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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.13 n.24 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGO

 

Dois casos e uma questão: qual é o lugar do cuidador na subjetivação da criança?

 

Two cases and a question: what is the role of the caretaker on the child's subjective constitution?

 

Dos casos y una pregunta: ¿Cuál es el papel del cuidador en la constitución subjetiva del niño?

 

 

Caroline Moreira de OliveiraI; Rosa Maria Marini MariottoII

IPsicóloga, psicanalista em formação, especialista em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
IIPsicóloga, psicanalista, professora da PUCPR, doutora pelo Instituto de Psicologia na Universidade de São Paulo, membro da Associação Psicanalítica de Curitiba

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com a saída do homem e da mulher do ambiente doméstico para o mercado de trabalho, a família conta com o auxílio de um cuidador, que também participa da montagem da geografia psíquica dos filhos. Propõe-se uma discussão teórico-prática sobre o lugar do cuidador na subjetivação da criança. Dois casos clínicos servem de eixo dessa discussão: no primeiro caso, a cuidadora ocupa o eixo materno; no segundo, a cuidadora atua como significante paterno. Concluindo, reflete-se sobre as implicações éticas da psicanálise e a influência do cuidador na configuração da família e, sobretudo, da criança.

Palavras-chave: psicanálise; cuidador; Outro primordial; clínica com crianças


ABSTRACT

Due to the absence of the working man and woman from the domestic environment, the family relies on the assistance of a caretaker, who also participates in the psychological geography of the child. It considers a theoretical-practical discussion of the caretaker effects on child's subjective constitution. The discussion is based on two clinical cases. In the first case, the caretaker occupies a maternal role, in the second she plays a paternally significant role. In conclusion, the ethical implications of psychoanalysis are considered, and the influence of the caretaker in the family configuration and, above all, on the child.

Keywords:psychoanalysis; caretaker; primary Other; child's clinic


RESUMEN

Debido a la ausencia del hombre y la mujer trabajadores desde el ámbito doméstico, la familia depende de la ayuda de un cuidador, que también participa en la geografía psicológica del niño. Se considera un debate teórico-práctico de los efectos del cuidador en la constitución subjetiva del niño. El debate se basa en dos casos clínicos. En el primer caso, el cuidador ocupa el rol materno, en el segundo, desempeña un papel paterno. En conclusión, las implicaciones éticas del psicoanálisis y la influencia de la guarda en la configuración de la familia y, sobre todo, en el niño, son consideradas.

Palabras clave: psicoanálisis; cuidador; Otro primordial; clínica del niño


 

 

Com a crescente participação da mulher no mercado de trabalho, a família conta com parcerias nos cuidados com os bebês. Assim, não só a mãe, mas outros cuidadores, auxiliam na montagem da geografia psíquica da criança, seja a partir do auxílio de uma creche, seja de uma babá

Alguns estudos acadêmicos (Baptista, 2002; Carvalho, 2001; Mariotto, 2007) já discutiram a função do Outro cuidador quando exercido por um outro que não a mãe, evidenciando uma tarefa que não se apresenta sem dificuldades, mas que nos toca intimamente, pois estamos diante do impasse de situá-lo ou na condição de suplência da função materna ou de terceiro. Assim, o lugar que o cuidador, que não a mãe, pode ocupar na vida da criança varia em cada caso.

É portanto, a partir dessas questões que nesse estudo propomos discutir a relação entre a criança, seu cuidador e sua mãe. Para isso nos valemos de dois casos clínicos, que servem de fio condutor das reflexões empreendidas, destacando que no primeiro caso a cuidadora se revela mais atravessada pelo eixo materno, enquanto que, no segundo caso, a cuidadora atua como operador de alteridade.

Através da escuta do discurso familiar e do trabalho clínico, localizamos o lugar fundamental que as cuidadoras assumem na composição subjetiva das crianças em questão, revelando que se a função materna é condição de emergência do sujeito, ao mesmo tempo, pode ser obturadora e prejudicial quando não é atravessada pela alteridade.

Do ponto de vista psicanalítico, sabe-se que é a partir da primeira relação com o Outro encarnado que a criança é tomada como seu objeto de desejo – objeto a, tempo marcado pelo processo de alienação e separação, quando a criança assujeita-se ao desejo do Outro, mas também dele se separa para poder se constituir como um ser singular.

Visto que o sujeito se estrutura no interior desta relação com o Outro, isso deve estar em pauta quando se analisa um sujeito cuja mãe parece não ter disponibilidade psíquica para marcar que existe um desejo em relação ao filho, delegando a outra pessoa não apenas a função de cuidar dele, mas também a de lhe dar um espaço subjetivo.

Sabemos que o exercício da função materna depende não só das habilidades puerperais, mas da capacidade do Outro materno de fazer marcas no corpo da criança e, mediante estes cuidados, demarcar os dois registros onde esta função opera: o da necessidade e o do desejo. É o que Lacan (1985a) indica ao revelar que existem dois outros que se devem distinguir: um outro com A maiúsculo e um outro com a minúsculo, que é o eu, evidenciando assim, a linguagem como marco constituinte, ao definir o Outro como mais-além do semelhante.

Segundo Mariotto (2007), "assim, constatamos as múltiplas faces do Outro: Outro absoluto, em termos de uma exterioridade absoluta, aquilo que não pode ser dito ou apreendido pela palavra; o Outro da alienação, como o lugar onde o sujeito encontra sentido para si e onde se petrifica; o Outro da separação, que se refere ao limite que faz a falta de significante, fazendo desta carência a exigência de trabalho por parte do novo ser para dar sentido a si mesmo; e, por último, o Outro primordial que nada mais é que a presença real – outro – que encarna as funções de alienação e separação." (p. 58).

A subjetivação depende então de que este Outro primordial situe o bebê como parte de sua economia libidinal, condição que o autoriza a supor neste ser um sujeito, antes mesmo que ele ali já esteja instalado, de modo que se estabeleça o jogo de dupla tradução, e que o gesto da criança seja interpretado em palavra e seu discurso seja transformado em ação.

Este Outro primordial desencarrega o termo "mãe" de ser seu único representante, convocando qualquer um que se torne, na composição da receita subjetiva, ingrediente essencial para a criança.

A discussão que um trabalho clínico nos oferece a partir de qualquer elemento que surja no decorrer dos atendimentos é sempre ampla e surpreendente. É por isso que na apresentação dos casos clínicos nos restringimos a destacar a singular posição que as cuidadoras ocupam junto às crianças, secundarizando a discussão sobre hipótese diagnóstica, bem como a direção de tratamento.

 

A segunda que é primeira: o caso de Felipe

Felipe tem quatro anos de idade e é portador de mielomeningocele1, diagnóstico feito logo após o nascimento. A criança não caminha sem a ajuda de um adulto que a sustente pelos braços.

A queixa inicial apresentada pela mãe foi o fato de o menino dizer palavrões a desconhecidos, comportamento que causava constrangimento à família e também às pessoas a quem ele dirigia os insultos. Mencionou sua dificuldade de lidar com a doença do filho e com a impossibilidade dele de correr como os outros meninos, afirmando que o pai sabe lidar melhor com esta situação. Relatou também que ela e o marido trabalham o dia todo deixando a criança aos cuidados de sua babá: "tia Raquel". Transcorridos vinte minutos de entrevista, a mãe afirmou que já havia dito o que considerava mais relevante e que precisaria voltar ao trabalho. Acertados os dados referentes ao contrato, como honorários e duração das sessões, acrescenta que, se for necessário, poderá retornar em outro momento. Durante os quatro meses de atendimento, houve algumas tentativas de marcar uma sessão com ela. Entretanto, por duas vezes marcou e faltou sem avisar, sugerindo uma dificuldade em falar de sua história como mãe de Felipe.

Para Jerusalinsky, falar do sofrimento familiar de um modo regular é insuportável para alguns pais, "sendo que sua tragédia, como ocorre nestes casos, não está remetida ao passado, mas, sim, que continua ocorrendo dia após dia." (1988, p. 71).

Dentre as diversas possibilidades de não-investimento da mãe na criança, está a dificuldade de adotar o próprio filho quando a criança real não coincide com a do imaginário que lhe traria atrativos narcisicamente mais favoráveis: "O desejo do filho é tomado numa controvérsia quando os pais não podem se reconhecer nele. Não se reconhecem porque uma falha o tornou diferente. Essa falha pode se situar no real ou no imaginário. Em ambos os casos o efeito é o mesmo: o reconhecimento não se produz porque o destino para o qual este filho foi imaginado torna-se impossível, de um modo inegável." (Jerusalinsky, 1988, p. 67).

Nesse caso, a dificuldade de sofrer o luto da criança idealizada e, a partir daí, acolher subjetivamente a criança que veio poderia resultar em falta de um lugar subjetivo para a criança, trazendo sérias conseqüências para a sua estruturação, não fosse a possibilidade de outra pessoa tomá-la como objeto de investimento libidinal.

Foi por telefone que a mãe informou sua decisão de interromper o tratamento psicoterápico, optando por colocar o filho na equoterapia, justificando que ficaria muito dispendioso manter dois tratamentos e que também havia psicólogos na equipe eqüestre.

Apesar do breve período de atendimento, os elementos apresentados levaram a uma reflexão sobre o lugar dado à criança pelo cuidador e possibilitaram a apreensão das possíveis conseqüências dessa relação.

Felipe comparecia às sessões sempre levado por Raquel, sua babá. Dirigia-se a ela com muito carinho, por vezes a chamando de mãe com um sorriso, mas em seguida corrigia-se ou era corrigido pela cuidadora. Quando Felipe chama sua babá de mãe, a qualidade e o sentimento de satisfação demonstrado procedem do material lingüístico. Pode-se arriscar uma interpretação dessa fala da criança como sendo uma denúncia de quem realiza a função materna para ela, como uma espécie de reconhecimento para com sua cuidadora.

Sentimos, então, a necessidade de ouvir esta mulher que assumia nitidamente um lugar fundamental na vida de Felipe, para podermos localizar com mais precisão o lugar discursivo conferido a ambos por cada um. Desta conversa obtiveram-se detalhes preciosos sobre as seqüelas da doença na criança, sua rotina diária e o funcionamento familiar.

Em função de seu quadro, Felipe é uma criança que pode vir a falecer precocemente; porém, a única certeza de Raquel é que esta vivência ficará marcada na vida de ambos. Raquel afirmou que não planejou a chegada de Felipe, mas que sua vida nunca mais foi a mesma, como acontece quando nasce um filho inesperado. Comentou que ele diz ter duas mamães: a mamãe e a mamãe Raquel. Nos finais de semana, Raquel fica em casa, período em que dedica mais atenção à sua família; no entanto, espera ansiosa a segunda-feira para encontrar-se com Felipe e, cuidando dele, os dias da semana passam "voando". Se o menino fica resfriado e o final de semana chega, ela liga para os pais para saber sobre seu estado de saúde.

Pode-se perceber, a partir desse relato, o envolvimento emocional da cuidadora2, a ponto de abdicar dos cuidados de sua própria casa e família para estar com o menino que, a seus olhos, realmente precisa dela.

Felipe tem duas irmãs, do primeiro casamento do pai, que moraram com sua família por um semestre, aproximadamente. Raquel comentou, com lágrimas nos olhos o quão doloroso foi para ela testemunhar a reação de Felipe quando o pai convidava somente as irmãs para almoçar fora. Por vezes, ele perguntava se a tia Raquel almoçaria com ele e se o amava. Ela respondia que sim, que o amava muito e que lhe faria companhia para o almoço.

Fica bastante evidente a reciprocidade desse relacionamento, visto que Felipe não só reconhece Raquel como sua mãe, como também se assegura de que tem um lugar de sujeito amado. É da "tia" Raquel que ele reivindica amor, cuidado e atenção, assegurando para si um lugar singular; os outros adultos até podem ter outros interesses, mas a "tia" Raquel deve ficar com ele, pois ela o ama tal como ele é.

Disso tudo, justifica-se a escolha do subtítulo, A segunda que é a primeira "mãe", visto que Felipe torna-se singular para sua cuidadora, que realiza uma função imprescindível dando-lhe, genuinamente, um lugar no discurso. Lacan faz referência ao conceito freudiano de falo e à estreita relação do mesmo com a criança, complementando que "se a mulher encontra na criança uma satisfação é, muito precisamente, na medida em que encontra nesta algo que atenua, mais ou menos bem, sua necessidade de falo, algo que o satura." (1995, p. 71). O autor discorre a respeito da relação entre a mãe, a criança e a correspondente falta fálica na mãe, pois o falo feminino advém sob a forma de uma falta. É graças a essa negatividade que a criança é tomada como falo, pois é apenas com o corpo libidinizado por aquele que realiza a função materna que a criança pode constituir uma imagem corporal.

Felipe captava, mesmo que fosse de forma inconsciente, a frustração de sua mãe com relação à sua mobilidade; no entanto, deve-se reconhecer que é a mãe de Felipe que não apresenta mobilidade do desejo, pois o filho não cumpre a função de ideal, ficando assim, fora do circuito pulsional. E é justamente pela dificuldade de deslizamento do desejo de sua mãe que se percebe um risco para Felipe. Sem o investimento materno o acesso à linguagem ficaria restrito, comprometendo sua tessitura psíquica.

No entanto, durante este breve período de tratamento, observamos com clareza que, se ele não é o garoto com quem a mamãe sonhou, ele é "o bebê da tia Raquel" (sic), alguém amado e desejado, o que lhe possibilita se reconhecer no olhar dela e encontrar um ser para si. Contudo, o lugar ocupado por Felipe na subjetividade de Raquel cumpre a função de ideal apenas na condição de bebê.

"Um dos graves riscos que corre a criança vista como deficiente é o de ser colocada em posição fixa e invariável de 'eterno bebê'. Essa eterna excepcionalidade impede a criança de habitar seu corpo poeticamente. Logo, o corpo é habitado por esse Outro mãe eterna, esse Outro ciência, esse Outro pedagogia, esse Outro especial, esse Outro deficiência." (Levin, 2005, p. 93).

Quando Lacan apresenta sua compreensão dos tempos edípicos, menciona que, no primeiro tempo, a criança procura satisfazer o desejo da mãe identificando-se especularmente com aquilo que é seu objeto de desejo. Já no segundo tempo, "no plano imaginário, o pai intervém efetivamente como privador da mãe." (1999, p.198). Adverte, porém, que é somente com a ajuda da palavra do pai que a castração funciona; assim, tem-se garantido o nascimento do sujeito no campo da linguagem. Por esse motivo, se a mãe ou cuidadora reconhece a criança no lugar de falo, e não possibilita a ela destituir-se dessa condição, há risco de estabelecer-se uma psicose; sem a interdição de um terceiro capaz de prover referência fálica, a criança fica alienada ao desejo do Outro.

Se Felipe parece encontrar um lugar de existência na subjetividade de Raquel, escapando do vazio de palavras da mãe biológica, esse lugar o aprisiona na condição de eterno infans, deixando-se tomar como objeto. Nesse caso, a intermediação de um terceiro que possa fazer um corte no laço entre "bebê-babá" se mostra ainda incipiente; fato preocupante, pois ao escapar de um não-lugar materno, ele esbarrou no lugar-todo da "Tia Raquel".

A partir dessa discussão, percebe-se que a falta – de onde o desejo vai brotar – deve ser semeada tanto na criança, como naquele que a humaniza, autorizando que a lei de interdição do gozo absoluto legisle sobre o par.

"Pelo efeito de fala, o sujeito se realiza sempre no Outro, mas ele aí já não persegue mais que uma metade de si mesmo. Ele só achará seu desejo sempre mais dividido, pulverizado, na destacável metonímia da fala. O efeito de linguagem está o tempo todo misturado com o fato, que é o fundo da experiência analítica, de que o sujeito só é sujeito por ser assujeitamento ao campo do Outro, o sujeito provém de seu assujeitamento sincrônico a esse campo do Outro. É por isso que ele precisa sair disso, tirar-se disso, e, no tirar-se disso, no fim, ele saberá que o Outro real tem, tanto quanto ele, que se tirar disso, que se safar disso. É mesmo aí que impõe a necessidade de boa fé, fundada na certeza de que a mesma implicação da dificuldade em relação às vias do desejo existe também no Outro." (Lacan, 1985b, p. 178).

 

Luana e uma cuidadora "avó"

Alguns meses após a interrupção do atendimento de Felipe, a mesma questão reaparece quando Luana inicia o tratamento. Trata-se também de uma criança de quatro anos de idade portadora de mielomeningocele.

Luana foi encaminhada por sua fisioterapeuta, que realiza reuniões semestrais com a equipe pedagógica da escola que a menina freqüenta. A pedagoga da escola mencionou que Luana está se mostrando agressiva quando não consegue acompanhar seus colegas de turma (uma das repercussões da mielomeningocele é a dificuldade de locomoção e, assim como Felipe, Luana não caminha sem o auxílio de um adulto).

Na conversa com os pais percebemos que, em função das dificuldades que a criança apresenta, as pessoas com as quais ela convive procuram poupá-la de qualquer dificuldade, amparando-a e observando-a em quase todos os momentos. Entretanto, na escola, isso se torna inviável. Assim, quando a professora não pode auxiliá-la da forma como está acostumada a ser assistida em casa, ela se mostra nervosa e agressiva. Tanto a escola quanto a fisioterapeuta solicitam que o comportamento de agressividade se modifique e que ela volte a ser a "menina amável" que sempre foi.

Meira (1996) comenta que, não raro, as crianças com algum tipo de deficiência apresentam sintomas de agressividade. "Agressividade que emerge na tentativa de marcar um lugar subjetivo ali onde o imaginário prevalece sobre o simbólico." ( p. 69).

Apesar de não presenciarem esse tipo de comportamento em casa, os pais concluíram que um tratamento psicoterápico poderia funcionar de forma preventiva, para que a menina aprenda a simbolizar características que dizem respeito à sua singularidade, já que não sabem até que ponto a filha compreende suas limitações e têm receio de que possa vir a lidar de forma inadequada com elas quando crescer.

No entanto esse não saber o que fazer com a doença também se evidencia na mãe. Nas entrevistas iniciais, enquanto o casal esforça-se para relatar como tudo está muito bem, a mãe começa a chorar, denunciando, em suas lágrimas, seu sofrimento: "Você não entende! Você não entende o que é ir à loja, querer comprar os sapatinhos mais lindos e não poder, pois ela tem de usar aquele ferro que dá sustentação às pernas".

"Esta é a ferida nos pais. Pode ser grande ou pequena. Sangrar muito tempo ou, às vezes, fechar-se e voltar a se abrir em diferentes épocas da vida, quando o impossível se reatualiza.... E a ferida também pode cicatrizar.... Embora se queira ocultá-la. Acompanhar-los-á em todas as partes." (Tkach, 1988, p. 194).

Em seguida, discorrem a respeito do cotidiano da família e das atividades que a filha realiza, mencionando que a "avó" (sic) é a pessoa que passa grande parte do tempo cuidando da criança, acreditando que seria muito interessante que ela também fosse entrevistada.

"Avó por parte de mãe ou de pai?", perguntou a terapeuta. Ambos deram uma demorada gargalhada, dando-se conta de que a "avó" é, na realidade, a babá de Luana; eles a chamam assim por ser uma senhora de idade. Como não poderia deixar de ser, a "avó-babá" foi incluída no tratamento, no sentido de considerar seu lugar na tessitura psíquica de Luana.

O diagnóstico de mielomeningocele foi feito quando Luana tinha dois meses de idade. A criança nascera prematura e precisaria de cuidados especiais após receber alta do hospital. A "avó" Márcia foi indicada pelo próprio hospital, pois já havia trabalhado na área de enfermagem pediátrica, além de ter experiência com outras crianças. Foi ela quem identificou no bebê falta de motricidade em um dos braços e nas pernas, fato relatado nas consultas pediátricas em que acompanhava Luana e a mãe. Comenta que só continuou cuidando da criança por força do diagnóstico confirmado, o que exigiria novos cuidados especiais; caso contrário, só teria trabalhado por alguns meses para a família de Luana. Vale destacar que somente os pais situam Márcia como "avó", sendo que Luana a chama de "tia". Essa filiação – "avó-babá" – parece corresponder ao nascimento da criança portadora de uma doença.

Quando os pais de Luana fazem hora-extra no trabalho, a menina fica na casa de Márcia: "É por esse motivo que ela já tem tudo de que precisa em minha casa, como brinquedos, roupas, filmes infantis, escova de dentes, fraldas etc."(sic). Em casa, costuma dormir na cama dos pais.

Nos finais de semana, o casal tenta compensar sua ausência nos cuidados diários com Luana, momento em que a presença de ambos marca a dificuldade de colocar limites na filha.

Para Márcia, a menina já sabe muito bem como seduzir um adulto para conseguir aquilo que lhe agrada, mencionando o quanto o pai de Luana acaba cedendo aos encantos de sua "princesinha", e que tem sido muito difícil lidar com essa falta de limites, característica que parece ser a mais marcante nesse caso. Se o pai de Luana demonstra dificuldade em barrar a filha é justamente a cuidadora que se põe na função de interditar e negar-lhe muitos de seus caprichos.

"O pai surge como construção de linguagem que não fala em nome próprio, mas sim em nome de Outro, em Nome-do-Pai. Como significante e metáfora, o pai nomeia a lei do desejo, relacionando-o à castração e inscrevendo o sujeito na significação fálica." (Mariotto, 2007, p. 102).

Ao mencionar a dificuldade de Luana em aceitar os limites colocados pelos pais e por ela, a cuidadora relatou o quanto isso estava ficando cada vez mais cansativo. Com seus filhos, sabia exatamente o que fazer, mas como Luana não é sua filha, tem receio de repreendê-la, embora levante uma questão importante: "Se eu não fizer, quem vai fazer?" É ela quem está com Luana a maior parte do tempo; o pai de Luana costuma fazer praticamente todas as vontades da filha, e a mãe, somente às vezes, consegue negar alguns pedidos da filha.

Após quatro anos cuidando de Luana ininterruptamente, com exceção das férias, Márcia relata que seu trabalho está se tornando difícil: a criança está muito pesada para ser carregada no colo e a família dela reivindica cada vez mais sua presença no lar; por outro lado, também há a necessidade de ter mais tempo para cuidar de sua vida pessoal.

Com essa declaração de Márcia, pode-se concluir que seus interesses pessoais passaram a sobrepor-se ao desejo de continuar a ocupar o lugar de cuidadora. Por alguns anos, enquanto Luana ainda era um bebê, parece que a relação sustentou-se com relativa tranqüilidade. A partir do momento em que ela dá indícios de estar bem, física e emocionalmente, Márcia parece reconhecer o quanto deixou de cuidar de seus interesses pessoais e de sua família, concluindo que é hora de retomá-los. Reconhece a possibilidade de Luana assujeitar-se à interdição: "Não é não, né, tia Márcia?", indaga a menina, demandando do adulto a afirmação que confirma a negação.

Mesmo que o encontro entre a cuidadora e Luana não tenha sido programado, é certo que Márcia apresentava disponibilidade emocional para acolher e cuidar, num momento em que os pais ainda estavam extremamente enroscados com o encontro com o real da doença.

Após seis meses de tratamento de Luana, recebemos para entrevistas iniciais uma mãe cuja demanda era de que sua filha, de três anos, perdesse o medo de balões. Ela procurou o atendimento por indicação da mãe de Luana. Esse fato chamou-nos a atenção, pois parece que agora ela podia identificar-se com outra mãe, cuja filha também tem três anos, anda, mas tem medo de balões.

Deve-se assim reconhecer o papel imprescindível que a "avó babá" teve no processo de estruturação de Luana. Ela esteve presente enquanto sua mãe vivenciava um movimento de luto da criança idealizada e de confronto com o real da criança que teve. Luana não veio como a mãe imaginou; porém, depois de um tempo, ela identificou uma série de características atrativas na filha e pôde reconhecer-se nelas, possibilitando maior investimento pulsional.

Ao mesmo tempo, a babá operou na condição de um terceiro. Fazemos aqui uso de um conceito recentemente cunhado por Mariotto (2007), que utiliza o termo paternagem para situar a função do educador de bebês como referência ao Nome-do-Pai, contrapondo a tradição discursiva que faz menção aos cuidadores enquanto substitutos dos cuidados maternais, articulando às práticas educativas a função de inscrição do significante paterno e de sustentação na linguagem.

Para a autora, "apostar no conceito de paternagem parece indicar que o pai como significante depende hoje dos modos de intervenção ligados aos atos discursivos que agenciam aqueles que operam em nome dessa função." (p. 103).

Ao discutir sobre a função do pai e as condições de seu exercício, Lebrun (2004) confirma estas considerações. Para ele, é preciso que a função paterna seja ancorada por pelo menos dois aspectos: que a mãe possa significar à criança quem é o outro que lhe serve de referência e que esse outro possa exercer em carne e osso essa terceiridade. A isso o autor acrescenta: "O fato de que hoje em dia isso se realize concretamente em creches ou de outro modo não tem importância, porque a função de pai não se mantém por suas capacidades de ser uma segunda boa mãe ... não está aí a tarefa em relação à qual sua função de pai será julgada; é em sustentar ser um outro que não a mãe que reside seu trabalho de pai ... aquele a quem ela se refere pelo fato mesmo do desejo que ele lhe dirige e em que ela consente." (p. 42).

Então, há condições de que uma realidade psíquica organize o corpo num "sistema linguageiro" em que o agente dessa operação permita uma intervenção ali onde a mãe se autoriza não toda. A tarefa de maternar – ou paternar – a criança deve estar atravessada pela função de introduzir um "pai fora da mãe." (p. 29).

 

A clínica psicanalítica com criança e seus cuidadores

Acompanhando o novo fato da contemporaneidade, em que várias mães trabalham e necessitam do auxílio de um terceiro para cuidar de seus filhos, faz parte da conduta ética do analista estar atento a essa peculiar configuração familiar, identificando a natureza da interferência do cuidador e o lugar que a criança recebe.

Ressaltamos o fato de que as duas cuidadoras começaram a tomar conta das crianças alguns meses após o nascimento e, em seus testemunhos, ficou evidenciado o quanto o trabalho de cuidar de uma criança com tal especificidade clínica – a mielomeningocele – ocupa um lugar diferenciado em suas vidas e como essa vivência as marcou.

Vale também destacar que o ocorrido nos casos apresentados não é usual; não são todas as cuidadoras que têm a disponibilidade subjetiva de comparecer como um elemento a mais na estruturação subjetiva do infans.

Diante desse panorama, é possível levantar um questionamento acerca do destino dessas crianças, caso suas cuidadoras não tivessem tamanha disponibilidade de investimento. Talvez nem mesmo elas saibam o papel crucial que tiveram na vida desses pequenos sujeitos.

Ambos os casos revelam que o cuidador exerce uma função que vai muito além do simples cuidar, lugar a que são convidados a ocupar pela família quando são contratados. Aos olhos do analista, além dessa função, 0o cuidador tem a possibilidade de conferir à criança um lugar correspondente ao afeto atrelado à relação, lugar que pode ser importante e essencial, como também prejudicial, se ocorrer ininterruptamente e em excesso. Oferecer, pois, escuta a esses novos personagens da estrutura familiar é um compromisso do trabalho clínico com crianças.

É relevante considerar que, quando os pais chegam ao consultório com uma queixa a respeito do filho, a relação entre a criança e seu cuidador pode não receber a devida importância discursiva nas entrevistas iniciais. Contudo, cabe ao analista investigar tal relação, viabilizando um espaço de escuta capaz de trazer à tona tais questões, assim como interrogar a si mesmo sobre o lugar conferido à criança pelas pessoas envolvidas na organização familiar.

Por outro lado, permanece fundamental a não-resposta à demanda nesta especificidade clínica, como foi visto em ambos os casos, cuja queixa era de agressividade verbal ou física. Rassial (2004) afirma que a não-resposta à demanda é a regra fundamental na análise de crianças, sendo o ponto principal no qual a psicanálise diferencia-se de um outro processo terapêutico. O autor define a não-resposta à demanda como sendo "o modo pelo qual o analista articula sua posição com a do sintoma, isto é, tira o sintoma do eixo, aceitando que o sujeito dele se sirva." (p. 29).

Assim sendo, Ferreira lembra-nos que "são as modalidades da posição do sujeito frente à falta do Outro que somos chamados a interrogar, quando se trata de pensarmos estruturas clínicas." (2000, p. 40). Ressalta a necessidade de indagar-se a respeito do Outro que os pais são chamados a representar, sustentando que cabe ao analista encontrar a questão do sujeito, interrogando-se a respeito de sua posição subjetiva frente àquilo que o determina. A autora aponta para a necessidade de cautela na escolha das estratégias para o tratamento, construindo intervenções mediante a especificidade de cada caso. Portanto, o manejo clínico deve estar diretamente relacionado ao diagnóstico diferencial, ou seja, à possível estrutura da criança, assim como à sua vinculação com as pessoas que participam de sua constituição psíquica.

De resto, a função do psicanalista de crianças permanece a mesma. "Que o clínico faça semblante de sujeito suposto saber dá lugar a que os pais possam, suportados em tal transferência, vir a desdobrar seu saber inconsciente acerca do filho (pois em todo caso, o clínico sabe que os pais sabem aquilo que eles pensam não saber)." (Jerusalinsky, 2002, p. 142).

Consideramos, então, de extrema importância a escuta de todos aqueles que, na condição de Outro encarnado dão vez e voz à enunciação de um sujeito, participando da montagem da geografia psíquica da criança.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: cacau_ctba@hotmail.com
E-mail: rosamariotto@uol.com.br

Recebido em março/2008.
Aceito em junho/2008.

 

 

NOTAS

1 A mielomeningocele constitui uma má formação congênita do sistema nervoso e, por isso, ocorre uma falha do fechamento ósseo. Essa má formação pode ocasionar paralisia parcial ou total nas pernas da criança e, freqüentemente, ocorre perda de controle da bexiga ou do intestino (www.mielomeningocele.com).
2 Ressalta-se que a presença do cuidador pode influenciar qualquer constituição familiar que conte com essa parceria para cuidar dos filhos que em casa permanecem. Portanto, as questões tratadas no presente artigo não são exclusivas às famílias onde há alguma particularidade relacionada à saúde, como a mielomeningocele, presente nos casos descritos.

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