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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.12 n.23 São Paulo dez. 2007

 

ARTIGO

 

A melancolia: entre o somático e o psíquico

 

Melancholia: between soma and psyche

 

La melancolía: entre lo somático y lo psíquico

 

 

José Otávio de Vasconcellos Naves*; Terezinha Féres-Carneiro**

Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo procura diferenciar, inicialmente, alguns aspectos mais evidentes da melancolia e o cerne de sua construção como sintoma. Vários autores acreditam que suas manifesta ções seriam mais variadas e extensas do que podem deixar transparecer em uma primeira abordagem. A melancolia, assim pensada, estaria situada entre o somático e o psíquico, no vértice da filog ênese que repete a ontogênese. Essa estreita passagem onde o melancólico se situa transforma sua clínica e dificulta- a, uma vez que favorece, na transferência, alguns aspectos complexos para o seu manejo.

Palavras-chave: Melancolia, Transferência, Violência, Catástrofe, Pulsão de morte.


ABSTRACT

At first, this paper searches to distinguish between some more evident features of melancholia and the core of its construction as a symptom. Many authors think that its manifestations can be more varied and extensive than a first approach could show. Thought of that way, melancholia would be placed between soma and psyche, in the vertex of philogenesis that repeats ontogenesis. This narrow passage where the melancholic situates himself/ herself changes its clinic and makes it more difficult, for it aids in the transference some aspects that can be complex to handle.

Keywords: Melancholia, Transference, Violence, Catastrophe, Death drive.


RESUMEN

El artigo busca inicialmente distinguir algunos aspectos más evidentes de la melancolía y el cerne de su construcción como síntoma. Muchos autores creen que sus manifestaciones serían más variadas y extensas do que una primera abordaje podría trasparecer. Pensada de ese modo, la melancolía se situaría entre lo somático y lo psíquico, en el vértice de la filigénesis que repite la ontogénesis. Este estrecho paso donde el melancólico se sitúa trasforma su clínica y la hace más difícil, pues favorece en la transferencia algunos aspectos complejos para su manejo.

Palabras clave: Melancolía, Transferencia, Violencia, Catástrofe, Pulsión de muerte.


 

 

Primeiras considerações

Existem grupos e épocas em que a crônica da melancolia adquire mais evidência e suas formas de expressão apresentam diferenças em relação ao que se encontra na clínica diária do psicanalista contempor âneo. Embora se aproximem de certas importantes características apontadas no artigo freudiano denominado Luto e melancolia (Freud, 1917/1996a), os quadros atuais e os descritos por Freud não oferecem, numa observação mais aprofundada, um paralelismo completo.

Na clínica, independentemente de qual seja o diagnóstico, consideramos importantes as relações que o cliente experimenta com o corpo próprio e com o corpo de outro. A dificuldade específica do melancólico parece situar-se no limite entre um corpo somático e uma corporeidade psíquica, ou seja, um corpo subjetivado que se implica nas relações com o outro e com o mundo de uma forma mais elaborada e secundária. Assim, a subjetivação do corpo é uma vivência corporal específica que possibilita melhores soluções que aquelas que o precário leque do melancólico pode fornecer. O fracasso de um corpo não-integrado leva a um reinvestimento pulsional de uma “imagem de si”. Ela é diferente de uma vivência corporal, pois, diante das dificuldades impostas pelas conjunturas, paga um preço além do exigido, como nas doenças psicossomáticas, por exemplo. Essa identificação imaginária provoca um reinvestimento constante através de incessante restauração. Pode-se então falar de uma “tentativa de cura” pela incorpora ção, através da sustentação paralisante de uma imagem que permite ao sujeito conter certa vitalidade, nesses casos, entretanto, constantemente ameaçada.

Benno Rosemberg (1991) chama a atenção para o fato de que muitas estruturas melancólicas não apresentam sintomas espec íficos, sendo estes substituídos por episódios delirantes ou outras manifestações menos associadas a um luto patológico. Em psicanálise, o trabalho de luto é a elaboração da tristeza por uma perda. Liga-se à existência de uma possibilidade de vivê-la como experiência, e dela retirar seus frutos. A melancolia, por sua vez, é a expressão de um “luto impossível”, mas ela não fala necessariamente de um luto atual, e por essa razão o leque sintomático através do qual ela se expressa pode ser bastante diversificado. Ela é, sobretudo, a característica de um psiquismo que não experiencia de uma forma mais eficaz as dificuldades primitivas que uma organização psíquica determina, ou seja, uma introjeção da perda e a construção psíquica necessária para o reencontro dos objetos internos, no mundo.

Introduzimos essa questão, também, porque acreditamos que a atual medicalização utilizada nesses casos, mesmo que incontestavelmente necessária, sustenta uma interpretação da melancolia que não ocupa um lugar na experiência psíquica interna do indivíduo. Logo, a medicalização pode ser pensada dentro de seu efeito cultural, mesmo que trabalhada sobre bases biológicas muito requintadas. Da mesma forma, algumas medicaliza ções da psicose auxiliam a família a suportar a doença, e não o doente a progredir em seu tratamento, o que não desvaloriza seu uso, mas nos remete a outras dificuldades. Assim, pensamos que a intensidade do uso e o progresso atual dos antidepressivos podem colorir os primeiros contatos entre o analista e seu cliente (esteja ou não o cliente fazendo uso deles), mas será sempre na relação transferencial que o diagnóstico psicanalítico se apoiará.

Em outras palavras, utilizando ou não o antidepressivo, o melancólico, nas relações que estabelece, não deixa de evidenciar suas questões para uma observação psicanalítica mais apurada, uma vez que o cerne da melancolia é uma relação com a ausência e com a presença como primitivos elementos de espaço e de tempo. Essa “crise” é vivida dentro de uma estrutura específica, que se apresenta na transferência e que é caracterizada por dificuldades que os medicamentos, se mascaram, não conseguem desfazer.

Não pretendemos abordar todas as questões que aí se colocam e nos limitamos àquelas que o título deste artigo, no momento, nos sugere, ou seja: alguns aspectos da encruzilhada entre o somático e o psíquico que se apresentam na clínica dessa transfer ência específica e do seu diagnóstico.

 

A melancolia entre o somático e o psíquico: aspectos clínicos

O Rascunho E (Freud, 1894/1996b) e o Rascunho G (Freud, 1895/1996c) são trabalhos importantes. Neles, tal como em outros momentos de sua obra, Freud (1887-1902/1996d) não se priva de nomear essa forma de alteração psíquica através de diversas denominações: melancolia senil, neurastênica, histérica, genuína aguda, cíclica, de angústia, estado de ânimo tipicamente melancólico, depressão, depressão periódica, afetos depressivos, etc. Os sintomas são apatia, dor de cabeça, insônia, dispepsia, expectativas pessimistas, etc. Não existe nenhum texto em que Freud faça uma diferença bastante clara entre depressão e melancolia, mas, no Rascunho G, ele as diferencia ao falar da melancolia como “anestesia psíquica”, e da ausência desse aspecto particular na depressão. Nesse rascunho, a questão da anestesia é amplamente trabalhada, e a melancolia é apresentada tanto como uma formação reativa à dor quanto como uma inibição psíquica com empobrecimento pulsional doloroso.

A frase acima pode nos levar a concluir que o melancólico se anestesia para não sentir dor. Mas pode, também, fazer pensar que ele se queixa porque se empobreceu libidinalmente e esse empobrecimento seria provocado pela anestesia das dificuldades oriundas de uma camada mais interna dele mesmo.

Assim, a melancolia pode ser considerada uma defesa esquiz óide. Muitos autores falam dessas defesas, mas acreditamos que o importante seria marcar o lugar espec ífico em que elas se situam, ou seja, suas trincheiras e as dificuldades de acesso provocadas por esse refúgio. Nossa hipótese seria a de que elas se desenvolvem durante a passagem do somático para o psíquico, da natureza como biologia, tomada simplesmente como um dado imutável, a uma outra natureza à qual o ser deve se submeter para se tornar um sujeito, isto é, referenciado ao desejo de um inconsciente que o governa, mesmo desconhecido. Nessa passagem, o melancólico apresenta uma insuficiência que pode ser entendida como representações lacunares, buracos na esfera psíquica, brancos, espaçamentos, hemorragias, etc. Essas marcas são vistas nos primeiros escritos de Freud como insuficiências de quantidades, desgastadas no período de mania pela busca incessante que lhe é inerente e por um consumo exagerado de excitação.

A melancolia é, neste sentido, a apresentação desse empobrecimento acima nomeado anestésico, e que, numa carta a Fliess, de 30 de maio de 1896, Freud descreve como o “relaxamento na inibição do pensamento ”, que se dá, sempre, no contexto específico de um afeto inaceitável. Tourinho Peres (2003) relaciona essa inibição com uma fragilidade no mundo das representações, mas acredita- se que tais dificuldades se situam nas mais primitivas representações do vazio, mesmo culturais ou familiares, como as formações crípticas desenvolvidas por Nicolas Abraham e Maria Torok (1987/1995).

A importância desse vazio deve, então, ser enfatizada. Na obra de Freud, as referências ao vazio aparecem em vários momentos, mas será no texto intitulado Por que a guerra? (Freud, 1933/1996e) que Freud introduzir á o termo “processo cultural ” um conceito precioso para melhor definir esse vazio. Essa terminologia será também importante para uma melhor compreensão do texto freudiano intitulado Psicologia de grupo e análise do ego (Freud, 1921/ 1996f). Ele é considerado importante para o entendimento das grandes crises entre os agrupamentos.

Segundo Freud, algumas equivalências seriam constatáveis tanto na organização do grupo quanto na de cada indivíduo. Para que o grupo e, também, cada um possa atingir a maturidade, torna-se necessária a convivência com a aquisição simbólica dos regulamentos específicos tanto da cultura como de cada ser humano nela estabelecido. Assim, o lugar ocupado pelo comandante em chefe, ou pelo pai primitivo, tão bem trabalhado no texto acima indicado (Freud, 1921/1996f), perderia a sua concretude inicial (como corpo ou imagem) para dar lugar a um vazio, no qual estão representadas, por sua ausência, tanto uma lei maior quanto um regulamento qualquer.

Esse vazio, assim instalado, representaria o núcleo de cada ser humano na cultura. Ele é, ao mesmo tempo, tanto a lembrança de uma antiga natureza perdida quanto a semente de uma natureza a ser reencontrada e individualizada, porque psíquica, logo, diferente e lateral ao instinto animal que lhe é anterior. A lei parece ser, à primeira vista, um dado imediato e constante. Entretanto, será em sua “não-presença” que ela se fará presente no mais primoroso dela mesma. Portanto, no simbólico, essa ausência obriga cada homem, em si mesmo e por seu próprio esforço, a preservar, constantemente, tanto a civilização quanto sua individuação no mesmo.

Assim, pensamos que Totem e tabu (Freud, 1913/1996g) é um texto no qual Freud, ao desenvolver a procura e a construção da ilusão e da subjetivação no humano, desenvolve também a inserção do homem na cultura, na medida em que se encontra defrontado com o vazio provocado por sua entrada nessa nova ordem. Freud criaria esse momento mítico não somente para ilustrar a passagem desse instinto animal à sexualidade humana, mas, sobretudo, porque essa sexualidade será, daí em diante, o único local que carregaria em si as alternativas da vida pulsional e permitiria um espaço em que são possíveis os perigosos jogos do amor e do incognoscível da morte. Pois todo homem, mesmo pagando o preço do seu abandono aos traços do instinto, guarda em si alguns restos não trabalhados no mesmo. Em acréscimo, também podemos considerar que a mudança para a postura vertical implicaria, para o humano, várias perdas e modificações provocadas tanto por seu acesso à linguagem, quanto pelo seu conseqüente acesso à vergonha preço civilizatório pago na exposição de seus órgãos genitais e na evid ência do sangue da fêmea menstruada. Foi dessa forma, na filogênese, que a fase anal foi abandonada. Ela estava marcada pela primazia do odor como incorporação primitiva, embora ainda pouco estudada pelos psicanalistas. Esse abandono gera uma primazia da pulsão escópica. O olhar, agora privilegiado, já não se fundamenta unicamente numa relação imediata com o objeto, pois mais bem elaboradas, as imagens internalizadas que ele introjeta podem, agora, sofrer torções e mutações em suas perspectivas. Assim, associada à cena do banquete de Totem e tabu (Freud, 1913/ 1996g), a construção freudiana denominada “recalque orgânico” vai permitir pensar essas vicissitudes, sobretudo quando levanta a primazia e a import ância do pudor nesse processo.

Levando em consideração as observações encontradas em Psicologia de grupo e análise do ego (Freud, 1921/1996f), seriam trabalhadas, nesse texto, duas posições diferentes. A primeira pode ser assim resumida: Freud defende que a massa também se aproxima do animalesco e conserva possibilidades dificilmente aceitáveis para “cada um” em sua individualidade, e esse mundo “anterior” seria paralelo às express ões da massa. A segunda enfatiza que, durante algum tempo, o olhar e o espelho caminham juntos. Contudo, há um outro momento em que o espelho representa a imagem perdida do sujeito e não mais a presentifica, e essa simbolização é possível quando associada ao pudor, portanto, para que ela se dê, será necessária a consciência da exposição do corpo para o mundo.

Ambas as observações falam de um corpo no mundo que já é expressão da consciência de uma experiência imediata promovendo um novo homem, ou seja, já relativizando o seu desejo para se curvar à civilização. Mas a civilização não é a massa. Relativizar o desejo à civilização implica uma perda da força de sua expressão, embora não implique a perda de força de seu valor dentro da estrutura de cada um. A força do pudor, assim valorizada, estaria, dentro de qualquer expressão, constantemente associada com a premência que a sexualidade humana carrega em si, e que teria sido anteriormente retirada da massa, horda primitiva por excelência.

A animalidade perdida e fugaz, contudo, continuaria arguta em sua atenção inquieta. Ela é longínqua, porque se situa cada vez mais perto do umbigo do sonho, mas será reencontrada, temida e desejada nas afecções em que aspectos do sintoma se congelam. Essa inquietação mostra sua importância na dificuldade que alguns clientes apresentam em lidar seja com o desejo de objeto, seja com um outro que se apresenta como um possível suporte deste.

Assim, a simbolização desses aspectos mais primários permite ao homem retirar do mundo os acontecimentos perceptivos que lhe outorgam alguma satisfação. Entretanto, e ao mesmo tempo, também permitem que esse homem suporte não encontrar no mundo toda a sensorialidade supostamente usufruída um dia, mas nunca mais passível de ser reencontrada.

A maioria dos autores afirma que um afeto pode ser introjetado independentemente, logo, sem maiores elaborações e sem maiores passagens pela consciência e seus processos. É disso que se trata quando se fala do recalque orgânico. Ele seria um ponto de partida para pensar aspectos da estrutura melancólica, na qual a simbolização, em algum momento primordial, foi impossível.

Mas há um conteúdo que restaria, como uma forma automática de satisfação o chupar o dedo, no útero, como expressão de um narcisismo absoluto. Esse é não só um bom exemplo, como também o mais conhecido. Assim, partindo dele, podemos pensar que o posterior canibalismo será uma incorporação do objeto, diferente dessa organicidade violenta e aparentemente perdida, mas que, entretanto, retornaria sempre, como uma inclinação difusa e já comprometida com a vida psíquica e seus devaneios. É por essa violência animal e assustadora, que Freud (1914/1996h) cita os felinos como um exemplo importante, no artigo sobre o narcisismo, no qual tenta ilustrar a fascinação do homem pelo ideal narcísico através da mesma fascinação que esses animais provocam nele.

 

A perda e a destruição: a indiferença ao horror

Em 1915, Freud escreve o artigo Reflexões para os tempos de guerra e morte (Freud, 1915/1996i). Esse artigo teve seus argumentos elaborados mais profundamente em Por que a guerra? (Freud, 1933/1996e), no qual encontraremos duas passagens que apontam esses conteúdos latentes em cada indivíduo e em qualquer cultura.

“Como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo extremado a ponto de sacrificarem as suas vidas?... É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais; é, contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva. Talvez aí esteja o ponto crucial de todo o complexo de fatores que estamos considerando, um enigma que só um especialista na ciência dos instintos humanos pode resolver” (Freud, p. 243).

Os conteúdos de destruição são uma “paixão”; palavra apropriada (e ao mesmo tempo surpreendente) para designar um momento em que o homem sacrifica a sua vida num entusiasmo levado ao extremo. Essa violência da comunidade, mesmo na forma de uma “suposta lei” ou de um “suposto direito”, é rígida. Nela, a consciência de cada um se agrega ao grupo e nega uma atenção menos enrijecida aos seus objetivos individuais. Assim, continua Freud, “Havia um caminho que se estendia da violência ao direito e à lei. Que caminho era este? Penso ter sido apenas um: o caminho que levava ao reconhecimento do fato de que à força superior de um único indiv íduo podia-se contrapor a união de diversos indivíduos fracos. “L’union fait la force”. A violência podia ser derrotada pela união, e o poder daqueles que se uniam representava, agora, a lei, em contraposição à viol ência de um indivíduo só. Vemos assim que a lei é a força de uma comunidade. Ainda é violência, pronta a se voltar contra qualquer indivíduo que se oponha; funciona pelos mesmos métodos e persegue os mesmos objetivos. A única diferença real reside no fato de que aquilo que prevalece não é mais a violência de um indivíduo, mas a violência da comunidade” (Freud, 1933/1996e, p. 247).

Entretanto, uma diferença pode ser pensada. A horda é canibal para se apropriar do poder do pai, mas há uma rivalidade, não uma relação competitiva. Essa rivalidade goza em si mesma e a fruição ou a nãofrui ção das mulheres poderia ser uma conseqüência, mas não, certamente, um objetivo. O objetivo implicaria uma intenção e um projeto, condições ainda ausentes na estrutura dos filhos desse pai primitivo.

Essa diferença entre competição e rivalidade é interessante porque ilustra o fato de que, na horda, a noção de uma “justiça” mais elaborada ainda está ausente. Na horda vale como base uma retaliação “olho por olho, dente por dente” em que as coisas são por elas mesmas. Assim, as coisas são “simplesmente porque são”: “representações de coisa”. Seria essa uma expressão simples da vida psíquica bastante primitiva. As coisas estariam lá, simplesmente, no seu possível, talvez dentro de um contexto somático bastante semelhante àquele já acima citado, em que, no útero, uma criança chuparia o dedo, antes do nascimento.

Miller nos lembra, citando Heidegger, que “O carvalho jamais ultrapassa a linha do possível. O povo das abelhas vive em seu possível. Somente a vontade sacode a terra e conduz a grandes fadigas, ao desgaste e às variações do artificial. A vontade (a vontade humana, a vontade do povo dos homens) força a terra a sair do círculo de seu possível e a empurra na direção do que não é mais o seu possível” (Miller, 2000, p. 57).

Miller ressalta o conteúdo surpreendente e surpreendido do aparecimento do Homem entre os seres vivos, fala dessa surpresa como característica da nossa singularidade e de sua fruição, e marca a semente dessa humanidade.

Em termos de evolução infantil, Melanie Klein (1951/1991) é que nos possibilitará pensar esses afetos primitivos, como aquele que poderia ser o bebê no útero materno, além de sua “simplicidade de horror ”. Ao construir uma posição depressiva reflexiva, já curvada ao pai e a sua ordem, e o abandono tempor ário das inquietações esquizoparan óides, ou seja, da pura projeção das excitações como resposta ao meio-ambiente, essa autora elabora um caminho possível até certa complexidade em que essa primitiva simplicidade seria vivida fora do horror que a teria caracterizado inicialmente.

Assim, as guerras podem ser pensadas, pela psicanálise, como uma contínua transformação que o homem perpetua ao avesso (seja como cultura, seja como história individual) daquelas primeiras experiências de horror. Mas, nas guerras, elas se apresentam, sobretudo, como uma “indiferença ao horror”; indiferen ça já nomeada por Freud nos trechos acima citados. Ela seria, entretanto, e ao mesmo tempo, busca exasperada de repetição que estaria associada àquela indiferença inicial.

Dessa forma, a “indiferença ao horror” é uma expressão da “anestesia ” já nomeada como defesa nesse mesmo texto. É importante lembrar que, em O ego e o id (Freud, 1923/1996j), o autor trabalha com intensidade dois aspectos contradit órios no superego humano. Ele é nobre e, ao mesmo tempo, rude e grotesco. Freud paraleliza, assim, as formações mais ternas e as mais violentas que o Homem pode oferecer a si, ao “outro” e à cultura. Podese considerar, entretanto, que esse congelamento não é somente uma reação ao horror, uma dificuldade diante da violência. Como um importante adendo, também podemos pensá-lo às avessas. Esse congelamento seria, após algumas torções, uma forma de vivenciar a tristeza e a ternura diante de uma surpreendente e exasperada consciência do desamparo infantil.

 

Uma anestesia que busca saber de si mesma

Em seu artigo denominado Em direção à experiência da dor psíquica, Betty Joseph (1976/1992) fala dessas experiências. Refere-se a clientes que experimentam uma relação de resistência muito particular, na qual o analista é alvo de intensas identificações projetivas. Certa familiaridade toma lugar e parece estabelecer uma troca que, no entanto, é só aparente, porque em seu cerne se processa a evacua ção de uma angústia intolerável. A palavra “evacuação”, nesse contexto, carrega, a nosso ver, todo o leque de possibilidades que o corpo humano oferece: do suor à ejaculação, passando pelo vômito, a menstruação e pela própria respiração. A autora suspeita de que esses indivíduos, incapazes de elaborar uma posição depressiva, não têm o sentimento da dor como culpa em relação a impulsos, preocupações ou perdas. Assim, seria na contratransferência que o analista viveria como dor essa angústia intolerável.

Entretanto, para Klein, é na posição depressiva que a dor psíquica deve ser considerada um primórdio de integração e de considera ção para quem a sofre e para com os outros que, também, teriam se submetido a ela. Assim, seria, nesses casos, uma espécie de masoquismo necessário à consagração civilizatória, na admissão da entrada do pai. É exatamente nos melancólicos que falha esse encontro com um “masoquismo necessário”. Esses casos preocupam o analista e tornam o percurso da análise particularmente penoso para ambos, analista e cliente, já que esse momento crucial de estranheza em relação à dor apresenta-se, inicialmente, na negação da dor do outro; logo, na negação da alteridade.

Lambotte (1984), em suas duas principais obras sobre a melancolia, enfatiza a importância de reconsiderar a nosografia tradicional. A melancolia é uma organização psíquica particular. É um “negativismo”, como Freud marca em seu artigo sobre a negativa (Freud, 1925/1996k), a partir do qual o sujeito se preserva de um retorno possível do aspecto catastrófico de suas fantasias. O melanc ólico abandona o interesse por essa realidade insuportavelmente angustiante em benefício de uma realidade onipotente – sabe da existência da perda e da morte, mas é como se considerasse que nenhuma delas pudesse lhe concernir.

Ora, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905/ 1996l) descreve a pulsão de saber como um questionamento solitário, oriundo de questões inerentes à origem a ao destino de “si mesmo”, e no qual estaria imerso o infans durante alguns momentos de sua vida. Essa pulsão, Freud denominará “epistemofilia” (Freud, 1909d/1996m).

De fato, assim também pensa Berlinck (2000), ao defender que o melancólico desconhece totalmente que exista um outro que saiba. A melancolia se funda na crença de que, literalmente, tudo é passível de saber, e de que o indivíduo é dono de uma razão crítica que o constitui como ser. Pode-se, então, dizer que seu mito de origem está enodado pelo que diz a frase “Penso, logo sou”!

Se assim é, a dúvida apareceria como uma ferida aberta na ilusão, gerando uma espécie de hemorragia libidinal. Já que a assertiva acima citada é crucial para a manutenção da melancolia, ela, como reconsideração, e a perda, como dado de realidade, seriam vividas como um enorme desaparecimento do ser e do seu precário vínculo, razão pela qual a “imagem de si”, citada no início deste texto, seria tão cara ao melancólico. Ela é o único testemunho dessa certeza absolutamente contundente que o fundamenta. Assim, o trabalho do luto torna-se difícil pela própria impossibilidade de encontrar lugar para se tornar trabalho.

Meunier ajuda a melhor compreender essa “compulsão de saber” quando afirma que “A melancolia sabe que o mundo é mortal e entra em contato com ele através desta dimensão. Nada existe de mais banal do que isto. Aparentemente, ...mas saber o mundo mortal e habitá-lo como tal não é tão freqüente assim, nem tão simples. Sabemos que o mundo vai acabar, mas não agora, não no “aqui”. Sabemos que ele passará, mas “após”, num após quase improvável, como seria nossa própria morte. Nós não iríamos até a rosa na explosão de sua beleza, da mesma forma que iríamos à rosa que morrerá, com suas pétalas flácidas, lívidas, esparramadas pelo chão. Saber a rosa mortal, não depois, mas agora e diante dela, é um saber outro e mais avassalador. É a isso que a melancolia nos convida, se vamos até o limite dela mesma” (Meunier, 1987, p. 60, tradução nossa).

Saber da mortalidade da rosa agora, não depois, mas diante dela, é uma redução extrema do caminho possível, como acima foi descrito como característica compulsiva de um processo primário. Não existe, na melancolia, nenhum espaço possível entre o olhar e o horizonte que fascina. Tal horizonte não se afasta, como todo horizonte, do olhar que o persegue. Ao contrário, ele se imobiliza, congelado por uma sensorialidade que não gera conhecimento algum. Há, aí, a expressão de um “suposto conhecimento perceptivo ”, marcando uma distinção entre a neurose, que confunde o eu com a consciência, e a melancolia, que confunde o eu com a percep ção. Esse é um ponto nodal, uma vez que nessa regressão à percepção pode-se pensar que o melancólico (levando em considera ção o jogo do “Fort- da” freudiano (Freud, 1920/1996n)) não é uma criança enlutada que brinca com o carretel. Ele é o carretel, observando, como um enigma, a tristeza de uma criança, mumificada na memória e, por não poder manter o ilusório da realidade psíquica, refugia- se em si mesmo, fecha-se numa realidade sensorial.

O melancólico não leva em considera ção que uma dimensão trágica se impõe e transfere suas questões para uma região de catástrofe, já que suas auto-acusações são expressões catastróficas e externas da tragédia interna, localizada dentro deste espaço muito estrito em que a compuls ão à repetição se situa. Eventualmente essa realidade sensorial pode ser o suicídio, mas a psicossomática, a drogadicção, os esforços físicos extenuantes, muitas vezes aparecem como campo vivencial privilegiado.

 

A catástrofe e a tragédia

Muitas vezes encontramos os termos “catástrofe” e “tragédia” mesclados e não diferenciados, tal como se dá, por exemplo, nas notícias e refer ências às catástrofes que abalam o meio-ambiente. João Cezar de Castro Rocha, num artigo para a Folha de São Paulo (02/01/2005) falando sobre um maremoto na Ásia, comenta o quanto esse fenômeno enquadra-se na definição de “sublime”, tal como os filósofos do século XVIII o conceituaram. De fato, para Kant (1798/ 2003), sublime é sempre o que é “absolutamente grande” e, por isto mesmo, “incontrolável”.

Um outro articulista, Rubens Ric úpero, no mesmo jornal, falando do mesmo fenômeno, cita o terremoto de Lisboa, em 1755, como a catástrofe natural de maior impacto moral e intelectual na história do Ocidente, só comparável à destruição de Pompéia, na Antiguidade. Muito tempo foi necessário para que a notícia percorresse o mundo e se transformasse num fato histórico para todo o Ocidente.

O mais interessante no artigo de Castro Rocha é a denúncia que ele traz de uma “não-discriminação”, encontrada nas descrições feitas pela mídia e pela narrativa popular, pois esses fenômenos foram denominados ora “tragédias”, ora “catástrofes ”.

As grandes catástrofes que ocorreram sobre a terra tornaram o homem primitivo desamparado diante de uma natureza que o surpreendeu. Por outro lado, o trauma primário pode ser definido como uma “desmesurada informação sensória” imposs ível de ser respondida pelo organismo psíquico em formação. As duas vicissitudes (o desamparo diante da natureza e a desmesura que colide com o psiquismo) partilham esse caráter de descomedimento. O paralelo pode nos sugerir que cada homem, como sujeito, carrega o trágico de sua repetição, e ao humano, como objeto da natureza, resta suportar o descomedimento das suas catástrofes.

No caso das catástrofes, quando tomadas como façanha divina, os deuses são os sujeitos e os seres humanos estão colocados na posição de objeto. Na tragédia, entretanto, estabelece-se a dialética entre o sujeito e o objeto. Como Freud diz em O ego e o id, a puls ão arrebata o sujeito e faz dele e do objeto um destino só, numa suposta e inesperada integração, unificando o cavalo e o cavaleiro. (Freud, 1923/1996j)

Ao falar da diferença entre trag édia e catástrofe, Castro Rocha assinala que a tragédia, como gênero, fala da ação transgressora de um herói. É o desmedido de seu comportamento que inicia o conjunto de ações dominado pelo implacável de um destino. Entretanto, a natureza não pode gerar uma tragédia, só pode produzir catástrofes, uma vez que não carrega em si “excessos”. Ela só tem “possíveis”, embora seja verdade que essa disjunção entre o excesso e o possível encontre-se no seio mesmo do discurso que cada ser humano faz sobre ambos: a natureza e o desnaturado de si mesmo.

Parece que a narrativa busca, em ambos os casos – o da catástrofe e o da tragédia, um sentido para ressaltar o “não-sentido” inicial que vai se instalar para sempre. Ricúpero refere- se a Walter Benjamim, que enfatiza as possibilidades que a narrativa traz ao tentar conter o mundo catastr ófico dentro do mundo das palavras. A narrativa, entretanto, toma uma dimensão cada vez mais reduzida no mundo contemporâneo. Parece ser o efeito do impacto de um “sublime tecnológico” que permite visualizar, pela cobertura jornalística e televisiva, a imagem de horror. Assim, o excesso e o imediato da notícia, constantemente estimulando os homens, parecem ter destruído tanto a necessária “experiência em si” como a necessária formulação narrativa, fundamental para conter essa imagem dentro de parâmetros mais suportáveis. Nesse caso, vamos nos confrontar com um espaço e um tempo muito curto para utilizar sua possibilidade de elaboração.

Para suportar a contingência da falência das narrativas, cada ser psíquico parece se reforçar, primordialmente, através de duas formações patológicas. A primeira seria a busca de uma religiosidade que faça do mundo a catedral do humano, já que sua estrutura não permite que ele seja a catedral de si mesmo. A segunda seria a construção ou a aquisição do conhecimento. Assim, temos a religiosidade e o conhecimento como formas de suportar as experiências oriundas de nossa estrutura melanc ólica primitiva, mesmo que culturalmente não reconhecidas como doentias. Na clínica quotidiana, essa estrutura retornaria e se caracterizaria, também, pelo curto espaço entre o trauma e sua precária elaboração. Os dois pontos não fornecem, também ao analista, um espaço necess ário e confortável para uma intervenção adequada.

Pode-se pensar a melancolia como mantenedora de uma “forma religiosa” de adoecer que não busca institucionalizar-se, visto que da ritualiza ção obsessiva deriva uma pseudo inserção social. Entretanto, sua relação com a religião já fora marcada por Aristóteles, que reuniu a ciência e o misticismo para explicar os humores do espírito e do vinho. A melancolia foi, nesses momentos da história, a doença de muitos homens e poetas ilustres como Empédocles, Sócrates, Platão, Hércules e Lisandro. Aliás, ela não seria, nesse aspecto, uma doença do filó- sofo, mas sua própria natureza, seu “ethos”, como observa Tourinho Peres (2003), e, assim, “sua razão de ser”.

 

Considerações finais

A melancolia seria pensada por Freud como uma neurose narcísica, na medida em que, na transferência, ela apresenta dificuldades relativas às primeiras experiências de inserção cultural que se mostrariam ineficazes em seu desenvolvimento posterior. Tomando- se como modelo o mito criado em Totem e tabu (Freud, 1912- 13/1996g), pode-se dizer que o melancólico não suporta as conseq üências advindas do vazio do pai morto. Esse vazio é o cerne do corte narcíssico. A angústia, não-elaborada e extrema, cria ranhuras nos primórdios do tecido psíquico.

Esses primeiros momentos seriam representados pelas primeiras condensações e deslocamentos da vida erótica ilustrados por Freud através de seus estudos sobre a magia. Sem uma extensa elaboração do tabu e a formação do totem, a organização psíquica fica comprometida não só em seus próprios alicerces, como também nas ritualizações, que favorecem uma inserção, mesmo que incipiente, no laço social. Essa é a diferença fundamental entre a melancolia e a neurose obsessiva. Na segunda, o ritualismo fornece um caminho para uma adequação detalhada, embora não convincente, do sujeito e do laço.

De início, seria comprometedor considerar a melancolia uma psicose. O vazio do pai está presente – mas o melancólico não o exclui, embora sejam grandes as necessidades constantes de reforço que esse vazio exige do seu poder ilusório. Daí deriva o caráter religioso da melancolia, anteriormente citado. Trata-se aqui da raiz do supereu, onde coexistem tanto a culpa como a angústia, que dela retira sua fonte.

No discurso do melancólico, o objeto externo parece ser, de início, a questão. Ele está lá, é excluído, mas ao mesmo tempo a sua ausência não é suportada. Seria com essa difícil ausência que o melancólico se identificaria, mesmo que tal tentativa tenha que ser constantemente recuperada pelo “fanatismo religioso da tristeza”, aqui compreendido como um constante e fracassado jogo da proje ção e da introjeção. Esse esforço constante parece ser uma das causas que fazem com que o discurso do melancólico tenha especificidades bastante peculiares: é lacunar e tem uma sonoridade específica. A diferença entre as representações da palavra e as representa ções de coisa falha em benefício de uma musicalidade que prejudica a clareza do conteúdo. Por outro lado, as palavras parecem se alongar além das suas possibilidades como se, desse modo, pudessem se ocupar e revestir melhor o curto espaço de manejo dentro do qual a clínica do melancólico se instala.

Assim, a questão melancólica está aquém de algumas experiências mais produtivas, como o jogo do Fort da, como elaboração. No texto freudiano, a criança permite-se um jogo com a ausência; jogo que o melancólico, paralisado, não pode se permitir. Situa-se, assim, antes da “crença do existir”, como forma compensatória de uma falha na identidade primária.

No luto, o objeto perdido é parte constituinte do ideal do eu. Na melancolia, o eu ideal, apesar de já afetado, porque existente, sofre com sua ambivalência diante de um ideal de si congelado e incipiente. Existe um outro amado, no campo da realidade ou da fantasia. Ele ama, amou, ou acreditou que deveria amar esse outro, mas esse amor não pode ser vivido como qualquer amor o seria, isto é, como uma forma agradável e possível de existir e estar no mundo.

Abraham retomará alguns aspectos da melancolia bastante importantes na clínica. Em seu artigo denominado Les différences psychosexuelles entre l’histerie et la démence précoce (1908/1977), fala da angústia e da depressão, marcando tanto suas afinidades como suas diferenças, na psicose e na neurose. A angústia é um abandono do colorido sexual porque houve recalque, sendo a depressão um abandono do mesmo colorido porque não houve satisfação. Ambas carregam “certas dificuldades na relação com o objeto”, mas nas neuroses narcísicas essas dificuldades surgem de um sentimento exacerbado de ambivalência. O mundo é pensado como absolutamente hostil, determinando satisfações masoquistas, autoacusa ções e incertezas. Parece surgir dessas premissas a desagrad ável relação com o amor que o melancólico tenta explicitar através de seu sintoma

Entendemos, também, que Abraham nos falaria, dessa maneira, de um adoecimento em que o mundo é um erro, e o eu um vazio. Tal aridez resulta da aglutinação de experiências que o eu teria conhecido em seus primeiros contatos com o mundo materno. Nesse sentido, o eu se esvazia e não o mundo. Ele se enfraquece cada vez que se esforça para reencontrar uma consciência que lhe é essencial como agradável e útil para ser vivida. Mas a consciência seria uma sensação, somente necessária para nomear sua dor impossível. Logo, ela é congelada. Para suportar esse impasse o melanc ólico procura, em seu pequeno arsenal de possibilidades, um mundo de sensações.

O analista está nesse lugar quase sensório, lançando a possibilidade da elaboração de um possível jogo da presença e da ausência. Assim, o processo regressivo que vai da consciência ao perceptivo leva a uma estagnação que não permite que outras qualidades persistam, e que novos reconhecimentos se façam e uma transitoriedade se dê. Disso resulta uma “concretude do recordar e do repetir”, já que é parco o espaço para construir.

É importante salientar que na melancolia não é possível esquecer, visto que a memória é rainha. Esquecer (ou recalcar) seria perder o valor de uma identificação insubstituível. Não podemos pedir a alguém que se esqueça de sua única verdade, mesmo que salvaguardada por uma consciência perceptiva, salvo se puder ter a garantia de restabelecê-la através de outras vinculações; sobretudo se a lembran ça mantida com tamanha desmesura é uma representação imaginária do corpo próprio. Essa semente de uma ficção normalmente culminaria numa expressão mais positiva de um corpo subjetivado. Mas a sua única e parca verdade, como ficção, seria uma precária imagem de si. Assim, ele tenta extrair dela mais verdades que o seu espaço estreito pode construir. É somente essa atenção interna, como consciência única e rígida, sem fugacidades, que intensifica e preserva sua empobrecida, mas exacerbada, criatividade inicial.

Na transferência, o laço se apresenta instável, falsamente arrebatado em certos momentos para, em outros, expressar-se em sua verdadeira fragilidade. Essa, no entanto, não seria uma especificidade da melancolia e sim das neuroses narcísicas em geral. Existe um pedido desmedido, mas importante, que nunca se apresenta claramente na clínica, nem mesmo como inquietação.

Esse pedido desmedido deve ser considerado a fonte crucial do mito do melancólico. Ele dá os seus pequenos sinais na utilização abusiva da metonímia como a única forma poss ível de construir o discurso. Um deslizamento constante é produto da enorme possibilidade analógica que Freud já descrevera em Totem e tabu (Freud, 1913/1996g), como caracter ística do pensamento mágico.

O deslizamento metonímico embaraça o analista. A busca alucinada de um sentido faz do analisando um construtor renitente de frágeis analogias, de referenciais empobrecidos, de histórias mais ou menos detalhadas e repetitivas que não podem se apresentar como trabalho analítico, uma vez que não metaforizam nunca. Contudo, devem ser suportadas como um esforço de metaforiza ção que, muitas vezes, mas muito devagar, podem chegar a ter sucesso. E esse sucesso virá não só da aposta interna do analista nele, mas também de uma consciência de si mesmo, como profissional da escuta e como corporalidade atenta, mesmo que aparentemente flutuante.

Tanto a cultura quanto o psiquismo de cada homem sofrem dessas vicissitudes. O trabalho freudiano sobre a guerra e os grupos fala dessas possíveis analogias. Também a cultura passeia entre uma indiferença ao horror e um horror a essa indiferen ça, e esforça-se, duramente, no reforço de suas ilusões.

A consciência, sempre a posteriori, é que zelaria pela sua elaboração discursiva que é menos afeita às sensa ções, embora destas não abra mão. Sendo mais afastada do somático, porque expressão mais profícua dos acontecimentos, somente a palavra carrega em si a possibilidade de expressá-los em seus dois avessos – na externalidade desses acontecimentos como estimulação, e na sua internaliza ção, como elaboração.

Esses extremos expressam-se claramente nos deslocamentos observados entre a catástrofe e a tragédia. O dado imediato situa-se vizinho à catástrofe, por ser um acontecimento mais próximo da percepção e das sensações, logo, do somático. Se a narrativa colore os dados e provoca novas possibilidades de elaboração, dentro de um espaço mais largo, é a própria cultura, entretanto, que os esvazia e diminui, matando a possibilidade narrativa que se ocuparia deles de uma maneira mais eficaz. Trata-se dessa expressão ambivalente da cultura, ou seja, de transformar o horror num dado imediato e acess ível que a obriga a trabalhar através de uma exposição crescente do acontecimento a todos, mesmo àqueles que não conviveram mais diretamente com ele. Essa exposição, entretanto, não promove a elaboração, ao contr ário: constrange o seu movimento e diminui o seu espaço.

Acreditamos importante enfatizar que a medicalização do paciente melancólico obedece aos mesmos compromissos. Como expressão som ática, o pedido de medicalização parece ser o resultado mais contundente da encruzilhada entre o somático e psíquico, na qual ele se instala. Mesmo atual e necessária, ela expressa a dificuldade básica de cada melanc ólico na cultura. Portanto, ela poderia ser denunciada, mesmo quando aconselhada. Cada paciente começaria a compreender, gradualmente, essa dor extrema de exibir para esconder o que a sua estrutura encerra. O suicídio seria o exemplo crucial – a morte sendo, ao mesmo tempo, sua exibição mais completa e seu esconderijo mais radical.

A encruzilhada a que essa conjun ção nos remete pode definir a medicaliza ção (mesmo quando absolutamente imprescindível) como uma máscara do somático sobre o psíquico, processo típico de qualquer estrutura social, exibido e sancionado pela mídia; solução eficaz, mas insuficiente, para essa encruzilhada onde somente o esvaziamento da dor e a ausência de um corpo podem se expressar. A melancolia, assim pensada, é uma aposta infinita no feminino, como um corpo constantemente comprometido com o perdido, ou “com o vazio instalado”. O “outro” é a surpresa – que pode se apresentar como uma “não-resposta” ou, apresentando-se como “resposta”, dentro de um espanto insuportável. O sujeito, em sua emperrada fugacidade, prende-se a um passado atrav és desse constante reinvestimento pseudo-somático, comprometendo, assim, as perspectivas que engendrariam um futuro mais promissor.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: jnaves@iis.com.br
E-mail: teferca@psi.puc-rio.br

Recebido em abril/2007
Aceito em julho/2007

 

 

* Professor do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Psicanalista
** Professora Titular no Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Psicoterapeuta de família e casal

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