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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.13 n.24 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGO

 

A (re)configuração do passado no discurso construtivista

 

The (re)configuration of the past in the constructivist speech

 

La (re)configuración del pasado en el discurso constructivista

 

 

Daniel Revah

Professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo destaca e analisa alguns aspectos relacionados com a emergência do construtivismo no Brasil. O construtivismo é aqui concebido como um discurso pedagógico que emerge na década de 1980, num processo em que os discursos educacionais precedentes foram (re)ordenados. Esse (re)ordenamento incide sobre o passado, (re)configurando-o e produzindo o que se concebe como a origem do construtivismo no Brasil, estreitamente vinculada a determinadas trajetórias profissionais e institucionais. Na análise, entende-se que a palavra " construtivismo" foi transformada num significante de ressonância– operação fundamental para a produção dessa emergência e a (re)configuração do passado que lhe é correlata.

Palavras-chave: discursos educacionais; significante de ressonância; construtivismo; história da educação.


ABSTRACT

This article focuses and analyses some features related to the emergence of constructivism in Brazil. Constructivism is here considered as a pedagogical speech that emerges in the decade of 1980 as part of a process that (re)ordered the preceding educational speeches. This process that involves and (re)configures the past results in what can be taken as the origin of constructivism in Brazil, directly attached to certain professional and institutional paths. In the present analysis, "constructivism" is taken as a word that has been transformed in a resonance signifier – fundamental operation to produce this emergence as well as the correlated (re)configuration of the past.

Keywords: educational speeches; resonance signifier; constructivism; history of education


RESUMEN

Este artículo destaca y analiza aspectos relacionados con la emergencia del constructivismo en Brasil. El constructivismo aquí es comprendido como un discurso pedagógico que emerge en la década de 1980, en un proceso en el cual los discursos precedentes fueron (re)ordenados. Ese (re)ordenamento afectó el pasado, (re)configurándolo y produciendo lo que se concibe como el origen del constructivismo en Brasil, estrechamente vinculado a determinadas trayectorias profesionales y institucionales. En el análisis se entiende que la palabra "constructivismo" fue transformada en un significante de resonancia – operación fundamental para la producción de esa emergencia y la (re)configuración del pasado que le es correlativa.

Palabras clave: discursos educacionales; significante de resonancia; constructivismo; historia de la educación


 

 

No Brasil, na década de 1980, um novo discurso pedagógico se configura atrelado ao significante "construtivismo", que é a palavra que então se destaca dos inúmeros enunciados que proliferam no âmbito dos discursos educacionais. Com esse significante, mas também com outros que cumprem a mesma função no discurso, como Emilia Ferreiro e Piaget, foram feitas as costuras que possibilitaram essa emergência e o concomitante (re)ordenamento dos discursos educacionais precedentes. Este trabalho analisa aspectos relacionados com esse (re)ordenamento discursivo e a (re)configuração do passado que lhe é correlata.1

O que começa a ser reconhecido por meio desse significante surge ligado ao campo da alfabetização, no período em que a pesquisa de Ferreiro e Teberosky (1986) sobre a psicogênese da língua escrita é intensa e amplamente divulgada e discutida nos meios educacionais, na segunda metade da década de 1980. De início, o que se configura é um discurso pedagógico restrito a esse campo e que ganha os seus primeiros contornos em razão das costuras feitas com o significante "Emilia Ferreiro", que não é apenas um nome. Além de ser o nome de uma pesquisadora e psicóloga argentina de grande notoriedade entre os profissionais da educação que conheciam essa pesquisa, ele está no centro do (re)ordenamento discursivo que nesse período se processa no campo dos discursos educacionais. Nos debates acadêmicos, no dia-a-dia das escolas, nas conversas entre educadores, o significante "Emilia Ferreiro" vez por outra era esgrimido para situar, reconhecer, defender ou atacar as novas concepções e práticas de alfabetização, em geral concebidas em oposição ao que recebia o rótulo de tradicional. Emilia Ferreiro torna-se assim o que neste trabalho é chamado de significante de ressonância, um conceito que é um pequeno desdobramento do conceito de significante-mestre criado por Lacan. O nome "Emilia Ferreiro", mas também o nome "Piaget" e, principalmente, o significante "construtivismo", são significantes-mestres que adquiriram ressonância social. Ademais, são equivalentes, pois cumprem a mesma função no discurso, ao criar uma espécie de fecho ou ponto de arremate aonde confluem diversas articulações discursivas que estão como que à procura de um sentido último, que na verdade nunca encontram nesse ponto. O que aqui é chamado de discurso é o que fica condensado no ponto definido por esses significantes de arremate e que contém outros significantes de ressonância que aí convergem, cada um com a sua própria rede e entre si vinculados de diversos modos, sem contar os laços com outros campos, além do educacional.2

Essa ampla rede discursiva, coletiva e virtual, não deve ser entendida como uma espécie de ente ou de substância que paira sobre os sujeitos. Essa ordem significante concerne ao laço social, define a posição dos sujeitos uns em relação aos outros, no campo onde esse discurso se configura e atualiza. As articulações discursivas que lhe dão consistência surgem nos atos de fala, nas produções lingüísticas que o definem. São montagens discursivas singulares, porque relativas a cada sujeito, mas também são obras coletivas. Nessas várias montagens discursivas sempre é possível destacar os pontos significantes que adquirem ressonância social, pontos de ressonância que podem ser reconhecidos pela insistente presença nos discursos que delimitam o mesmo campo. Isso é o que permite falar da existência de um discurso pedagógico construtivista, muito embora sempre estejamos em face de uma diversidade de discursos, sustentados precisamente por essa matriz simbólica que está no seu cerne e que deles por sua vez resulta. Uma matriz que se repete em cada ato de enunciação, embora sempre de um modo diferente. Para apreender essas diferenças é necessário considerar o próprio sujeito, em particular os traços que definem o seu discurso e a posição que nele ocupa.

Além do sujeito e da rede discursiva condensada no ponto de arremate, um outro aspecto a considerar nessa matriz simbólica é o que em toda ordem simbólica adquire a feição do que não se deixa capturar, do que marca os seus limites, do que impede a completude com que acena aos sujeitos nela implicados. Esse resto que resiste a ser integrado à ordem simbólica é, no discurso construtivista, o que afigura um empecilho para que a ação pedagógica seja plenamente eficaz. No Brasil, a recorrente fala sobre os "desvios, confusões, equívocos", que teriam sido cometidos por professores ao interpretar ou aplicar o construtivismo na educação escolar, diz respeito a esse empecilho que tende a ser situado recorrendo-se a dois extremos criados pelos discursos educacionais ao longo do último século e definidos, não raro, por meio destes dois significantes limítrofes: "escola tradicional" e "espontaneísmo". A matriz simbólica construtivista configura-se com esses dois pontos extremos atrelados ao ponto de arremate e equidistantes dele, de modo a transformá-lo numa espécie de ponto de equilíbrio. Temos aí os três pontos estruturantes dessa matriz simbólica que os discursos educacionais configuram. São pontos que se constituem subordinados ao lugar que os significantes "teoria" e "ciência" delimitam.3

 

O lugar "natural" do construtivismo

Em estudo sobre a difusão das idéias de Piaget no Brasil, encontra-se formulada uma idéia presente em inúmeros trabalhos e falas sobre a procedência do construtivismo: "a partir dos anos oitenta, o construtivismo, baseado principalmente nas idéias de Piaget e Emilia Ferreiro, se expandiu pelo país, de tal maneira que muitos professores, ao denominá-lo, referem-se à 'febre construtivista'." (Vasconcelos, 1996, p. 1).

Apresentado como o "exemplo mais notório" da presença das idéias de Piaget no "meio educacional", o construtivismo é temporalmente situado na década de 1980, como um fato próprio do nosso tempo, um fato contemporâneo. Ao mesmo tempo, é remetido a um passado distante, e por isso afirma-se que "se expandiu". O construtivismo é apresentado então como o prolongamento de uma corrente de idéias oriunda sobretudo da obra teórica de Piaget, que remonta às primeiras décadas do século XX, mas também das pesquisas e reflexões desenvolvidas por Emilia

Ferreiro no campo da alfabetização, as quais fincam o construtivismo no presente. Desse modo, Vasconcelos apresenta o construtivismo referido aos dois autores que, na maioria dos discursos, são considerados as suas primeiras e legítimas fontes, e cujas obras delimitam uma espécie de "lugar natural" do construtivismo.

Sem dúvida é o lugar onde a maioria dos profissionais da educação tendia e ainda tende a remeter tudo ou quase tudo que fica sob a égide desse significante de ressonância, principalmente quando se trata de validar ou criticar determinada idéia, posição ou prática pedagógica, definir as origens do construtivismo ou explicar o que ele é. Sandra Corazza (1994), por exemplo, refere-se ao construtivismo em termos semelhantes, vinculando-o à Psicologia: "Nesse 'lugar natural' [Psicologia da Criança], onde o Construtivismo está, para o qual se movimenta, ou ao qual volta quando afastado, é forjada a Epistemologia Genética – uma teoria do conhecimento que Piaget desloca da Filosofia para investigar como o sujeito humano produz conhecimento." (p.121).

Nesse artigo, a autora faz várias considerações sobre a obra de Piaget e esboça algumas críticas, mas o foco principal é o que ela concebe como o outro lugar do construtivismo, o "lugar des-naturalizado", o da prática pedagógica: "Desse lugar, o pedagógico, só é possível falar dos efeitos do discurso construtivista que, como costuma ocorrer, são polissêmicos. 'Construtivismo' é o nome genérico que vimos dando, enquanto comunidade educativa escolar, a múltiplas e diferentes tentativas de aplicar, nas salas de aula e nas escolas, as concepções desenvolvidas pela Epistemologia Genética de Piaget, revitalizadas pelas pesquisas básicas acerca da alfabetização, que Ferreiro e equipe desenvolveram ao final da década de 70." (p.122).

Sempre tomando como referência o construtivismo no seu "lugar natural", Corazza ainda caracteriza o lugar da prática pedagógica discriminando quatro formas ou tipos de prática (p.124). O que é apresentado nesse artigo corresponde a uma forma muito comum de conceber o construtivismo: primeiro, no plano da produção teórica e científica, principalmente a que procede da psicologia genética; em segundo lugar, como desdobramento no campo da educação escolar e na prática pedagógica, como aplicação de uma teoria ou de concepções que em última instância remetem a Ferreiro e Piaget – nomes através dos quais o discurso pedagógico construtivista é vinculado ao campo da produção teórica e científica.

A própria palavra construtivismo procede desse campo, pois é utilizada por Piaget, embora não com freqüência, como lembram Macedo (1994, p.XVI) e Carvalho (2000, p.192). Em seus escritos, entretanto, é comum encontrar o uso de termos que procedem da mesma raiz, como o verbo construir, o adjetivo construtiva/o ou o substantivo construção. Esses termos amiúde são utilizados para compor imagens que ilustram o desenvolvimento psíquico, sobretudo do ponto de vista cognitivo. O uso desses termos, porém, concerne principalmente ao plano conceitual, aos conceitos que Piaget desenvolve ao longo da sua obra, como o de erros construtivos, e ao que nela constitui o seu tema central: o conhecimento, concebido basicamente como construção (Piaget, 1996, p. 409).

Em relação à palavra construtivismo, antes do que o seu uso por Piaget, o que aqui importa é destacar um outro fato: ao ser simultaneamente utilizada como nome-síntese da sua teoria e do que no campo da educação escolar é delimitado com o mesmo nome, ela repõe constantemente a divisão que é inerente à matriz simbólica construtivista: o "lugar natural" e a sua aplicação, igualmente naturalizada, mesmo quando se fala em "lugar desnaturalizado". Quando se opera com essa divisão, de modo explícito ou implícito, fica obscurecido o (re)ordenamento discursivo e as apropriações que nesse processo ocorreram, relativas a domínios e registros diversos, que extrapolam o campo da educação escolar e o da psicologia. Sem contar outros efeitos, como o de nutrir o insistente tema dos "desvios, confusões, equívocos..." das apropriações indevidas da teoria piagetiana ou das descobertas de Emilia Ferreiro e sua equipe; males esses atribuídos em geral aos professores, que supostamente não entenderam ou não aplicaram a teoria como deveriam.

Aqui não se pretende colocar em dúvida a forte presença das concepções piagetianas ou das formulações de Ferreiro no discurso pedagógico construtivista, nem tampouco negar possíveis apropriações das concepções desses autores que pouco se relacionam com o que eles propõem. É óbvio que isso ocorre com qualquer teoria e que esse discurso pedagógico é atravessado pela ampla rede discursiva que procede do trabalho desses autores. Essa rede interessa aqui não para mensurar a maior ou menor adequação das práticas e discursos pedagógicos em face dela, mas na medida em que participa da configuração do discurso pedagógico construtivista e para indicar o seu lugar nesse processo. É claro que aí é preciso considerar, por exemplo, que a obra de Piaget já vinha sendo objeto de apropriação há várias décadas. Mas nesse caso também é necessário observar que a obra do pesquisador suíço foi re-atualizada de um modo peculiar na década de 1980, alterando o seu lugar no conjunto dos discursos educacionais. Assim sendo, o (re)ordenamento discursivo que ocorre nos anos de 1980 corresponde, também, a um processo de realinhamento de todo um conjunto de articulações discursivas procedentes da obra de Piaget e do que dela tinha sido objeto de apropriação, em discursos educacionais que ainda não eram, propriamente, construtivistas. Esse é o caso dos discursos que proliferaram na década de 1970, no Brasil, em torno de algumas experiências educacionais qualificadas de alternativas, envolvendo um setor das camadas médias, como veremos a seguir.

 

Um passado equivocado

A recorrente fala sobre os "desvios, confusões, equívocos..." não é privativa do discurso pedagógico construtivista. É, no entanto, a sua marca característica, pelo menos até fins da década de 1990. Um diferencial importante em face de outros discursos, como os que concernem ao campo da educação popular ou da educação alternativa, de acordo com que é próprio desse campo na década de 1970 e parte da década seguinte. Nesses discursos alternativos, as diferenças de concepção ou nas práticas educacionais eram antes avaliadas em termos ideológicos, dando-se ênfase a questões de natureza política, social e cultural. Nesse campo alternativo não havia a necessidade imperiosa e constante de remeter o que se fazia e pensava a uma determinada teoria para avaliar se haviam sido cometidos desvirtuamentos, desvios ou confusões. As teorias eram incorporadas de um outro modo. Os padrões avaliativos que em si mesmos traziam a marca da ciência não eram tão relevantes ou, pelo menos, quando essa marca surgia ou adquiria importância, em geral não emudecia os espíritos nem levava a reduzir o que se fazia e pensava a uma simples avaliação da distância em face daquela referência teórica, como se tornou freqüente em relação a alguns princípios considerados construtivistas. Ao invés disso, em certas experiências educacionais havia até mesmo um certo receio ou desconfiança em relação à ciência, em particular se um educador procurasse sustentar determinado argumento recorrendo a essa marca, desse modo querendo evidenciar, por exemplo, o seu caráter neutro e objetivo. Uma referência essencial para julgar qualquer coisa era a própria experiência, definida pelas articulações discursivas que passavam pelos pontos de ressonância característicos desses discursos alternativos.

Esses discursos tinham um forte ponto aglutinador: a sua rejeição a tudo o que era associado à ditadura militar. Nesse significante-mestre às avessas, porque ordenava os discursos alternativos que se definiam por oposição a essa referência, confluíam diversas articulações discursivas, dentre elas as que se encontravam frouxamente amarradas ao significante moderno e que procediam, sobretudo, de um setor das camadas médias. Nesse caso, é o moderno que o regime militar desenhava, com a tecnocracia, a indústria cultural e outras figuras que os discursos de oposição destacavam, quando das suas críticas à modernização que a partir do Estado era impingida a toda a sociedade. A ciência por vezes caía nessa órbita, em especial no difuso campo da contracultura e no circuito de certos debates universitários, aos quais era particularmente sensível aquele setor das camadas médias. Esse setor social demarcava uma parte do campo alternativo, que ainda estendia-se em direção aos setores populares.

Ficando apenas no campo educacional, é possível notar diferenças significativas de um extremo a outro do campo alternativo, quando considerados os grupos ou setores sociais implicados. De um lado, o alternativo-popular, com forte presença dos discursos pastorais da Igreja Católica e de discursos educacionais marcados pelo nome e pela obra de Paulo Freire, ordenados em torno de determinados significantes de ressonância, como educação popular, alternativa, comunidade ou comunitário, como era próprio das creches e escolas comunitárias surgidas nos bairros periféricos de grandes centros urbanos. De outro, o alternativo típico daquele setor intelectualizado das camadas médias. Esses extremos eram parcialmente soldados ou vinculados por pessoas das camadas médias que transitavam nos setores populares, por vezes com um discurso alternativo dissonante, como atestam os conflitos e diferenças entre os movimentos chamados de mulheres e as feministas. Entre essas pessoas, havia militantes ou intelectuais de esquerda que desenvolviam certo tipo de trabalho político e educacional nos setores populares e que, ao mesmo tempo, mantinham alguma relação com experiências educacionais desenvolvidas apenas entre as camadas médias, às vezes porque seus filhos freqüentavam escolas particulares então qualificadas de alternativas, como ocorreu na cidade de São Paulo.

Nessa cidade, na década de 1970 e no início da década seguinte, surgiram várias pré-escolas sob o influxo do que o campo alternativo então delimitava e que essas experiências educacionais, reconhecidas por meio da expressão escolas alternativas, também definiam. Nesse campo e no lugar social característico do setor das camadas médias aí implicado, além da temática da esquerda e de certo viés libertário, confluía uma diversidade de referências, tais como: a produção característica da imprensa alternativa e de determinados grupos musicais, certo tipo de terapias, a preocupação com a alimentação natural, os temas ecológicos, a medicina alternativa, o questionamento enfático das relações de gênero e dos padrões sexuais então vigentes e até mesmo uma forma peculiar de se vestir, próxima do que o termo hippie rapidamente situa e que então era bem característico das educadoras das pré-escolas alternativas.4 Nessas pré-escolas, em face do que nesses discursos alternativos era objeto de crítica, adquiriram relevância as formas de apreensão da realidade julgadas intuitivas, pouco precisas, alheias à quantificação ou medição e próximas do que era vinculado à ordem da emoção e de uma sensibilidade difusa, expressa de modos não padronizáveis – pelo menos, essa era a intenção – e por uma linguagem com a qual se pretendia, sobretudo, sensibilizar o ouvinte ou o leitor, como era o caso dos inúmeros relatórios produzidos por essas educadoras sobre as atividades que desenvolviam junto às crianças e que eram dirigidos aos pais de alunos. Nesses relatórios, antes de mais nada importava desenvolver uma narrativa que trouxesse à tona a singularidade das situações vividas com as crianças, que fosse rica em histórias, em fatos que evidenciassem a vivacidade almejada no dia-a-dia escolar.5 Nesses discursos alternativos, a precisão conceitual e o domínio de uma linguagem técnica eram relegados ou sobrepujados por um discurso que antes devia evidenciar o seu caráter crítico, emotivo e até poético. A compreensão e a comunicação eram antes buscadas pela via de uma sintonia ou afinidade em relação a um certo estilo de trabalho e de vida e menos pelo domínio de uma linguagem técnica comum, como foi se afirmando de modo crescente no campo educacional dominado pelo construtivismo. Nesse campo, na década de 1990, determinada linguagem técnica foi se tornando uma referência essencial para situar o que é o construtivismo e quem é construtivista, em particular a linguagem própria da arquitetura conceitual presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e nos documentos curriculares produzidos posteriormente, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1996. Nessas propostas curriculares, com as quais o governo federal buscou reorientar o ensino em todas as escolas do país, encontra-se o bê-á-bá construtivista na versão que nesse período tornou-se hegemônica, com seus termos característicos: conhecimentos prévios, aprendizagem significativa, conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais etc.6

Uma das pré-escolas alternativas paulistanas era a Escola da Vila, que nela própria reteve parte do nome do bairro onde começou: a Vila Madalena, que também era reconhecido pela marca do alternativo, pois era visto como um bairro típico das várias formas de manifestação alternativa, dentre elas as próprias escolas alternativas. Aliás, várias dessas escolas começaram nesse bairro ou próximas dele, eram Escolas da Vila Madalena, sendo inclusive identificadas desse modo.7 A referência à Escola da Vila não é aqui um mero exemplo, dado que a sua trajetória, assim como a das escolas alternativas, está diretamente vinculada à emergência do discurso pedagógico construtivista e ao concomitante (re)ordenamento dos discursos educacionais precedentes, pelo menos numa das suas vertentes. A importância dessa escola em grande parte decorre do papel que indiretamente desempenhou na elaboração dos PCN. Como foi noticiado pela imprensa, parte dos profissionais que participaram da sua elaboração havia trabalhado nessa escola privada.8 Ademais, para a confecção dos PCN foram fundamentais os trabalhos e a presença do professor César Coll, um dos consultores e uma das figuras centrais da reforma educacional espanhola, sem contar o seu papel em outros países da América Latina, onde prestou assessoria às equipes que efetuaram outras tantas reformas. A sua participação como consultor dos PCN pode ser creditada à intermediação de uma das filhas do presidente Fernando Henrique Cardoso, que havia trabalhado no início da Escola da Vila, e também a essa instituição de ensino, que promoveu alguns encontros com ele no Brasil.9

Sobre a Escola da Vila também é importante salientar o seu papel na formação de centenas de professores da rede pública e privada através do seu Centro de Estudos e o fato de ter-se tornado uma espécie de paradigma de escola construtivista bem-sucedida. Além disso, na revista Nova Escola, publicação de forte presença entre os professores brasileiros, algumas das profissionais que haviam trabalhado na Escola da Vila durante a década de 1980, como Telma Weisz e Madalena Freire, ganharam o status de "pioneiras" do construtivismo.10 Nessa revista, o lugar paradigmático da Escola da Vila surge de maneira nítida na primeira edição em que o significante "construtivismo" é transformado na manchete de capa, em maio de 1991. Na reportagem que corresponde ao destaque de capa, há um box com sugestivo título: "Até a Escola da Vila chegou a cometer enganos". Eis o trecho inicial: "A Escola da Vila se denomina construtivista desde que foi criada há 10 anos, no Bairro do Butantã, Zona Sul de São Paulo. Durante esse tempo todo ela tem sido uma espécie de paradigma e fonte de experiências e conhecimentos sobre a teoria de Emilia Ferreiro. 'Depois de alguns anos, fomos percebendo que faltavam algumas coisas para que pudéssemos chamar nossa metodologia de construtivista', afirma a coordenadora da pré-escola, Zélia Cavalcanti. Apesar de toda seriedade no trabalho, a Escola da Vila se deu conta dos enganos que podiam ser cometidos." (Nova Escola, p.16).

Nessa matéria, procura-se fazer uma espécie de balanço do construtivismo no Brasil, após "dez anos", como se afirma no título. Para a Nova Escola, esse é o tempo transcorrido desde o momento em que o construtivismo chegou ao Brasil, com as pesquisas de Emilia Ferreiro, que aos poucos foram sendo conhecidas pelos educadores.11 Um período que praticamente corresponde ao tempo de vida da Escola da Vila, que iniciou as suas atividades em 1980.12 Desse modo, nessa avaliação, a origem da Escola da Vila e a do construtivismo coincidem. E nesse suposto início do construtivismo, cuja referência primeira é o nome e a pesquisa de Emilia Ferreiro, todos cometeram equívocos, até mesmo os "professores mais bem-intencionados": "Mesmo os grupos de professores mais bem-intencionados cometem equívocos. É o caso da Escola da Vila, onde a própria diretora Zélia Cavalcanti alerta para os cuidados que se deve ter ao trabalhar com o construtivismo. 'A escola se imaginava construtivista desde a sua fundação, há 10 anos, mas só nos últimos quatro anos podemos realmente dizer que somos construtivistas', confessa Zélia." (p.15).

Na reconstrução histórica que muitos fazem do construtivismo e que está presente em várias matérias da Nova Escola, em particular da década de 1990 em diante, é desenhado um lugar primevo, original, onde se fazem confluir todos os erros, enganos e equívocos. Esse lugar costuma ser demarcado por um significante: o significante "espontaneísmo",13 que, em grande parte, sustenta e estabelece as margens de um passado que na verdade não passa, pois sempre retorna em alguma prática pedagógica de alguma professora que supostamente não entendeu como devia os princípios construtivistas. Esse passado, com essa marca, também aparece muito bem fixado numa outra matéria da Nova Escola em que o construtivismo é "trocado em miúdos", de acordo com o que é enunciado na capa dessa edição, de março de 1995 – uma capa cuja manchete novamente destaca o significante "construtivismo". Para esclarecer as "grandes e pequenas dúvidas" da professora de 1° Grau, a revista informa que consultou "cinco respeitadas especialistas", dentre elas a diretora pedagógica da Escola da Vila, que na época também era "coordenadora nacional da Rede Latino-Americana de Alfabetização, criada por Emilia Ferreiro".14 Em relação a esse lugar primevo, ele é assim definido: "A fase inicial, em que o aluno era deixado muito solto, como se a professora não estivesse na sala de aula (prática espontaneísta), está superada. Hoje se quer do professor uma atuação firme e planejada (prática intervencionista). No geral, contudo, o núcleo pedagógico do construtivismo permanece inalterado." (Nova Escola, p.13).

De modo semelhante, com um "núcleo pedagógico" que permanece inalterado, era publicamente avaliada a trajetória da Escola da Vila na segunda metade da década de 1990, como se observa em artigo escrito por Cavalcanti (1997). Nessa reconstrução histórica, certos traços do passado não aparecem, em particular quase tudo o que se encontra vinculado ao seu passado alternativo, ou melhor, quase tudo o que poderia trazer à tona as articulações discursivas que no passado definiam o lugar do significante de ressonância "alternativa", que desde meados dos anos de 1980 ganhou um tom pejorativo, até desaparecer, adquirindo novamente o status de uma palavra qualquer. Esse apagamento e o (re)ordenamento discursivo nele implicado é o que permite que a trajetória da Escola da Vila fique semelhante ao suposto percurso do construtivismo no Brasil. Na trajetória do seu "projeto pedagógico" ou da sua "metodologia de educação", não há "rupturas significativas", apenas continuidade evolutiva cujos principais marcos são dados pelo próprio construtivismo, pelo menos segundo a versão de sua história que a escola tornou pública.

Nessa trajetória, guiada desde o início por "uma visão construtivista", são estabelecidos três momentos. Em relação ao primeiro (1980-1984), destaca-se a herança das idéias divulgadas pela proposta da Escola Nova, que "coloca o aluno no centro do processo de aprendizagem" e o fato de a escola seguir a orientação da Epistemologia Genética de Jean Piaget, que "explica os mecanismos de construção de conhecimento", sendo ademais reconhecida "a importância da visão educacional de Paulo Freire para a organização das situações de aprendizagem" (Cavalcanti, 1997, p.28). Aponta-se também que a "Escola da Vila partilhava com algumas escolas particulares de São Paulo a idéia de ser experimental e uma alternativa à escolaridade tradicional." (p.29). E aqui, na palavra "alternativa" sobrou apenas o seu significado dicionarizado. Ademais, essa palavra fica desvinculada da figura de Paulo Freire, a principal fonte teórica inspiradora da chamada educação popular, por vezes qualificada de alternativa. Nessa reconstrução histórica, o que ocorre com a figura de Paulo Freire não está muito distante da operação que se tornou comum no discurso pedagógico construtivista. Neste, a sua figura é por ele e nele subsumida, tendendo-se assim a transformar Paulo Freire em um construtivista. Ainda em relação a esse primeiro momento, afirma-se que era realizado "um trabalho voltado para o desenvolvimento integral das crianças ... a partir de um planejamento que respeitava a individualidade" e a escola era considerada um espaço onde a cooperação ocupava "um lugar fundamental". Além disso, salienta-se que a ação educativa era "centrada no que se reconhecia como interesses e necessidades do desenvolvimento afetivo e social dos alunos" e que relegavam a um segundo plano os "conteúdos escolares tradicionais." (pp. 28-29).

Em relação ao segundo período (1984-1992), ressalta-se que houve "o reconhecimento de que a teoria genética não era suficiente para iluminar os processos de aprendizagem escolar". É o momento em que a Escola da Vila tem acesso ao trabalho de Ferreiro e Teberosky sobre a psicogênese da língua escrita, esta sim uma explicação considerada genuína, que então considera-se necessário conhecer: explicações "que dessem conta da forma como as crianças constroem os diferentes conteúdos escolares". Ademais, apontam-se a importância do início do 1º Grau e as "supervisões" que a escola teve com vários profissionais, "sempre dentro de uma visão psicogenética", em especial as relacionadas com a aprendizagem da língua escrita, com Ana Teberosky e Liliana Tolchinsky (Cavalcanti, 1997, p.29).

O que marca o início do terceiro momento, que em 1997 considerava-se "em andamento", é o fato de as educadoras da Escola da Vila terem conhecido "os textos de autores que vinham contribuindo para os fundamentos da que hoje é conhecida como uma concepção construtivista de ensino e aprendizagem." (p.29). Nesse ponto é destacado "César Coll e seu grupo do Departamento de Psicologia da Educação em Barcelona" (p.30). É o momento em que se preocupam em definir "um currículo desenhado a partir dos marcos teóricos" dessa concepção, baseada principalmente nos escritos e idéias de César Coll. Uma perspectiva que, com os PCN, se torna "a" concepção construtivista, numa operação discursiva e política que constrói a unidade e a hegemonia desse discurso pedagógico.

Sem dúvida, qualquer reconstrução histórica deixa elementos de fora, que não são incorporados nos relatos, seja porque essa é a intenção ou porque esses elementos foram esquecidos, apagados por um processo histórico e discursivo que não deixou à vista qualquer vestígio dessa mesma operação. Como já foi apontado, essa história da Escola da Vila deixa de lado a parte do passado relacionada com um discurso cujo significante de arremate era a palavra "alternativa" ou a expressão "escola alternativa". Isso não significa negar certo papel atribuído desde o início às concepções piagetianas e até mesmo antes, pois a maioria dos profissionais que começaram a Escola da Vila vinha da pré-escola Criarte. E, nessa pré-escola, nos relatórios que eram produzidos nos anos de 1970, é visível a presença de Piaget, cujos escritos eram objeto de estudo, bem como os de outros autores. Como se afirma no artigo, poder-se-ia dizer que já tinham "uma visão construtivista do processo de construção do conhecimento" (Cavalcanti, 1997, p.28), cuja continuidade busca-se salientar, até mesmo destacando três idéias que desde então "são consideradas fundamentais na metodologia do trabalho": "Os seres humanos não aprendem diretamente da experiência, mas da interpretação que fazem da experiência"; "Conhecer é antes de tudo e sobretudo atuar"; "O psiquismo humano modifica e reorganiza seus esquemas sempre que a assimilação de um novo objeto de conhecimento o exige." (p.30). Na linha evolutiva que mantém essas idéias fundamentais num primeiro plano, os marcos construtivistas são claros e poderiam ser sintetizados usando-se uns poucos nomes: primeiro Piaget, depois Ferreiro/Teberosky e por último César Coll. Nada melhor para um exemplar e bem-sucedido percurso construtivista, pelo menos de acordo com os pontos nucleares do devir que na década de 1990 tornou-se hegemônico.

Sempre é possível construir uma história feita de continuidades, de linhas que nos remetem a uma origem onde já estava como que delineado o nosso futuro. E é nisso que basicamente consiste essa história da Escola da Vila. Entretanto, se fosse vista sob outro prisma, com o acento colocado no campo em que essa escola e as suas educadoras inscreviam a suas ações e falas no início dos anos de 1980, é possível falar de uma inflexão ou ruptura importante, própria do momento em que o tema e a palavra "limites" ecoava em todas as escolas alternativas.15

A insistente presença do significante "limites", que então como que ordenava o rumo mesmo dessa inflexão, sucede a um período caracterizado por um discurso que se encontrava sob o signo do "proibido", na medida em que era próprio de experiências que buscavam transgredir o que nesse momento era cultural e politicamente hegemônico ou, simplesmente, imposto pelo regime militar. Nesse período inicial, as escolas alternativas afiguravam espaços de "experiências proibidas", com um discurso que desenhava dois territórios nitidamente separados. De um lado, essa espécie de oásis que as escolas alternativas representavam para a suas educadoras e pais de alunos, um lugar de encontro, familiar e caseiro, onde as crianças poderiam viver a plenitude da sua primeira infância. De outro, os espaços considerados característicos da ordem autoritária e não raro qualificada de "careta". 16

No "momento dos limites", boa parte das escolas alternativas paulistanas recorreu a um profissional que no Brasil dos anos de 1980 dava os seus primeiros passos: o "analista institucional", também chamado de supervisor ou terapeuta, em geral psicólogos com formação em psicanálise. Em relação a esse trabalho, desenvolvido em grupo e envolvendo os diversos segmentos de uma mesma escola, o que essencialmente estava em jogo era tudo o que o significante de ressonância "limites" sobrepujava e que as palavras "fantasias" e "fantasmas" também situavam, tendo como pano de fundo os vínculos profissionais e pessoais estabelecidos entre os adultos. No caso da Escola da Vila, depois de cerca de um ano de trabalho com esse tipo de profissional, os "grandes fantasmas acabaram" e se "avançou demais", na avaliação feita por uma das educadoras que participou desse processo (Revah, 1994, p.180). E houve, com efeito, uma mudança de rumo importante nessa escola, que começou a delinear-se já na primeira metade da década de 1980, confundindo-se com o momento em que ela tomou conhecimento da pesquisa de Ferreiro e Teberosky. E não apenas na Escola da Vila, mas em todas as escolas alternativas da zona Oeste da cidade de São Paulo, que entre si mantinham diversos vínculos informais. Uma mudança que ocorreu em sintonia com as transformações que se desenrolaram em outros âmbitos, conforme avançou o processo de redemocratização das instituições, com o fim da ditadura militar. Em relação à Escola da Vila, todo um conjunto de idéias já havia sido abandonado na segunda metade daquela década, como a de transformar a escola em uma cooperativa.

Essa história institucional é importante porque permite situar uma dimensão das transformações ocorridas que também incide sobre os tais projetos pedagógicos, e de um modo capital. Uma dimensão que no discurso pedagógico construtivista não adquiriu qualquer relevância, ao ficar centrado nas questões didáticas e numa rede conceitual que muito deve à psicologia genética e a perspectivas onde a escola como instituição praticamente não existe.

No caso da Escola da Vila, na segunda metade dos anos de 1980, procurou-se deixar bem "claros" determinados aspectos relacionados com o encaminhamento da instituição e o seu viés empresarial. A divisão patrão-empregado não mais incomodava, já tinha ficado claro que "patrão é patrão e empregado é empregado", como disse uma educadora que participou desse processo (Revah, 1994, p.203). Surgiu então a necessidade de pensar as questões próprias de todo empreendimento empresarial, como o lucro. Havia que evidenciar a sua importância para a sobrevivência e crescimento da escola e até deixar à vista de onde provinha. Mas o que nesse momento tornou-se essencial foi responder às exigências dos pais de alunos, que não mais desejavam uma escola alternativa e sim uma escola séria, moderna, que preparasse as crianças para um mercado de trabalho que se mostrava cada vez mais competitivo. Transformar a escola, em particular a sua imagem, tornou-se então uma tarefa inadiável e vital.

Já em meados da década de 1980, quando a palavra "alternativa" havia se tornado um termo pejorativo entre as mesmas pessoas que a usavam num sentido positivo, surge a preocupação com "a imagem do alternativo". Em 1987, por exemplo, o grupo Interescolas17 pensou em organizar um evento para mostrar que "a imagem do 'alternativo' não cabe mais dentro do momento atual." (p.245). E isso seria evidenciado abordando e destacando os temas sobre os quais essas escolas estavam sendo mais questionadas. Os dois temas então destacados foram: "disciplina (limites) e a questão do conhecimento (conteúdo)" (ibidem). A imagem, então direcionada para o mercado, ganhou o centro da cena, tornando-se o eixo da mudança almejada nessas instituições educacionais, concomitante à afirmação da "visão construtivista", agora sim, não mais alternativa.

Para alavancar essa escola moderna, essa escola construtivista, tornou-se necessário então cuidar da imagem, e com esse objetivo foram contratados outros especialistas, bem diferentes dos "analistas institucionais". Como relata uma das educadoras da Escola da Vila, em entrevista realizada em 1991, nessa escola foi contratado um especialista na "área de marketing de imagem", para "projetar a imagem da escola de uma maneira coerente" (Revah, p.246). Todos os papéis e relações deveriam ficar claros, não mais sob a perspectiva que havia prevalecido no início das escolas alternativas, com a romântica busca de relações intersubjetivas plenas, transparentes, num grupo sem hierarquias. Agora, tornava-se importante uma "política de recursos humanos" e todos deviam saber que "aqui existe sim o lucro, como é que ele funciona e tal, e qual é a unidade de participação de cada um, qual é o papel de cada um nesse processo: quem é pai, escola e professores." (p.246).

Nesse momento, tornou-se necessário trabalhar o discurso para que ficasse coerente, deviam ser evitadas as duplas mensagens, as falas desencontradas, principalmente em face de uma clientela que exigia solidez. Por isso, nada de ambigüidades nem de projetos que parecessem pouco definidos, experimentais ou sem contornos precisos. Nesse momento, segundo a mesma educadora da Escola da Vila, importava "ter um discurso que une, a estrutura da escola tem que corresponder a esse discurso, então a imagem." (p.246). Cuidar dela tornou-se essencial.

Nessa imagem projetava-se uma "escola conteudista", "uma escola onde as crianças aprendam muito", não com conteúdos desvinculados da cultura, pois nesta deveriam se inserir. Uma escola que continuava sendo vista como oposta à escola tradicional, sem "padrões de disciplina rígidos" e onde as crianças não iam para ser treinadas (p.230). Uma escola que define seus objetivos e conteúdos, com um professor que intervém, que toma as decisões. Essa "escola séria", atenta à nova cidadania "crítica" que se perfila no final da década de 1980, fortemente marcada pelas demandas do mercado de trabalho, pretende formar pessoas "competitivas", que se destaquem, que saibam enfrentar a vida, a vida que se desenha no mundo mercantil e altamente competitivo desse período. É o que a escola quer e o que os pais exigem: "eles querem uma criança disciplinada, estudiosa e bem preparada" e não aquela criança despreparada e ingênua em face desse novo mundo, formada naquela escola de "linha espontaneísta" – uma escola assim qualificada de acordo com o significante que então se consolidou para fazer referência ao próprio passado (Revah, p.238). Em relação a esse passado, ao longo da década de 1980 foram sendo criadas as piores imagens, de uma escola onde apenas pensava-se em "ser feliz", com "todo mundo comendo arroz integral, as crianças todas peladas, sujas, com o nariz escorrendo, sabe, uma coisa meio assim, meio sem definição pedagógica".18

Esse passado equivocado desaparece na reconstrução histórica feita publicamente pela Escola da Vila, ou melhor, fica encerrado no significante "espontaneísmo". Um passado cujo marco avaliativo é dado pelo discurso pedagógico construtivista. E neste deve ser incluído tudo o que essa escola "séria e moderna" supõe, inclusive o que acima foi delineado, mesmo que não costume aparecer no discurso construtivista, com a sua linguagem psicológica e didática bem arrumada.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Ferreiro, E. & Teberosky, A. (1986). Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

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Revah, D. (1994). Na trilha da palavra "alternativa": A mudança cultural e as pré-escolas "alternativas". Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

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Vasconcelos, M. S. (1996). A difusão das idéias de Piaget no Brasil. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: revah@uol.com.br

Recebido em março/2008.
Aceito em maio/2008.

 

 

NOTAS

1 Este artigo, com algumas alterações, foi apresentado no VIII Congreso Iberoamericano de Historia de la Educación Latinoamericana, realizado em Buenos Aires, em 2007.
2 Ao chamar esses significantes-mestres de significantes de ressonância pretende-se ressaltar a sua diferença com o que é de ordem estritamente singular, relativo à história e desejo de determinado sujeito. Quanto aos aqui chamados significantes de arremate, estes são também significantes de ressonância, mas se distinguem porque produzem uma espécie de fecho no discurso e são significantes-nomes, significantes usados como forma de reconhecimento. Além disso, em si condensam todos os significantes de ressonância que concernem a determinado discurso.
3 Sobre os conceitos acima delineados, veja-se Lacan (1997 e 1998) e Revah (2004).
4 Usa-se o termo 'educadoras' porque se tratava, sobretudo, de mulheres.
5 Um exemplo desse tipo de relatório pode ser encontrado no livro A paixão de conhecer o mundo, de Madalena Freire, da época em que trabalhou em algumas escolas alternativas de São Paulo.
6 Parte desse parágrafo reproduz, com pequenas alterações, um trecho do artigo intitulado A educação alternativa. (Revah, 2005, p.174).
7 Em relação às características desse campo alternativo delimitado pelas camadas médias na cidade de São Paulo, bem como sobre a trajetória da Escola da Vila e das escolas alternativas, veja-se Revah (1994).
8 Essa informação foi divulgada pelo jornal Folha de S.Paulo, em 15/08/95. Em relação a esse ponto também é preciso assinalar que, no caso dos primeiros PCN (de 1ª a 4ª séries), três das quatro "coordenadoras" envolvidas na sua elaboração, e cujos nomes figuram na "Ficha Técnica", haviam sido professoras e orientadoras educacionais e/ou pedagógicas na Escola da Vila.
9 A esse respeito, veja-se Silva (1996, p. 199).
10 Cf. "Dez anos de construtivismo no Brasil", Nova Escola, n° 48, maio/91, p.11.
11 O ano ou época desse primeiro momento do construtivismo muda de autor para autor e na própria Nova Escola. Nessa revista, o substantivo construtivismo e o adjetivo construtivista somente começam a ser utilizados a partir de 1989, pelo menos de acordo com levantamento feito em várias matérias desde a sua primeira edição, que é de 1986. Não ocorre o mesmo com o nome de Emilia Ferreiro e a referência à pesquisa dela e Teberosky, que já podem ser encontrados em 1987.
12 A maior parte da equipe que inicialmente formou a Escola da Vida provinha de uma mesma experiência escolar, desenvolvida na pré-escola Criarte, surgida em 1972 (Revah, 1994, pp. 285-6).
13 O significante "espontaneísmo" e seus derivados (prática, método ou ensino espontaneísta) dificilmente são utilizados na Nova Escola. Mas eles surgem ou estão presentes em alguns momentos cruciais: quando é necessário estabelecer uma ordem que, sem eles ou sem o que eles supõem, não existiria.
14 "O tira-teima do Construtivismo: 50 grandes e pequenas dúvidas esclarecidas", Nova Escola, n° 82, março/95, p. 8.
15 Sobre esse ponto, veja-se Revah (1994), em particular o capítulo "Limites".
16 A esse propósito, veja-se o capítulo "A experiência 'proibida'", em Revah (1994).
17 Esse grupo reunia escolas que educadores e pais de alunos ainda reconheciam por meio da expressão "escolas alternativas". A Escola da Vila fazia parte desse grupo.
18 Esse é um trecho de uma entrevista feita com outra educadora da Escola da Vila, em 1990 (Revah, 1994, p. 159). Sobre a avaliação feita nessas entrevistas, por educadoras dessa escola, vale lembrar que em muito extrapola essa instituição de ensino, pois corresponde ao que preponderava nesse período nesse setor das camadas médias.

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