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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.12 n.23 São Paulo dez. 2007

 

DOSSIÊ TERAPÊUTICA E ESTÍLOS DA CLÍNICA

 

Psicanálise e educação: desafios e perspectivas

 

Psychoanalysis and education: challenges and perspectives

 

Psicoanálisis y educación: desafíos y perspectivas

 

Luiza Mendes RubimI; Vera Lopes BessetII

I;II Grupo de Pesquisa Clínica Psicanalítica (CLINP), do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa para a Infância e a Adolescência Contemporâneas (NIPIAC)
II
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste texto propomos-nos a investigar a interseção psican álise e educação com o intuito de abordar um uso poss ível da psicanálise em escolas. Para tal, partimos de uma premissa, construída a partir da prática, de que a psicanálise se apresenta como um meio particular de dar tratamento ao real em jogo na educação, na atualidade. Ao se ofertar um espaço no qual os educadores, pais e alunos possam falar sobre suas experi ências, inquietações e angústias, entendido como um espaço de conversação, acreditamos que os envolvidos podem vislumbrar soluções inéditas para os impasses inerentes à educação.

Palavras-chave: Psicanálise, Educação, Intervenção, Espaço de conversação.


ABSTRACT

The aim of this text is to investigate the use of psychoanalysis in Education as an approach to its possible use in schools. Therefore, we have started from the supposition, observed and built up from our practice, that psychoanalysis could be used nowadays as an unique tool of treatment to be used in education. According to our believes, when educators, parents and students are offered a common space where they can share experiences and talk about them, about their worries and anxieties, we observe that this conversational zone opens several chances to find out and solve issues related to education.

Keywords: Psychoanalysis, Education, Intervention, Conversational zone.


RESUMEN

En este texto nos proponemos a investigar donde la Psicoanálisis y la Educación se cruzan, con la intención de abordar una aplicación posible de la Psicoanálisis en las escuelas. Partimos de la premisa que fue construida por la práctica, de que la Psicoanálisis es una manera particular de dar un tratamiento a lo real, destacado en la Educación de la actualidad. Con un espacio donde los educadores, los padres y los alumnos puedan hablar sobre sus experiencias, sus inquietudes y angustias, a través de la conversación, creemos que se puedan vislumbrar soluciones inéditas a los impasses de la educación.

Palabras clave: Psicoanálisis, Educación, Intervención, Conversación.


 

 

Educação e psicanálise: introduzindo a questão1

A partir da interface psicanálise e educação, propomos-nos, neste texto, a pensar um uso possível da psicanálise nas escolas. Partimos da suposição de que a psicanálise fornece ferramentas com as quais é possível dar tratamento ao real em jogo na educação, na contemporaneidade.

Quando pensamos em nossas práticas em instituições, algumas perguntas nos servem de guia para avançar em nossa reflexão. Entre elas, destacamos: De que forma propor um diálogo entre psicanálise e educação quando nos dispomos a trabalhar em escolas? Quais são as contribuições que um profissional atravessado pela psicanálise pode ofertar a uma escola em tempos hipermodernos? Será que o uso da psicanálise em uma instituição educacional só se dá em casos desviantes ou em momentos de crise? Essas são algumas perguntas que nos ajudam a abordar e a delimitar o que se deseja discutir neste trabalho.

Tendo a psicanálise como referencial teórico, nossa discussão tem início a partir da reflexão sobre as particularidades da sociedade atual e seus efeitos no campo da educação. De fato, o declínio da função paterna e a fragilidade do lugar de autoridade traduzem- se, no espaço escolar, em transtornos da aprendizagem, viol ência e drogadição, trazendo inquietação aos pais e profissionais das áreas de educação e de saúde. Outro aspecto da atualidade é o imperativo dos ideais narcísicos (de produtividade, perfeição etc.) sob cuja direção vivemos e em torno dos quais a sociedade se organiza. Como conseqüência, tudo o que deles se distancia deve ser excluído e segregado. Nos tempos atuais, em que não se conta mais com os ideais que antes orientavam nossa ação em sociedade, algumas questões se colocam para a reflexão de educadores, psicanalistas e pesquisadores.

 

A hipermodernidade lipovetskiana

Um dos autores que vem estudando a fundo a complexidade da contemporaneidade é Gilles Lipovetsky (2004). Segundo o autor, no cerne da questão está o consumo de massa e os valores que a ele se atrelam: cultura hedonista, psicologismo, entre outros. Seriam esses os protagonistas na passagem da modernidade para a pós-modernidade: “A pós-modernidade representa o momento histórico no qual as contenções institucionais que se opunham à emancipação individual desaparecem e em seu lugar verifica-se a primazia dos desejos subjetivos, da realização pessoal, do amorpr óprio” (Lipovetsky, 2004, p. 23).

Assim, o autor defende que o âmbito social é a continuação do privado, e delineia-se um tempo em que o sujeito está inserido em uma era do vazio (Lipovetsky, 1989), momento em que os sujeitos encontram-se imersos na angústia. Trata-se do sujeito tal como se apresenta no contemporâneo: desbussolado (Forbes, 2005). A conseqüência disso seria a de que, “sem o recurso ao Nome-do- Pai, o sujeito não tem mais a bússola para se orientar no campo do gozo” (Cottes, 2006, p. 28).

Lipovetsky (2004) define duas eras do consumo na pós-modernidade. A primeira delas, anterior à década de 50, teve sua express ão no aumento da produção industrial, no aumento da oferta de produtos originada pelo progresso dos transportes e dos meios de comunicação, além do aparecimento das estratégias relacionadas ao capitalismo moderno: marketing, grandes marcas, lojas de departamento e propagandas e a inserção da moda no mundo da produção e do consumo em massa. Faz-se necessário, porém, salientar que nessa fase o consumo era referente à classe privilegiada, ou seja, à burguesia.

A segunda fase caracteriza-se pelo fato de o consumo não ser mais restrito a uma parte da população. Os crediários, os cheques pré-datados, passam a garantir acesso ao produto mesmo àqueles que não possuem o valor da mercadoria ou do serviço no ato da compra. É nessa época que o conceito de individualismo ganha outra roupagem, ao sair do âmbito dos direitos e deveres para o domínio das sensações, em uma sociedade cada vez mais voltada para o presente e ávida pela última novidade do mercado. Imersas nesse discurso sedutor propagado por uma cultura hedonista, na qual a máxima é prazer a qualquer preço, seria garantido o consumo a todas as camadas da população, sem restrições.

Outros fatores também nos ajudam a pensar as mudanças da primeira era pós-moderna para a segunda. Se, até a década de 50, a aristocracia permanecia privilegiada em relação à possibilidade de consumo, na segunda fase essa redoma se vê minada por considerações hedonistas. Amplia-se de forma escalonar o prazer pelo novo, a substituição do útil pelo fútil, a promoção do fútil e do frívolo e a valorização de tudo que remeta ao desenvolvimento pessoal e à sensa ção de bem-estar. Segundo Lipovetsky (2004), podemos definir assim esse outro tempo, marcado pela ideologia individualista hedonista. Se antes, ao analisarmos a esfera social, podíamos ainda nos guiar por noções tais como a disciplina e a alienação, nesse outro momento, a análise que melhor explica essa nova lógica é o mecanismo da sedução. Todas as normas podem ser discutidas, as leis não mais imperam como antes e, em vez disso, a sedução ganha tanto o domínio público, por meio da hipervalorização da comunicação e da transparência, quanto o privado, graças ao aumento substancial da valorização de toda e qualquer experiência pessoal, em sua dimens ão subjetiva (Lipovestky, 2004).

O termo hipermoderno está identificado com uma nova face da modernidade. Para Lipovetsky, há pelo menos duas grandes razões para aceitarmos a idéia de que não estamos em uma sociedade pósmoderna, mas em outra modernidade, ou, mais exatamente, em uma hipermodernidade. A primeira é que os princípios fundamentais constitutivos da modernidade – a valorização do indivíduo e da democracia em primeiro lugar, a valorização do mercado num segundo plano e em terceiro a valorização da tecnociência – não foram substituídos, apenas radicalizados. A segunda é que atualmente não há mais nenhum inimigo desses princípios. Dessa forma, não estamos mais em uma modernidade destruída, mas em um regime hiperbólico, superlativo, porque já não existe um contramodelo ao que está posto. Até então existiam perspectivas nacionalistas, revolucion árias que propunham outros paradigmas. Hoje, não há outros modelos que não a democracia ou o mercado globalizado.

Um outro ponto relevante da atualidade é que a modernidade passou para uma velocidade superior em que tudo parece ser levado ao excesso: temos os hipermercados, o hiperterrorismo, as hiperpotências e, enfim, o hipercapitalismo. Pode-se dizer que se trata de uma modernização desenfreada, na qual proliferam as relações de mercado, juntamente com uma economia sem regulamenta ção, sob o império técnico-científico. A todo o momento, temos provas das inúmeras transformações impulsionadas pela tecnologia, seja por meio das imagens fantásticas veiculadas pela televisão, seja pela internet com seus milhões de sites e informa ções, que mudam a todo o instante. Outra característica marcante é a hipervigilância à qual a sociedade está submetida; encontramos câmeras e outros instrumentos de segurança instalados por todos os lados, configurando uma época em que precisamos estar sempre alertas, 24 horas a postos (Lipovetsky, 2004).

Essa dimensão hiper também se revela no consumo. Vivemos hoje em uma sociedade de consumo na qual, a todo o momento, são ofertados novos produtos, rapidamente substitu ídos por outros, de última geração. Se, no passado os indivíduos esperavam chegar à casa para saber se algu ém havia ligado, hoje, para muitos jovens, parece impensável viver sem telefone celular. Verificamos uma torção nas noções de urgência e prioridade, e o tempo é vivido e sentido de forma diferente das épocas em que o acesso a essas tecnologias era restrito. Nessa vertente, torna-se possível pensar em algumas expressões comumente usadas pelos jovens da cidade do Rio de Janeiro, que vão além do uso corriqueiro de uma gíria. Se, por um lado, os jovens dos anos 60 propagavam Paz e Amor, fazendo menção a um ideal, a um bem comum; por outro lado, encontramos atualmente referência ao Sinistro, ao Tá ligado, termos comumente utilizados pelos adolescentes e jovens, indicando um redimensionamento em relação àquilo que se pregava e em que se acreditava. Tá ligado, além de fazer referência a alguém “antenado ”, pode nos remeter ao frenesi do tempo do aqui e agora, ilustrado pelas ofertas de mais e novas tecnologias, sinalizando-nos um movimento imediatista de um tempo de urgência e instantaneidade. O Sinistro pode nos levar a pensar que, apesar de todo o avanço tecnológico, sempre há algo que foge ao esperado.

 

A educação na hipermodernidade: desafios ao educador

Ao voltarmos nosso interesse para os inúmeros trabalhos desenvolvidos na interface psicanálise e educação, notamos que cada vez mais a psicanálise encontra-se compelida a abordar os sintomas e “fen ômenos” presentes na educação hoje. Estes se revelam em todas as idades e classes sociais, e encontram expressão no número de encaminhamentos – oriundos das escolas – a ambulatórios médicos e psicol ógicos, e a consultórios particulares. Não raro, a permanência ou promoção de um aluno na escola é vinculada a algum tipo de tratamento. Sendo a psicanálise um saber que se propõe a pesquisar e a intervir além das práticas clínicas individuais, entendemos que, na cultura, ela expressa um compromisso ético e político desse saber com o mal-estar característico de nosso tempo. A psicanálise nas instituições é uma das várias possibilidades de inserção desse campo do saber na cultura, tendo sempre em vista a valoriza ção da singularidade e o respeito às especificidades. Pensamos que se trata de um desafio ético ao psicanalista, na contemporaneidade, procurar investigar como incide a lei na polis, para, dessa forma, vislumbrar um modo de intervenção nesse contexto.

Verificar os efeitos, na escola, de uma época na qual a função paterna claudica, tem se tornado algo rotineiro para os profissionais que trabalham, direta ou indiretamente, no meio educacional. Desde episódios particulares até circunstâncias que abrangem turmas e instituições inteiras, cada vez mais deparamos com as conseqüências de uma época na qual os sujeitos encontram-se carentes de referências. Sejam os alunos, seus responsáveis, ou os educadores, todos parecem concordar que “não se fazem mais jovens/pais/professores como antigamente”. Deixando de lado a dimensão saudosista da frase, podemos verificar situações dentro do espaço escolar que, muitas vezes, explicitam uma época em que os indiv íduos parecem estar à deriva. Mas, como verificamos na prática os efeitos do declínio da autoridade? Alguns dados obtidos a partir de entrevistas com pais de alunos novos, freqüentes nas escolas particulares, nos servir ão de base, aqui, para exemplificar um modo possível de verificar as conseqüências, na educação, de uma sociedade desbussolada.

Todos os anos, um grande número de crianças e de jovens é matriculado em escolas, seja pela primeira vez ou não. Esse é um momento delicado, pois, apesar de ser tudo novo e desconhecido para ambos os lados, espera-se que esse novo aluno adapte-se à escola. Desde o começo de nossa prática em instituições, adotamos um procedimento que tem nos parecido muito útil, quando desejamos recolher informações sobre esse novo aluno: as entrevistas com os pais.

Precisamos ressaltar que os moldes dessas entrevistas devem respeitar certos parâmetros, uma vez que nosso interesse é o de identificar o que os responsáveis julgam caber à escola saber sobre esse aluno. Trata-se de entrevista aberta, e muitas vezes iniciamos a partir da seguinte pergunta: “o que você(s) acha(m) que a escola precisa ou deve saber a respeito do seu filho(a)?”. Na grande maioria das vezes, os responsáveis começam a discorrer sobre algumas características do comportamento da criança. Nesses momentos, em alguns relatos, notamos como os pais cada vez mais encontram dificuldade em delimitar espaços, estabelecer limites e compartilhar momentos de lazer junto aos filhos. “Ele tem uma personalidade tão forte que só faz o que quer. Não consigo que ele me obedeça”, ouvimos recentemente de uma mãe, referindo-se ao seu filho de dois anos e meio. Ela continuou a entrevista dizendo que, apesar de ter lido vários livros que “ensinavam” como lidar com os meninos, não conseguia que seu filho melhorasse o comportamento.

Esse é um dos inúmeros exemplos do que entendemos ser uma desautorização dos pais em relação a seus próprios filhos. Se outrora as regras eram claras e indiscutíveis, atualmente, por mais que elas existam, alguns pais não conseguem colocá-las em prática. A proliferação de livros e manuais educativos que julgam dar conta da educação e do comportamento das crianças, consumidos em larga escala, revela uma das características da hipermodernidade: o psicologismo 2 (Lipovetsky, 2004). Palavras e expressões como trauma, neurose, complexo de Édipo, frustração, inteligência emocional, entre outras, são comumente utilizadas pelos pais, para justificar a ausência de lei e hierarquia na dinâmica familiar, na qual, muitas vezes, quem parece “mandar” é o filho.

Os professores também são contundentes em suas críticas às crianças e aos seus pais, porém, algumas vezes, na posição de pais, eles próprios apresentam o mesmo comportamento daqueles a quem criticam. Alguns educadores reclamam da omissão das famílias, enquanto outros vivenciam situações em que são as próprias famílias que desrespeitam por completo os limites estabelecidos pela escola. Se antigamente o professor era uma figura que merecia respeito por ocupar um lugar hierarquicamente diferente do aluno, atualmente é comum ouvirmos expressões tais como: “meu pai paga”, “você não manda em mim”, ou “você não pode me obrigar ”; comentários esses freqüentemente validados pelos responsáveis das crianças e/ou adolescentes.

Muitas vezes, ao sermos convocados a intervir junto a esses alunos, ouvimos deles que não precisam acompanhar as aulas, pois chegam a casa e pesquisam na internet, ou pedem aos pais uma aula particular. Esse é um exemplo da época em que vivemos, marcada pelo capitalismo desenfreado, em que a lógica vigente é aquela do “tudo tem um preço” e pode ser comprado.

 

Psicanálise aplicada à educação: uma forma de intervenção

Ao abordarmos a interface psicanálise e educação, entramos no terreno que alguns autores denominam psicanálise aplicada à terapêutica; terreno que abrange, predominantemente, demandas relacionadas aos grandes problemas sociais de nossa civilização e que têm conseqüências para a prática do psicanalista. A psican álise aplicada, para defini-la de forma sucinta, é a aplicação da psican álise a certos campos sociais, os campos do mal-estar na civilização, aos quais os fundamentos da psican álise estão aplicados (Mattos, 2003). Partindo da constatação de que o futuro da psicanálise, previsto por Freud (1919/1976) em Linhas de progresso na terapia psicanalítica, tornou-se o nosso presente, a psicanálise encontra- se ampliada a contextos e problem áticas que não estavam ao alcance da ação do psicanalista.

Ao pensarmos em nossa prática em instituições de ensino, ao longo dos últimos anos, verificamos a interlocução com premissas educacionais e constatamos que os princípios da educação são pautados em certezas embasadas pelo discurso da ciência. Percebemos essa característica nos projetos pedagógicos das escolas, nas divisões dos alunos por faixa etária e nos “rótulos” impressos nos estudantes que, por algum motivo, escapam ao esperado, como é o caso dos que apresentam os chamados transtornos de aprendizagem. Procura-se oferecer as mesmas oportunidades a todos, por meio da normatização dos objetivos a serem alcançados ao final do processo. Acreditase que, ao se respeitar uma seqüência previamente estabelecida pelos parâmetros educacionais, o aluno poderá chegar “pronto”, quando finalizar o ciclo estudantil. E tudo que transcende esses princípios, que funcionam como ‘certezas’, deve ser excluído ou desconsiderado.

A investigação sistemática, aliada à prática em nosso campo de atua ção, incrementa nosso interesse em discutir a interseção entre esses dois campos: a psicanálise e a educação. Entendemos, em consonância com a literatura pertinente, que uma das condições de possibilidades da interface entre esses dois saberes é o que denominamos “balançar as certezas”. Destacamos o termo balançar, designando algo a ser deslocado, mexido, porém, de modo algum, destruído.

A psicanálise se propõe ao debate, à discussão, o que em nada se aproxima à destituição ou substituição da educação. É, como nos indica Miller em La experiência de lo real em la cura psicoanalítica (Miller, 2003a), ao usar a expressão “perturbar a defesa ”, no sentido de desalojar, desacomodar ao se referir à tarefa do analista. O autor ressalta, inclusive, que, na clínica, a direção do tratamento é orientada por essa prática que em nada se aproxima de desmentir a defesa. De forma análoga, pensamos que a psicanálise quando convidada a intervir no campo da educação, orienta-se no sentido de balançar as certezas, porém não se propõe a substituí-las, ou negá-las.

Em uma época marcada pela re-dimensão do tempo e do espaço, na qual verificamos uma torção nas noções de urgência e prioridade, acreditamos que a psicanálise se apresenta como um meio possível de acolher as demandas passíveis de serem tratadas. Em um tempo em que freqüentemente os professores apresentam-se desautorizados, os pais desnorteados e alguns comportamentos dos alunos escapam às incessantes promessas do discurso da ciência de tudo significar, o acolhimento das demandas de fala pode ser traduzido como um meio poss ível de se criar um espaço de reflex ão no qual haja a possibilidade da emergência do novo.

 

Conversação: com a palavra... Os educadores

Ao constatarmos que a psicanálise pode operar além da situação na qual tradicionalmente opera, ou seja, dentro dos consultórios, podemos pensar que, de certo modo, ao encontrarmos analistas nos hospitais, nas escolas, nos fóruns, por exemplo, mais próximos podemos estar daquilo que se impõe à experiência analítica: a emergência do real (Forbes, 1998).

Sendo o real aquilo que excede, impossível de se dizer, tal qual o sexo e a morte, o desejo aí, segundo Lacan (1979), aparece para evidenciar a perda radical de seu objeto. A idéia de perda, à qual se recorre aqui, aponta para um encontro em que o real é o que se faz presente. Ao sermos convocados a intervir dentro das institui ções, cremos que ali, da mesma forma que acontece nos consultórios particulares, o que está em jogo é a impossibilidade de nos esquivarmos desse encontro. Mas de que forma verificamos, na prática, a possibilidade de darmos um tratamento possível ao real que se impõe de forma peculiar na atualidade dentro do espaço educativo?

Ofertar espaços de fala que possibilitem aos sujeitos, sejam eles alunos, pais ou educadores, estabelecer trocas com seus parceiros é uma das formas possíveis de trabalhar fora dos consultórios, com uma orientação psicanalítica no âmbito da psicanálise aplicada. Faz-se necessário, porém, descrever melhor o contexto no qual desenvolvemos o trabalho e o que pretendemos verificar como efeito dessa oferta.

Santiago3 (2006), ao debater sobre seu projeto de pesquisa e interven ção intitulado Práticas escolares de atendimento à “criança-problema”: desafio da inclusão diz que na primeira etapa da proposta diagnóstica por ela chamada de clínico-pedagógica é feito um histórico do caso, a partir do qual se estabelece o perfil do aluno. Esse hist órico é estabelecido tendo por base informações fornecidas pelos educadores a respeito de um aluno, buscando- se, desta forma, delinear três pontos: 1) o que é dito a respeito do aluno; 2) quais são os elementos teóricos que se encontram incorporados nesse discurso, constru ído na tentativa de explicar o problema do aluno; 3) que informa ções desse discurso são contraditórias ou vagas.

Entendemos que o que aqui se explicita, no contexto de uma oferta de fala aos educadores, é algo da ordem de uma conversação, entendida como um método de pesquisa em educação, enfocando, sobretudo, a interação social como forma de co-construção de significados. Podemos dizer que, por meio da oferta de um espaço para conversação, deseja-se possibilitar um momento para que os educadores, os alunos ou os pais possam estar juntos e criar, desta forma, um significado partilhado sobre suas experiências, inquietações e expectativas. Não se trata de uma comunicação, pois se trabalha com a impossibilidade de exclusão do mal-entendido.

A conversação “é exercício do espírito através da palavra dialogada ” (Forbes, 1998). Segundo Marc Fumaroli (1994), um estudioso do tema, em uma conversação “pode-se discutir, disputar, se entreter, trocar, papear, coloquiar, palavrear, em todas as épocas e em todos os lugares” (p.116). Através da prática da conversação, acreditamos ser possível criar novos significados para as nossas falas e discursos, o que permitiria, talvez – é uma aposta rever conceitos e modos de atuação.

A conversação visa promover a participação dos sujeitos em um debate vivo, uma reflexão. Nela, à diferença da situação analítica, a palavra circula entre os sujeitos envolvidos. Lembremos, a propósito dessa distinção fundamental, que na experiência clínica não se trata de diálogo entre dois sujeitos, já que o analista somente ali comparece como saber suposto ou como semblante de objeto. Na experiência da psicanálise, estrito-senso, trabalha-se no sentido de promover no sujeito uma escuta de sua própria fala, dos significantes que marcam sua existência. É do Outro, ou seja, do lugar do analista, a quem endereça essa fala, que o sujeito ouvirá sua mensagem de modo invertido. Então, a questão “o que eu desejo? ” se configurará, a partir do silêncio do Outro, na questão: “o que queres de mim?”

Já na conversação, a palavra circula e a suposição de saber endereça-se ao próprio dispositivo, numa aposta de que algo novo, inédito surja a partir do convite à fala. É justamente a associação livre que é evocada por J.-A. Miller em sua definição da conversação: “Uma conversação é uma série de associações livres. A associa ção livre pode ser coletivizada na medida em que não somos donos dos significantes. Um significante chama outro significante, não sendo tão importante quem o produz em um momento dado” (Miller, 2003b, p. 16).

Para tanto, é necessário que exista a confiança, observa Miller, a confiança na cadeia significante, a aposta no poder da palavra. Assim, a confiança, a transferência, instaura a possibilidade de associação livre, tanto na conversação como na clínica. Mas, diversamente do que se dá numa conversação, a associação livre é regra fundamental no tratamento analítico. Miller fala mesmo de uma “associação livre” coletivizada, da qual se espera certo efeito de saber. Para Santiago (2006), na conversação, tal como na clínica anal ítica, parte-se do sintoma, daquilo que não vai bem. Os professores e alunos localizam sem dificuldade o que não funciona bem na relação entre eles e no processo educativo. “A forma como o sintoma é identificado, na escola, fornece o tema para as Conversações: “sexualidade e violência”, “indisciplina”, “problemas com autoridade”. Porém, o que a Conversação vai privilegiar não é o saber fixado previamente sobre cada um desses problemas, um saber do Outro, que acaba nomeando o sujeito, ofertando-lhe uma identificação indesejada: criança violenta, jovem marginal. Numa outra perspectiva, trata-se, por um lado, de localizar os pontos de condensação atuais do mal-estar na cultura, e, por outro, de valorizar as formas que foram encontradas para abordá-los.”

A prática da conversação, em uma instituição, visa à inauguração de uma prática de fala distinta daquela praticada no dia-a-dia, e, a partir dela, a produção de um saber em que a responsabilidade de cada um dos que estão nela envolvidos encontra-se engajada.

 

Por uma prática entre outras

Reconhecemos que a educação é um discurso social em circula ção e sabemos que a psicanálise se põe a dialogar com ela nas escolas, na universidade e até mesmo nos meios de comunicação. Em se tratando de nossa prática, as escolas mostram-se, por vezes, abertas à interlocução, ao se interessarem por trabalhar com profissionais orientados pela psicanálise. Quando isso ocorre, há interesse, por parte do corpo docente, discente e pais de alunos, em querer saber o que esses profissionais têm a lhes dizer. Podemos supor que certas condições são necessárias para que o saber da psicanálise possa ser operativo, pois, de acordo com Kupfer (2001, p. 118), “A chuva fará germinar a semente se o solo for fértil o saber da psicanálise poderá ser operativo para um educador se ele puder se apropriar desse saber”. Apropriar-se, em sua prática do dia-a-dia, do que é discutido e debatido sobre determinado tema em um grupo é o que se vislumbra ao se trabalhar com o instrumento da conversação. Vejamos como a utilizamos na prática.

Em nossa experiência, bem como em grande parte das escolas como um todo, são reservados momentos no planejamento anual para reuniões com o corpo docente e conselhos de classe. Algumas delas também costumam contar com a presença de outros funcionários da instituição nessas ocasiões. O conte údo dessas reuniões costuma variar de acordo com a proposta pedag ógica da escola, ou seja, de acordo com a orientação da instituição, o tipo de aluno que se deseja formar, a metodologia de trabalho empregada e as formas de avaliação comumente utilizadas.

Muitas vezes, os membros que compõem a direção da escola, juntamente com a coordenação pedag ógica, são os responsáveis dela defini ção da pauta dessas reuniões, que visam discutir e refletir sobre alguns temas junto aos educadores, ou fazer uma avaliação coletiva do aluno para poder disponibilizar os boletins. Nossa proposta é abordarmos, aqui, essas duas situações – conselho de classe e reunião de professores –, ambas entendidas, em um contexto específico, como momentos de fala, de conversação. Vislumbramos, dessa forma, demonstrar um uso possível da psicanálise quando convocada a intervir dentro de institui ções educacionais.

Alguns esclarecimentos sobre o formato dos conselhos de classe aos quais nos referiremos aqui se fazem necessários. Isso porque os moldes desses encontros diferem daqueles comumente utilizados. A organização desses conselhos aproxima sua dinâmica do que denominamos uma conversação. Os conselhos de classe, assim concebidos, revelam-se momentos propícios para que os diferentes discursos presentes dentro da escola possam circular.

No caso tratado neste trabalho, referimo-nos a uma experiência particular, uma vez que se trata de uma instituição (creche) que tem por hábito organizar seus conselhos de classe de modo que todos os seus funcion ários (do porteiro à direção geral) possam participar. Esses encontros ocorrem duas vezes ao ano e duram todo um dia de trabalho. Nesses momentos, toda a equipe faz uma avaliação do semestre que se encerra e troca idéias sobre determinados alunos ou experiências específicas por eles vivenciadas. Estas são as mais diversas possíveis: às vezes trata-se de mães que, aparentemente, não colaboram com a adaptação do filho(a) à escola; responsáveis que pouco aparecem na unidade escolar, inviabilizando a parceria família/instituição; babás e avós (principalmente estas últimas) que se intrometem em tudo e que atrapalham o andamento das atividades, ao chegarem mais cedo, entrarem na sala, ou se recusarem a mandar um aluno a uma atividade extraclasse por achar que é muito perigoso. Em outros momentos, a equipe compartilha a vitória e o sucesso de algum educador, ou aluno, seja no desenvolvimento dos projetos pedag ógicos, seja na forma de se relacionar com o grupo.

Em todos os conselhos de classe, a direção destina um momento para que os profissionais de psicologia possam fazer algum trabalho junto ao grupo de educadores. Ao longo desses encontros, diversos instrumentos são utilizados para que as diferentes falas possam emergir. Algumas vezes são feitas dinâmicas de grupo; em outras, assiste-se a um filme previamente selecionado, utilizado como deflagrador para debates posteriores, entre outras atividades.

Já as reuniões de professores acontecem, normalmente, uma vez ao mês, e podem ser coordenadas tanto pelo coordenador pedagógico, quanto pela psicóloga da instituição. Privilegiaremos essa última possibilidade em nossa discussão. Os temas das reuniões podem ser pré-estabelecidos (ex: limites, agressividade, a adolescência na contemporaneidade, etc.) ou de acordo com o interesse ou necessidade dos professores. Algumas vezes também podem ter o formato de estudo de caso, e os professores que desejarem podem trazer o caso de algum aluno, ou até mesmo alguma situação específica para debater junto ao grupo.

Notamos que, num primeiro momento, os professores vêm às reuni ões com a expectativa de que sair ão dali com uma solução para seus problemas ou questionamentos. Outras vezes, esperam receber uma capacitação que possa ajudá-los em seu trabalho dentro e fora de sala de aula, porém, não é disso que se trata. O objetivo dessas reuniões é abrir um “espaço” no qual esses profissionais possam falar sobre suas práticas, ouvir o que outros têm a dizer a respeito de suas inquietações e experiências. Trata-se da oferta de um momento de fala e de escuta em que os profissionais da equipe têm a oportunidade de observar e analisar os deslocamentos produzidos tanto nos educadores, quanto nos alunos a partir desses encontros.

Sabemos que, nesse tempo, da mesma forma que acontece em uma sessão de análise, a oferta cria uma demanda e, dessa forma, verificamos que, por vezes, os educadores já incluem em seus planejamentos pessoais momentos reservados para as reuni ões. Muitas vezes passam a contar com essa hora de discussão, na qual os relatos sobre suas práticas, as dificuldades e conquistas referentes às experiências vividas por eles em sala de aula podem ser ouvidas, discutidas e compartilhadas com outros colegas, de tal forma que ao final possa se produzir um novo olhar e novas indagações sobre a sua ação no espaço educacional. Freqüentemente, em suas falas, os educadores dizem que não esperavam que esses encontros fossem ser tão benéficos, já que muitas vezes verificam mudanças em seus alunos e neles próprios. Dizem ainda que, muitas vezes, custa- lhes reconhecer que tais mudanças se dão como efeito do trabalho que estão desenvolvendo com determinado aluno.

Nosso objetivo nessas reuniões não é oferecer à equipe uma terapia de grupo, mas privilegiamos trabalhar com todos juntos por acreditarmos que a troca de experiências e a interlocução entre eles podem favorecer um questionamento a respeito das diferentes significações atribuídas às situações experimentadas, dentro do espaço escolar, junto aos alunos. Além disso, estamos certos de que nessas ocasiões eles podem refletir sobre o mal-estar vigente no campo da educação, sem, necessariamente, tomarem como base reduções maniqueístas, nem um discurso pautado única e exclusivamente na impotência e na desilusão de uma classe.

Neste ponto, concordamos com os profissionais do Grupo Ponte, ao considerarmos que a própria dinâmica de nossas reuni- ões possibilita ao grupo de educadores “fazer um giro em suas produções discursivas, produzindo algo diferente. Uma vez que não encontram respostas fechadas de como devem conduzir sua tarefa educativa, os professores se vêem lançados a criar seu próprio fazer pedagógico considerando o singular inevitável que o desafia em cada aluno” (Bastos, 2004, p.126).

Indicamos que a intenção dessas reuniões não se resume a acolher as diferentes significações das experiências vivenciadas no cotidiano desses educadores, em termos de sustentação imaginá- ria, pensamos também que nosso movimento vai, inúmeras vezes, em sentido contrário, ou seja, no sentido “de produzir furos no imaginário, trabalhando com as idealizações que imperam no campo educacional para dar lugar ao simbólico, a um fazer que seja da ordem de um possível” (Bastos, 2004, p.125). Nem tudo se sabe, e essa é uma condição fundamental para que qualquer tipo de transmiss ão possa se dar, garantindo a possibilidade do surgimento do inusitado, do novo.

Muitas vezes, para que o novo possa surgir na fala dos educadores é necessário que haja a explicitação dessas produções discursivas. Para que isso se dê, é necessário que eles possam se dar conta do que estão falando. Muitas vezes são eles próprios os responsáveis pelos obstáculos que produzem, inviabilizando as modificações aparentemente tão almejadas. A psicanálise nos ensina que aquele que fala freqüentemente não consegue ouvir o que diz. Isso dificulta a implicação de quem fala naquilo que relata e naquilo do que, eventualmente, se queixa.

O extrato de uma reunião com uma mãe de um aluno, em uma escola, é eloqüente em relação ao que queremos transmitir sobre este ponto: o quão difícil é, para a pessoa que se queixa, ouvir o que ela própria diz. A mãe em questão relata, em dado momento da entrevista, como lhe era insuportável perceber que se colocava como refém de seu filho. Queixava-se de ser a responsável pelos deveres de casa do filho, visto que, se não olhasse sua agenda, no dia seguinte as tarefas chegavam à escola sem terem sido feitas. “Isso não é minha obrigação”, dizia ela.

Ao longo da conversa, foi sendo assinalada a forma como ela costumava, em suas ações, antecipar-se às do filho, o que a leva a concluir que, para que ele mudasse, seria preciso que ela se modificasse. Apesar disso, essa mãe diz, ao final da entrevista, que assim que chegasse a seu apartamento, olharia os deveres de casa do filho “para organizar tudo que está atrasado”. A partir dessa fala, uma pergunta: “então, após esta conversa, é você quem vai organizar tudo para ele?”. E foi esse retorno que lhe permitiu escutar sua própria fala.

Verificamos, em nossa experiência, que esse tipo de iniciativa a abertura de um espaço para conversação – é valorizada pelas equipes nas quais esse trabalho é desenvolvido. É o que a presença maciça dos educadores nos indica. Muitos deles dizem que se sentem aliviados por perceberem “que isso não acontece só comigo” e que “eu ainda posso fazer diferente”. Em alguns casos, notamos que a demanda de escuta de alguns professores ou de outros funcionários transcende os objetivos e o momento das reuniões. Quando isso acontece, costumamos convidá-los a pensar em procurar um atendimento individual, no qual eles possam tratar de suas questões. Foram poucas as vezes em que os educadores, de forma geral, formularam o interesse em procurar ajuda, por ém, quando isso acontece, efetuamos os encaminhamentos cabíveis.

A seguir, trazemos um caso em que constatamos a emergência de uma nova significação por parte de uma educadora a respeito de um sintoma que lhe causava grande sofrimento psíquico. Pensamos que, de certo modo, após participar de uma conversação na qual pôde ouvir outras falas sobre o que lhe causava sofrimento, ela conseguiu vislumbrar uma possibilidade de tratamento do real sinalizado pela angústia.

 

Um caso de encaminhamento: entre a escuta e a intervenção

O caso que aqui relatamos diz respeito a um episódio ocorrido em um conselho de classe cujo tema era a educação na atualidade. Houve um debate a respeito do grande número de jovens e adultos, sejam estes pais ou professores, que têm sido diagnosticados como portadores de Síndrome do Pânico. Nessa ocasião, a discuss ão se iniciou graças a um episódio envolvendo uma mãe que, na saída da escola, descontrolou-se ao receber a informação de que tinha havido um homicídio nas redondezas. Frente à súbita crise dessa mãe, membros da coordenação intervieram. Entretanto, não a tempo de impedir que grande parte do corpo de funcion ários presenciasse a cena.

A mãe em questão nos disse que já estava sendo medicada e que tinha sido diagnosticada por um psiquiatra de sua confiança como um caso dessa síndrome, atualmente muito comum. Dizia que já tinha pesquisado na internet tudo sobre seu problema e que era algo que aparecia em sujeitos cuja história familiar era permeada por casos similares, pois era uma doença de ordem genética. Percebemos que essa mulher estava colada à fala de seu médico e, dessa forma, não havia espaço para que pudesse considerar outras formas de enfrentar o problema.

Ao discutirmos esse episódio no conselho de classe, em um primeiro momento, ouvimos falas do tipo: “isso é frescura, pobre não tem isso; se precisa sair, pegar um ônibus não tem tempo para chiliques ”, ou “essa mulher é maluca, uma desequilibrada” . Conforme o debate foi tomando corpo, alguns funcion ários começaram a acrescentar outras falas que davam novo tratamento à questão: “Não é isso gente; o problema é que está todo mundo muito inseguro, sozinho. Não contamos com a polícia, não contamos com o governo, realmente tem gente que não agüenta o tranco, não tem nada a ver com ser maluco ou não, ser pobre ou rico”. Aproveitamos o gancho para fazer alguns esclarecimentos, sempre nos utilizando do saber da psicanálise, principalmente no tratamento dado à angústia, que em muito se diferencia da concepção puramente médica. Assim que a reuni ão foi encerrada, fomos procurados por uma funcionária que dizia: “Não agüento mais, preciso de ajuda!”.

Essa funcionária nasceu e mora em uma comunidade carente muito violenta, fato que a obrigou a faltar ao trabalho em diversas ocasiões. Relatou que há quase um ano não conseguia sair sozinha de casa e que toda sua família sugeriu que ela procurasse um tratamento. Não dormia no escuro e costumava roubar os remédios de tarja preta de sua mãe, pois freq üentemente se sentia tão mal, que achava que iria morrer. Tinha taquicardia, suadouro, ficava toda trêmula e, algumas vezes, chegava a desmaiar. Não entendia o porquê de isso estar acontecendo com ela, pois não tinha um medo específico, mas esperava que fosse passar naturalmente. Entretanto, quanto mais o tempo passava, mais ela se sentia mal, e cada vez mais se via refém de seu próprio medo. Apesar disso, não procurava tratamento por dizer que não era maluca.

Todavia, essa mulher, após ouvir diferentes colocações a respeito de um problema que também era seu, começou a achar que poderia receber ajuda e que não é só maluco que procura tratamento. Disse-nos que agora entendia algo que tinha ouvido há algum tempo, em uma dessas reuniões. Em suas palavras, a discussão fez com que ela se lembrasse da seguinte frase, dita em um momento de descontração em uma reunião qualquer: “nós não precisamos sofrer tanto, podemos pedir e receber ajuda ”. Era essa a ajuda que vinha pedir, demonstrando como tudo aquilo era extremamente difícil para ela. Prontamente, sua necessidade foi acolhida, com o encaminhamento para o ambulatório de uma institui ção pública, na qual trabalham psicólogos igualmente atravessados pela psicanálise.

 

Efeitos da inserção da psicanálise no meio educativo

Podemos pensar que ao demandar o saber da psicanálise, seja ao requerer ajuda ou simplesmente ao demonstrar interesse por aquilo que dela decorre, o educador está construindo uma demanda endereçada a algu ém que se dispôs a ouvir e ajudar. Dessa forma, podemos entender que, ao perguntar algo a um profissional norteado em seu fazer pela psican álise, essa demanda já denuncia algo sobre o seu desejo (Kupfer, 2001). É somente a partir desse lugar que o educador poderá se fazer permear pela psicanálise.

Ao se apropriar dessas respostas oferecidas pela psicanálise, atrelandoas ao seu desejo, supomos que o educador possa articular, a partir de seu estilo, o que descobriu com o seu fazer dentro do cotidiano escolar. Nas palavras de Kupfer (2001, p.119), “ao educador-aluno caberá destroçar, despedaçar, engolir pedaços, apenas aqueles que interessam ao seu desejo, e transferir... o sentido ditado por seu desejo”. Vale salientar que o propósito da inserção da psicanálise na educa ção não é, de forma alguma, o de ditar regras, normatizar comportamentos, nem controlar os sujeitos. Pelo contrário, podemos dizer que a psicanálise vai na contram ão dessa lógica, e é justamente por isso que ela pode ser útil. Nesse sentido, Kupfer (2001, p. 120- 121) afirma: “em tempos nos quais o pragmático, o lucrativo, otimizado, imperam, é preciso resgatar um ensino em que o educador terá de se jogar no sabor do vento, sem intenção de manipular, fazer render. Com isso, resgata-se uma posição de educador que já existiu tempos atrás, mas que desapareceu para dar lugar ao mestre que instrui ou que ensina sem saber ‘para que serve’ o que ensina”.

Resgatar a figura do educador como um sujeito desejante e, portanto, castrado, pode fazer com que, cientes da incerteza sobre o saber, os educadores possam ser parceiros dos alunos em busca daquilo que lhes falta e sobre o qual desejam algo saber. Os educadores fariam, então, dos alunos, mestres de si próprios. Em decorr ência disso, mesmo que pudéssemos pensar no sucesso da educação, isso pouco importaria, porque o que está em jogo aqui não é atingir o sucesso, mas a constante busca pelo saber não sabido, cuja dimensão é de infinitas possibilidades.

 

Conclusão

Privilegiamos, neste texto, os temas que refletem as conseq üências de uma modernidade elevada à potência do hiper. Não podemos, contudo, desconsiderar que grande parte das teorias que nos ajudam a pensar a interface psicanálise e educação surgiram com a flexibilização do saber oriundo da tradição. Não se trata de condenar a hipermodernidade, nesse contexto, nem de acreditar que por meio do Nome-do-Pai os indivíduos estão a salvo do desamparo, mas sim de pensar um modo possível de dar um tratamento ao real característico de nosso tempo.

O campo da educação, em nossa época marcada pelo imperativo do gozo, pela ênfase no universal, no para todos, em detrimento do particular, caracteriza-se pelos transtornos ligados à aprendizagem, pelos educadores desautorizados e pais desnorteados.

A psicanálise, ao afirmar que há sempre algo que escapa, que resta, que não consente nos imperativos e armadilhas do mal-estar da atualidade, caminha na contramão dessa lógica hipermoderna. Posto que nem tudo se transmite, e que nem tudo pode ter um sentido, deparamos com a emergência do real na educação. Pensamos que a psicanálise pode nos ser útil na tentativa de dar um tratamento possível a esse irredutível que se apresenta de forma maciça nas escolas, característica própria de nossa época. Desta forma, em nossa prática em instituições de ensino, como profissionais de psicologia orientados pela psicanálise, a proposta não é um resgate da autoridade pela via de um autoritarismo, mas o exercício de nossa função, de forma a preservar o impossível inerente à educação.

Se por um lado, na atualidade, o discurso da ciência apresenta- se como representante único do saber, a psicanálise atribui ao sujeito um saber que lhe é próprio, a partir de sua fala. Entendemos que ofertar um “espaço” para que educadores, pais ou alunos falem sobre suas inquietações, angústias e queixas, uma oportunidade de conversação é fazer uso – e acreditamos, um bom uso– da psicanálise, na busca de soluções inéditas para os impasses próprios do meio educacional. Apontamos, assim, a possibilidade de esses indivíduos poderem falar do saber do qual são detentores e que é exclusivo de cada um deles. É esse fato que garante a especificidade da psicanálise, não abrindo mão de dois princ ípios básicos, presentes desde sua concepção: trabalhar a partir da conting ência, e ter como norteador ético a responsabilização dos sujeitos.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: lularubim@gmail.com
E-mail: besset@terra.com.br

Recebido em maio/2007
Aceito em setembro/2007

 

 

NOTAS

1 Texto referente à dissertação de mestrado da autora denominada “Psicanálise e Educa ção: interfaces”, defendida no PPG de Psicologia da UFRJ, em março de 2007
2 Uma revista francesa denominada Psychologies, destinada ao grande público, editou um número ‘extraordinário’, relativo a outubro/ novembro de 2007, sobre ‘Os novos desafios dos pais: do nascimento à adolesc ência’; e entre os temas anunciados na capa, estão: ‘exercer a autoridade’ e ‘acompanhar sua escolaridade’
3 Palestra proferida nas Jornadas do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâ- neas, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – NIPIAC/ UFRJ, outubro de 2006
5 êxtimo: neologismo criado por Lacan, para designar uma exterioridade interna
* Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Clínica Psicanalítica (CLINP), do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa para a Infância e a Adolescência Contemporâneas (NIPIAC) e do Grupo Aleph
** Psicanalista, docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenadora do Grupo de Pesquisa Clínica Psicanalítica (CLINP), pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa para a Infância e a Adolescência Contemporâneas (NIPIAC) e membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)

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