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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.12 n.23 São Paulo dez. 2007

 

DOSSIÊ TERAPÊUTICA E ESTÍLOS DA CLÍNICA

 

Autismo e novas perspectivas clínicas

 

Autism and new clinical perspectives

 

Autismo y nuevas perspectivas clínicas

 

 

Camila Saboia*

Universidade Paris 7
Programme International pour le Langage de l’Enfant, Hospital Necker, Paris

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autismo precoce leva-nos a reelaborar conceitos como o de intersubjetividade baseados na microanálise do comportamento do bebê, cujos resultados revelam uma indiferença, por parte de bebês ditos de riscos autísticos, aos sinais respons áveis pela construção de laços sociais, tais como o reconhecimento da musicalidade da voz e a leitura das express ões maternas. O entrelaçamento dos resultados obtidos pelas Neurociências e pela Psicanálise reforça a noção de que o autismo teria suas origens em um problema de ordem sonora, manifestado no período pré-natal, uma vez que a experiência rítmica seria a base formadora para o senso de vivência e continuidade de ser do indivíduo.

Palavras-chave: Autismo precoce, Intersubjetividade, Neurociências, Microanálise, Musicalidade da voz.


ABSTRACT

Analysing early autism leads us to redraw concepts like intersubjectivity based upon the micro-analysis of the baby’s behavior, which focuses on highlighting the indifference of babies showing autistic risks towards some outer signals that account for the construction of social ties; such as the recognition of the musicality of the voice and the readings of maternal expressions. In the light of neurosciences and psychoanalysis brought together, autism would find its origins in the structure of some prenatal sound: the rhythmical experience would originate the sense of life and the continuity of the individual being.

Keywords: Early autism, Intersubjectivity, Neurosciences, Micro-analysis, Musicality of the voice.


RESUMEN

El autismo precoz nos lleva a elaborar nuevos conceptos como de la intersubjetividad basados en un micro análisis del comportamiento del bébé, donde los resultados evidencian una indiferencia de bébés con riesgo de autismo en los signos responsables de la construccion de lazos sociales; como el reconocimiento en la musicalidad de la voz y en la lectura de las expresiones maternas. La articulación de los resultados de las neurociencias y del psychoanálisis, permiten pensar que el autismo tiene un origen de orden sonoro. La experiencia sonora rítmica pre-natal ser ía una base fundamental en el desarollo de la vivencia y continuidad del ser individual.

Palabras clave: Autismo precoz, Intersubjetividad, Neurociencias, Micro análisis, Musicalidad de la voz.


 

 

Ao abordarmos as novas perspectivas da intervenção no tratamento de crianças autistas devemos lançar mão de novos conceitos teóricos clínicos, desenvolvidos nos últimos anos e que têm sido de grande valia para o avanço de pesquisas na clínica do autismo.

A noção da existência de um espaço psíquico precoce que antecederia a inscrição de um inconsciente, apresentado como intersubjetividade, tem ganhado bastante espaço na clínica com bebês, na medida em que ela nos oferece novas perspectivas para pensar as questões das origens da ontogênese humana e, conseqüentemente, sobre a nosologia das psicopatologias precoces, dentre elas o autismo.

O conceito de intersubjetividade foi bastante trabalhado por Colwyn Trevarthen (1973, 2003) na década de 70, ao desenvolver pesquisas que visavam a um estudo microdescritivo do comportamento do recém-nascido, cujo objetivo era analisar detalhadamente as expressões do corpo, do olhar e da vocalização do bêbê em interação com sua mãe, que o estimularia, de forma livre e espontânea, por meio de brincadeiras típicas (play nursery) ou de canções infantis.

Como resultado dessa pesquisa, foi possível constatar uma perfeita sintonia entre movimento e expressões do bebê e os movimentos maternos. Poderíamos até mesmo imaginar o bebê na posição de um maestro que acompanha com sua mão, verdadeira batuta, as variações melódicas da voz materna, o que confirmaria a existência de um engajamento mútuo e intencional de construção de um jogo prazeroso entre mãe e filho.

Esse jogo, segundo Trevarthen, deve sua harmonia à sensibilidade precoce do bebê; sensibilidade para captar as variações de ritmos e de melodias da voz materna, fenômeno que ele nomeou pulsão intrínseca da musicalidade (Intrinsic Motive Pulse, 1999, 2002). Assim, na medida em que o bebê mostra-se apto a responder em sincronia, ou mesmo em complementariedade ao ritmo da voz materna, podemos pensar na imagem de um bebê cujo papel seria mais próximo de um emissor do que de um mero receptor da linguagem.

Trevarthen ainda acrescenta que o bebê seria provido de uma sociabilidade natural, o que significaria dizer que ele estaria programado geneticamente para ir em busca do contato humano; para interagir com o outro e para despertar sua atenção. Supõe-se, assim, que o comportamento do bebê não teria apenas um caráter imitativo, mas sim intuitivo e intencional. Para o autor, o bebê reconheceria precocemente os sinais subjetivos emitidos pela sua mãe, definidos como intersubjetividade primária. Isso significaria dizer que o bebê teria uma imagem inata da existência de um outro, que levaria a engajá-lo de maneira quase instintiva e natural numa conversação humana. Dessa maneira, a comunicação não seria vista como um produto de contingências sociais mas como algo que antecederia a experiência humana.

A hipótese da intersubjetividade originária ganha maior consistência quando Trevarthen entra em contato com a pesquisa de Catherine Bateson (2003, 1979), antropóloga e neurolingüista que postula a existência de um diálogo precoce da ordem do pré-verbal, denominado protoconversação (protoconversation), que o bebê expressa por meio de suas reações sensoriais e tactéis. Para Trevarthen, essa nova descoberta reforçaria suas hipóteses de que a intersubjetividade humana seria inata e, portanto, herdada geneticamente, uma vez que esse diálogo antecederia os três meses de vida do bêbê. Até então, o estudo de Trevarthen concentrava-se apenas na observação de bebês a partir de três meses, idade a partir da qual a criança mostra-se mais sensível às interações e às trocas de um engajamento mútuo e criativo com sua mãe.

A pesquisa de C. Bateson propõe a análise minuciosa da reação do recém-nascido numa situação de interação face a face com sua mãe. Observa-se que os bebês tendem a permenecer alguns minutos observando as expressões maternas, ao mesmo tempo em que se mostram sensíveis àlinguagem musical materna, caracterizada pelo prolongamento da entonação da última sílaba1. Assim, na análise de uma protoconversação entre mãe e bebê, a partir de um espectograma – uma espécie de representação visual do sinal acústico – observa-se um intervalo de aproximadamente três segundos entre a fala da mãe e a do bebê. Essa constatação comprovaria as hipóteses de que ambos participariam ativamente desse processo de acesso à subjetivação. E mais, que a protoconversação seria gradualmente substituída pelo jogo de interação com os objetos.

Se Trevarthen postula que a intersubjetividade seria algo potencialmente herdado, outros autores, como D. N. Stern (1983), consideram também a influência da cultura e do ambiente. Assim, para este último, a intersubjetividade ganharia seu espaço no decorrer do processo do desenvolvimento do bebê, especialmente no momento em que a criança se encontra em contato com o afeto e as intenções do outro.

Stern definiu essa dinâmica ao descrever o processo de sintonia afetiva (accordage affectif), o qual compreenderia o jogo sincrônico da dupla mãe e bebê. Por exemplo, a mãe reage à vocalização do recém-nascido arregalando bem seus olhos, abrindo sua boca e movimentando suas sobrancelhas; o bebê, por sua vez, reconhece o timing e a coerência entre sua produção vocal e as novas produções maternas, as quais são assimiladas e, posteriormente, utilizadas por ele em novos momentos de trocas com sua mãe. Convém notar que Stern, assim como Trevarthen, não reconhece um estado de fusão ou de indiferenciação do bebê com sua mãe no momento inicial do seu desenvolvimento, já que ambos partem do pressuposto de que o comportamento ativo do bebê serviria de indício para supor que o recém-nascido reconheceria precocemente a exist ência de outro como alguém diferente dele mesmo.

É nesse contexto que surge uma terceira posição, defendida por Bernard Golse (2006a, 2006b), que define a intersubjetividade como o resultado da dialética entre o núcleo da intersubjetivdade primária inata e o processo de indiferenciação progressiva do recém-nascido com sua mãe. Dessa maneira, a intersubjetividade seria exatamente a passagem do estado fusional mãe-bebê para um estado posterior, no qual o bebê toma consciência do estado de separação entre ele e sua mãe.

Apesar das posições divergentes em relação à conceituação da intersubjetividade, observa-se que o estudo desse conceito oferece- nos novas vias para pensar sobre o trabalho da intervenção precoce do autismo. Isso porque, à medida que avançamos na compreens ão do desenvolvimento do bebê, um novo olhar baseado em novas suposições téoricas e clínicas ganha terreno. Um exemplo seria a capacita ção dos profissionais da primeira infância para reconhecer essa linguagem não-verbal dos bebês, que prima pelo seu caráter revelador da regula ção da qualidade psicorrelacional da díade mãe-bebê. Supõe-se, então, que um bebê tem sempre algo a nos contar sobre sua adaptação ao mundo, o que abrange seus desencontros e desajustes; expressos por meio de sua linguagem particular, que uma vez lida e interpretada poderá contribuir para a compreensão dos indicadores precoces de certas patologias manifestadas na primeira infância, como, por exemplo, o autismo.

Nesse contexto, há um aprofundamento da compreensão dos sintomas autísticos que, como sabemos, muitas vezes são tardiamente diagnosticados. Esse retardo é explicado pelo fato de o diagnóstico de autismo obedecer a critérios que observam somente os comportamentos que se manifestam apenas no decorrer do segundo ano de vida da criança: a ausência de jogo simbólico e a capacidade de designar objeto (a criança o aponta com a finalidade de mostrá-lo ao adulto).

Observa-se nos clínicos e pesquisadores uma nova tendência, a de direcionar seu olhar e escuta aos conte údos do próprio bebê, o que sup õe legitimá-lo como um ser ativo na formação de seu sintoma. Sendo assim, poderíamos repensar certas posições teóricas que sustentam que o fracasso do processo de subjetivação da criança decorre de uma falha na função materna; a mãe, por uma razão ou outra, não teria podido investir de maneira suficientemente boa no seu bêbê. Contudo, se partirmos da posição defendida por autores que trabalham com o conceito de intersubjetivade, podemos presumir que o bebê, por vezes, pode assumir um papel extremamente ativo, ao ponto de influenciar na mudança de comportamento de sua mãe. Em outras palavras, significaria supor que haveria bebês que poderiam, desde do inicio da vida, mostra-se aversivos ao contato humano; bebês que por raz ões ainda desconhecidas não se interessariam em manter uma protoconversação com sua mãe. Assim, observa- se que, mesmo diante de um alto grau de investimento materno, o bebê com risco de autismo é incapaz de responder a esse apelo a advir como sujeito. Conseqüentemente, a mãe, sem ter consciência desse risco, passa a investir cada vez menos nessa relação, o que favorece a tendência de a criança enclausurar-se em si mesma.

Apoiando-nos nessa perspectiva de um bebê como co-autor de seu processo de subjetivação, podemos evocar ainda a pesquisa recente de Emese Nagy e Peter Molnar (1994, 2003). Essa dupla de pesquisadores húngaros tomou como tema central de seu estudo o comportamento de imitação precoce do recém-nascido e confirmaram que o bebê não só era apto a imitar o outro, dada a existência de neurônios espelho, como seria também ele o responsável pela provocação dessa troca de busca de contato.

O protocolo da pesquisa evocada baseou-se na análise dos batimentos cardíacos de recém-nascidos, de dois dias de vida, em dois momentos específicos: uma situção inicial, na qual o adulto interage face a face com o bebê; e um segundo momento em que o adulto olha o bebê pacientemente, sem nenhuma reação, durante dois minutos. Constatou- se, então, que o bebê preparase para o ato de imitação, ao demonstrar sinais de excitação, evidenciados pelo aumento da sua freqüência card íaca. Em seguida, a dimuição dessa mesma freqüência indicaria sua capacidade de prestar atenção ao movimento do outro, na espera de que alguma troca seja realizada. Esse comportamento específico do pequeno infans – de convidar o adulto a dar continuidade a uma relação de intera ção, de um encontro entre dois sujeitos – recebe dos pesquisadores o nome de provocação (provocation); um comportamento que seria pouco expressivo ou mesmo ausente em beb ês com risco de autismo. Dessa forma, considera-se a ausência de tal comportamento um dos sinais precoces do autismo. Isso vem confirmar a hipótese de que o quadro clínico de autismo precoce não se limitaria apenas à ausência ou à evitação do contato do olhar e do sorriso em situaçao de protoconversação.

M-C Laznik (2007) ilustra bem esse comportamento do bêbê, ao postular que o autismo precoce seria associado à impossibilidade do bebê de ascender ao terceiro tempo do circuito pulsional, na concepção freudiana, isto é, uma incapacidade do bebê de iniciar trocas lúdicas e prazerosas com um outro familiar. Na descrição do circuito pulsional descrita por Freud em Pulsions et destins de la pulsion (1915/1968), o terceiro tempo compreendido como o de passividade pulsional, caracteriza-se pelo momento em que o bebê se faz objeto de satisfação pulsional de sua mãe ou figura substituta. Esse momento é identificado pela presença de um prazer compartilhado entre a dupla mãe-bebê, condição primordial para que haja, posteriormente, a descoberta do prazer auto-erótico, no qual o bebê reconhece uma parte do seu corpo como objeto de satisfação (segundo tempo do circuito pulsional).

Laznik observa que no jogo de “devoraçao”, brincadeira típica entre mãe e bebê, a criança normalmente oferece seu corpo para esse Outro Primordial2 (A), que o nomeia como objeto de seu gozo (a) prestes, portanto, a ser “comido” e “devorado” por ele (A). A criança, por sua vez, demonstra seu prazer e novamente reinicia o jogo lúdico ao reconhecer as sensações de supresa e de júbilo que provoca em sua mãe. No entanto, os bebês com risco de autismo, recusam-se a oferecer seu corpo como objeto de gozo e facilmente interrompem as seqüências desse jogo prazeroso; talvez pelo fato de serem incapazes de interpretar as express ões de supresa e de júbilo transmitidas pela mímica do rosto materno (pulsão escópica) e pela entonação de sua voz (pulsão invocante).

Desse modo, ao considerarmos as hipóteses de que a evolução de um quadro de autismo seria associada à incapacidade precoce do bebê de ler as expressões emitidas pelo outro, provocada por um possível comprometimento de seu equipamento orgânico-corporal; convém, então, ressaltar os pontos de converg ência entre a psicanálise e a neurosciência e suas respectivas contribui ções para a clínica do Autismo.

 

A voz humana como objeto de estudo: Neurociência e Psicanálise no tratamento do autismo

O recente trabalho de pesquisa de Monica Zilbovicius (2004) tem causado grandes rumores na clínica da intervenção precoce do autismo, na medida em que nos oferece novas pistas para pensar em um diálogo possível entre a Psicanálise e as Neurociências. O estudo parte da análise comparativa da Imagem Cerebral (IRM) de um grupo de 21 crianças autistas com um grupo de controle de 12 crianças com desenvolvimento normal. Essas imagens revelaram uma diminuição significativa da concentração de substâncias cinza, no nível do Sulco Temporal Superior (STS), região responsável pela escuta da voz humana. Conseqüentemente, esses sujeitos afetados apresentaram dificuldades de discernir a voz humana de outros sons, tais como de um sino de um caminhão etc.

Zilbavicius ainda acrescenta que o ser humano nasce com um interesse natural pelos estímulos humanos; assim, à medida que ele vai interagindo com o mundo, vai se tornando um especialista, um verdadeiro expert na voz e nas expressões humanas. É nesse contexto que a autora postula a hipótese de que a criança autistas teria um elemento inato, ou seja, uma predisposição genética que a impediria de tornar-se sensível à leitura das vias responsáveis pelas interações sociais (o reconhecimento da voz e das expressões do rosto humano)

Por esse mesmo viés, podemos citar o trabalho da psicanalista francesa Geneviéve Haag (2005), que postula que o autismo teria suas origens associadas ao problema do sonoro, que se manifesta ainda no período pré-natal. Essa hipotése também é defendida por Suzanne Maielllo (1991), psicanalista italiana que desenvolve a teoria da existência do objeto sonoro.

Maiello parte do pressuposto de que a voz materna seria percept ível a partir do quarto mês de vida intra-uterina. Desse modo, a voz humana seria considerada matéria-prima para a constituição de um proto-objeto que, por sua vez, serviria como base criadora para a concepção de um objeto-externo, por exemplo, a imagem do seio constituída pela criança.

Supõe-se, então, que o jogo de ausência e presença, constitutivo da realidade psíquica da criança, antecederia o momento em que a mãe apresenta seu seio ao bebê; assim, as origens estariam na variação da regulação da ausência e presença da voz materna, que ora se ausenta, quando calada; ora se presentifica pelos sons e ritmos por ela evocados. Assim, presupõe-se que a descontinuidade rítmica da voz seria equivalente à figura do seio materno na vida pós-uterina, na medida em que ela se apresenta de forma imprevisível e sem controle, o que propiciaria condições para que o bêbê pudesse experienciar sensações tanto de gratificação como de frustração. Dessa maneira, considera-se que a vivência dessa proto-experiência da perda leva o bebê a vivenciar precocemente a experiência de alteridade que, como sabemos, é condição prim ária para que ele possa reconhecer, ter consciência de um fora, e, conseqüentemente, de outro que não ele próprio.

Maiello acrescenta ainda que a única razão que explicaria a capacidade do bebê de interagir com os objetos da realidade exterior, em particular com o seio, desde do momento inicial de vida, seria o fato de ele viver já precocemente sua relação com objetos externos por intermédio da voz materna. Essa vivência explicaria, então, a reação precoce de certos bebês, que se recusam a construir uma relação de interação com o mundo externo.

Haag (2005) retoma essa quest ão da importância do sonoro para associá-la à constituição da imagem corporal. Para a psicanalista, o autismo seria explicado pela ausência do envelope corporal primitivo nomeado “eu-corporal” (moi-corporale), que no caso das crianças autistas não se constituiria, dada a ausência dessa insensibilidade aos sons. Por exemplo, pelo mamanhês, que funcionaria quase como um envelope narrativo da formação do eu primitivo, a partir do qual se justificaria a noção de que a lingua seria, por si mesma, mais perceptiva que lingüística. A experiência rítmica seria, portanto, a base formadora para o senso da vivência da continuidade de ser do indivíduo (going be), e mesmo do desenvolvimento da confiança de base.

É nesse contexto que podemos observar, na prática clínica, o interesse das crianças autistas pelo barulho da descarga dos sanitários, ou mesmo da água que escorre pela torneira. Esse momento do processo terap êutico geralmente coincide com o progresso da criança, tanto nos aspectos da linguagem como nos relacionais, e tudo graças ao sentimento de confiança adquirido pelo paciente em relação ao setting terapêutico e à figura do terapeuta. Podemos ainda enfatizar o comportamento freqüente de intolerância dessas crianças aos barulhos fortes, sejam oriundos de máquinas e aparelhos domésticos, sejam da voz humana, quando essa é expressa de maneira forte e articulada.

Para Haag, o contato dessas crian ças autistas com a palavra do analista teria um caráter extremamente invasivo, devido à falta de um envelope corporal. Assim, a palavra seria captada por essas crianças da forma mais “crua” e “dura” possível, e dir íamos ainda que ela entraria de forma literal no seu corpo e na sua carne. A psicanalista correlaciona a teoria da clivagem sensorial dos objetos duro–mole, apresentada por Tustin (1981), com as novas pesquisas das neurosciências, que observam que os sujeitos com autismo tenderiam a desenvolver uma parte diferente do cérebro. Nesse sentido, eles apresentariam uma maior predisposicão para trabalhar o lado esquerdo do cérebro que, por sua vez, seria mais lingüístico, e não o lado direito, responsável pelos aspectos mais amplos da comunicação, tais como as protomusicalidade e articula ção consonântica da palavra. Essas considerações levam-nos a supor que do mesmo modo que essas crianças teriam uma predileção pelos objetos duros, elas também tenderiam a captar a parte “dura” da palavra, associada à consoante, de modo a rejeitar a parte “mole”, subentendida como vogal.

É nesse contexto que podemos dizer que se estabelecem novas perspectivas face à questão do tratamento e do diagnóstico precoce do autismo. Com base nos fundamentos das teorias acima explicitadas, passo a descrever o acompanhamento de Mahomed, um bebê de apenas 10 meses, que apresentava alguns comportamentos cujos sintomas nos levavam a considerá-lo um bebê de risco de autismo.

 

Caso clínico

Foi na Unité d’Accueil Mère-enfants (Unidade de Acolhimento Mãe-bebês) que encontrei Mahomed. Essa Unidade é integrada ao Sistema de Saúde dedicado à Primeira Infância da França. Trata-se de uma unidade clínica formada por uma equipe interdisciplinar, com orientação psicanal ítica, que se dispõe a acolher duplas de mães-bebês, geralmente encaminhadas pelos profissionais da Maternidade ou das PMIs (Protection Materno-Infantile). Esses profissionais diagnosticam graus de dificuldades que vão além do simples reajuste de adaptação rotineira da constru ção de um vínculo favorável ao amadurecimento emocional e global do bêbê. Essas dificuldades sao provocadas pelas mais diversas causas: um quadro de depressão pós-parto; de psicoses purperais; de psicoses crônicas; ou mesmo por mães que se encontram isoladas ou em situações de abandono.

O trabalho terapêutico, cujo objetivo é prevenir a manifestação de certas patologias da infância, é desenvolvido tanto em um quadro de consultas individuais, orientado pela equipe de psicanalistas da instituição, como por espaços terapêuticos abertos, Lieu de Accueil. Nesses espaços, as mães trocam experiências entre elas e também com os profissionais da equipe que as acompanham nas atividades lúdicas e nas atividades rotineiras tais como o momento da troca de fralda, do banho e da alimenta ção. Essas experiências são, por vezes, vividas por essas mães com dificuldades e com imensa carga de angústia, em função do comprometimento de seu estado psíquico.

O momento da gestação de Mahomed coincide com o período em que sua mãe desenvolve diabetes do tipo 1, acompanhada de quadro de tireóide do tipo Haschi moto G, que influencia no desenvolvimento do sintomas de depressão melancólica, que se agrava no perído do pós-parto, uma vez que se manifesta também mediante idéias delirantes hipocondríacas. Tal diagnóstico levou-a a ser medicada com antipsicóticos e, posteriormente, a ser hospitalizada por um período de três mêses, durante o qual ficou sem contato com seu bêbê, que nesse momento contava com apenas três meses de vida.

No primeiro dia em que encontro Mahomed (então com 10 meses de idade) deparo-me com um bebê que sorri pouco e que possui um olhar que parece desprovido de qualquer expressividade. Enquanto observo o momento em que a mãe troca sua fralda, constato que ela lhe dirige a palavra com um tom particular, que denuncia uma ausência de ritmo e de uma prosódia na vocalização de sua voz. Ao mesmo tempo, percebo que Mahomed não demonstra qualquer reação a essa voz que o convoca. Em um comportamento de recusa, ele se vira na direção oposta, para em seguida fixar seu olhar no teto da sala. Esse comportamento vai se manifestar freqüentemente, mesmo se o chamo pelo seu nome, sendo raros os instantes em que ele me responde.

Em determinado momento, faço tentativas de criar um jogo a partir das batidas rítmicas de um tamborim, na espectativa de que ele seja capturado pelo som em evidência. Dessa vez, Mahomed parece manifestar certo interesse, pois faz menção de pegar o instrumento e bate nele algumas vezes. Repito seus movimetos e acrescento agora certas pausas, bem marcadas, que considero uma espécie de convite para um jogo compartilhado. Mahomed, no entanto, parece não captar esse movimento de ausência e presença do som, e em um movimento de certa indiferença, direciona sua atenção a outros objetos da sala. Esse comportamento de Mahomed leva-me à inferir que o interesse pela voz humana não seria talvez manifestado de forma assim tão natural e instintiva.

Quanto à forma como ele explora esses objetos, diríamos que ela é sobretudo extremamente pobre e efêmera. Constatamos que Mahomed pega um objeto e coloca-o na boca quase de maneira imediata e repetitiva. Esse comportamento denuncia sua dificuldade de sustentar uma exploração, mesmo que seja de caráter oral, visto que, em vez de presenciarmos uma exploração do objeto, observamos uma tendência de colocá-lo inteiramente na boca, em uma atitude que me parece mais uma necessidade de sua parte de preencher essa boca “vazia”, isto é, o “vazio” de elementos érogenos, causado pela ausência de um processo de erotização; fundamental para dar-lhe o estatuto de parte integrante do seu corpo. Talvez venha daí sua necessidade de preenchê-la inteiramente para marcar sua presença, mesmo se associada à ausência de vocalises e de balbucios.

Sua dificuldade de exploração também repercute em sua incapacidade de manter um contato com o outro. Ao fazer intervenções com o intuito de atrair sua atenção, musicalizo minha fala, ao mesmo tempo em que nomeio seus atos, numa busca de teatralizar a tentativa de interlocução que ali se encena. No entanto, são raros os momentos em que Mahomed me responde com ar de surpresa e de prazer; o que sem dúvida irá dificultar a constituição de um possível brincar compartilhado e simbólico. Na medida em que o trabalho terapêutico avança, observamos uma maior disponibilidade por parte da mãe de Mahomed de investir narcisicamente no seu bebê, apesar de esse investimento vir atravessado por um discurso no qual a imagem de Mahomed vigora como sendo a de um bêbê dito “incompreensivel”. Percebemos que, a partir desse momento, a mãe já não está mais indiferente ao comportamento de Mahomed; agora ela se dispõe mesmo a formular hipóteses sobre esses comportamentos de enclausuramento de Mahomed. Segundo ela, essa seria a maneira que seu filho encontrava para expressar seu sofrimento, e mesmo de punila pelo tempo em que esteve ausente durante o período de sua hospitalização.

O interessante foi observar a forma mais explícita através da qual a mãe de Mahomed pôde expressar seus sofrimentos, e mesmo seus medos, em relação ao advir de seu filho. A explicitação desses sentimentos acontece quando ela se dedica a cantarolar para seu bebê em companhia dos profissionais da equipe; nessas ocasiões, podemos notar com clareza que a música faz emergir seus sentimentos e contribui fundamentalmente para que ela possa entrar em contato com os aspectos de seu inconsciente.

Podemos ainda sublinhar a maneira pela qual ela se deixa levar pela música que canta em companhia de uma das profissionais da equipe. A melodia da música parece ganhar uma função estruturante para essa mãe; diríamos, mesmo, a função de um verdadeiro holding; esse holding, que até então lhe era quase inexistente e frágil, tornando, talvez, impossível proporcioná-lo a Mahomed.

E assim, ao longo do tempo, a mãe de Mahomed passa a ser capaz de se mostrar mais presente. E esse comportamento é mesmo manifestado pela entonação da voz materna que, se antes era marcada pelo seu ritmo monótono e melancólico, passa agora a ganhar um estatuto de voz viva e rica de sonoridade e de prosódia, o que vem justificar essa natureza arcaica do sonoro, como nos propõe Maiello (1991).

Quanto a Mahomed, é possível detectar uma leve diminuição dos sintomas associados a um quadro de um autismo precoce. Ele parece estar mais atento à presença dos outros e ao ambiente, embora ainda sejam raros os momentos em que constamos a presença de prazer na maneira como explora os objetos e o mundo. No entanto, no momento em que a equipe e sua mãe cantam para ele percebemos um interesse progressivo de Mahomed pelos sons produzidos pelos instrumentos, mesmo se por vezes ele não o sustente por muito tempo, parecendo, entretanto, reconhecer e partilhar de toda a atmosfera que envolve e atravessa esse momento da canção.

Finalmente, tendo em conta a privação de sons ricos em prosódia e melodia ainda no útero materno, o quadro melancólico de depressão de sua mãe, e ainda o episódio da separa ção precoce no momento da hospitaliza ção desta última, podemos supor que todos esses fatores contribuíram para a manifestação e para o agravamento do enclausuramento psíquico de Mahomed. Contudo, não podemos tomar uma posição reducionista, equacionando simplesmente depress ão materna e autismo precoce.

Ao contrário, as pesquisas relatadas ao longo deste artigo levamnos à construção de novas hipóteses, dentre elas, a importância da sensiblidade precoce do bêbê em relação ao sonoro. Sensibilidade que ainda não sabemos se vem por uma falha da ausência dessa voz materna e de sua prosódia, condições fundamentais para a construção do envelope corporal do eu primitivo, ou se seria, já de antemão, uma predisposição do próprio feto para não reconhecer o som humano. Como sabemos, o terreno ainda é obscuro, o que nos desafia e incita a explorarmos essas novas pesquisas como ricos subsídios para a elaboração de novas estrat égias educativas e terapêuticas no tratamento precoce dessas crianças.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: camila_saboia@hotmail.com

Recebido em setembro/2007
Aceito em novembro/2007

 

 

NOTAS

1 Fenômeno denominado como mamanhês ou manhês (motherese) por Anne Fernald e Patricia Kuhl (1987)
2 Conceito lacaniano fundamental na constitui ção subjetiva do infans.Artigo revisto e ampliado a partir do trabalho apresentado na II Jornada “Palavras em torno do berço” realizada pelo Núcleo Interdisciplinar de Intervenção Precoce da Bahia (NIIP) e a Faculdade Ruy Barbosa, Salvador – BA, 2007
* Psicanalista, doutoranda na Universidade Paris 7. Pesquisadora do Programme International pour le Langage de l’Enfant, Hospital Necker, Paris

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