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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.13 n.24 São Paulo jun. 2008

 

DOSSIÊ

 

Relações entre letra e escrita nas produções em psicanálise

 

Relations between letter and writing in the psychoanalysis productions

 

Relaciones entre letra y escritura en las producciones en psicoanálisis

 

 

Ana Costa

Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, psicanalista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo situa as condições da transmissão da psicanálise no tema da letra, suas diferentes apresentações, segundo tempos e clínicas. Assim, para encontrar pontos que permitam seus enlaces, são percorridos alguns caminhos trilhados por Freud e Lacan. Essas diferentes circunscrições buscam sua articulação ao tema da escrita. Tanto a clínica freudiana, quanto a clínica lacaniana produziram seus fundamentos buscando suas bases nesses temas.

Palavras-chave: letra; escrita; transmissão da psicanálise


ABSTRACT

This article has the proposition to develop the conditions of the transmission in psychoanalysis. This conditions takes the subject of the letter and its different presentations, and also different times and clinics. Also search points of concatenation in the propositions of Freud and Lacan. This different ways search the articulation with the writing. The basis of freudian clinic as well as lacanian clinic has been searched in the development of this subject.

Keywords: letter; writing; transmission of psychoanalysis


RESUMEN

Este trabajo propone las condiciones de trasmisión del psicoanálisis en el tema de la letra, sus distintas presentaciones, según tiempos y clínicas. De este modo, para encontrar puntos que permitan sus enlaces, son recorridos algunos caminos hechos por Freud y Lacan. Estas distintas rutas buscan su articulación en el tema de la escritura. Tanto la bases en estos temas

Palabras clave: letra; escritura; transmisión del psicoanálisis


 

 

Apesar de já termos grande número de produções sobre o tema, pode-se acompanhar a dificuldade por que passam os psicanalistas lacanianos para precisar a questão da letra como um tema da psicanálise. Da mesma maneira que tantas outras similares, essa expressão foi trazida por Lacan de outro campo, como algo que poderia fazer avançar na apresentação da clínica. No entanto, lendo as produções de colegas com suficiente percurso conceitual e clínico, tem-se a impressão de que essa "importação" trouxe algumas confusões. Como centro da dificuldade coloca-se a impossibilidade de precisar a diferenciação entre letra e significante, que se amplia também para a questão do objeto.

Uma pergunta se impõe: se essas dificuldades se apresentam com tanta freqüência na teorização lacaniana, por que tomá-la para trabalhar a clínica? Na verdade, essa é uma falsa questão. Pode-se constatar que, desde os primórdios da fundação do campo analítico, qualquer abordagem para suas definições clínicas traz dificuldades. Estas fazem parte do próprio objeto a ser definido. Freud aproximou-se disso com o conceito de resistência, dizendo que, assim como os pacientes numa cura, a comunidade intelectual resistia às proposições teóricas da psicanálise. O que significava que resistiam a aceitar essas proposições por se reconhecerem nelas. Não é preciso enumerar as críticas lançadas às colocações freudianas. Ainda que delas não se compartilhe, elas ressoam como uma forma de apresentar as dificuldades específicas ao campo. Destacamos, aqui, os elementos implicados nessas dificuldades: a transferência e a lógica temporal. A clínica não se apresenta da mesma maneira conforme o desdobrar desses termos, nos diferentes percursos de cada analista e, mais ainda, de cada análise. Nesse sentido é preciso romper com a inclinação pela busca de uma essência, sempre presente em nossa forma de pensar. Toda experiência – inclusive na transmissão da psicanálise – inscreve-se numa lógica temporal, e essa lógica implica uma organização complexa, a partir da qual podemos assinalar que a clínica é movimento.

Situaremos a condição de transmissão no tema da letra, suas diferentes apresentações, segundo tempos e clínicas. Assim, para encontrar pontos que permitam seus enlaces, percorreremos alguns caminhos trilhados por Freud e Lacan nesse tema. Acompanhemos essas diferentes circunscrições, em sua articulação ao tema da escrita.

Em Freud (1973a), esse tema se anuncia já desde os textos de 1900, sobre as formações do inconsciente. Não é uma relação direta, mas a proposição do sonho como um rébus, para decifração tal qual uma escrita hieroglífica, já diz de uma aproximação. Desde seu trabalho sobre os sonhos, até suas constantes retomadas, essa condição de escritura será associada à produção onírica. Precisa ser sublinhado que o principal interesse freudiano nessa associação da elaboração onírica com escritas antigas – como são os hieróglifos, ou mesmo a escrita chinesa – diz respeito à permanência de uma figurabilidade, situada a partir de elementos compostos em linguagens distintas, tais como são a escrita da gramática e o desenho. Essa condição será retomada também nas Lições introdutórias à psicanálise (Freud, 1973b), em que ele se detém na apresentação da escritura chinesa. O principal interesse de Freud aqui é a aproximação do sonho com uma escritura que não apresenta um texto unívoco, mantendo sentidos antitéticos, bem como uma condição primária de figurabilidade na composição entre letra e desenho.

Detenhamo-nos um instante nessa especial condição, trazida pelo trabalho freudiano, da relação particular entre letra, figurabilidade e sentidos antitéticos. Há um elemento que merece ser destacado nos textos sobre as formações do inconsciente: o autor sublinha que, nestas, tanto existe uma aproximação entre letra e figura, quanto a palavra que comporta sentidos antitéticos. O interesse pelo sentido antitético ligado às palavras primitivas é abordado por Freud em vários escritos. Num texto de 1910 (Freud, 1973c), especialmente dedicado ao tema, ele se detém na análise desses duplos sentidos, trazendo o estudo de um lingüista chamado K. Abel, que posteriormente não teve grande expressão em sua área. Ele explica de que forma, como no vocabulário egípcio antigo, por exemplo, uma palavra poderia servir para designar sentidos opostos entre si (forte e fraco, por exemplo, eram designados pela mesma palavra). Muitas vezes, o que os distinguia na escrita era o acréscimo de um desenho à palavra. Freud serve-se desse trabalho para indicar como as formações do inconsciente fazem uso desse tipo de construção.

Numa primeira aproximação, e dialogando com este tema, os sentidos antitéticos de palavras ligam-se a alguns desdobramentos de questões que não pertencem somente à psicanálise. Tanto a sociologia, quanto a antropologia transitaram pelo antitético relativo ao sagrado, como contendo em si o intocado e o impuro. Freud mesmo aborda amplamente essa vertente do sagrado no seu texto sobre o totem e o tabu (Freud, 1973d). Seguindo essas proposições, esse antitético das palavras – que Freud associa ao primitivo – traz a memória da origem da criação das palavras por oposição. É muito curioso pensar nos termos que contêm, em si mesmos, uma representação de oposição. Mesmo que usemos palavras diferentes, a palavra "forte" – por exemplo – traz junto uma representação de "fraco" evocada como parte de seu sentido, e vice-versa. E assim podemos seguir: dia-noite, quente-frio, etc.

Lacan (1985a) lembra que a condição primária do significante se constitui por pares opositivos, como os destacados. Diz, mesmo, que isso faz parte da natureza, que já nos brinda com a oposição. Podemos situar, seguindo os autores, que nessa questão está presente uma condição primária de diferenciação. Ou seja, a diferenciação por oposição faz parte do jogo simbólico e está na base – na fundação – de nossos sistemas representacionais. Como não lembrar aqui o que representa luz e sombra na raiz mesma do pensamento filosófico? Da mais simples construção representacional à mais complexa, o uso da oposição muitas vezes parece suficiente para sustentar qualquer sistema. A luz da razão, por exemplo, é sempre ameaçada pelas trevas que ela própria contém.

Queremos sublinhar, também, essa questão do primário nas formações do inconsciente e na própria formação de sintomas, como propõe Freud. Se nossos sistemas de pensamento se erigem na diferenciação, cuja oposição está na base, as formações do inconsciente mantêm a indiferenciação que está na raiz da constituição dos símbolos. A produção freudiana sobre o tema sempre ressaltou essa condição de maleabilidade das representações inconscientes; de como no caso do sonho há uma utilização "do contrário" para fazer passar uma representação intolerável para o sujeito; de como o ato sintomático no obsessivo, por exemplo, contém o seu contrário, que interpela o sujeito, acossando-o na procrastinação.

Uma outra questão ligada ao tema da indiferenciação, que permitirá avançar nas proposições aqui colocadas, situa-se nas representações por onde transita a palavra "sagrado". Esse termo traz em si as significações de puro, intocado e, ao mesmo tempo, impuro. Originalmente, nas sociedades tribais (isso foi tratado por Freud nos textos antes mencionados) designava o interdito ao toque. O que ficava interditado era tanto o elevado – como o chefe, ou o sacerdote – quanto o excluído, como a mulher menstruada, etc. Pode-se reconhecer nesta última especificidade a relação com o excluído do corpo. Ou seja: o tema da indiferenciação situa seus elementos tanto na palavra, quanto no corpo. É com esses elementos que se constroem a pregnância do imaginário na constituição fantasmática. Eles também se fazem apresentar nos sonhos e nos pequenos sintomas que vão compor estruturas. Tal como menciona Freud, no sonho todos os elementos servem para representar o sonhador, as letras e fonemas das palavras se transmutam metonimicamente, uma imagem pode ser somente som, assim como todo signo pode "fazer corpo". Essas questões nos levam a pensar a razão de Freud ter associado o inconsciente a uma escrita, porque a escrita não traz, necessariamente, a diferenciação. A letra é, invariavelmente, igual a ela mesma. A condição diferencial se dará a partir de uma possibilidade de inscrição do sujeito, na qual nos deteremos mais adiante.

 

A escrita em Lacan

O tema da escrita em psicanálise pode ser abordado por três caminhos igualmente importantes: a instância da letra no inconsciente, a escrita do fantasma e a escrita do sinthoma. No primeiro, situamos a questão da letra ligada à proposição freudiana das formações do inconsciente. Ou seja, no sentido em que a emergência da letra no inconsciente – que situamos anteriormente como condição de indiferenciação – traz algo que pode ser situado como um "isso mostra" – alguma coisa do lado da pulsão que demanda inscrição. Freud (1973e) deu-lhes o estatuto de formação de compromisso de moções pulsionais, o que os situa de forma um pouco diferente da abordagem lacaniana, como veremos adiante. A emergência das formações do inconsciente como um "isso mostra" – sonhos, lapsos – possui um estatuto não totalmente assumido pelo sujeito, que não se reconhece completamente ali. Testemunhamos os estranhamentos provocados por suas aparições cotidianas, onde são situadas como elementos estranhos ao "eu". De alguma maneira precisamos reconstituir os enlaces com nossas significações conhecidas, retomando um sentido perdido pela surpresa de sua emergência.

A letra no inconsciente pode ser interpretada, desta maneira, na relação à proposta lacaniana de escrita. Desdobrando a proposta freudiana do sonho como um rébus para decifração, o tema da letra, para Lacan, indica que a emergência do inconsciente ainda precisa de um caminho de elaboração. Ele propõe, numa passagem de seu seminário sobre os quatro conceitos fundamentais (Lacan, 1985a), nas lições em que trabalha o tema do olhar, que no sonho "isso mostra". O "isso", como aproximação ao "isso" freudiano, diz respeito ao movimento pulsional. "Isso" como um indeterminado – que somente adquire determinação a partir de um terceiro – representa a condição de exterioridade em que primeiro surge o movimento da pulsão. Essa "exterioridade" – esse "isso" estranho ao "eu" – sempre irá compor nossos sentimentos em relação ao corpo, nunca completamente "nosso".

A partir d'isso, precisa-se de um caminho a mais, o caminho que toma a repetição da letra, para que do "isso mostra" se produza, em transferência, o reconhecimento de que ali se constitui a expressão de um traço do sujeito. A transferência é o que garante que o sujeito se reconheça na repetição desse traço. É curioso que mesmo para quem se analisa há algum tempo a emergência do inconsciente em suas formações traz estranhamento. A produção de lapsos, ou mesmo os sonhos, constantemente provoca sentimentos de exterioridade, mesmo para aqueles que se dedicam ao trabalho com o inconsciente, tendo uma familiaridade com essas expressões.

Como é possível perceber de saída, não é suficiente a emergência da letra nas formações do inconsciente para que se dê uma inscrição do sujeito. Por essa razão, Lacan diz, no texto tratado, que no sonho "isso mostra", é da ordem do "isso", não está ainda como traço do sujeito. De entrada, marca-se uma diferença em relação a Freud, na medida em que este denominava formação do inconsciente também o sintoma. Lacan não dá a mesma interpretação ao sintoma. O sintoma já é um trabalho de inscrição, tendo ali uma condição de singularidade, na medida em que já há um trabalho de amarração da letra que não necessariamente está colocado no sonho. Com essas postulações, situamos a relação entre inscrição de um traço – o que é da ordem da referência significante – como a possibilidade de amarração da letra, transpondo a condição de sua insistência nas formações do inconsciente.

Aqui surge uma pergunta: como então tomar a proposta freudiana do chiste em sua relação com o inconsciente? Pode-se pensar que tanto o chiste quanto o ato falho se colocariam como "mostrações" do que seria da ordem da letra. O chiste tem a peculiaridade de nos mostrar uma estrutura ternária, situando o que é que se produz como inconsciente numa certa organização relacional, na medida em que seu efeito se dá pela constituição do que Freud denominou "terceiro ausente", de quem o chiste trata. Nele, já se trata de fazer alguma coisa com o que é da ordem da letra, na medida em que resulta em um gozo compartilhado no riso. O lapso, por sua vez, também indica uma mostração disso, mas deixando o sujeito no lugar do "ausente", na medida em que ele não se reconhece no que produz. Muitas vezes, testemunhamos o efeito de um lapso como o retorno da letra sobre o corpo, produzindo vergonha, rubor. Esse retorno sobre o corpo – que no chiste é livrado num riso compartilhado – é índice da necessidade de um caminho a mais da letra.

O sonho é o que há de mais singular no que diz respeito à letra no inconsciente e não por acaso Freud lhe deu tanta importância. Nele, o trabalho se alinha do lado de uma tentativa de inscrição do pulsional. Assim, é bem marcada a diferença entre a letra do sonho e aquela da escrita do fantasma. Neste último, temos uma superposição de registros, onde o que é da ordem da letra se confunde com o que seria do registro de um traço simbólico. Ou seja, a articulação do fantasma superpõe objeto da pulsão e traço unário.

É importante ressaltar alguns trabalhos nos quais Lacan ocupa-se desses temas. Podemos acompanhá-lo em artigos como o que discorre sobre a instância da letra no inconsciente (Lacan, 1998a), no qual retoma a especificidade da leitura freudiana destacada antes. Ele avança, acrescentando os desenvolvimentos da lingüística, ao apresentar a letra como suporte material da linguagem, suporte este necessário ao jogo significante. Podemos dizer que Lacan radicalizou a aproximação entre inconsciente e escrita. Isso não se dá de uma só vez nas suas elaborações, senão que a particularidade dessa escrita vai sendo construída ao longo de seu trabalho. Deste início, retenhamos essa enunciação de que há uma letra "em instância", que insiste nas formações do inconsciente, marcando que a insistência da repetição diz respeito a uma dificuldade peculiar ao registro do inconsciente. Essa dificuldade está contida na medida mesma do hibridismo de seus elementos, em que a gramática pulsional condensa elementos heterogêneos, como seu "corpolinguagem". Acompanhemos um pouco como vão se procedendo algumas elaborações que interessam destacar da teoria lacaniana.

No trabalho em que analisa o conto de Edgar Alan Poe sobre a carta roubada (Lacan, 1998b) acrescentam-se elementos fundamentais para situar a questão da letra. Aqui, a referência primordial diz respeito ao significante, e Lacan não estabelecerá diferenças entre este e o tema da letra, por vezes confundindo-os. Tratou de se deter tanto no jogo posicional, determinante na função de uma repetição diferencial, quanto na incidência de um endereçamento. Das condições do endereçamento Lacan produz esse jogo homofônico entre letra e carta, equívoco possível nas expressões em francês. No caso de uma carta, a importância do endereçamento está no atrelamento do emissor ao destinatário. O conto de Edgar Alan Poe é bastante conhecido: são personagens (a rainha, o rei, o ministro, a polícia e o investigador Dupont) presos numa relação determinada pela posse de uma carta que supostamente revela deslizes da rainha. O que interessou a Lacan nesse conto diz respeito à possibilidade de apresentação de algo difícil de entender e que está em causa nas formações do inconsciente. Em primeiro lugar, o conto situa esse elemento (a carta/letra) cujo conteúdo não entra em causa no efeito que produz. Diga-se, no mínimo, que isso é surpreendente em se tratando de uma carta. Segundo, que a posse dessa carta implica determinada condição de feminização. Recortemos, então, esses elementos que situam, para Lacan, a especificidade da relação entre as formações do inconsciente e uma escrita: letra/carta, endereçamento e jogo posicional.

Esses são os efeitos que o autor primeiro isola da relação ao significante. A perda de um referente natural/universal implica uma perda do lado da significação. Deste modo, o sujeito será produzido numa relação às leis da linguagem, sendo determinado por elas e, por essa razão, advém daí sua condição de feminização, dessa submissão a essas leis. Aqui, o autor insiste nas mesmas questões do texto anterior. Sua inspiração deriva de uma leitura do texto freudiano sobre as formações do inconsciente à luz dos desenvolvimentos da lingüística. Assim, o que em Freud pode ser situado como lei do desejo, em Lacan se literaliza como metáfora e metonímia. Pode-se perceber, por esta simples constatação, que aquilo que em Freud se suspende como fantasia, em Lacan se realiza como linguagem.

Quinze anos mais tarde, no Seminário De um discurso que não seria do semblante (1971), principalmente na aula conhecida como Lituraterra (Lacan, 2003), as mesmas questões serão retomadas, acrescidas de outros elementos. Novamente o motor da indagação será a letra e sua relação ao significante, ou seja, à produção de um sujeito. As colocações de Lacan contemplam uma abertura de questões de difícil expressão e abordagem. Uma das mais importantes diz respeito à temporalidade implicada na relação entre inscrição e ato, em que temos uma das maiores subversões que o autor traz à psicanálise. Quando Freud propôs dois registros de recalque – originário e secundário – deixou-nos com a dificuldade para análise da clínica, porque essa diferenciação traz embutido um suposto temporal progressivo. Desde o início Lacan vai romper com esse suposto, mas é somente em sua produção final que essa questão melhor se coloca. Dessa produção podemos deduzir que o ato (aqui proposto como condição da expressão do recalcamento) somente se inscreve na transposição de registros e não como sendo dois tempos de um mesmo registro. Com essa atenção, a escrita adquire uma relevância maior que a anteriormente determinada por ele.

É por essa dependência do ato como inscrição, na transposição de registros heterogêneos (que, por outro lado, somente se mostram heterogêneos na produção mesma desse ato), que a psicanálise sempre se arrisca a perder sua especificidade, na relação necessária a outros campos do saber. Isso porque na relação a todos os campos ela sempre precisa produzir o seu sujeito, que é o do inconsciente. Como se sabe, a produção desse sujeito se dá por uma disjunção entre enunciação e jogo de letras (lapso, sonho), onde uma escrita se mostra a uma leitura possível. Por outro lado, é a leitura que inscreve esse mesmo sujeito no lugar de seu ato.

Em Lituraterra Lacan também vai fazer uma importante aproximação entre letra e gozo. Situa isso de duas formas: como produção de resto e como produção de buraco no saber. Novamente retoma o texto de Poe, para destacar a relação ao endereçamento, situando como a letra transporta uma mensagem elidida, que não se encontra como metáfora. Na aproximação entre letra e gozo, retoma sua abordagem, tantas vezes destacada, da oposição entre saber e verdade. E é na relação ao saber, mais especificamente no buraco do saber, que ele situa a letra. Isso vai permitir-lhe enunciar que entre saber e gozo há um litoral que pode se tornar literal. Todo esse encaminhamento – trabalhado como jogos homofônicos – diz respeito a tentar precisar o registro da letra. A principal questão a ser destacada aí relaciona-se com a possibilidade de transposição de "elementos" heterogêneos, sem o apoio no "transporte" da metáfora. A referência ao litoral parece indicar isso, na medida em que sua linha demarcatória é o encontro de heterogêneos.É diferente da linha demarcatória de uma fronteira, por exemplo, onde o suporte de "tradução" de uma língua a outra mantém a ilusão de homogeneidade. É nesse sentido que "litoral vira literal": é na letra que se produz o enlace entre heterogêneos. Nesse texto ele também vai fazer um importante assinalamento: de que a impressão não é a escritura. Ou seja, a impressão diz respeito à marca do traço unário. Desse "sulco", do apagamento do traço, que o sujeito é produzido: são dois tempos que estão em causa.

Uma outra conseqüência importante que Lacan aborda nesse texto é a aproximação entre a produção da letra – no buraco do saber – e a cena primitiva (a letra V do homem dos lobos). Essa aproximação permitirá a Lacan continuar trabalhando no seminário Mais... ainda (Lacan, 1985b), introduzindo as categorias aristotélicas, situando o impossível da relação sexual (esse que diz respeito à cena primitiva) como um "não cessa de não se escrever". Desta maneira, situa-se outra referência na aproximação da psicanálise com a literatura. É verdade que a literatura vai ser produzida como ficção no buraco do saber. No entanto, o interesse de Lacan vai bem mais longe que a produção do texto. Ele diz respeito à indagação do que é que se produz quando se faz literatura. Essa pergunta retorna à própria produção da psicanálise e vai incidir sobre suas formas, principalmente no que diz respeito à tradição freudiana da escrita do caso.

 

Um enlace da letra: litorais na escrita do caso

A escrita do caso encontra-se desde o início nas produções psicanalíticas. Em Freud, tinha basicamente o interesse de buscar estabelecer as balizas de um campo ainda embrionário. Aos poucos, a escrita do diagnóstico passa a ocupar as preocupações e debates, centrados em torno de diferenciais diagnósticos de difícil precisão. Nessa via toma inspiração na inclinação taxonômica da psiquiatria. Tomou, também, caminhos de caso modelo, onde o mesmo passa a valer como uma espécie de padrão diagnóstico aplicável a outros. Mais recentemente, podemos pensar na escrita como um fim em si mesmo, ou seja, não se apresentando mais como meio de transmitir um objeto que está representado em outro lugar – na literatura, ou mesmo na ciência. Nesse sentido, a escrita de caso passa a fazer parte da própria construção do caso, impasses e fim da transferência, apresentando-se muitas vezes como da ordem do necessário.

Em relação à particularidade da escrita do caso, encontramos a queixa em Freud de ser lido mais como novela do que como produção científica. Essa queixa contém em si um índice de que, nesse terreno, lidamos com fronteiras pouco definidas. Essa indefinição pode ser, no mínimo, de dois registros. Primeiro, e mais evidente, a identificação do analista com "seu caso". Tanto com relação a Freud, quanto no único caso que Lacan escreveu, muito já se tem trabalhado em torno dos impasses identificatórios e fantasmáticos dos próprios autores. O segundo registro diz respeito a fronteiras de campo: o que permitiria reconhecer que se trataria de uma transmissão própria ao campo da psicanálise? Em quê se diferenciaria de uma ficção literária?

Essas inquietações não fazem parte exclusivamente do campo da psicanálise. Todorov (1980), por exemplo, aborda essa mesma questão do ponto de vista da literatura, num interesse por delimitar seu campo. E, coisa curiosa, é da psicanálise que ele se utiliza para pensar as diferentes fronteiras da ficção. Depois de constatar que a literatura não poderia ser identificada somente à ficção, conclui que nem toda ficção é literatura. Para exemplificar, traz as "histórias de casos" de Freud. Com propriedade vai dizer que "não seria pertinente perguntar-se se todas as peripécias na vida do pequeno Hans ou do homem dos lobos são verdadeiras ou não; elas partilham exatamente o estatuto da ficção" (p.15). Mas, então, em quê elas se diferenciariam da literatura?

Acompanhemos um pouco mais as incursões de Todorov por essas fronteiras. Ainda nesse livro, ao tratar sobre o discurso psicótico, o autor vai lembrar o debate sobre as relações entre loucura e literatura, entre discurso psicótico e poético. Ele propõe um diferencial na medida em que a literatura não pode ser tomada como um tipo de discurso, no sentido que o é a "palavra psicótica". Em relação a esta última, são muito interessantes suas análises de dois trechos de fala: de uma paranóica e de um esquizofrênico. Por que o discurso paranóico não poderia ser considerado uma literária narrativa fantástica? Todorov nos diz que, nesta última, os autores nos fazem participar, com alguma certeza, que se trata de ficção. Em todo caso, tanto as construções paranóicas, quanto as esquizofrênicas podem adquirir expressões literárias: elas não estão excluídas de se expressarem nesse campo. No entanto, para terem guarida ali é necessário que participem de certa forma comum de expressão. Todorov se propõe delimitar as especificidades das formas de expressão como "gêneros do discurso", na medida em que o termo "ficção" é, ao mesmo tempo, amplo (não define somente a literatura) e restritivo (na literatura, não define o discurso poético).

É certo que a razão de Todorov acrescentar "gênero", ao termo genérico de "discurso", está em permitir a inclusão das mais diversas expressões no campo da literatura. De nossa parte, acrescentamos o termo "experiência", que permitirá circunscrever essa questão, servindo de guia para a entrada na psicanálise. Se o discurso inscreve as balizas de uma língua, de um código cultural, a experiência ao mesmo tempo o esburaca, transforma e confirma, renovando-o. A experiência produz a borda de um real do discurso, fazendo-o passar pelo corpo. Assim, podemos denominar "experiência literária" a escrita das bordas de diferentes gêneros de uma estrutura discursiva literária, que nos dá a certeza de estarmos num campo em comum, denominado "literatura".

E na psicanálise, como poderemos pensar? Não entraremos em considerações demasiadamente amplas sobre o discurso psicanalítico. Poderemos situá-lo numa condição muito simples, dizendo respeito à "experiência do inconsciente" em análise. Assim, "psicanálise" seria a possibilidade de registro dessa experiência. No entanto, tal como os "gêneros" na literatura, a escrita das bordas dessa experiência não se dá da mesma maneira para todos. Tal qual na literatura, a psicanálise comporta leitores e críticos para construção de suas fronteiras. E mesmo quem decide tornar-se analista, por sua vez, encontrará diferentes caminhos para registrar sua experiência nesse campo.

Podemos cercar as indagações sobre a escrita na psicanálise de muitos lados. Em todos eles talvez encontremos um elemento em comum: aquele ponto do laço transferencial que não se encerra no trabalho com o analisando e que, de alguma maneira, precisa ser endereçado à comunidade de analistas. Neste ponto vamos encontrar a junção entre escritura e endereçamento, trazendo a relação a diferentes tempos e que muitas vezes tendem a se confundir. Nem sempre se dá o passe da escrita a outros, ou seja, o passe desse real produzido pela própria clínica psicanalítica e que a transferência atualiza. Então, nem sempre uma escrita é veículo dessa transmissão. Isso leva a indagar: por que escrever se não para passar a outros?

Essa questão não se propõe somente para a psicanálise. Nas diferentes experiências a escrita surge como possibilidade de produzir diferentes amarrações. Basta acompanhar as produções resultantes de experiências de privação, seja quando se produz pela guerra, ou na adolescência, ou mesmo a constância de sua presença na psicose. Tomamos, aqui, a consideração de duas funções da escrita: por um lado, a necessidade da produção de um traço que possa funcionar como fundação de uma série que se transmite; por outro, a função de dar nome a isso que se transmite. Nesses elementos estão estabelecidas as relações entre inscrição e endereçamento que podem ser suportadas por uma escrita.

Para concluir este breve recorrido de um tema complexo, lembramos o acento dado por Lacan ao tema da escrita em suas elaborações finais. Ela surge como um recurso para pensar o sinthome como uma estrutura que ultrapassa fenômenos clínicos, permitindo a sustentação dos registros que se enlaçam na composição do nó borromeu. É nesse sentido que Lacan afirma que a escrita vem do real. Se no início de seu trabalho a diferenciação entre letra e significante ficava um pouco confusa, como vimos anteriormente, no seu final é possível perceber a particular relevância que adquire a escrita. Ela se situa tanto no tema da insistência do real, quanto nos efeitos, no sujeito, da não existência da escrita da relação sexual. Assim, proposições tais como saber fazer, ou mesmo invenção, pontuam o que nos permite pensar na transposição da transferência como algo próximo ao tema da criação dentro da literatura, na medida em que esta toca uma dimensão do real. Mesmo que não se trate do mesmo real, pois concernem a distintos campos, a travessia de um percurso de análise visa tocar o real que é produzido em transferência na clínica.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: ammcosta@terra.com.br

Recebido em maio/2008.
Aceito em junho/2008.

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