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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.12 n.23 São Paulo dez. 2007

 

DOSSIÊ TERAPÊUTICA E ESTÍLOS DA CLÍNICA

 

Do universal ao singular: um tratamento possível do fracasso escolar

 

From the universal to the singular: a possible treatment of school failure

 

De lo universal a lo singular: un posible tratamiento para el fracaso escolar

 

Ruth Helena Pinto Cohen*

Universidade Federal do Rio de Janeiro
Escola Brasileira de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo traz o testemunho de duas práticas de diálogo entre a psicanálise e a educa ção. No primeiro momento, expõe algumas conseqüências retiradas da conversação entre dois laboratórios do CIEN (Centre Interdisciplinaire sur L’enfant). No segundo, depoimentos são extraídos do projeto de pesquisa e intervenção Aleph, Sobre as Etiologias do Fracasso Escolar, desenvolvido no curso de Pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: Fracasso escolar, Psicanálise, Educação, Infância.


ABSTRACT

The present article refers two practices and the dialogue between psychoanalysis and education. At a first moment, it introduces some consequences of the conversation between two laboratories of the CIEN (Centre Interdisciplinaire sur L’enfant). At a second time, the testimonies are drawn from the research project and intervention Aleph, about the Etiologies of the School Failure, developed in the postgraduation course of The Federal University of Rio De Janeiro.

Keywords: Failure in the school, Psychoanalysis, Education, Infancy.


RESUMEN

El presente artículo fue construido a través de dos prácticas de diálogo entre la Psicoanálisis y la Educaci ón. En el primer momento, el expone algunas consecuencias obtenidas de la conversación entre dos laboratorios de lo CIEN (Centre Interdisciplinaire sur L’enfant). En el según momento, los testimonios son extraídos de lo proyecto de investigación y intervención Aleph, sobre las Etiologías del Fracaso Escolar creado en el curso de pos grado de la Universidad del Rio de Janeiro.

Palabras clave: Fracaso escolar, Psicoanálisis, Educación, Infancia.


 

 

Uma proposta de tratamento do real na educação

Na interseção entre psicanálise e educação, o trabalho com o fracasso escolar vem oferecendo àqueles que se vêem convocados a dizer algo sobre os sintomas que aparecem nas escolas e nas famílias a possibilidade de dar um testemunho sobre os desafios e as oportunidades que essa interface produz. Cabe lembrar que a psicanálise aplicada não está desvinculada da psicanálise em intensão, ou seja, da psicanálise didática, que prepara operadores, como Lacan (2003) apontou na Proposição de 9 de Outubro de 1967. A grande questão que se impõe é: como se pode praticar a psicanálise nesse contexto, sem se afastar do discurso analítico e dando ênfase à singularidade?

O psicanalista cidadão, como agente da presentificação da psicanálise no mundo, vem se deparando com o que é típico de nossa época: a violência que invade a educação, a indiferença em relação ao saber, a inibição cognitiva, a angústia paralisadora e, somando- se a todos esses fatores, as novas formas de evasão que transcendem o corpo discente e chegam aos professores, que, ameaçados em sua autoridade de educadores, adoecem cada vez mais e abandonam o magistério. São faces das demandas que encorpam e desafiam os psicanalistas a um saber-fazer com o real ineducável, próprio aos mecanismos inconscientes.

Como podemos pensar a transmissão de um saber, quando escutamos Lacan (1975) dizer, em La trosième, que não há a menor esperança de se alcançar o real pela representação? Seria a via do sintoma uma tentativa de dizer algo sobre o que vem do real?

À luz da vertente lógica da formação do sintoma, temos investigado as etiologias do fracasso escolar, na contingência dos encontros da criança e do adolescente com os Outros da educação. Buscamos nos espaços coletivos de conversação identificar como esses fracassos se repetem, tentando achar saídas possíveis para esses “atos que falham”. Temos interrogado1 principalmente os discursos do mestre e o discurso universitário, que, de maneira geral, predominam nas instituições de ensino. O que vem orientando nossa prática é a ênfase dada ao singular de cada sintoma, ou seja, a seu modo de gozo e ao que faz cada caso ser único.

Cabe, a título de esclarecimento, fazer algumas considerações sobre o que chamamos de singular na orientação lacaniana, em contraponto com uma abordagem universal, e sobre como esse conceito também vai além da lógica particular. Concordamos com Miller (2001) em Le lieu et le lien, quando faz a distinção entre o universal, o particular – que se encontra referido ao universal e no qual o autor identifica os tipos de sintoma e o singular, que é o mais disjunto do universal, único, original, próprio ao sujeito, não servindo a nenhum tipo. Miller também nos esclarece em O rouxinol de Lacan que: só há sujeito quando o indivíduo se afasta da espécie, do gênero, do geral ou do universal. Não precisamos ignorar que existem categorias e classes – mas não devemos esmagar o sujeito com elas (Miller, 2003).

Nessa vertente, trago o depoimento de dois espaços de interlocu ção da psicanálise com a educação: o projeto de pesquisa-intervenção Aleph e um laboratório de mesmo nome ligado ao CIEN2(Centre Interdisciplinaire sur L’enfant), que, segundo Judith Miller, é uma iniciativa do Campo Freudiano que tem por objetivo expandir a investigação e o debate da psicanálise com outros discursos que têm incidência sobre a criança. Fundamenta-se no trabalho interdisciplinar e visa interrogar as problemáticas referentes à inf ância e à adolescência na contemporaneidade. Tem como ferramenta de trabalho um dispositivo chamado Laboratório de Investiga ção: um pequeno grupo interdisciplinar que se reúne a partir de um tema comum, ou de uma disciplina em questão. Segundo a filha de Lacan, é uma maneira que “o discurso analítico oferece àqueles que o praticam não somente poder mantê-lo, mas também ampliá-lo ... e o trabalho que o CIEN pode fazer é aprender com os outros. Sem isso, estaríamos segregados”.3

Tanto no projeto de pesquisa quanto no laboratório, interessanos investigar as incidências do real, buscando o saber-fazer com o que escapa a qualquer tentativa de simbolização, que excede aos discursos e desafia os processos de ensino e aprendizagem.

 

O laboratório Aleph

Instigados pelas questões acima citadas, um laboratório se formou com um grupo de profissionais que se reúnem em torno do tema do fracasso escolar, a partir do interesse gerado no percurso de cada um. Os participantes do laboratório vêm de diferentes campos do saber como educação, ciências sociais, psicologia e psicanálise, tendo alguns deles experiência na interface psican álise e educação. Os encontros se dão num espaço de conversação, levados pelo desejo de tornar operatória uma prática inédita da palavra, segundo Philippe Lacadeé.4

O fracasso escolar vem sendo analisado como sintoma, quando o ineducável, o real próprio aos mecanismos inconscientes, faz com que algo não funcione, ou seja, quando esse algo que não funciona se repete e se mantém, impedindo a aprendizagem. Com isso queremos dizer que no encontro contingencial com as demandas educacionais, o fracasso escolar pode resultar da tensão entre o impossível e o necessário dessa prática, na qual deverá estar sempre incluído um ponto de impossibilidade. Portanto, passar do impossível saber, inerente ao fracasso escolar, para um saber nãotodo, passível de ser aprendido, parece-nos o caminho que vem se delineando no espaço de nossos encontros.

Valemo-nos também do fato de Lacan, ao subverter a lógica formal aristotélica, ter se servido da matemática de sua época e tirado conseqüências de sua utilização. Em O saber do psicanalista, Lacan (1972a, 1972b) indica que a passagem da impossibilidade para a contingência opera-se pela “indecidibilidade”. Nossa proposta é trabalhar com a lógica do indecidível, demonstrada pela prova de Gödel (1931/1979) e utilizada por Lacan. Não sendo possível dizer que há uma etiologia verdadeira ou falsa do fracasso escolar, não sendo falsas ou verdadeiras as suas causas, podemos, pela indecibilidade definida por Lacan na relação do impossível com o contingente, dar um tratamento possível ao real do sintoma. O que “não cessa de não se escrever”, o real impossível, pela via da contingência, da lógica do “nãotodo ” (Lacan, 1985) pode cessar, possibilitar que algo da aprendizagem ocorra. O que podemos responder sobre esse desafio é o fato de vislumbrarmos a possibilidade de criar uma ação sobre o sem-sentido real, com sua insistência sintomática. Melhor dizendo, o que de real, no sintoma fracasso escolar, pode ser contingencialmente recriado. Nossa aposta se alicer ça na hipótese de que não poderemos achar a causa última para tal sintoma. A lógica do indecidível, por ser o espaço aberto à criação, atende aos diversos questionamentos que o fracasso escolar promove nos membros do laboratório. Em outras palavras, nossa proposta é, em um espa ço coletivo e interdisciplinar, verificar o singular de cada fracasso na contingência dos casos.

Inspirados pelas propostas do CIEN, temos praticado a conversação que, segundo Lacadeé, faz surgir o detalhe nas vias do sem-sentido, do inédito e da surpresa. Operamos sobre o não saber, em torno do vazio, sobre o qual emerge o mal-estar próprio à singularidade, deixando que o gozo, depositado na linguagem, possa encontrar vias de escoamento no laborat ório. Um encontro entre dois laboratórios: com a palavra os educadores

Como testemunho de nosso trabalho trago um extrato de uma situação vivida em uma escola, a partir de uma interlocução entre os dois laboratórios5. Da experiência dessa interseção resultou uma conversação com educadores da escola M., que vem demonstrando que a relação entre sujeitos só é possível como intersintom ática (Lacan, 1978).

Da oferta de trabalho oferecida pelos laboratórios, que se fizeram representar por um componente de cada grupo, estamos fazendo uma conversação com educadores de uma instituição que funciona parte com crianças abrigadas, devido à impossibilidade dos pais de as criarem, e parte com alunos que vêm da favela da Rocinha. Trata-se de uma escola gratuita, sem ser pública, exceto o transporte, que é pago pelas famílias que moram na Rocinha e querem que seus filhos estudem longe da violência. O abrigo é legislado por freiras, com ajuda da prefeitura, enquanto a escola se sustenta com as doações de uma escola particular. Participam dos encontros os professores, a coordenadora da escola e um secretário. Entre os temas debatidos estão: o exercício da autoridade, a agressividade dos alunos e as relações políticas da instituição.

Como poderíamos pensar algo que fizesse com que algumas crianças se comprometessem com a aprendizagem dos conteúdos? Essa foi uma das questões levadas para discussão em um dos encontros, e era o foco principal de apreensão dos professores. Recolocamos a pergunta: o que será que os alunos esperam dos professores, em cada caso, em cada momento, e vice-versa? Dessa interrogação surgiu o relato de uma situação que os incomodava. Trazem a história de um menino que, segundo eles, é “impossível, se recusa a aprender, a entrar em sala, mede forças com os professores o tempo todo e não se assume”. Essa última declaração diz respeito à sexualidade do aluno, que busca sempre atrair o olhar do Outro, principalmente o do professor. Sobre esse tema, discute-se: o que pode ou não pode ser visto? Qual é o desrespeito de que os professores se queixam e por que esse aluno precisa se assumir? Seria fácil a assunção do sexo para uma criança? O que pode significar sua escolha sexual? Como pode ser visto pelo Outro? Como este o vê? Lembremos de Morel (1995, p.6), que diz que “o real da castração é um ponto impossível dentro do sujeito ligado a uma falta real, fato determinante na escolha de seu sexo. Este impossível se prova em termos de sintoma, de pulsão, e se escreve como função fálica e objeto a”. Essas quest ões expõem uma criança que, ao tomar o que está no campo do Outro da educação, se vê capturada pela interpretação que o adulto faz dela. Se, por um lado, pediam que assumisse sua sexualidade; por outro, diziam também que devia ser discreto, não deixando que a turma percebesse sua escolha. Acreditamos que desses encontros contingentes, muitas vezes traumáticos, o fracasso escolar pode se produzir como sintoma e deixar sua marca na cultura. Como se assumir e se autorizar sobre a escolha sexual se o olhar do Outro paradoxalmente diz: “esconda, mas assuma?” Além de tudo, os professores mostram como exercem sua autoridade: uns usam a punição, outros fazem acordos, mas fica claro o lugar que muitas crianças ocupam na fantasia desses adultos e de que forma, em alguns casos à semelhança dos progenitores traumáticos, tratam esses alunos como filhos.

Constatamos que nas duas situações – no caso clínico, com a maneira de o sujeito se virar com seu gozo, ou no espaço coletivo de conversação com educadores – haverá sempre a extração da singularidade. Verifica-se, assim, a incidência política da psicanálise de orientação lacaniana, que vai de encontro aos sintomas de sua época.

 

O Projeto de pesquisa Aleph

Após alguns anos de pesquisa e, em particular, de trabalho de campo em três escolas do Município do Rio de Janeiro, a Equipe Aleph chegou à conclusão de que, apesar de terem características próprias, no fundo, as escolas sofrem do mesmo mal: sobrecarga de trabalho, falta de comprometimento de alguns funcionários da equipe docente, dificuldades com os laços sociais (família/escola/ professores) e poucos funcionários. Esses são alguns dos muitos e sérios problemas apresentados, mesmo no caso de escolas que possuíam resultados positivos na aprendizagem e tinham sido local de pesquisa e apontadas, no passado, como modelos. Não por acaso, a equipe Aleph chegou para realizar um trabalho de intervenção num momento em que havia em todas elas alguma espécie de transição (mudança de direção, por exemplo). Percebemos que o estresse havia tomado conta do ambiente escolar; fato explicitado pelos professores através de ameaças verbais em tons estridentes e irritantes para tentar manter a ordem. Os gritos ouvidos por uma das pesquisadoras do Aleph em uma escola podiam significar uma tentativa de se fazer ouvir ou um grito de socorro de uma professora? Ódio e agressão vêm sendo vivenciados e percebidos a todo o momento: emoções que se desencadeiam a cada instante; violência que passa a fazer parte do cotidiano e parece não constituir mais nenhuma novidade ou provocar alguma surpresa. Esse tipo de situação faz-nos lembrar as palavras de Hannah Arendt sobre Eichmann, assistindo a seu julgamento. A autora declara que o autor da “solução final” tomava as ordens de Hitler “no lugar da Lei da terra. Tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte que o julgava em Jerusal ém” (Arendt, 2000, p.152). Eichmann pode ser pensado como um sujeito que se coloca na posição de objeto. No seu caso, uma palavra do ditador equivalia à lei. A palavra do traficante carioca também não obedece a essa mesma lógica? O particular universalizado comanda em cores e números, em letras que se repetem (CV, 3o Comando, Amigos dos Amigos- AA).

Em um encontro com um psicanalista da equipe Aleph apareceram questões que apontam incisivamente para a angústia desses educadores frente aos impasses da educação. “O que fazer com uma mãe que é chamada à escola e começa espancar o filho na minha frente?” De uma forma geral, os professores descarregavam suas queixas catarticamente, ao falarem da sala de aula, das políticas de Estado, da gravidez na adolescência, da falta de concentração dos alunos para a realização dos exerc ícios propostos e até de denúncias que querem fazer contra o FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério).

Dentre as questões que apresentam um maior nível de mobilização, destacamos a impotência sentida pelos profissionais frente ao sistema político educacional vigente, que impede os professores de reprovarem os alunos. Segundo os educadores, o sistema aprova aqueles que deveriam ter sido reprovados, na intenção de não ultrapassarem o número limite permitido por lei e não serem convocados a participar do COCEX (Conselho de Classe Extraordinário). “Somos depreciados e acabamos sendo obrigados a aprovar os alunos”. Queixam-se, também, do comportamento das crianças: da indisciplina e da agressividade. Uma professora pediu para o aluno se retirar de sala e ele respondeu: “saio [——], vem me tirar!” Como lidar com isso? Quest ões sobre autoridade e autorização perpassam todas as falas. De que lugar se autorizam, hoje, os professores, quando o medo assola a cidade? Olhamos e somos olhados por todos, a paranóia se banaliza e passa a ser necessária à sobrevivência. Ao sairmos de casa, temos como possibilidades o assalto e a morte. As pris ões, domiciliar e escolar, cada vez mais nos enclausuram em condomínios e muros, que se erguem mais fortes que os dos antigos asilos para loucos, numa tentativa de barrar o gozo, o “a mais” transbordante.

Do ponto de vista social, verificamos que quase sempre as escolas estão situadas em áreas de risco – se é que podemos delimitar esses lugares na cidade do Rio de Janeiro. Acrescentando- se aos perigos de vida que alunos e educadores assumem para ir à escola, temos a precariedade da própria formação do educador. O que tem o governo investido nessa formação? Por que só as pouquíssimas escolas federais têm ensino decente e com um corpo de profissionais em dedicação exclusiva? Essas questões se colocaram imediatamente para a equipe Aleph, que vem apostando em algumas saídas, através dos dispositivos dos grupos de reflexão com educadores nos espaços escolares. Algumas soluções possíveis vêm sendo encontradas na contingência dos espaços de conversação entre psicanalistas e educadores. Em contraponto ao sentido dado pela lógica do universal, com projetos educacionais iguais “para todos”, tratamos das diferenças, verificamos os estilos dos projetos político-pedagógicos que se adéquam a cada escola, que devem ser vistas uma a uma, sem esquecer que a singularidade dos alunos e dos professores estará sempre em tensão com o educável, com o conhecimento.

O impossível, próprio aos mecanismos inconscientes, não pode estar fora da ação pedagógica. Um tratamento dado a esse real pode ser vislumbrado pela psicanálise aplicada, pode ter uma ação terapêutica ao intervir nos impasses educativos. Graças à aposta nos espaços de fala e na indecidível causa do fracasso escolar, podemos achar caminhos criativos de mudança para o que emperra e não deixa a educação caminhar, e desentravar a burocracia política que fica clara no depoimento de um professor: “o interesse do governo é manter o aluno na escola, sem se preocupar com o sujeito da educa ção”, ou “pensam em números, se preocupam com a maioria, com conceitos insuficientes, mas não lêem os relatórios sobre as crianças, que têm muitos problemas.” Outro depoimento nos dá a visão dos educadores sobre a função da escola: “A escola não é vista como um local onde a criança possa subir na vida. Eu também não acredito nisso. Não vejo futuro nenhum pra elas ... O fracasso escolar é um problema de marketing. Estamos vendendo gelo para esquimó. O que os alunos querem aprender não é aquilo que ensinamos... ” À equipe Aleph coube indicar que algo havia por ser feito, por mais que a angústia forçasse à paralisação. A necessidade de enfatizar a construção de um espaço de fala em que o desejo possa deslizar e a queixa transformar- se em demanda de mudança é urgente.

Outro ponto de insatisfação comum às escolas em que o Aleph intervém é o que chamam de “a falha” na estrutura familiar dos alunos. Atualmente, nas escolas, é perceptível um quadro de mutação dessa estrutura na formação da criança, seja porque os pais precisam buscar o sustento fora de casa, seja porque não estão preparados para enfrentar a tarefa da maternidade/paternidade. Verificamos que, nas escolas pesquisadas, o esforço para fazer um trabalho com as famílias é incipiente. Os familiares vêm transferindo suas responsabilidades para os diretores e professores, e seus lugares como cidadãos, e até mesmo a merenda, vêm substituir o que falta em casa. Questões socioeconômicas sérias como essa invadem a realidade das escolas, entre outras tantas como a citada por uma educadora, que salientou que a assiduidade dos alunos estava vinculada à violência da comunidade, às guerras entre traficantes e facções e ao passe livre de locomoção em ônibus, que é dado somente para crianças. Como o professor pode cobrar presença se a maioria dos alunos precisa do responsável para levá-los à escola e não há verba para isso? Outro fator apontado como grave é a quantidade de alunos nas turmas. O que excede cada vez mais pressiona o ensino que, por ser concebido no universal “para muitos”, depara-se com algo que escapa ao “somos todos iguais perante o consumo do saber”. Essa lógica é própria ao discurso capitalista, que promete o gozo absoluto pelo consumo de tudo e de todos.

Quanto aos direitos dos alunos e dos professores, ouvimos: “os alunos conhecem os seus direitos, mas a gente esquece o nosso, omite a lei do desacato que nos protege. É importante ter coragem para se expor e denunciar abusos ao Conselho Tutelar.” Essas questões próprias do contemporâneo, com suas dificuldades, com a Lei que deveria proteger e promover o desejo, fazem parte de uma política neoliberal. Nesse sistema, as mudanças acontecem numa velocidade desmedida, não dando tempo para elaborações subjetivas. O sujeito tem que se virar com a abundância de métodos educacionais que prometem milagres ao processo ensino/aprendizagem; mas, fazendo barreira ou ponto de basta a eles, o fracasso escolar emerge, não cessando de se escrever como sintoma.

Os grupos com os quais trabalhamos esperam que alguém os oriente, determine, dê as diretrizes e, principalmente, administre o caos no qual se sentem imersos. O foco principal da direção precisa ser a educação, mas uma educação adaptada e adequada à realidade dos alunos, para que se promova o desejo e não deixe o aluno à deriva, entregando-o aos atrativos do tráfico.

Em alguns momentos, os educadores colocam-se como náufragos e/ou sobreviventes. As atitudes variam do quase desespero – por não saberem mais o que fazer para dar conta de algumas crianças consideradas “problemas”, “agressivas” (veladamente ou não) – ao “deixar o aluno fazer o que tiver vontade”. Porém, percebemos que sempre que um educador aponta um aspecto negativo de seu trabalho, outro discorda e diz que “não é bem assim”. É o caso de um educador, que diz em seu depoimento: “Nos nossos encontros só se fala de coisas negativas. E as coisas boas? Há muitas coisas boas também!”. Mas o que é da ordem do Bom e do Mau, do Bem e da Moral? Quais são os paradigmas educacionais na contemporaneidade, quando declinam os ideais e nos confrontamos com sujeitos à deriva, sem orientação? Os educadores se sentem cada vez mais desamparados e reclamam da falta de direção: “esse barco precisa de comando e todos devem remar na mesma direção”. “Como ajudar os alunos, se são fruto de uma comunidade em guerra?!” Se, por um lado, o espaço criado pela equipe Aleph alivia as tensões; por outro, também angustia, pois coloca os educadores frente à responsabilização por seus atos.

O décimo segundo encontro realizado em três escolas municipais permitiu que se fizesse uma avaliação do projeto com os educadores. Desses encontros, a equipe Aleph vem identificando quais são as particularidades do fracasso escolar nessas instituições e o que pode ser extraído como singular nas discussões. Ou seja, o que é único (sujeito) e típico (sintoma) nas estratégias que estão sendo usadas para permitir soluções para os problemas de aprendizagem. A crise existe, e através dela é possível fazer mudanças. Na avaliação feita pelos educadores, o espaço para falar, o escoamento da angústia, foi bastante valorizado, pois eles conseguem perceber mudanças que atingem seus alunos. Declaram que o Aleph pôde fortalecer seus laços de trabalho e fazê-los se movimentar em busca de seus desejos. Diz um educador: “é importante falar no grupo, assim podemos parar e tentar resolver nossos problemas, o professor sozinho não consegue nada”. O espaço de acolhimento do mal-estar docente e as vias possíveis de tratamento do real da educação se fazem pelos laços de trabalho, pela circulação dos discursos, pelo dissonante e único, entre educadores e psicanalistas que, na solidão de seus atos, criam espaços de troca e buscam saídas para seus impasses.

Os educadores mencionam que o Aleph auxiliou-os na prática de sala de aula. “Agora sei lidar melhor com minha ansiedade”. Acreditam mais nas parcerias com os alunos e com seus pares. Vale ressaltar que apesar de todas as dificuldades declaram: “os alunos vêm à aula. Eles têm necessidade de sair do morro, ver gente, vir para o asfalto. Nossa felicidade é vê-los crescendo. Eles acham que a gente tem raiva deles, quando chamamos a atenção, mas não é nada disso”. Dizem ainda: “Depois do Aleph, estou mais forte para enfrentar problemas com os alunos; me senti mais motivado em lidar com eles. Descobri meus próprios caminhos ... Fomos cutucados com questões e reflexões que nos incomodavam. Acho que voltamos a olhar para nós mesmos.” Finalizam ressaltando a importância de os encontros continuarem, mas dessa vez com a presença dos representantes das famílias e dos alunos também.

Este trabalho ainda faz parte da pesquisa-intervenção, e aposta nas mudanças que podem ser operadas. Estamos debruçados sobre os 72 relatórios que foram extraídos desses depoimentos6 e buscamos brevemente tirar algumas conseqüências desse trabalho. Para o Aleph, a principal meta do projeto foi cumprida, pois criou uma demanda de espaços de fala para os educadores, que demonstraram interessem em dar continuidade aos encontros, após o término das intervenções. A partir da suas falas, uma vez que foram ouvidos, fizeram mudanças em suas relações com os alunos e com seus parceiros de trabalho.

Ao final deste trabalho, defende-se a criação de espaços coletivos de discussão como “espaços que favorecem o acolhimento da permanente tensão entre o educável e o ineducável existente em todo e qualquer processo de aprendizagem”, uma vez que esses espaços tornam possível, tanto para educadores quanto para alunos, “não apenas amplificar as respostas subjetivas que adotam inconscientemente, como também descobrir que, entendido como sintoma, o fracasso escolar é parte de seu próprio tratamento” (Cohen, 2006, p. 15).

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: ruthcohen@uol.com.ber

Recebido em maio/2007
Aceito em agosto/2007

 

 

NOTAS

1 Trata-se de pesquisa em andamento sobre 72 relatórios feitos em intervenções em escolas da cidade do Rio de Janeiro, pelo projeto Aleph
2 O CIEN foi fundado durante o IX Encontro Internacional do Campo Freudiano, em 1996, em Buenos Aires
3 Comunicação pessoal de Judith Miller em 19/04/1998, durante o VIII Encontro do Campo Freudiano, em Salvador-BA
5 Comunicação pessoal realizada em Paris, julho de 1998
5 O laboratório Aleph, sob a coordenação de Ruth Helena P. Cohen, e o laboratório Psican álise Educação, coordenado por Eliana Bentes Castro 6 A pesquisa se debruça, em 2007, sobre o conteúdo dos relatórios realizados pela equipe Aleph e tem a finalidade de produzir uma publicação
* Psicanalista. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise.

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