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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.12 n.23 São Paulo dez. 2007

 

FUNDAMENTOS

 

Sobre o sujeito da psicanálise

 

On the subject of psychoanalysis

 

Sobre el sujeto en el psicoanálisis

 

 

Cristóvão Giovani Burgarelli*

Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás
Espaço Psicanalítico de Goiânia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetiva-se, com este artigo, pensar algumas implicações que advêm da consideração de que, ao incidir no organismo humano, no infans, o significante o constitui como corpolinguagem. Para isso, tomaremos como referencial uma imbricação entre os campos da psicanálise e da linguagem, mais especificamente o que Freud nos apresenta em “Além do princípio do prazer ” e as contribuições que Lacan traz a essa leitura no seminário 20.

Palavras-chave: Inconsciente, Linguagem, Pulsão, Ser falante, Sujeito.


ABSTRACT

The aim of this article is to think about some of the implications which arise out of the consideration that the incidence of the signified in the human organism, in the infans, constitutes it-as-bodylanguage. To do so, as a referential, we will take an overlap between the fields of psychoanalysis and language, more specifically what Freud introduces in “Beyond the Pleasure Principle” and Lacan’s contributions to the Freudian text in the 20th seminar.

Keywords: Unconscious, Language, Drive, Speaking being, Subject.


RESUMEN

Pretendemos pensar algunas implicaciones derivadas del hecho de considerar que el significante al incidir sobre el organismo humano del infans constituye un cuerpolenguaje. Tomamos como referencia una intersección entre los campos del psicoanálisis y el lenguaje, mas específicamente la reflexión de Freud en “Mas allá del principio del placer” y las contribuciones que hace Lacan en su “Seminario 20”.

Palabras clave: Inconsciente, Lenguaje, Pulsión, Ser hablante, Sujeto.


 

 

Considerando que cada um dos conceitos fundamentais da psicanálise, embora se sustente em sua especificidade, não se desvincula dos demais, tampouco os exclui, nosso ponto de partida é pensar a noção de sujeito como efeito de linguagem; um sujeito que surge no momento do enlaçamento pulsional. Portanto, o que se torna uma questão importante para nós é a articulação entre significante e corpo, a partir da qual pensamos ser possível falar, para além da relação do sujeito com sua consciência, do estatuto do corpo no mundo humano; ou seja, de um corpolinguagem, cuja satisfação obedece à lógica de uma trama argumentativa cujas teias, ao mesmo tempo em que possibilitam sempre configura ções singulares, vão definir o modo como o humano vai exercer sua sexualidade, isto é, satisfazer a pulsão.

Preocupado com a distinção entre a psicanálise e o discurso científico – por exemplo, o da filosofia e o da psicologia – Lacan (1985) toma como quest ão fundamental o sujeito, que para ele só se encontra no campo do inconsciente, que pode ser definido como campo cingido por uma barreira, por uma inacessibilidade. O autor comenta que, para a psican álise, o fundo da vida é outro, pois o que a afeta logo de início é que entre o mundo e o homem há um muro1, o muro da linguagem, com o qual temos que nos haver, como podemos, em nossas relações humanas, nas quais o certo é que “a coisa não vai, e todo mundo fala disso, uma grande parte de nossa atividade se passa a dizer isso” (p. 46, itálicos nossos). O que somos, portanto, é um ser-sexual (não ôntico, mas ético), em cuja experiência se constata que satisfação e insatisfação se recobrem; um ser constituído por uma “substância” que o situa num lugar distinto do que se vem pensando como campo da consciência, do eu ou da individualidade.

No nosso entendimento, essa articulação é freudiana, pois, desde sua elaboração sobre o aparelho psíquico, retomada várias vezes no decorrer de sua obra, Freud nos permite entender que esse aparelho é um aparelho de linguagem 2. A partir desse argumento é que pretendemos caminhar com a leitura de Além do princípio do prazer, texto freudiano de 1920, que representa um momento de retomada e de síntese do seu pensamento e dedica-se à articula ção do conceito de pulsão – considerado por Freud a parte mais importante da teoria psicanalítica, mas também a menos completa3 com os demais conceitos e noções que lhe foram caros desde suas primeiras elaborações. Vemos aqui uma partitura em que os diversos acordes se refazem e se autenticam, reclamando, no entanto, a imbricação com os demais conceitos: inconsciente, pulsão, transferência, repetição, sexualidade, recalque, castração, sintoma, sublimação, narcisismo, entre outros; as ambivalências como interno/externo, ativo/passivo, prazer/desprazer e, por fim, eu (sujeito)/objeto.

Caminhemos, então, com essa leitura. Freud (1920/2006) fundamenta-se inicialmente na tendência à estabilidade, de Fechner, para enunciar o princípio de prazer, mas sem fugir dos paradoxos aí implicados. O movimento psicofísico, para Fechner, conta tanto com as condições de aproximar-se da estabilidade completa quanto com as de desviar-se dela. Isso implica, portanto, pelo menos dois limites, que Fechner chama de limiares de prazer e desprazer, e implica também, logo em seguida, o limite entre esses dois limites, que ele denomina “indiferença estética”, ou seja, indiferença quanto à diversidade de sensações e percepções. Vejamos o que Freud nos diz: “uma discussão mais detalhada nos mostrará que essa tendência que atribuímos ao aparelho psíquico se subordina como um caso particular ao princípio fechneriano da tendência à estabilidade, a qual Fechner relaciona com as sensações de prazerdesprazer. Por outro lado, em rigor seria incorreto falar de um domínio do princípio de prazer sobre os cursos dos processos psíquicos. Se este domínio existisse, a imensa maioria de nossos processos psíquicos deveria ser acompanhada de prazer, ou conduzir- nos ao prazer; entretanto, a experiência mais comum está em flagrante contradição com essa conclusão” (1920/2006, pp. 136-137).

Após essa “solução” meio dialética meio tergiversante, Freud começa a descrever circunstâncias que impedem que o princípio de prazer seja levado a cabo. A partir desse momento, torna-se então recorrente em seu texto o termo Triebe e as expressões com ele compostas, como pulsões de autoconservação do Eu e pulsões sexuais. Nesse momento. Freud realça duas circunstâncias, ou duas fontes, de desprazer: ineficiência e perigo para que o organismo enfrente as dificuldades do mundo externo; e conflitos e clivagens próprios à passagem do Eu a “organizações psíquicas mais complexas” (p. 138). Em síntese, sob a influência das pulsões, o princípio de prazer é substituído pelo princípio de realidade, e caberia ao primeiro a tarefa de dirigir “de maneira correta” essas exigências pulsionais e essas ameaças de perigo. No entanto, em seu ziguezague bastante retórico, Freud vai dizernos outra coisa, quer seja: antes da dominância do princípio do prazer, a vida psíquica depara-se com a angústia, para a qual lhe falta toda e qualquer preparação.

É importante fazer uma pausa aqui, para já esboçarmos, com Lacan, a articulação que pretendemos. Conforme a leitura freudiana de Lacan, a angústia não é uma emoção, mas sim um afeto, ou seja, um efeito do caráter não enumerável do gozo do Outro. Não se trata, portanto, para ele, de partir do corpo – nem do biológico nem das funções mentais – para se chegar ao sujeito; também não se trata de partir da substância pensante, como nos ensina a metaf ísica, pois esse sujeito não interessa à psicanálise como ser, mas sim como sujeito do inconsciente, ou seja, sujeito que se define por coabitação com alíngua4, sujeito que se torna sujeito por um significante e para um outro significante, o que de fato pode permitir-lhe achar-se ser em seus predicados, pois é justamente esse o efeito do que se pode denominar significante: a diferença do um-entre-outros, capaz de produzir Um.

Utilizando-se da metáfora biológica, Freud (1920/2006) falanos de uma fusão ou conjugação entre o óvulo e o espermatozóide para que se dê o nascimento do Um, sinônimo aqui de um novo ser, mas também, nesse momento, o que mais passa a importar- lhe é que essa relação não acontece sem meiose, isto é, sem a subtração, a morte, de certos elementos. Se, por um lado, há o Eros, que pode ser tomado como Um, ou seja, como o que é próprio à pulsão de vida, capaz de fazer supor alguma unidade para uma multidão, por outro, e ao mesmo tempo, existe para Freud o Tânatos, essa oposição que se vê sempre vinculada à pulsão de destruição.

Lacan aprende com Freud a interrogar esse Há um, mas situa suas interrogações no campo da linguagem. Sustentando que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, ele contrapõe ao ser da filosofia um ser que fala, que ele denomina tamb ém um ser da significância. Em síntese, Lacan lê em Freud que a subst ância em que se sustenta o discurso analítico é a substância gozante, “que se esteia inteiramente no fato de haver significante” (Lacan, 1985, p. 57). Isso que Lacan nos diz tem a ver com o que ele articula num momento anterior, quando, em três lições consecutivas do seminário 11, retoma o que Freud já havia antecipado ao seu “Além do princípio de prazer”, no seu texto de 1915, “Pulsões e destinos da Pulsão”.

Contribuindo para que possamos pensar a articulação entre inconsciente, pulsão, sexualidade e princípio de prazer, Lacan (1996), na lição XII, relembra-nos de que a realidade do inconsciente freudiano é sexual, ou seja, a oposição que Freud articula entre princípio de realidade e princípio de prazer tem como ponto central o fato de que o sujeito deseja, isto é, de que a conotação de realidade, que lhe é dada na alucinação, distingue- se de qualquer outra, dessexualizada, suposta ao princípio de realidade. Na lição seguinte, Lacan nos diz que o conceito de pulsão, em Freud, não tem outra função senão questionar o que seria da ordem da satisfação, uma vez que o caminho do sujeito depara-se com estes dois impossíveis: o real, que se separa do campo do princípio do prazer, pela sua dessexualização, e o contorno próprio à pulsão para que o princípio de prazer se satisfaça, como diz Freud, pela alucinação. Por fim, na lição XIV, Lacan conclui retomando que o princípio de prazer pode apenas ser contornado pela incidência da pulsão parcial, ou seja, que a tendência à estabilidade de que Freud parte, a manutenção de uma homeostase, deve ser entendida em “sua captura pelo rosto velado que é o da sexualidade ” (p.174).

Nem biologia nem filosofia nem psicologia, mas sim lingüisteria, pois o que concerne à histérica, ao seu discurso, é ter o gozo do Outro simbolizado pelo seu corpo. Trata-se, portanto, da seguinte formulação, conforme podemos conferir no semin ário 20: “todas as necessidades do ser falante estão contaminadas pelo fato de estarem implicadas com uma outra satisfação ... à qual elas podem faltar” (Lacan, 1985, p.70). A realidade é, portanto, abordada com os aparelhos do gozo, e, para Lacan, “aparelho não há outro senão a linguagem ” (p.75). Em termos freudianos, isso poderia ser dito da seguinte maneira: de um Eu real inicial, a partir do momento em que um bebê passa a distinguir o interno do externo, deriva-se um Eu-prazer, capaz agora de decompor o mundo externo “em uma parcela prazerosa, que ele incorpora em si, e em um resto, que lhe parece estranho” (Freud, 1915/2004, p. 159). Poderíamos pensar, aqui, que esse nascimento do eu dá-se a partir do momento em que essa criança fala; o que, para Lacan (1985), coincide com a instauração do recalque.

Voltemos então ao ponto em que paramos com a nossa leitura de Além do princípio de prazer. Freud (1920/2006) nos fala de uma perturba ção, de certo mal-estar, que dará lugar à manifestação da angústia, um afeto que se manifesta no corpo, mas para o qual não se tem representação, portanto, um vazio que vai convocar o infans a estruturar sua demanda, isto é, que vai convocar o seu corpo a entrar no jogo original da linguagem; jogo destinado a estruturar a relação presença-ausência de um objeto desejado, da mãe, ou ainda da imagem de seu próprio corpo diante do espelho.

Freud caminha com sua elaboração relatando-nos o que ele denominou a primeira brincadeira efetuada por um menininho de um ano e meio, que agarrava algum objeto e atirava-o para longe, emitindo um sonoro e prolongado o-o-o-ó (fort), e depois, após um bom trabalho, voltava a agarrá-lo novamente. Essa mesma brincadeira se repetia com o seu brinquedo carretel, amarrado por um cordão. Em vez de tomá-lo por um carrinho a ser puxado pelo chão, essa criança tomava-o pelo cordão e o arremessava por sobre a borda de seu berço, emitindo o seu expressivo o-o-o-ó (fort), para depois puxá-lo para perto novamente, saudando o seu reaparecimento com um alegre da (ali). Desaparecimento e retorno; gozo e renúncia ao gozo; prazer e desprazer; papel passivo e papel ativo; amor e ódio. Em síntese, a diferen ça, que pode ser tomada como sin ônimo do que Lacan chamará de função significante.

Para Freud, então, a natureza desagradável de uma experiência não impede que nós queiramos repeti-la. É isso que ele vê nessa brincadeira do fort-da; a criança estaria repetindo a partida da mãe como se fosse algo agradável; é como se ela estivesse dizendo – estas são as palavras que Freud sugere – “é, vá embora, eu não preciso de você, eu mesmo te mando embora” (p. 142). E logo em seguida ele nos diz o seguinte sobre o fato de alguma possível “vivência assustadora” – como, por exemplo, a das intervenções médicas tornar-se tema de uma próxima brincadeira: “ao passar da passividade vivida naquela experiência para a atividade da brincadeira, a criança inflige a um companheiro de brincadeira todo o evento desagradável que aconteceu com ela mesma, e assim se vinga da pessoa que está fazendo o papel desse substituto” (p. 143).

A que noções ou conceitos Freud vai chegar com essa sua elabora ção? Compulsão à repetição e pulsão de morte. Quanto ao primeiro, ele nos diz que “as manifestações da compulsão à repetição ... não só exibem um caráter altamente pulsional [triebhaft] como também – quando se opõem ao princípio de prazer – apresentam até mesmo um caráter demoníaco” (p. 159). Quanto ao segundo, Freud, poucos passos à frente, vai abandonar sua oposição apresentada inicialmente entre as pulsões de autoconservação do Eu e as pulsões sexuais, para radicalizar ainda mais as ambivalências com que se depara durante toda sua elaboração: “[as verdadeiras puls ões de vida] trabalham contra as outras pulsões que têm por função conduzir à morte ... É como se houvesse um ritmo alternante na vida dos organismos: um grupo de pulsões precipita-se à frente, a fim de alcançar o mais breve possível o objetivo final da vida; o outro grupo, após chegar a um determinado trecho desse caminho, apressa-se a voltar para trás a fim de retomar esse mesmo percurso a partir de um certo ponto ... Então, ainda que no início da vida não tenha existido uma sexualidade e tampouco a diferença entre sexos, é possível pensarmos que essas pulsões que posteriormente podemos designar como sexuais tenham entrado em ação desde o início” (Freud, 1920/2006, pp. 163-164).

Comentando sobre o estilo como Freud traz suas noções, entre elas mais especificamente a noção de pulsão de morte, Lacan (1985) diz que o que Freud escreve, embora tenha o valor de “centrar o simbólico”, não pode reter senão “uma verdade côngrua”, a do semidizer, “aquela que se verifica por se guardar de ir até a confissão, que seria o pior, a verdade que se põe em guarda desde a causa do desejo” (p.126). Caberia perguntar-nos: e se ela não se guarda desse pior? Daríamos de cara com a morte, e não engendrar íamos a vida. E a verdade que pretende ser toda? Como ela não pode dizer-se, pertenceria a outro ser que não o falante e por isso não se trataria mais de ciência, e sim de religião ou teologia.

Lacan (1985) diz que o real só se pode inscrever pelo impasse da formaliza ção, e para comentar isso ele recorre à metáfora de como trabalha uma aranha, cujas teias saem, milagrosamente, do ventre, para, a partir de um ponto opaco desse ser estranho, desenhar, em dimensões de superfície, os traços de um escrito, nos quais se podem perceber “os limites, os pontos de impasse, os becos sem-saída, que mostram o real acedendo ao simbólico” (p. 126). Essa comparação cairia muito bem para esse texto de Freud, com seu estilo em ziguezague, mais se estranhando diante de algo a irromper do que propriamente dizendo.

Para pensarmos um pouco mais sobre esse estilo de Freud, seu jeito ao mesmo tempo vaidoso e humilde, corajoso e medroso de caminhar com sua elaboração, pode ser interessante recortar alguns trechos, principalmente quando ele tem que enfrentar algum dizer sobre a polaridade entre vida e morte, entre amor e ódio. Ele nos diz que explicar a morte como natural, conforme formula ções de Weismann, “é muito mais familiar ao modo de pensar das pessoas do que a nossa desconcertante hipótese sobre as ‘pulsões de morte’” (Freud, 1920/2006, p. 169); e depois: “nossa expectativa de que a biologia refutasse a existência das pulsões de morte não se realizou” (p. 171); ainda, meio que se desculpando: “certamente não era nossa intenção chegar a este resultado” (p. 173); também: “foi preciso combinar sucessivas vezes o que é da ordem dos fatos com o que é puramente especulativo [portanto] pode-se ter sorte ou cometer um erro vergonhoso” (pp. 178-179); e, por fim, o modo como ele termina seu texto, com as palavras do poeta5, confortando-se, após hesitar quanto a abandonar ou não um caminho que não nos leva a um bom fim: “aquilo a que não podemos chegar voando, temos de alcan çar mancando ... mancar não é pecado”. (p.182).

Com essa articulação de leituras com a qual caminhamos até aqui, é possível retomarmos uma questão importante – talvez a que mais persiste – que se pode depreender tanto do título deste trabalho quanto de toda uma temática que se repete como liame dos diversos estudos que tomam como base alguma implicação com o conceito de inconsciente. De um lado, pode-se pôr o prazer e, de outro, o gozo. O prazer faz barreira ao gozo, ou seja, à radicalidade do que somos: sujeitos à linguagem, portanto, primeiramente objetos. Trata-se, conforme as palavras de Freud (1920/2006), de renunciar à crença já arraigada de que o ser humano possua uma pulsão cuja ação tenderia à perfeição, uma pulsão da qual se poderia esperar “a transforma ção do ser humano em super-homem ” (p. 164). Um limite à verdade suprema ou derradeira, um limite à transparência da linguagem. Fica explicitada, portanto, a importância de marcar a distinção entre este referencial e o da filosofia, pois a substância aqui não é outra, senão aquela mesma de que se faz um sujeito, a subst ância gozante, ou gozosa; aquilo que, após o que se cerne de verdade possível, sobra. Algo que não serve para nada, mas que está implicado no funcionamento do universo; implicado de tal modo que sem ele nossa vida seria vã, como a vida de uma máquina.

No seminário 20, Lacan (1985) conduz-nos a indagar: que campo é esse, o campo da linguagem? Como abordar os elementos desse campo sem atribuir-lhe aquele mesmo estatuto dos primitivos teóricos que sustentam os saberes? E ele nos indica algumas pistas. Logo após dizer que sua afirmação “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” não se situa no campo da lingüística, e sim no da lingüisteria, ele nos leva a perguntar: se se trata de um corpo que fala, e fala sem saber, de que estrutura então se trata? Também, em vários momentos, ele indaga “o que é o significante?” Uma de suas respostas – talvez a mais sinalizadora no caso do que faz questão aqui – é que o significante se situa no mesmo campo a que pertence a substância gozante. Ele nos diz: o significante é, ao mesmo tempo, a causa do gozo e aquilo que faz alto ao gozo; um estreitamento confuso cuja última causa é da ordem da gramática.

Outra pista parece delinear-se quando, ao discutir a relação entre cultura, sociedade e discurso, Lacan privilegia este último e designa-o como o liame social que “só se instaura por ancorar-se na maneira pela qual a linguagem se situa e se imprime, se situa sobre aquilo que formiga, isto é o ser falante” (p.74). Noutro momento, discute as fórmulas gerais, como as de Einstein, para afirmar que elas não se sustentam senão com um dizer que é o da linguagem e com uma prática, que é a das pessoas que dão ordens em nome de certo saber.

Mais uma pista que talvez seja importante destacar aqui pode ser depreendida desta sua indagação: se há, de tempos em tempos, alguns truques que fazem com que algumas sabedorias durem, “por que não reencontrar íamos, com o discurso anal ítico, algo que daria a perceber um truque preciso” (p. 159)? Uma de suas respostas: “o simbólico só suporta a exisistência”, e o que a análise enuncia é que “o que fala sem saber me faz eu, sujeito do verbo” (p.161).

Possibilidade de algumas respostas, mas via aberta para mais quest ões: em que o discurso analítico se distingue dos demais discursos? Ao se pensar numa articulação com a psicanálise, que questões teóricas devem ser enfrentadas? Ao assumir tais concepções de sujeito ou de linguagem, ou, então, ao reconhecer a pertin ência desse referencial, que reflex ões se propõem aos campos discursivos que se sustentam na depend ência desses dois conceitos?

 

Referências

Freud, S. (1972). Três ensaios sobre a sexualidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 123-250). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905)         [ Links ]

_______ (2004). Pulsões e destinos da puls ão. In S. Freud, Obras psicológicas de Sigmund Freud: escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A . Hanns, coord. de trad., Vol. 1, pp. 133-174). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915)        [ Links ]

_______ (2006). Além do princípio de prazer. In S. Freud, Obras psicológicas de Sigmund Freud: escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A . Hanns, coord. de trad., Vol. 2, pp. 123-198). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)         [ Links ]

Lacan, J. (1985) O seminário, livro 20: mais, ainda, 1972-1973 (M.D. Magno, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.        [ Links ]

_______ (1996). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 1964 (M.D. Magno, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

_______ (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In J. Lacan, Escritos (V. Ribeiro, trad. pp. 238-324) Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Moraes, M. R. S. (1999). Materna/estrangeira: O que Freud fez da língua. Tese de Doutorado, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP.        [ Links ]

Milner, J. (1987). O amor da língua (A. C. Jesuíno, trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: crgiovani@gmail.com

Recebido em outubro/ 2007
Aceito em dezembro/ 2007

 

 

NOTAS

1 Ver versos de Antoine Tudal que compõem a epígrafe da III parte de Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (Lacan, 1998, p. 290)
2 Para aprofundamento, conferir o capítulo 1 da tese de doutorado de Moraes (1999)
3 Conferir nota de rodapé acrescentada por Freud, em 1924, em Três ensaios sobre a sexualidade (Freud, 1905/1972, p.171)
4 Conferir Milner (1987): o registro que consagra a língua ao equívoco. Conferir também Lacan (1985, pp. 137-138): “o que eu adiantava, ao escrever alíngua numa só palavra, era mesmo aquilo pelo que eu me distingo do estruturalismo, na medida em que ele integraria a linguagem à semiologia ... é bem de uma subordina ção do signo para com o significante que se trata em tudo que adiantei”.
5 Últimos versos da poesia “Die beiden Gulden”. Rückert, nos Macamas de Hariri. No texto, as palavras em itálico referem-se a conceitos da psicanálise que requerem um desenvolvimento teórico que não abordaremos neste artigo. As aspas indicam enunciados textuais e expressões socialmente utilizadas
* Professor doutor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Membro do Espaço Psicanalítico de Goiânia

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