psicodiagn óstico que será decisivo sobre a necessidade, ou não, de terapia.

(2) Há os que, expressamente alinhados à psicanálise, de algum modo se posicionam na discussão teórica, ainda hoje muito presente: de que formas a psicanálise pode contribuir com a educa ção? (Kupfer, 2001; Mannoni, 1977). De um lado, estão os que vêem psicanálise e educação como irreconciliáveis, sobretudo porque seus alvos seriam radicalmente opostos: as práticas educativas seriam repressivas “por natureza” e a psicanálise seria liberadora (visaria à flexibilização, senão à suspensão, da repressão). De outro lado, estão os que supõem ser possível “aplicar” a psicanálise à educação, de forma a atuar sobre a relação professor/aluno ou pais/filhos, instrumentados pela teoria da transferência, da identifica ção, do ideal de ego, e do vínculo, por exemplo. Cabe, aqui, dizer que não só na psicanálise há essa idéia de “aplicação” de teoria a situações concretas. Veremos isso, melhor, adiante.

(3) Há também os que, avessos a qualquer proposta aproximada das psicanalíticas, de imediato, acabam por esvaziar o recurso clínico como facilitador do bem-estar das pessoas em instituições. Nesse caso, o que se observa é uma tentativa de ouvir o cliente, já antagonizando, nos bastidores do pensamento, com quem o encaminhou e/ou com interpretações de cunho psicológico/psicanalítico. Esse “esvaziamento do recurso clínico” veste-se de uma escuta aparentemente “desinteressada” (de qualquer afinação teórica, ideológica ou política) que se baseia no pressuposto de que o cliente precisa se livrar das garras da escola e de seus comprometimentos ideológicos, bem como do próprio atendimento terapêutico, porque ele seria, em si, descomprometido politicamente. Trata-se, então, de ouvir o cliente e, ato continenti, atenuar qualquer tipo de demanda que apresente, para liberá-lo dessas duas instituições consideradas opressoras e alienadoras. Tudo como se aquele que atende estivesse numa posição acima de qualquer suspeita ou de comprometimentos... (ideológicos, mesmo, por que não?).

Cada um desses três modos de encarar a questão tem conseqüências no encaminhamento que será dado à queixa escolar.

No primeiro, fazer terapia é o norte, o destino. Pode até ser que a pessoa decida-se por não fazê-la, ou, mesmo, que esse procedimento não lhe seja indicado, mas a terapia é a única opção, na seqüência do diagnóstico, na concepção do profissional.

No segundo, nada há a fazer, quando não se acredita nas possibilidades de aproximar psicanálise e educação. Quanto à outra posição (a de aplicação da teoria psicanalítica à educação), podem-se propor trabalhos e reuniões em grupo, com pais e/ou professores, para discutir temas de interesse deles, na perspectiva teórica de quem coordena os trabalhos (o psicólogo/psicanalista).

No terceiro modo de encarar o atendimento a uma clientela com queixa escolar, podem-se propor os mesmos trabalhos, com propósitos diferentes.

É importante, porém, que se diga que cada uma dessas posições parte de algum pressuposto, à revelia da consciência e das boas intenções do profissional (Albuquerque, 1978).

Em (1), há uma supervalorização dos procedimentos canônicos; uma aposta no poder de revelação do psicodiagnóstico. Aqui se destaca o instrumento diagnóstico; ele se antep õe às condições particulares da situação e do paciente.

Em (2), há uma supervalorização da teoria; uma crença na eficácia da teoria que, de fora, pode entender e mudar qualquer situação. Aqui se destaca, então, a teoria como a chave do entendimento, que assim se antepõe à situação concreta.

Em (3), há a supervalorização de uma postura acima das ideologias (uma postura não-ideológica), que poderia se contrapor a instituições, por natureza repressivas e mistificadoras; há uma crença na possibilidade de uma escuta desinteressada, não comprometida com qualquer ideologia. Aqui se destaca uma pré-concepção a respeito das escolas e das terapias; e é esse pressuposto, entre o que atende e o que é atendido, que acaba por desconsiderar os sentidos que esse atendido lhes confere.

O que há de errado nesses modos de tratar a questão?

Não se trata de erro, e, sim, de um modo de pensar que “deixa no escuro” os pressupostos de quem atende; desconsidera o quanto o modo como pensamos, as verdades que creditamos em nosso exercício profissional, determinam os rumos da nossa escuta e dos encaminhamentos que fazemos. São esses pressupostos o alvo de nossa atenção nas considerações e nas cenas que “desenhamos” até este momento, ao caracterizar três modos de exercer ou posicionar o atendimento à queixa escolar, pela clínica psicológica. Identificar como se constroem esses pressupostos, bem como identificar sua insidiosa presença a cada atendimento (como se criam e como atuam) é mover o avesso da cena. Isto é, é buscar as condições de produção de saber e verdade a cada situação concreta em que a clínica se dê (Foucault, 1997; Guirado & Lerner, 2007).

Em função da prevalência de pressupostos numa prática de atendimento, é possível defender que:

(a) não há distâncias irreconciliá- veis entre a psicanálise e a educação; o que há são especificidades de alvos e objetos institucionais; que podem, entretanto, ser pontualmente articuladas (Albuquerque, 1978);

(b) não se trata, nesse caso, de fazer “aplicação de uma teoria” a uma prática (nem à própria, nem a outra);

(c) há, sim, algo com que o atendimento terapêutico pode contribuir, quando a queixa vem da escola; por ém, para tanto, é preciso pensar as condições concretas em que se faz a clínica da queixa escolar;

(d) nessas condições concretas, há que se considerar como nos procedimentos habituais se constroem e se confirmam, sobretudo, os pressupostos a respeito do que é o atendimento, de seus alcances e limites; é importante considerar, no limite da clareza, quais são esses pressupostos, onde e como interferem; este é um trabalho que exige disciplina e atenção constitutivas do próprio atendimento (Guirado, 2000).

Com essas defesas em mente, de pronto, podemos afirmar que a perspectiva com a qual desenvolvemos o presente texto – a partir de um campo conceitual determinado que, aos poucos e por dentro dos argumentos, vai se anunciando – também instaura pressupostos.

O leitor poderia, neste momento, indagar-se: “Então, qual é a vantagem? ” A vantagem é que os conceitos desse campo tratam exatamente do modo de produção de pressupostos (Maingueneau, 1989). Dito de outra maneira (e para o caso dos atendimentos psicológicos): dão foco aos pressupostos implicados na escuta de quem se põe no lugar de terapeuta.

Que conceitos são esses? Basicamente os de instituição, discurso e análise.

Daremos destaque ao conceito de instituição, supondo sempre que os três estejam intimamente implicados. Inclusive o de análise, uma vez que ao final de nossa proposta indicamos que uma clínica da queixa escolar deverá ter um caráter analítico. Não no sentido estritamente psicanal ítico, como se costuma pensar; mas analítico.

Entendemos as instituições como práticas sociais concretas que se repetem, encarnadas na ação de atores que se representam o que fazem e que, sem o perceber, legitimam esse fazer (Albuquerque, citado por Guirado, 2004). Reconhecem- no como natural, como tendo que ser assim, e, no mesmo ato, desconhecem outras formas de fazer. Na repetição dos ritos produzem- se os mitos e, por eles, naturaliza-se o fazer.

Nada disso se faz fora do discurso. Porque discurso, aqui, é entendido (para além das verbalizações) como ato (Foucault, 1997). Ato que envolve (supõe) todos os procedimentos que vão desde a montagem do ambiente (que deve se assemelhar a um modelo ideal de consultório) até o modo de vestir e o tom de voz do terapeuta (que devem também garantir pertença à comunidade dos eleitos); ou, as teorias que professa e as expectativas que têm em relação à terapia, e assim por diante (Guirado, 2000). Tudo isso é discurso (Foucault, 1996).

Dissemos acima que nosso alvo são os pressupostos que orientam a prática clinica. Nesse caso, com o conceito de instituição com que operamos intelectualmente, como entendemos o que são pressupostos?

Podemos entender que os pressupostos são um precipitado das concepções que construímos no fazer cotidiano de nosso trabalho. São um precipitado dos efeitos de reconhecimento e desconhecimento, dessas naturalizações de que o fazer institucional é ocasi ão.

No caso da prática clínica, são dois os vetores da constituição desses pressupostos.

Já consideramos o primeiro deles: é a própria repetição cotidiana, canônica, do atendimento.

O segundo (não em ordem de importância) supõe a formação em psicologia, em que, como se verá, a clínica-escola tem lugar primordial. Supõe a aprendizagem das teorias em textos e contextos nos quais um professor, por exemplo, transmite mais do que conhecimento; transmite uma convicção de que o que ele ensina e o que ensinam os autores que lhe dão suporte (e autoridade) é a verdade sobre o psiquismo; a verdade sobre a pessoa/paciente.

Se, por exemplo, à moda psicanalítica, entende-se que a conduta seja sobredeterminada pelo inconsciente, passa-se a ter a possibilidade de saber que inconsciente é esse, como funciona e como se manifestará em presença do terapeuta, pela transferência (destaque feito às várias orientações dentro da própria psicanálise). Ao receber o paciente, o terapeuta vai ouvir o que ele diz, automaticamente, como vindo “de outro lugar e de outro tempo” (do inconsciente e do passado). Isto, de um modo tão entranhado que alguém pode se surpreender se for questionado a esse respeito.

Se, por outras sendas, dá-se destaque aos comportamentos que essa pessoa aprendeu ou aos modos de cognição que estruturou (dependendo, é claro, da psicologia que se professa e pesquisa), assim ela se apresentará, aos olhos, escuta e pensamento do terapeuta.

Essas palavras, esse discurso, essas verdades reconhecidas vão anteceder a “queixa” do cliente na escuta do psicólogo. Porque são essas as palavras que o terapeuta tem para ouvi-lo. São os pressupostos que, como “fé cega e faca amolada”, dirigem a escuta (Guirado, 2006).

Em outros momentos, afirmamos que a teoria, nos atendimentos, é o ponto-cego da escuta do analista (Guirado, 2006). A teoria é constitutiva de uma espécie de dicionário interno com tradução simultânea.

É importante destacar que não apenas os textos, as aulas e os professores contam nesse processo. A própria estrutura do currículo “força” uma organização mais ou menos multifacetada, por justaposição sem oposições ou diferenciações, ou uma adesão mais ou menos apressada a uma ou outra orientação. As supervis ões (práticas hoje consagradas mesmo fora da formação) têm, tamb ém, peso para fazer da comunidade discursiva da psicologia uma forte instituição. O mesmo para as terapias pessoais.

Assim constituídos, os pressupostos têm ação efetiva a cada situação concreta em que acontece um atendimento. Em função deles, inevitavelmente, o terapeuta desenvolve expectativas em relação ao seu cliente (Maingueneau, citado por Guirado, 2000). Expectativas armadas, de algum modo, nessa rede de saber/ fazer seu oficio. E é com essa pesada (e impensada) artilharia que se põe diante de seu cliente: os dois parceiros na relação básica da instituição clínica.

E como fica o lugar do paciente?

Bem. Esse lugar também é desenhado, constituído, por uma carreira institucional.

No consultório particular, essa carreira é mais simples, mas nem por isso menos decisiva dos rumos que a situação vai tomar a partir da hora em que alguém se põe nesse lugar; quando diz “meu problema é que...”, expõe-se a ser entendido, isto é, ouvido com as palavras que o terapeuta tem para ouvi-lo. É o turning point, que dá o norte do atendimento (Guirado, 2006).

Nas instituições outras que oferecem serviços de atendimento clínico a situação é mais complexa, na medida em que esses lugares são constitu ídos por uma série de procedimentos que extrapolam a cena genérica, originária, do atendimento clínico, que é o consultório, desde Freud; procedimentos que vão desde as fichas de inscrição, passando pela triagem, até ser recebido pelo terapeuta que lhe foi destacado. Mais ainda: nesse percurso, ele fala de si como se fosse a vez definitiva, e se vê encaminhado, sempre, para uma “etapa” seguinte (que é institucional, que atende às “suas” – as da burocracia da instituição necessidades mais do que às do cliente); uma etapa que, em geral, lhe é desconhecida, e na qual deve repetir o que disse sobre o que o levou até o Serviço (Guirado, 2005).

Em meio a tudo isto, vai o paciente desenvolvendo, confirmando ou rejeitando expectativas em relação ao que é aquele serviço, o que é uma terapia, como se apresentar para ter ou para escapar do atendimento supostamente buscado.

2.2. A clínica psicanalítica revisitada

E por falar em expectativas criadas de lá e de cá, em função de um conjunto de procedimentos e de um contexto, é necessário que se faça, agora, um parêntese para inserir outra proposta conceitual, que nos permitir á continuar tratando, deste mesmo ponto de vista (institucional), a relação terapêutica; essa proposta será, também, fundamental para pensar a clínica de atendimento à queixa escolar.

Um conceito muito caro a quem trabalha com psicanálise é, agora, um ponto-chave: o conceito de transferência. Num constante exercício do pensar, vamos tomá-lo, em primeira instância, na perspectiva de alterar a psicanálise, e não de aplicá-la, exatamente para operar de modo analítico com o atendimento psicológico.

A retomada mais detalhada desse conceito implica a consulta aos escritos técnicos de Freud (Freud, 1912/1973a, 1912b/1973b, 1913/ 1973c, 1914/1973d) e, mesmo, ao caso Dora (Freud, 1905/1973e). Mas, assim como o fizemos com os termos instituição e discurso, indicamos as fontes e elaboramos os destaques que serão trabalhados na fronteira com os outros conceitos. É assim que ao final do historial clínico de Dora, Freud se pergunta: “Que são transferências? São novas edições ou ‘facsimiles ’ dos impulsos e fantasias que se tornam conscientes durante a análise substituem uma figura anterior pela figura do médico.” (Freud, 1905/1973e, p.113). Deduz-se daí que a transferência pode ser considerada uma reedição, no presente, de relações significativas do passado. Se aproximarmos esse termo das fronteiras que acima anunciamos, podemos pensá-lo não como algo que diz respeito apenas ao paciente, que repetiria seus vínculos do passado e com outras pessoas, agora, e com o médico.

Podemos pensar a transferência como repetição de modelos de relação. Essa extens ão nos levaria a afirmar que é transfer ência, também, a reedição dos pressupostos do analista na relação terapêutica.

Por decorrência, nos atendimentos que fazemos, a transferência seria cruzada e passaria a supor as expectativas que ambos os parceiros desenvolvem em relação a si, ao outro e à própria situação terapêutica (Guirado, 2000).

Como foi possível mover esse deslizamento? Em parte porque a hipótese de o atendimento clínico ser considerado uma instituição facultanos pensá-lo de uma perspectiva que lhe é exterior; em parte, ainda, porque nos havíamos disposto a trabalhar com recortes conceituais e, por isso, pudemos atribuir à idéia de prática institucional o privilégio de ser base para considerações a respeito da psicanálise; daí, a proposta de revisit á-la. Essa postura metodológica nos autoriza a ênfase em um ou outro aspecto da definição de um termo na rede discursiva em que se originou. Veremos, adiante, as implicações de tal postura na postulação de uma clínica que será considerada analítica, embora não mais estritamente psicanal ítica.

Fechado o parêntese, debrucemo-nos sobre a situação exemplar do atendimento da clínica-escola a uma clientela com “queixa escolar”. Vejamos como, concretamente, instrumentar o conceito de transferência (revisto) e a idéia de atentar para a maneira como se criam e como agem os pressupostos do terapeuta.

A particularidade da clínica-escola é que aquele que se põe no lugar de terapeuta é, ao mesmo tempo e no mesmo ato, cliente (aluno) de outra instituição, o ensino universitário. E, como aluno, deve prestar contas a um supervisor, a um grupo de supervisão, a uma disciplina e a si próprio, como “aprendiz de feiticeiro”.

Ora, o que vem cronologicamente depois da sessão (supervis ão, relatório, avaliação) já é ativo desde o momento em que o terapeuta-aluno se coloca diante de seu paciente (este é o “contexto que está em sua cabeça”, como diria Dominique Maingueneau, envolvendo o atendimento que faz). E a formação “fecha” um circuito que, em vez de esclarecer essas superposições, firma a convic ção de que “atendimento clínico é isso” e o faz com uma eficácia razoável (“psicológica”, digamos) em cima da “angústia” (cantada em prosa e verso) que sente o aluno-terapeuta (aquele “frio na barriga” que denuncia os momentos de iniciação). Fecha-se o circuito porque, na supervisão, “entende-se” o que aconteceu lá. E com isso, insidiosamente, atribui-se um caráter de saber convicto às explicações sobre os motivos de o paciente se comportar desta ou daquela forma, de falar isto ou aquilo (Guirado, 2005).

Cimenta-se, assim, o intervalo de não-saber aberto pela tens ão promissora dos primeiros atendimentos; promissora, porque poderia abrir o atendimento para outros destinos e para outros encaminhamentos, caso se “parasse para pensá-lo”.

 

3.Uma proposta para iluminar os pressupostos

Como instrumentar a estratégia de pensamento que parte de um conceito de instituição e de um ajuste no conceito de transfer ência, para que esse moto-contínuo se desequilibre, deixe-se sensibilizar pela tensão, mova-se e se altere?

A regra de ouro é fazer-se perguntas! É preciso se fazer perguntas! Perguntas que a instituição, exatamente pelo efeito sedativo de suas repetições, de seus procedimentos, não deixa aparecer.

Esbocemos, a partir de agora, um desenho possível de uma clínica da queixa escolar em que, ao mesmo tempo em que se oferece um atendimento psicológico, se busquem iluminar as regiões escuras dos pressupostos e das expectativas em jogo. Tudo, ao ponto de gerar as tensões necessárias para romper as cristalizações e as paralisações produzidas na e pela inércia da repetição do mesmo.

Sim. Que se provoquem tensões! Porque elas constituem a ocasião da construção de rumos diferentes daqueles já tão calejados em nossas ações institucionais.

Vamos a algumas dessas perguntas. Como a pessoa que me fala (mãe /pai ou responsável pela criança, por exemplo) mostra “entender” o que a escola considerou problemático? Que lugar atribui à criança nas referências que faz a ela durante a entrevista? Que lugar atribui a si ou ao demandante escolar? Que expectativa mostra ter em relação ao atendimento de seu filho/filha pela clínica-escola? Caso se trate de uma primeira entrevista com um aluno-terapeuta, depois de um serviço de triagem, o que poderia significar tudo isso, essa entrada na carreira institucional de um serviço-escola, incluindo o fato de o atendente ser um(a) jovem nos seus pouco mais de 20 anos, a falar para pais (mesmo que o jovem em questão tenha se “paramentado” segundo o estilo “psicólogo”)? E se o filho falado for também um jovem com uma pequena diferença aparente de idade? E se for homem aquele a quem os pais falam de uma filha?

Como o aluno-terapeuta se “sente” ou se “vê” nessa situação? Que expectativa desenvolve em relação ao seu desempenho e ao daqueles pais? Que faz com a sua ansiedade, esperada e possível em meio a isso tudo? Considerando, até mesmo, que disso tudo deverá mais tarde dar contas, no lugar de aluno, a colegas e supervisor? Ou seja, pelo fato de ser uma clínica-escola, como lida com expectativas suas que extrapolam aquela cena empírica e que vão desde os sentidos que atribui a estar se formando em psicologia até as exigências institucionais para que ela seja sancionada? Como se vê recebendo e conversando com pais, nessa posição?

Essa listagem de perguntas, que poderia ainda ser desdobrada, é o corte que nos faz pensar a situação concreta; se, no momento do atendimento, opero com elas, produzo, em ato, a suspensão de respostas prontas a priori por uma teoria que, exatamente por seu caráter instituído e à beira de mais uma reedição, nem permitem que perguntas se coloquem.

Mais: observe-se que é o ato de perguntar sobre o modo como se produzem as falas, do lado de ambos os parceiros em cena, que faz a diferença.

É outro discurso este. É um discurso de levantamento de hip óteses que exigirão acompanhamento das falas, sempre. Os sentidos (“respostas” mais ou menos retardadas às indagações) a que se chega, portanto, ganham expressamente o caráter de construções; construções que guardam, por sua vez, as marcas das hipóteses e suposições de quem as formulou. Mas, hipóteses sobre o modo de produção discursiva e não sobre conteúdos, quer do psiquismo, quer da fala como representante dele e assim por diante.

Conforme dissemos, com isso, procedemos a construções ou análises e não propriamente a interpretações. Isto porque, as interpretações estão sendo aqui consideradas do ponto de vista hermenêutico da atribuição de sentidos, da semântica.

Uma clínica assim produzida, claro, supõe que, além do momento mesmo do atendimento, as supervis ões se pautem pela consideração do contexto concreto. Elas também fazem a clínica-escola, agora, a partir dos lugares (superpostos ou antepostos) da formação universitária.

Os diagnósticos e decisões sobre como proceder com a demanda que vem, como no caso, de outra institui ção escolar, serão traçados e conduzidos numa perspectiva que busca iluminar a dimensão institucional do atendimento clínico; ou melhor, o tenso jogo de forças das instituições em cena.

Seja o seguimento proposto o de terapia individual, orientações ou terapias em grupo (a educadores, a pais ou a jovens), nele estará sempre presente o crivo institucional, como ocasião de análise.

Antes e acima de tudo, ao bem daquele que procure nossos serviços.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: mguirado@terra.com.br

Recebido em novembro/ 2007
Aceito em dezembro/ 2007

 

 

1 Psicóloga, psicanalista, docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

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