SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12 número23Do universal ao singular: um tratamento possível do fracasso escolarAutismo e novas perspectivas clínicas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.12 n.23 São Paulo dez. 2007

 

DOSSIÊ TERAPÊUTICA E ESTÍLOS DA CLÍNICA

 

Da concepção ao nascimento, a razão da intervenção precoce1

 

Reasons for early intervention from conception to birth

 

De la concepción al nacimiento, la razón de la intervención precoz

 

 

Denise Carvalho Barbosa*

Núcleo Interdisciplinar de Intervenção Precoce da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo se propõe a discorrer e a fundamentar a razão da interven ção precoce na interação mãe-bebê, considerando os avanços no campo da psicanálise e da neurobiologia: a aparelhagem orgânica da qual dispomos ao nascer é ávida de linguagem e não pode prescindir desta para que certas funções se constituam. Também se prop õe a escuta de gestantes que apresentem riscos à subjetividade do bebê, como uma possibilidade de prevenção que possa vir a reduzir o impacto desse primeiro e fundamental encontro da mãe com o seu filho, por considerarmos esse um momento importante e determinante na qualidade desse vínculo.

Palavras-chave: Intervenção precoce, Interação mãe-bebê, Psicanálise de bebês, Risco de autismo.


ABSTRACT

This article intends to show more deeply the reason for early intervention in the interaction of mother and baby, considering the progresses in the field of Psychoanalysis and Neurobiology: the organic implement which we are born with cannot do without language so that certain functions may be constituted. We also propose to listen to pregnant women who may present risks to the baby’s subjectivity, as a prevention possibility, to reduce the impact of that first and fundamental encounter of a mother with her child, for considering it an important and decisive factor to the rapport between mother and child also.

Keywords: Early intervention, Babies’ psychoanalysis, Mother-child interaction, Risk of autism.


RESUMEN

El artículo se propone discurrir y fundamentar la razón de la intervención precoz en la interacción madre-hijo, considerando los avanzos en el campo del psicoanálisis y de la neurobiologia: el aparato orgánico del cual disponemos al nacer es ávido de lenguaje e no puede prescindir de esa para que ciertas funciones se constituyan. También se propone escuchar a las gestantes que presenten riesgos a la subjetividad del bebé, como una posibilidad de prevención que pueda venir a reducir el impacto de ese primero y fundamental encuentro de la madre con su hijo, por considerar ese un factor importante y determinante para la cualidad de ese vínculo.

Palabras clave: Intervención precoz, Interacción madre-hijo, Psicoanálisis con bebes, Riesgo de autismo.


 

 

“...Meus filhos berram meu nome função querendo pão, ternura, verdade e ainda possibilidade de ilusão...” Lucinda (p.126, 1994)

 

Falar em intervenção precoce pressupõe uma especificidade na clínica de bebês. Se, por um lado, esse bebê se atrela à prematuridade biológica que o coloca totalmente à mercê do Outro que irá humanizá-lo ao introduzi-lo no universo da linguagem, por outro lado, será dessa condição mesma que ele irá se valer, uma vez que a prematuridade confere a ‘permeabilidade ao significante’ (Jerusalinsky, 1984); permeabilidade que se observa nesse tempo do bebê, e que irá possibilitar que novas inscri ções possam ali se fazer.

A intervenção precoce, no que concerne à psicopatologia nos primeiros anos de vida, apóia-se em duas proposições fundamentais e interdependentes, oriundas desses dois campos – a importância dos primeiros anos na constituição do sujeito e o alto grau de mobilidade das formações psicopatológicas até a puberdade – concepção que se fundamenta no conceito neurológico de neuroplasticidade (Kandel) ou flexibilidade neuronal (Coriat & Jerusalinsky, 1976).

Segundo Jerusalinsky (2002, 2005), processos orgânicos como a migração neuronal que encontram seu ápice entre os oito e os dezoito meses de idade dependem substancialmente das experiências infantis primordiais, da introdução do sujeito no universo da linguagem. O psiquismo humano depende fundamentalmente dessa captura pela língua, da matriz simbólica que configura a sua relação com o Outro. Isso significa que “...o fantasma materno tem uma incidência direta na configuração do funcionamento cerebral...” (p. 84), ou seja, a vital e recíproca dependência entre o orgânico e o psíquico. Que as estruturas psíquicas não se decidam na infância encontra aqui seu argumento. Jerusalinsky, citado por Bernardino (2004), concebe as psicoses infantis precoces, em geral, como não decididas, “precisamente porque ainda está para se decidir até que ponto esta inscrição poderia vir a adquirir uma formulação metafórica” (p.23). Em 1993b ele prossegue denominando-as psicoses não decididas, confirmando o caráter provisório da estrutura que, por não ter produzido ainda uma inscrição definitiva, “há uma espécie de suspense, de escansão, de dilatação desse momento de inscrição, de captura da criança no campo da linguagem numa posição subjetiva ” (idem).

“A maleabilidade das estruturas psíquicas na infância”, assim definido por Bernardino (2004), vem comungar com esta concepção. Segundo a autora, o diagnóstico de psicoses não decididas é um operador clínico que melhor condiz com as características próprias da infância e do processo de subjetivação. “Há momentos chaves na definição da estrutura”, a qual resulta de um processo de construção regido por operações psíquicas essenciais na relação do infans com o Outro, quando os tempos lógico e cronológico se entrecruzam. Trazendo um interessante aporte, ela propõe que, à falha do Outro parental, resta ainda por parte da criança uma saída, e esta não irá obturar a vaga deixada pela falha dessa função, “...pelo contrário: a criança ficaria à espera desse outro. Sua estrutura se manteria em suspensão, através de defesas que podem ter o caráter psicótico, mas não podem servir para um diagnóstico estrutural ” (pp. 36-37).

A razão da intervenção precoce é o bebê, definido de uma forma poética por Coriat como uma “coisa morna e pequenina carente de um passado próprio e repleto de promessas de futuro [...] e o que o diferencia de outros objetos é a sua particular receptividade às marcas do simbólico e ao peculiar efeito que estas produzem nele...” (1997, p.75, 92).

O bebê, mesmo antes de nascer, já está inserido numa cadeia simbólica que irá representá-lo, porém, o seu aparelho psíquico, virgem de inscrições significantes, só se deixará marcar pela obra do desejo do Outro; e o lugar que ele ocupa no desejo de seus pais poderá ser lido na maneira como falam e lidam com ele, como satisfazem ou não às suas necessidades, se seus gestos são significados pelo Outro e entendidos como endereçados ao Outro, em outras palavras, se o bebê é objeto de identificação para os pais e antecipado como um sujeitinho desejante. As experiências compartilhadas e absorvidas inicialmente como prazer-desprazer irão delimitando, contornando o seu corpinho e constituindo a sua subjetividade.

Mas o tempo urge e, embora as funções psíquicas se constituam dentro de um tempo lógico, há nesse primeiro tempo da estrutura ção psíquica uma dependência vital ao tempo real, cronológico. Coriat (1997) salienta que a possibilidade de inscrição das marcas fundantes do psiquismo depende dessa variável temporal, pois o sistema nervoso central só está apto a receber determinadas inscri ções no início da vida.

Também esse é o pensamento de Laznik (2004) ao se referir à plasticidade neuronal como o que confere a possibilidade de fazer suplências, considerando a idade da intervenção um dado central, para que se possam instaurar as estruturas que suportam o funcionamento dos processos de pensar inconsciente, antes que uma possível deficiência se instale. Ao relacionar a instauração da estrutura do pensamento inconsciente à estruturação do circuito pulsional, este, enquanto suporte do trajeto das representações inconscientes no aparelho psíquico, dirá que, para que circule, a função de representação deve passar pelo “pólo alucinatório de satisfação de desejo”, berço das inscrições dos traços mnêmicos das primeiras experiências com o gozo do Outro.

Algumas questões a respeito da prevenção são levantadas por Crespin (2004) e abordadas no que elas trazem de aparentemente paradoxal, mas que, no entanto, corroboram a importância de uma intervenção. Baseando-se em três postulados, ela diz:

“A prevenção não consiste em antecipar a aparição de um sintoma”. Nesse sentido, estaríamos no registro do impossível, uma vez que jamais saberíamos a priori como o sujeito seria atravessado por um acontecimento. Abordagem que, segundo a autora, “não exclui que uma escuta atenta organize imediatamente um lugar para a significância que tal acontecimento toma para um sujeito ” (pp.171-173).

A segunda questão que se coloca para ela é que “a prevenção não é fazer desaparecer o sintoma, ainda que...”. Aqui, o sintoma tomado como uma formação de compromisso do ponto de vista freudiano “comporta ao mesmo tempo um impasse para o sujeito, e também um dizer que de outro modo fica indizível para o sujeito” a possibilidade de uma intervenção psicanalítica visaria modalizar esse dizer, isto é, “que mãe e bebê encontrem um meio de dizer de outra forma o que eles têm a se dizer” (pp. 174-175).

Acrescenta ainda que “a prevenção não consiste em antecipar uma demanda, mas em permitir sua elabora ção” (p.175). Esse tempo denominado “elaboração da demanda” consiste em viabilizar a subjetivação da questão pelo pai (ou mãe). Ela observa que a não implicação desses pais costuma desencadear reações defensivas.

Entendemos a prevenção como a antecipação de uma intervenção, a possibilidade de diagnosticar precocemente e de estabelecer um diálogo interdisciplinar para que se possa intervir o mais cedo possível, a partir dos sinais indicadores de risco, detectados na relação mãe-bebê ou nos sinais pulsionais do bebê, antes que as psicopatologias se instalem e essas estruturas se amarrem, ou para possibilitar uma melhor instauração da estrutura psíquica. Há intervenções imprescindíveis que devem preceder um diagnóstico definitivo.

Jerusalinsky (2002) nos alerta para a importância da intervenção nesse tempo de indefinição diagnóstica; tempo em que a filiação de um bebê, decisiva para a sua constituição subjetiva, poderá ficar em suspenso à espera de um diagnóstico. Ela também ressalta a importância de não se restringir a intervenção aos bebês cujas suspeitas apontem para uma organicidade, mas também àqueles bebês que demonstrem que algo não esteja bem. Ela acrescenta que a possibilidade de ler esses primeiros indicadores de risco antes que se estabeleça o funcionamento pulsional e a constituição psíquica, momento de maior permeabilidade às inscrições e reinscrições, demonstra a importância de intervir antes da instaura ção do quadro patológico.

Para Laznik (2004), identificar esse traço clínico nos primeiros meses de vida, antes da instalação da síndrome autística, permite o diagnóstico precoce, e, nesse caso, a causa da não instauração do terceiro tempo pulsional ocupa um lugar secundário, pois não importa que a falha advenha de uma dificuldade constitutiva do bebê que o impossibilite de se ofertar como objeto de gozo do Outro, ou por uma falta de resposta, de ressonância, daquela que ocupa o lugar do Outro Primordial. Embora admita a multifatorialidade, o que está em jogo aqui é a falha no estabelecimento do laço mãe-bebê que, por uma razão ou outra, encontra-se comprometido. Independentemente da causa, Laznik postula o (r)estabelecimento do circuito pulsional completo através da contribuição libidinal da parte do psicanalista que promova a instauração ou modifica ção do olhar dos pais em relação ao filho, e compreende que, no campo da prevenção, um ambiente propício permitirá que as instaurações estruturais possam acontecer, ou ainda que a “plasticidade cerebral possa encontrar o caminho de novos enodamentos e articulações” (p.23). Mas também adverte que essa é uma luta contra o relógio; luta em que não só o tempo lógico conta, uma vez que certas instaurações estruturais – como é o caso da fala efetuam-se mais facilmente em momentos mais sens íveis à apropriação dos significantes do Outro.

A possibilidade de uma intervenção precoce que modifique o progn óstico de bebês que ainda não se tornaram autistas vem alimentando o interesse e a esperança que se refletem em pesquisas que vêm sendo feitas em países como a Inglaterra, a França e o Brasil.

Na França, a Associação de Preven ção do Autismo (PREAUT), vem pesquisando a validação dos sinais preditivos de perigo de evolução autística, bem como considerando a tentativa de intervenção precoce junto aos bebês porventura portadores desses sinais. Esses sinais preditivos defendidos por Laznik são o nãoolhar do bebê para sua mãe, e a falha no terceiro tempo do circuito pulsional, o que resultaria no fracasso da instauração da alienação real do bebê na relação com o Outro. Na Inglaterra foi validada uma pesquisa com dezesseis mil bebês, chamada C.H.A.T. – Checklist for Autism in Toddlers, 1996, que permite diagnosticar aos 18 meses de idade dois sinais preditivos: o primeiro revela a incapacidade dos bebês de apontarem um objeto de maneira “protodeclarativa ”, ou seja, os bebês não apontam um objeto fora do registro da necessidade alimentar, o que denotaria não ofertar um objeto ao gozo visual do Outro; o segundo sinal seria a impossibilidade de “fazer de conta” – ao fazer isso, a criança estaria ofertando não a si mesma, mas um objeto sublimado, ao gozo do Outro, “como oferecer um cafezinho à mamãe”, por exemplo (Lasnik, 2004, p.182).

No Brasil, participamos da Pesquisa Multicêntrica de Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI), subsidiada pelo Ministério da Saúde em convênio com a Fundação da USP, tendo em vista a detecção precoce e a validação de 31 indicadores, concernentes às etapas de 0 a 4 meses; 4 a 8 meses; 8 a 12 meses e 12 a 18 meses. Esses indicadores têm uma estreita correla ção com os quatro eixos fundamentais para a constituição subjetiva observados na relação mãe-bebê, destacados por Jerusalinsky (2002) como sendo: a suposição de um sujeito, o estabelecimento da demanda, a alternância presença-ausência e a função paterna.

A hipótese dos pesquisadores é a de que a ausência de algum desses indicadores na relação mãe-bebê estaria apontando a possibilidade de risco para a constituição subjetiva, e para o momento em que seria necessário intervir.

Costuma-se intervir precocemente quando um bebê apresenta transtornos psicossomáticos, de desenvolvimento ou em situação de risco psíquico.

Contudo, dirá Laznik (2004), “não é pela mãe que nós vamos nos nortear, mas pelos sinais pulsionais do bebê” (p. 209), ao mesmo tempo em que vislumbra a possibilidade de que outros pesquisadores venham a investigar a relação intrapsíquica do feto com o seu Outro materno.

“Não é pela mãe”, frase que ressoa e faz evocar uma jovem gestante, inspiração inicial deste estudo. Essa futura mamãe trazia a sua gravidez como sofrimento. Melhor dizendo, o fato de carregar imaginariamente em sua barriga, não uma criança, mas uma bola, cuja consistência lembrava-lhe mais uma víscera; fato que ela só pôde constatar após a analista perguntar-lhe como imaginava o seu bebê.

Observamos que, para essa futura mamãe, o tempo da gestação biológica não é solidário com o tempo da ‘gestação psíquica’; ela não se sente grávida de um bebê, mas de um corpo estranho que a invade de angústia e perplexidade. Segundo Aragão (2004), o período da gravidez constitui o tempo de elaboração necessário para a construção da representação do bebê no psiquismo materno, para a criação do espaço psíquico para o bebê – quando lhe caberia a incumbência de transformar esse estrangeiro em familiar. Trabalho psíquico de antecipação e de inserção do sujeito na cadeia simbólica, suporte de subjetivação.

Lacan (1963), citado por Laznik (2004), no Seminário 10 – “A Angústia ” – fala de uma “clínica do fracasso da instauração da relação especular ”. O psicanalista ele menciona alguns casos em que para algumas mães tratava-se de carregar em seu ventre um “corpo diversamente cômodo ou incômodo”. A subjetivação do “a” como puro real, dirá Lacan, ou, dirá Lasnik, a impossibilidade de se enganar por qualquer imagem real, de se iludir e, por conseguinte, de antecipar um sujeito que, pela ausência dessa imagem real com a qual se identificar, será subtraído da vivência da unidade corporal ou poder á sofrer o bloqueio da “reversibilidade possível da libido do corpo próprio àquela do objeto”, o que resultaria nas conhecidas auto-mutilações (p. 56).

Perguntas tais como, o que estaria impedindo aquela mãe de imaginarizar seu bebê? Que bebê teria sido ela? Pressupomos que a impossibilidade de imaginarização, entendida aqui como o embaçamento do espelho materno pela ausência de representa ção, impedirá que o bebê se veja refletido na mesma proporção em que a mãe não se verá nem se reconhecerá nele. Lembrando Winnicott (1975), o precursor do espelho é o olhar da mãe; o bebê ao olhar para o rosto da mãe o que vê é ele mesmo.

Cabassu (1991), em seu artigo “A boneca sem rosto”, conta a história de uma mãe que confecciona uma boneca de pano para ofertá-la como objeto transicional ao seu bebê, mas que, no entanto, surpreendentemente, viu-se impossibilitada de desenhar os traços do rosto. Essa boneca sem rosto será tomada, para além da representa ção da criança imaginária, como a “materialização do ‘inventário’ na fantasia inconsciente da mãe durante a gravidez” (p.67), para demonstrar que essa representação na qual a mãe “não o vê”, também não poderá “ser vista” pelo seu bebê. Essa ‘cegueira especular’ se refletirá na falha do exercício de sua função, constatada na ‘surdez significante’, que a impedirá de dar sentido às vocalizações de seu filho.

Considerando que o analista, ao emprestar sua voz e seu olhar a partir de um ponto tal do espelho plano, possa operar uma mudança no olhar dos pais em relação ao seu bebê, não poderíamos pensar que o analista, ao ofertar à gestante sua escuta, pudesse com sua intervenção resgatar algo da imagem inconsciente e, por essa via, modificar a representa ção que ela tem do seu bebê?

Então vamos nos reportar ao conceito de Golse e Bydlovski (2002) – “transparência psíquica” – sublinhando especialmente quando eles se referem a “uma plasticidade importante das representações mentais centradas sobre uma inegável polarização narcísica” – designando um funcionamento materno peculiar, quando o aplacamento das resistências inconscientes fazem aflorar um superinvestimento da história pessoal e dos conflitos infantis, promovendo um reencontro entre a mãe e ela mesma enquanto bebê. Também vamos buscar subsídios em Lasnik, quando diz não se tratar da foraclusão do Nomedo- Pai, mas do lugar que as próprias mães, enquanto bebês, ocuparam no desejo de suas mães.

Laznik (2004) relata o caso de uma gestante que se encontrava no quinto mês de gestação, quando se viu em meio a um turbilhão ao fazer uma ultra-sonografia que indicava a possibilidade de um diagnóstico de síndrome de Down. Isso foi o bastante para que se modificasse a representa ção inconsciente que essa mãe possuía de seu bebê. Essa jovem gestante que se encontrava em análise pôde então trabalhar e restabelecer essa representação antes que o bebê pudesse se confrontar com aquela.

Kupfer (2000) já havia constatado a dificuldade das mães de bebês portadores da síndrome de Down em reconhecê-los como filhos, por estes não portarem um traço imagin ário com o qual pudessem se identificar, salientando que a impossibilidade do reconhecimento recíproco e da inscrição numa filiação subtrairia dessa criança o passaporte para o ingresso na linguagem; nesse caso, por falhas na especularização, surgiriam os traços autistas já conhecidos, e que aparecem em algumas crianças que apresentam essa síndrome.

A escuta psicanalítica de gestantes, tomada no âmbito da prevenção, encontra-se devidamente respaldada pelos pressupostos teórico-clínicos. Relatos sobre a prática clínica de Dolto mencionam que ela, vez por outra, colocava algumas mamães em seu colo. Não sabemos suas razões, mas não estaria ela apontando a possibilidade de se ofertar àquelas um lugar na escuta? Não propomos que se coloquem as gestantes num colo tão real, embora o gesto seja simbólico. Mas, de fato, vimos reiterar a importância da escuta àquela gestante que fala de um sofrimento, de uma angústia que precisa ser nomeada e que apresenta riscos para a constitui- ção subjetiva do bebê, como uma forma de intervir e repensar a preven ção. Quem sabe isso não concorreria para minimizar os impactos do encontro dessa mãe com o seu bebê? Para isso, deveríamos sublinhar a importância da interdisciplinaridade no campo da prevenção, convidar e incluir não só os profissionais diretamente ligados à pequena infância – como pediatras e neuropediatras, mas os que recebem em seus consult órios as futuras mamães quando de seu pré-natal como os obstetras e ginecologistas, ocasião oportuna para se observar a significação que essa gestante tem dado à sua gravidez e os efeitos que esta comporta. Escuta que possibilitará o encaminhamento daquela que apresente sinais emocionais de risco para si e para a constituição psíquica do seu bebê.

 

Referências

Aragão, R. O. (2004). Narcisismo materno e criação do espaço psíquico para o bebê. In R. O. Aragão (Org.), O bebê, o corpo e a linguagem (pp. 91-101). São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Bernardino, L. F. (2004). A maleabilidade das estruturas psíquicas na infância. In As psicoses não-decididas na infância: Um estudo psicanalítico (pp. 21-37). São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Cabassu, G. (1991). A boneca sem rosto-Autismo e olhar. In M. C. Laznik-Penot (Org.), O que a clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas (pp. 60-76). Salvador, BA: Ágalma.         [ Links ]

Crespin, G. (2004). Algumas questões a respeito da prevenção. In G. Crespin, A clínica precoce: O nascimento do humano (pp. 171-187). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Coriat, E. (1997). Psicanálise e clínica de bebês. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios.         [ Links ]

Coriat, E. & Jerusalinsky, A. (1976). Apostila de capacitação do Grupo Nacional de Pesquisa (GNP), circulação interna.         [ Links ]

Golse, B. & Bydlovski, M. (2002). Da transparência psíquica à preocupação materna primária: uma via de objetalização. In L. C. Filho, M.E.G Corrêa & P. S. França (Orgs.), Novos olhares sobre a gestação e a criança até os 3 anos. Saúde perinatal, educação e desenvolvimento do bebê (pp. 205-214). Brasília, DF: L.G.E. Editora.         [ Links ]

Jerusalinsky, A. N. (1984). Psicanálise e autismo. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.        [ Links ]

_________. (2005). Relendo as identificações primárias. In A. Jerusalinsky, Semin ários II (pp. 9-24). São Paulo: USP/ Instituto de Psicologia /Lugar de Vida.         [ Links ]

Jerusalinsky, J. (2002). Enquanto o futuro não vem. Salvador, BA: Ágalma.         [ Links ]

Kupfer, M. C. M. (2000). Notas sobre o diagnóstico diferencial da psicose e do autismo na infância. Psicologia USP, 11(1). Recuperado em 23 jun. 2005, da SciELO (Scientific Electronic Library OnLine): http://www.scielo.br

Laznik. M. C. (2004). Introdução. In M. C. Laznik, A voz da sereia: O autismo e os impasses na constituição do sujeito (pp.13-17). Salvador, BA: Ágalma.         [ Links ]

_________. Poderíamos pensar numa prevenção da síndrome autística? In M. C. Laznik, A voz da sereia: O autismo e os impasses na constituição do sujeito (pp. 21- 35). Salvador, BA: Ágalma.        [ Links ]

_________. Os efeitos da palavra sobre o olhar dos pais, fundador do corpo da criança. In M. C. Laznik, A voz da sereia: O autismo e os impasses na constituição do sujeito (pp. 36-48). Salvador, BA: Ágalma.        [ Links ]

_________. Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao fracasso da instauração do circuito pulsional. Quando a alienação faz falta. In M. C. Laznik, A voz da sereia: O autismo e os impasses na constituição do sujeito (pp. 49- 68). Salvador, BA: Ágalma.         [ Links ]

_________. Risco de autismo em bebês. In M. C. Laznik, A voz da sereia: O autismo e os impasses da constituição do sujeito (pp.178-184). Salvador, BA: Ágalma.         [ Links ]

Lucinda, E. (1994). Chupetas punhetas guitarras. In O semelhante (pp.126-128). São Paulo: Massao Ohno.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: denise.cb@uol.com.br

Recebido em setembro/2007
Aceito em novembro/2007

 

 

NOTAS

1 Artigo revisto e ampliado a partir do trabalho apresentado na II Jornada “Palavras em torno do berço” realizada pelo Núcleo Interdisciplinar de Intervenção Precoce da Bahia (NIIP) e a Faculdade Ruy Barbosa, Salvador – BA, 2007
* Psicanalista, especialista em Intervenção Precoce pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, membro-fundador do Núcleo Interdisciplinar de Intervenção Precoce da Bahia e monitora da Pesquisa Multicêntrica de Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil

Creative Commons License