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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.13 no.24 São Paulo June 2008

 

ARTIGO

 

Criança psicótica brinca? Considerações acerca do brincar na psicose

 

Does a psychotic child play? Reflections on playing in psychosis

 

¿El niño psicótico juega? Reflexiones sobre el juego en la psicosis

 

 

Julia Maciel Soares

Doutoranda na Université Paris 13, Unité de Recherches Psychogenèse et Psychopathologie

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo discute o brincar, cujo protótipo é o fort-da freudiano, como uma atividade simbólica que pressupõe a operação de separação, uma vez que tem por definição a representação da ausência. Problematiza, então, a questão do brincar na psicose, posição subjetiva estruturada sem a inscrição da ausência. A partir de duas vinhetas clínicas, questiona-se em que sentido a atividade, à primeira vista, lúdica de crianças psicóticas é, de fato, um brincar.

Palavras-chave: brincar; psicose; separação


ABSTRACT

This paper discusses the playing as a symbolic activity, which is defined as the representation of what is absent. Therefore, to take place, it depends on the separation process. It discusses the playing of psychotic children, for whom the subjective position was structured without the absence inscription. Through the study of two short clinical cases, it examines whether the ludic activity of a psychotic child is, indeed, a playing activity.

Keywords: playing; psychosis; separation


RESUMEN

El artículo trata del juego, cuyo prototipo es el fort-da freudiano, como actividad simbólica que presupone la operación de separación, pues tiene como definición la representación de la ausencia. Por lo tanto, problematiza la cuestión del juego en la psicosis, posición subjetiva estructurada sin la inscripción da ausencia. A partir de dos pequeños casos clínicos, nos preguntamos en que sentido la actividad, a primera vista lúdica, de los niños psicoticos es, de hecho, un juego.

Palabras clave: jugar; psicosis; separación


 

 

"Vamos brincar da brincadeira do caminhão?" Pergunta Enos tão logo me vê chegar à instituição. A brincadeira do caminhão, que brincávamos durante o intervalo do almoço, consistia mais ou menos no seguinte roteiro: motorista e co-piloto chegam a uma cidade, estacionam o caminhão e saem para cumprimentar os personagens, imaginados: "bonjour Madame, bonjour Monsieur; au revoir Madame, au revoir Monsieur". Em seguida, motorista e co-piloto voltam para o caminhão e partem para outra vila, alternando-se na direção. Recomeçava, então, a mesma história, que se repetia inúmeras vezes. O corte da brincadeira, freqüentemente devido ao horário de retomada das atividades da instituição, era difícil para Enos, suportado se anunciado com certa antecedência.

Na clínica, constatamos as mais diversas modalidades do brincar. É comum observarmos crianças que não conseguem, por exemplo, armar cenas extensas na brincadeira, como no exemplo acima. Restringem o brincar a uma armação de rituais lúdicos sem desdobramentos da cena. Outras cujo brincar aparece restrito à manipulação dos objetos, sem configurar traços de uma série significante que componha uma narrativa. Estamos frente a uma criança cujo brincar reflete uma aparente ausência do imaginário, um brincar sem fantasias.

Observa-se, ainda, em algumas crianças, uma dificuldade em estabelecer a borda entre a fantasia e a realidade. A criança passa a ser aquilo que ela encena. Não sustenta uma ficção. Parece não haver possibilidade de "fazer de conta" (faire semblant). Há casos ainda em que a fantasia se apresenta de tal forma que faz desaparecer a borda entre o imaginário e o real. Não se sabe se a fantasia está sendo expressa como alucinação ou delírio. Sem contar aquelas que, de fato, não brincam.

Mas será que podemos qualificar todas essas modalidades, à primeira vista lúdicas, de brincar? Como nos mostra a vinheta acima, o brincar não é exclusividade das crianças neuróticas: crianças psicóticas brincam. No entanto, até que ponto pode-se afirmar que a brincadeira do caminhão, por exemplo, é, de fato, um brincar? Em outras palavras, em que sentido pode-se qualificar de brincar a atividade lúdica de uma criança psicótica ou autista?

Comecemos pela palavra. Em forma de verbo substantivado, a palavra indica uma ação, um verbo ativo, que permite abarcar o trabalho psíquico, psicomotor, cognitivo e social que permeia a atividade lúdica. A afirmação de Winnicott (1975, p.63) de que "brincar é fazer" ilumina a dimensão de ação a que essa palavra alude.

A palavra brincar permite, ainda, uma diferenciação do jogar, do jogo com regras e finalidades definidas. Winnicott (1975) define o brincar (play) como uma experiência essencialmente criativa, diferente do jogo (game), que restringe o aspecto criativo do brincar. O brincar remete à atividade lúdica espontânea, permeada pela imaginação e pela criação. O brincar livre e criativo, recreativo. Recreação, definido no Houaiss (2001) como o mesmo que recreio: algo que serve para divertir; brincadeira, divertimento, folguedo; ou, ainda, como lugar próprio para se recrear. Lugar para se re-criar?

É isso que sugere Roussillon (2003): o brincar, livre até certo ponto das exigências externas, propicia ao sujeito a possibilidade de explorar e se (re)apropriar de sua própria experiência subjetiva. O sujeito se recria na medida em que, ao brincar, "ressitua" uma experiência subjetiva em um objeto material, e se re-apropria subjetivamente de tal objeto, já transformado. Nesse sentido, é possível afirmar que o brincar é um movimento constituinte da realidade psíquica, capaz de inscrever novas experiências subjetivas ao promover as relações do sujeito com a realidade.

Constata-se, aqui, uma dialética entre as realidades interna e externa presente no brincar. Essa é a idéia central da teorização winnicottiana sobre a atividade universal e "natural" das crianças. Winnicott (1975) localiza o brincar numa área intermediária de experiência, entre uma realidade psíquica interna, experiência subjetiva "quase-alucinatória", e uma realidade objetiva, equivalente à noção de "realidade material" freudiana.

Dentro da perspectiva winnicottiana, o brincar pressupõe a existência de uma área intermediária que, por sua vez, não está posta desde o início. Green (2005, p.24) ressalta que o espaço intermediário "é uma tentativa de reunir aquilo que foi separado no lugar e no momento da separação". Ou seja, o espaço intermediário surge a partir de um movimento de separação.

De acordo com Winnicott, a fim de conseguir se separar psiquicamente de sua mãe, é preciso que, antes, a criança tenha vivenciado um estado de fusão, uma relação de segurança e confiança com um adulto "suficientemente bom". A "mãe suficientemente boa" "garante" ao bebê, num primeiro momento, essa experiência de ilusão, através de uma adaptação quase completa às necessidades dele, proporcionando-lhe a ilusão de que aquilo que ele vivencia como realidade externa coincide com sua capacidade criativa.

À medida que o bebê vai sendo capaz de lidar com o fracasso dessa adaptação, a "mãe suficientemente boa" vai, pouco a pouco, adaptando-se cada vez menos. Assim, o desencontro entre o controle mágico e os objetos reais vai desenvolvendo no bebê a capacidade de construir a realidade externa, ao mesmo tempo em que se introduz a separação em relação ao estado fusional com a mãe. No entanto, antes da existência do objeto externo, existe, para o bebê, o objeto transicional. Isso implica dizer que a passagem de um controle onipotente do objeto (ilusão) para o objeto real, controlado (ou não) pela manipulação, ocorre através do brincar, via objeto transicional, dentro do espaço intermediário.

Dessa forma, Winnicott propõe a perda da experiência de ilusão como condição para instaurar essa área intermediária em que se desenrola o brincar. Ainda que a área do brincar seja construída a partir de uma experiência de satisfação, isto é, tendo como ponto de partida a experiência de ilusão, é somente a experiência de perda dessa ilusão que lança a criança no espaço do brincar.

Nesse sentido, Winnicott concorda com Freud e Lacan: o brincar só pode surgir a partir da perda do objeto de satisfação, da separação do sujeito com seu Outro. De acordo com Lacan (1985), a brincadeira do neto de Freud com a bobina frente à ausência da mãe (batizada de fort-da) remete à alternância entre ausência e presença. Representa, assim, a possibilidade de simbolização da ausência. Através do brincar (simbólico), a criança pode aceder ao mundo das representações, pois o simbólico implica a representação de um objeto ausente. Assim como Winnicott, a interpretação lacaniana do fort-da freudiano também considera a instalação da ausência como condição sine-qua-non para o surgimento do brincar.

Ao mesmo tempo em que consiste em uma tentativa de resgatar o objeto de satisfação, o brincar promove o seu distanciamento, uma vez que ele é, agora, "mediatizado", substituído por uma representação.

Se pensarmos que o brincar é instalado no momento mesmo da separação, podemos considerar que ele, simultaneamente, promove a separação e depende dela para se instalar. Roza (1993) argumenta que, através da presentificação do ausente (via representação simbólica), o brincar marca a inscrição da falta, que funda o desejo inconsciente. Considerando que o desejo inconsciente é o que constitui, em última instância, a realidade psíquica, a autora formula então que, "ao contrário de ser constituído pela realidade psíquica, ele [o brincar] é seu constituinte" (Roza, 1993. p.92).

Aliás, o trabalho de Rodulfo (1990) aborda justamente o papel do brincar na constituição psíquica, recuando para aquém do fort-da. O autor aponta que, num primeiro momento, o brincar gira em torno das superfícies: fabricar superfícies contínuas e esburacá-las. Na concepção do autor, é por meio dessa atividade lúdica que a criança inscreve psiquicamente sua própria superfície corporal, a borda de seu próprio corpo. Num segundo momento, nas brincadeiras do dentro e fora, de continente e conteúdo, o brincar leva à dimensão de volume, propiciando a distinção interno e externo. Assim, antes do carretel, do brincar simbólico, o brincar desempenha um papel fundamental na constituição libidinal do corpo.

O espaço do brincar constitui-se como uma área privilegiada para a criança, uma vez que lhe possibilita tanto realizar as tarefas constituintes descritas acima, quanto elaborar e se apropriar das experiências que vai vivenciando, sobretudo as que a impressionam.

Foi isso que constatou Freud (1920/2004a), ao observar seu netinho repetir, na brincadeira, a experiência traumática do abandono de sua mãe (fort-da). O autor percebe que o brincar possibilita à criança a mudança de uma posição passiva para uma posição ativa: "En la vivencia era pasivo, era afectado por ella; ahora se ponía en un papel activo repitiéndola como juego, a pesar de que fue displacentera." (Freud, 1920/2004a, p.16).

Constata, então, que o brincar é uma via de ab-reação espontânea que permite à criança dominar a situação, apropriando-se dela. "Se advierte que los niños repiten en el juego todo cuanto les ha hecho gran imprésion y ese modo abreaccionan la intensidad de la imprésion y se adueñan1, por así decir, de la situation." (Freud, 1920/2004a, p.16). Dito de outra forma, dentro do modelo econômico freudiano, o brincar permite que uma lembrança impressionante (que poderia ser traumática) seja descarregada do afeto que a acompanha, evitando torná-la patológica. E, dessa forma, ela pode ser dominada pela criança.

Na brincadeira, a criança repete – quantas vezes lhe forem necessárias, para elaborá-la – a experiência que a impressionou. Em termos econômicos, a repetição do brincar está em função da diminuição do excesso de sensação (quantidade de energia), necessária para que seja viável à criança apropriar-se da experiência vivida.

No entanto, na brincadeira do caminhão, estaria a repetição (da mesma história) em função da elaboração de uma experiência traumática? É válido acrescentar que, às minhas tentativas de introduzir mais elementos na história, Enos imediatamente se colocava a chupar o dedo e a abaixar a cabeça, como que se fechando num estado de embotamento. Normalmente, a cada vez que brincávamos, o mesmo enredo tendia a se repetir inúmeras vezes.

Ao contrário da brincadeira de Enos, a repetição própria do brincar não é imutável, ritualizada. Comporta, antes de tudo, o espaço de criatividade, da criação. Danon-Boilean (2003), a partir de um caso clínico de autismo, aponta dois elementos presentes na repetição da brincadeira que a distanciam da estereotipia. No brincar, há lugar para a variação e a surpresa.

Na brincadeira do caminhão, embora não se trate de uma estereotipia, a variação é bastante escassa e os momentos de surpresa, raros. Talvez a repetição da brincadeira de Enos tendesse menos a uma elaboração do que a uma idéia fixa, da qual Enos não conseguia se desvencilhar.

A criança brinca, então, para elaborar algo que a impressionou. Green (2005) destaca a estreita relação existente entre a realidade externa e o horror: o mundo, permeado de guerras, terrorismo, catástrofes naturais, etc. Como suportar essa realidade, em si traumática, sem o brincar? Questiona o autor, apontando que os temas mencionados são os preferidos nas brincadeiras das crianças. O brincar permite, assim, transformar aquilo que é insuportável na realidade em alguma outra coisa.

É essa a idéia que encontramos em Freud (1908/2004b), ao comentar sobre a "ocupação preferida e mais intensa da criança". Ele afirma que "toda criança que brinca se comporta como um poeta, pois cria um mundo próprio, ou melhor dizendo, insere as coisas de seu mundo numa nova ordem que lhe agrada." (Freud, 1908/2004b, p.127). Em uma nova ordem espacial e temporal, podemos acrescentar. E Jerusalinsky (1999) lembra que o tempo do brincar, o "agora eu era", é uma torção no tempo que enoda passado, presente e futuro.

Segundo Freud (1908/2004b), esse elo temporal entre passado, presente e futuro é característico da fantasia. O autor aproxima, via dimensão da fantasia, a criança que brinca, os devaneios do adulto e o poeta que escreve. Através de cada uma dessas produções, a realidade psíquica se manifesta, trazendo à cena seus desejos inconscientes e as fantasias em torno deles.

Green (2005) compara o brincar aos sonhos e as fantasias. Embora todas essas produções sejam estruturas marcadas pelo processo primário, o autor diferencia o brincar das outras duas pela sua relação mais estreita com a realidade: "Eu sugiro que o brincar se diferencia delas [demais estruturas] ... não por sua profundidade, mas porque parece realidade." (Green, 2005, p.21).

De acordo com Freud (1908/2004b), o que diferencia o brincar da fantasia é o apoio em objetos reais. Ele escreve: "O que faz oposição ao jogo não é a seriedade, mas sim a realidade efetiva. A criança diferencia muito bem da realidade o mundo da brincadeira, apesar de todo o seu investimento afetivo; e tende a apoiar os objetos e situações imaginárias em coisas palpáveis do mundo real. É somente esse apoio o que diferencia o seu 'brincar' do 'fantasiar'." (p.128).

Em 1924, Freud (2004c) novamente aproxima a fantasia neurótica do brincar, distinguindo, entretanto, as fantasias neurótica e psicótica. Ele afirma que a fantasia neurótica, assim como o brincar, apóia-se em um pedaço da realidade. A fantasia de um psicótico, por outro lado, tenta se colocar no lugar da realidade externa, substituindo-a. Essa nova realidade é construída pelo psicótico fundamentalmente pela via da alucinação.

Assim, o brincar, colocado ao lado da fantasia neurótica, não é uma atividade alucinatória. Por mais que se deixe tomar pela fantasia, a criança é capaz de localizar as bordas entre a fantasia e a realidade em suas brincadeiras. Roza (1993, p.82) escreve que "o brincar é uma atividade consciente, inscrita numa realidade perceptivo-motora, mediatizada por objetos reais, onde os rumos de ação são determinados pela criança. Ela sabe que se trata de algo imaginado, de pura ficção. Ela não alucina". Há uma consciência da irrealidade da trama. A criança sabe que está brincando, ela não acha sua atividade lúdica estranha, e tampouco um observador tem um sentimento de estranheza ao vê-la brincando.

Mas será que podemos afirmar que toda criança que brinca diferencia a fantasia da realidade? Green (2005) lembra o quanto algumas vezes é difícil determinar a fronteira entre o brincar de um neurótico e a alucinação de um psicótico, criação da nova realidade via substituição da realidade externa pela fantasia, principalmente em casos "borderlines".

Trago para a discussão uma outra vinheta clínica, que pude testemunhar durante o estágio na mesma instituição. Ateliê de marionetes: as crianças encenam o casamento do príncipe Pipo com a princesa. Após relembrarem a história, as crianças encarregadas dos personagens que figuram a cena escolhida posicionam-se atrás do pequeno teatro, de posse das respectivas marionetes. O príncipe Pipo é encenado por Thomas, um garoto de estruturação psicótica. No momento do casamento, o príncipe está longe, não acompanha a princesa ao altar, onde o padre os espera. A princesa, então, vira para o príncipe Pipo e lhe pergunta se ele não quer mais casar com ela. Thomas hesita. A princesa, tentando fazer a cena do casamento acontecer, pergunta ao príncipe Pipo se ele não a ama. Thomas responde que não.

Aqui, percebe-se como a perda do referente simbólico compromete a capacidade de representação, levando o "faz de conta" a uma posição real (Jerusalinsky, inédito). Thomas passa a ser aquilo que ele encena.

Jerusalinsky (1999) lembra que a brincadeira está condicionada à possibilidade de deslocamento entre os objetos de desejo, e, para que isto ocorra, é preciso que haja a falta: "cada brinquedo deve ser tomado como substituto do objeto que causa o desejo ... , como objeto de gozo e ao mesmo tempo como significante da falta (alusão à ausência)". A criança só é capaz de realizar substituições nos objetos de desejo se ela própria for tomada por sua mãe não como o falo, mas como representante do falo. "O que abre para a criança o campo de sua 'transicionalidade' é o fato de que a mãe toma a própria criança como transicional para ela, e não como sua realização fálica definitiva".

Isso coloca, portanto, um problema para o brincar das crianças psicóticas. Sabe-se que a não incidência de um terceiro, promotor da separação entre a criança e o Outro, tem como efeito o aprisionamento dela como objeto fálico da mãe. A foraclusão do significante Nome-do-Pai não promove, para o sujeito psicótico, a operação de corte que se faz incidir na relação dual.

Nesse sentido, Jerusalinsky (1999, p.85) demonstra a impossibilidade do fort-da na criança psicótica devido à ausência da distância entre ela e o Outro: "A criança do fort-da seria capturada, se fosse psicótica, não pela dupla significante Fort-Da (S1 – S2), mas sim pela pura redondeza do carretel, sem metáfora da mãe que operasse o vaivém. Ou quiçá fosse o prazer do som 'Fort-Da', repetição absoluta (sem referência a nenhuma evocação), uma vez que, pela ausência do 'Outro', outra voz não se diferencia da própria."

A partir do exemplo dado pelo autor, é possível perceber o modo como o simbólico (não) opera na psicose: o carretel seria tomado não como um objeto metafórico, mas, ao contrário, em si mesmo, em suas propriedades físicas. Ou ainda, dois significantes juntos (fort-da) não evocam sentido por não remeterem um ao outro, mas acabam formando um único bloco significante (holófrase) cuja materialidade sonora se sobressai em relação ao significado.

Torna-se, portanto, difícil pensar teoricamente no brincar de uma criança estruturada psiquicamente na psicose, aprisionada como objeto fálico do Outro, para quem o movimento de separação não ocorreu.

No entanto, a clínica nos mostra crianças psicóticas que brincam. Não é raro nos servirmos desse brincar como ferramenta tanto diagnóstica como de intervenção. Mas, se elas brincam, percebemos algumas particularidades em seu brincar: a dificuldade, por exemplo, de Thomas em manipular as bordas entre a fantasia e a realidade; ou a narrativa reduzida, sem ampliação da cena e quase sem variação, da brincadeira de Enos. Se o que está em jogo é um brincar simbólico, não se pode afirmar. É possível, porém, que essa repetição ao infinito da brincadeira de Enos faça emergir algo novo, da ordem da variação e da surpresa; algo que transpasse a idéia fixa, que lhe permita elaborá-la. Ou, quem sabe, faça emergir um brincar como espaço transicional que venha se colocar entre o sujeito e o Outro, fazendo suplência à foraclusão do Nome-do-Pai na psicose.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
E-mail ju.macielsoares@gmail.com

Recebido em março/2008.
Aceito em maio/2008.

Apoio: Fundação de Apoio à Pesquisa do Maranhão - FAPEMA.

 

 

NOTA

1 Verbete espanhol, adueñarse: vpr Apossar-se, apoderar-se, apropriar-se. (Michaelis Dicionário Escolar Espanhol (2007). São Paulo: Melhoramentos). Na tradução em português e em francês, encontramos os termos dominar e "maitriser", respectivamente.

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