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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.12 n.23 São Paulo dez. 2007

 

RESENHA

 

Ricardo Dias Sacco*

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Endereço para correspondência

 

 

CAMARGO, A. C. C. S. Educar: una cuestión metodológica? Proposiciones psicoanalíticas acerca de la enseñanza y el aprendizage. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006, 141p. Coleção Psicanálise e Educação.

O livroEducar: uma questão metodológica? publicado na Coleção Psicanálise e Educação, pela Editora Vozes, em 2006, é resultado de uma investigação, sob a forma de trabalho complementar de curso de Pedagogia da USP, submetida à avaliação de uma prestigiosa banca em 20051. Foi escrito por uma educadora “leiga” (até então), mas com longa e vasta experiência em “reforço escolar” que, num dado momento, decidiu procurar na universidade fundamentos pedagógicos para “aprimorar metodologicamente” seu trabalho.

No entanto, Ana Carolina Corrêa Soares de Camargo, ao se deparar com o aprendizado de um rol de métodos e práticas pré-estipuladas de ensino, reputado imprescindível para um exercício profissional “aprimorado” e conhecido sob o título de “metodologia de ensino de...”2, foi surpreendida pela própria suspeita de que talvez as condi ções de possibilidade da educação pudessem, de fato, ultrapassar as prescrições didático-metodológicas, apresentadas no curso universitá- rio de formação. Ela também se deparou, por um raro acaso3, com um ensino da psicanálise que deu rumo aos seus questionamentos.

O livro é a narrativa de uma busca singular que conduz o leitor a se questionar sobre o funcionamento discursivo das idéias pedagógicas atualmente mais consolidadas e aceitas. A autora investiga de maneira clara – valendo-se de notas explicativas sobre conceitos chaves da psicanálise, bem como de elucidativos “drops-poemas” – se as teorizações que sustentam o discurso de formação de pedagogos são capazes de outorgar o sempre esperado fundamento à educação das crianças. Para analisar essa predileção em “instrumentalizar ” futuros professores com “métodos de ensino de...”, Ana Carolina se vale de certo raciocínio psicanalítico para ler os principais autores da Pedagogia e, assim, poder escutar o discurso mestre na Educação sob um outro ângulo. Seu estilo nos presenteia com uma refinada e cuidadosa pitada de ironia, que faz toda a diferença na escuta das “entre-linhas” do discurso pedagógico hegem ônico.

A trajetória da investigação percorre cinco capítulos:os sentidos do educar; a pedagogia científica e o enclausuramento do sujeito; a ética do sujeito; se a educação não for uma questão de métdo e considerações finais. Esse percurso começa com a delimitação das intenções pedagógicas implícitas nos distintos sentidos da palavra educar, para então perceber, com ajuda de proposições psicanalíticas, as raízes inconscientes dos diferentes motivos que legitimam a escolha metodológica de formação e suas conseqüências educativas. Na seqüência, são propostas alternativas para subverter as ações promovidas pelo discurso pedagógico.

EmOs sentidos de educar, são consultadas diversas fontes teóricas sobre a constituição do uso comum da palavra educação. Dentre as diversas origens concorrentes, a autora elege um conjunto de ações do professor que variam irregularmente entre os opostos “incentivar” e “coibir”, respaldado pelos termos“educatio e eductio” (p. 36), nos dicionários etimológicos. Essa variação indeterminada leva a crer que o caráter ambíguo do uso comum da palavraeducação sugere a falta de um “ponto ideal” e, portanto, aponta de início que a educação não pode ser definida de forma precisa, exata, mesmo à exaustão e, por isso, também não pode ser objeto de argumentações que determinem (recomend)ações práticas sobre “o como proceder” perante uma criança. Por outro lado, a indetermina ção de um “ponto ótimo” de educação exprime o fato de estar mergulhada na inconsistência própria do campo da palavra e da linguagem.

O segundo capítulo - a pedagogia científica e o enclausuramento do sujeito - assinala o não-reconhecimento por parte da Pedagogia do caráter ilusório da crença numa educação ideal, “ótima”. A pedagogia se pretende “Ortodoxa” (p. 46) e, assim, ignora forçosamente que no encontro entre alunos e professores esteja presente o inesperado a indeterminação entreeductio e educatio, isto é, o inconsciente que insiste em distanciar o ideal e o real. Assim, todo encontro educativo é, também, um desencontro. É sugerido ao leitor perceber que a necessidade pedagógica de suturar o inconsciente é intrínseca à própria visada metodológica, em detrimento das mesmíssimas condições de possibilidade de uma educação4. Ao se procurar acabar com a ambigüidade da educação, promove-se a tentativa de supressão de um real estranho e resistente às previsões pedagógicas.

Tecida a cuidadosa argumentação que culmina no apontamento do rechaço do sujeito, o terceiro capítulo -ética do sujeito - defende que as ações educativas visem à enunciação do aluno-sujeito, personagem de uma outra cena ou realidade que não a pedagógica. Nessa cena, o professor é “depositário das representações inconscientes ” (p. 83) e tudo aquilo que o aluno escuta do mestre está submetido a um sentido singular, determinado por uma história diferente daquela universal veiculada pela pedagogia. Muito longe de a “ética do sujeito” ser uma nova diretriz de ensino, a formulação psicanalítica serve tão somente para lembrar-nos de que nenhuma “metodologia de ensino de...” pode ser capaz de apagar a singularidade da relação que o professor estabelece com uma disciplina particular e seu ensino.

No capítulose a educação não for uma questão de método... é proposta uma alternativa ao caráter ortodoxo da pedagogia: a simples renúncia e o abandono da ilusão metodológica na formação de professores – e por conseqüência, das práticas metodol ógicas na educação escolar. O questionamento instala, assim, o convite ao reconhecimento das raízes inconscientes indeterminadas - embora não aleatórias - do processo educativo. Destarte, um gesto subversivo do paradigma hegemônico na formação de professores.

Ao desinteresse atual da pedagogia5 pelos estudos psicanalíticos não corresponde um desinteresse recíproco por parte dos psicanalistas. Ana Carolina apresenta alguns trabalhos escritos por psicanalistas sobre diversas temáticas educativas. Os textos escolhidos foram originalmente publicados, em meio a cerca de trezentos outros trabalhos, na Revista para umaPedagogia Psicanalítica, editada durante as décadas de 1920 e 1930. Muitos nunca foram traduzidos do alemão para qualquer outro idioma6, mesmo passados quase cem anos da publicação. Esse reiterado desinteresse nas contribuições psicanalíticas sugere a manutenção de uma ilusória recusa da Pedagogia em saber sobre aspectos que visem questionar sua crença na supremacia de um “controle consciente ”. Os sete artigos, apresentados por nossa autora, são extremamente relevantes por assinalarem a existência e insistência de umaoutra cena além da “realidade” da Pedagogia e, assim, explorar sob uma outra perspectiva uma série de temas ainda atuais e sintomaticamente recalcados pelo discurso pedagógico. Alguns exemplos: o texto de Bernfeld sobre as três crian ças (a real, a ideal e uma outra recalcada) com as quais o professor se depara; ou de Furstenau, sobre a resist ência da condição infantil nas ações do professor e o uso deliberado dos rituais escolares, ou ainda o de Ruth Weiss, sobre os caminhos inconscientes que conduzem o sujeito a tornarse um educador.

Certa vez ouvi um colega dizer que para perceber indícios do positivismo em um discurso deve-se compará-lo à seguinte metá- fora: procurar uma chave sob o poste de iluminação, quando, na verdade, você a perdeu no outro lado, escuro, da rua. Descontada a inocência do colega ao restringir tal forma de pesquisa ao positivismo, a leitura deEducar: questão metodológica? me retornou a lembran ça dessa fábula, ao avesso. No seio do curso de Pedagogia, em que a soma de todas as luzes se faz na procura de uma chavemestra, a autora, por desconfiar de que o objeto não foi perdido onde os holofotes apontam, percebe que mais vale uma lanterna, pilhas novas e tempo para procurar no escuro.

Seguindo os passos investigativos da autora, senti-me convidado a ousar trocar a palavra “metodológica” do título por outras também atualmente consensuais no campo pedagógico. Assim, por exemplo, direciono o foco da minha lanterna: “educar: uma quest ão passível de acontecer à distância?...”.

 

 

 

Endereço para correspondência
E-mail:rids@usp.br

Recebido em outubro/2007
Aceito em novembro/2007

 

 

NOTAS

1 Professores Maria Cristina M. Kupfer, Denice Bárbara Catani, José Sérgio Fonseca de Carvalho e Leandro de Lajonquière (orientador)
2 As mais variadas “metodologias de ensino de...” (Geografia, Alfabetização, Corpo e Movimento etc) hoje orientam a formação da grande maioria dos futuros educadores nos cursos de Pedagogia - condição necessária para alguém se desempenhar no ensino fundamental desde a publicação da LDB, em 1996. Elas foram escolhidas como eixos organizacionais nos Parâmetros Curriculares Nacionais – referencial didático com peso de documento oficial – e ingredientes coadjuvantes na distinção feita entre formação inicial e complementar proporcionada pelas diretrizes curriculares oficiais dos cursos Pedagogia, publicadas em 2007
3 O ensino da psicanálise no interior dos cursos de pedagogia, no Brasil, é de fato raro
4 O ajuste preconizado pelas “metodologias de ensino de...” determina que as assim chamadas dificuldades de aprendizado sejam resultados da própria precisão necessária à manutenção das almejadas garantias do ensino
5 Justamente, no início do século XX não foram poucos os pedagogos a se interessarem na psicanálise. O professor de Lajonquière lembra esse desinteresse na Apresentação ao próprio livro de Ana Carolina
6 Ana Carolina recupera sumariamente no livro alguns textos já referidos pelo professor Jean-Claude Filloux em Psicanálise e Educação, publicado em 2002, pela Editora Expressão e Arte de São Paulo
*Pedagogo, mestrando na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

 

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