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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.13 n.24 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGO

 

O impacto do discurso da ciência na relação professor-aluno: repercussões em psicanálise

 

The impact of the speech science in the teacher-student relation: repercussion in psychoanalysis

 

El impacto del discurso de la ciencia en la relación profesor-alumno: repercusiones en psicoanálisis

 

 

Marcelo Fonseca Gomes de SouzaI; Marcelo Ricardo PereiraII

IPsicólogo, Mestrando da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais
IIPsicanalista, Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo objetiva investigar a repercussão do " Discurso da Ciência" – tal como pensado por Jacques Lacan no " Seminário 17: o avesso da psicanálise" – no universo escolar. Ao destacar o saber como a dominante do Discurso e o Significante- Mestre (S1) como a verdade que o determina, busca-se analisar os impactos de sua assimilação no espaço escolar a partir de dois focos nucleares: o professor – descrito aqui como apenas um técnico que deve apreender conhecimentos e desenvolver competências para sua intervenção prática – e o aluno – que aparece, neste espaço, como duplamente subjugado.

Palavras-chave: discurso da ciência; escola; professor ; aluno; psicanálise


ABSTRACT

This article investigates the repercussion of the "Speech Science" – developed by Jacques Lacan in "Seminar XVII: the other side of psychoanalysis" – in the scholar universe. When emphasizing the knowledge as the dominant aspect of the discourse and the Significant-Master (S1) as the truth that determines it, there is the purpose to analyze the impacts of its assimilation in the scholar environment through two nuclear foci: the teacher – described here as basically a technician who should acquire knowledge and develop competencies to practical interventions – and the student, who appears in this scenery as twice subdued.

Keywords: speech science; school; teacher; student; psychoanalysis


RESUMEN

El presente artículo pretende investigar la repercusíon del "Discurso de la Ciência" – tal como se lo ha pensado Jaques Lacan en el "Seminario 17: el reverso del psicoanálisis" – en el universo escolar. Al destacar el saber como la dominante del Discurso y el Significante-Maestro como la verdad que lo determina, se busca analizar los impactos de su asimilación en el espacio escolar a partir de dos focos principales: el profesor – descrito aquí como solamente un técnico que debe aprehender conocimientos y desarrollar competencias para su intervención práctica – y el alumno – que aparece, en este espacio, como doblemente subyugado.

Palabras clave: discurso de la ciencia; escuela; profesor; alumno; psicoanálisis


 

 

É certo que as nossas práticas escolares foram [e ainda são] fortemente marcadas pelo corte produzido pela ciência moderna e a sua então futura repercussão Iluminista. O estiramento da razão para um vasto campo de objetos e a sua imbricação, hoje inseparável, ao universo da técnica são conseqüências não triviais deste processo. Para Milner (1996, p. 38), é assim que se configura o mundo moderno: "uma união entre a ciência e a técnica, tão íntima e tão recíproca que podemos dizer que se trata de uma mesma entidade sob duas formas: ou uma ciência, ora fundamental ora aplicada, ou então uma técnica, ora teórica, ora prática".

Portanto, a propagação do ideal Iluminista, assentado na capacidade positiva da ciência de fundar um humanismo sem barreiras capaz de assegurar um suposto destino confortável à humanidade foi rapidamente amalgamado ao reino da técnica. "A técnica sempre foi tratamento material, por instrumentos materiais, do empírico material; a partir do momento em que a ciência toma o empírico por objeto, a técnica pode e deve fornecer-lhe seus instrumentos; já que, enfim, essa ciência, que toma o empírico por objeto, é também uma ciência literal, isto é, uma ciência precisa, os instrumentos fornecidos pela técnica podem e devem se tornar os instrumentos da precisão." (Milner, p.38).

O saber científico forjado, construído nas cátedras da academia ou nos laboratórios de acesso restrito, foi posto à disposição do conjunto da comunidade humana, passando a modular e/ou domar os saberes e as práticas populares secularmente constituídos. Logo, vê-se instaurar uma dicotomia: de um lado, situam-se aqueles que, referendados por uma prática científica, definem as características essenciais do conhecimento verdadeiro. Pautados sobre os critérios definidores de uma verdade indelével, os cientistas positivos se baseiam nas experimentações controladas, com o objetivo explícito de encontrar uma categoria final de universalidade que defina a veracidade da apreensão de seu objeto de estudo. A criação de um método de pesquisa rigoroso, aliado à submissão sucessiva das experiências às provas de refutação, permite ao conhecimento construído a qualificação em termos de não-falseabilidade. Ora, o que é não-falso, esgotadas as possibilidades de retestagem, possui, com efeito, o epíteto de verdade.

Se o acesso à verdade é também fornecido pela precisão do instrumento, ou seja, se o saber científico ganha uma materialidade instrumental, logo será ele a definir os novos estatutos das relações humanas. Vattimo (1996) aponta-nos que "A técnica em seu projeto global de concatenar tendencialmente todos os entes em vínculos causais previsíveis e domináveis, representa o desdobramento máximo do Humanismo." (p.28). O tecnicismo da sociedade moderna aponta para a realização factual dos antigos ideais de potência humana.

Do outro lado, voltando aqui à dicotomia instaurada, posicionam-se todos os não-cientistas. Não munidos dos procedimentos da razão, eles incorporam este saber na medida única da sua aplicabilidade. Equipados da crença de que a concretude da técnica fornece o acesso direto à verdade, que fora em outro lugar estabelecida, realizam-na como devotos.

O fazer científico logrou um lugar hegemônico na sociedade moderna. Diferente da constrição dos saberes que lhe eram anteriores, ele se abre à integração participativa dos mais diferentes estratos da sociedade mundial. Distinto tanto dos rigores intocáveis da teologia e dos mistérios insondáveis da divindade quanto da obliqüidade e do hermetismo da tradição filosófica, ele se institui como um saber de acesso possível, incorporado nas práticas cotidianas de quem deve, diretamente, lidar com ele. Porém, não seria esta acessibilidade parcial, na medida em que há um grande abismo entre aquele que faz uso do conhecimento operacionalizado e aquele que o cria enquanto conhecimento? Sim, sem dúvida. Mas, se a constrição do saber é retomada, pois a tarefa de produzi-lo é incumbência de um restrito número de indivíduos – os cientistas –, sua expansão é, também, permitida, já que inclui a operacionalização em larga escala que convoca o envolvimento de muitos. Aqueles que operam com o repertório técnico disponível, mesmo que alienados das fontes explicativas do seu surgimento, agem como meios de efetivação direta da experiência da verdade.

A assunção desta forma de pensamento inaugura um novo campo social. A incorporação da racionalidade técnica às mais diversas esferas do saber-fazer humano cria o espaço onde as atividades são legitimadas se, e somente se, obedecerem às aplicações dos princípios e leis gerais que governam todo e qualquer fenômeno. Ela se torna mediadora das nossas mais diversas relações, sejam elas com a natureza e meios de produção, sejam elas com os nossos pares também humanos.

Quais os impactos desta racionalidade técnica para as relações vinculares que unem, dentro das instituições escolares, o professor e o aluno?

A ciência, alargada pela acessibilidade em grande escala pelos instrumentais técnicos que produz, constitui-se em rico aparato que objetiva nortear as ações daqueles que os manuseiam. A realidade, agora conhecida nas suas leis intrínsecas, pode ser domada em proveito de um suposto humanismo progressista. Não há outra forma de extensão deste domínio do que a criação de instrumentos precisos que permitem uma operação capaz de alterar objetivamente o curso das coisas naturais ou humanas em proveito da realização de nossa potência. Contudo, aí se instala um sutil paradoxo: esta realização da potência humana passa indelevelmente por uma objetivação positiva dos fenômenos. Posto tudo em uma lógica causal, definida pela categoria de universalidade que acompanha o finalismo do conhecimento, apagam-se os espaços para as manifestações subjetivas. Em toda esta operação percebe-se uma elisão do sujeito.

Se a ciência moderna e a técnica a ela vinculada aumentam a capacidade de compreensão, domínio e intervenção no mundo das coisas, ela o faz à custa de um irrevogável silêncio. Baseada nas premissas de neutralidade objetiva, de finalismo universal, de arrolamentos causais irreversíveis, ela retira do sujeito sua enunciação. Desta forma, a neutralidade intimida a parcialidade; o finalismo universal sufoca a ciência do particular; a objetividade cala o subjectum. O discurso vinculado por esta ciência é de um Mestre que tudo responde. Sua tentativa é a de tampar todo o buraco, de possuir um conhecimento sem limites, ou, ao menos, limitado pela própria verdade do seu dizer: a palavra final.

Lacan, ao introduzir em O avesso da psicanálise a Teoria dos Discursos, ainda que aproxime o Discurso da Ciência do Discurso Universitário e, de certo modo, do Discurso da Histérica, não deixa de apontar, via saber, uma semelhança entre o Discurso do Mestre e o da Ciência. Para ele, a ciência, assentada no ideal da precisão matemática, representa o saber do mestre. Porém, a matemática só pode ser construída "a partir do fato de que o significante é capaz de significar a si mesmo." (Lacan, 1992, p. 85).

Esta posição não se sustenta, visto implicar numa violação à função do significante. "O significante é relação de diferenças: só há significante numa cadeia, e para que um sistema forme uma cadeia é preciso que seja constituído de significantes." (Milner, 1996, p. 84). Assim ele não tem propriedades que lhe são intrínsecas e idênticas a si mesmas. O significante cria suas propriedades; ele é a ação dentro de uma cadeia composta por outros significantes. Ora, a matemática implica uma infração à regra e, ao infringi-la, ela recalca aquilo que a determina. A ciência, ao excluir o sujeito de seus procedimentos "nada mais conhece dele a não ser sob a forma do que encontramos nas espécies do inconsciente, quer dizer, como resíduo desse saber, sob a forma de um saber disjunto." (Lacan, 1992, p. 86).

A difusão do Discurso da Ciência alcança, entre outras esferas, o universo escolar. Ele repercute neste espaço, produzindo o quadro específico de uma prática pedagógica metodicamente estruturada.

Na relação direta entre professor e aluno percebe-se a incorporação deste discurso. No entanto, a fórmula estabelecida não é tão direta como, de início, se supõe. Cola-se em demasia o professor ao lugar do mestre e o aluno à função silenciada de aprendiz. Aqui, apesar da definição dos lugares não ser incorreta, ela é simplista, porque a organização da estrutura orgânica das relações, subtrai o que, por estar fora dela, a dirige. O professor, enquanto portador de uma Verdade de Mestre, só se apresenta como uma caricatura deste papel. Ele é o veículo da aplicação de um método, legitimado em algum outro lugar, em que sua participação é quase nula. Não é sua função produzir intelectivamente aquilo de que vai se servir, mas sim, se apropriar de esquemas conceituais puros, testados nos padrões que lhes conferem a atribuição de universais absolutos, e, por conseguinte, aplicá-los como esquemas pedagógicos. Antes do submetimento do aluno ao professor, temos o professor como um primeiro discípulo – discípulo dos saberes das grandes obras às quais recorre para induzir sujeição. Próprio do Discurso Universitário, o professor é, antes, um subordinado aos auspícios de um saber (S2) que não falha. "O professor ou futuro professor nada mais é do que um técnico que deve aprender conhecimentos e desenvolver competências e atitudes adequadas à sua intervenção prática, apoiando-se no conhecimento que os cientistas básicos ou aplicados elaboram, ou seja, não necessita chegar ao conhecimento científico, mas dominar as rotinas de intervenção técnica que se derivam daquele." (Gómez, 1998, p. 353).

Devoto do saber universal, do alto de sua Eucracia, diria Lacan, o professor entranha sua função. Mas se ele assim o faz – agindo pela crença daquilo que distante dele fora produzido – seu exercício docente aponta para a incompreensão dos fundamentos racionais empregados para se estar neste lugar. Desatento às contingências dos processos educativos, o professor aposta numa utilização irrestrita do saber que lhe fora dado; saber assentado num caráter positivo de aplicação das leis fundamentais e que, conseqüentemente, rege sua ação.

Como resultado, observamos algumas dissociações surgidas e propagadas neste universo, como, por exemplo, os lugares dicotômicos de quem pensa versus quem executa, de quem teoriza versus quem pratica, de quem planeja e estrutura versus quem efetua cotidianamente as pré-posições formatadas.

Tem-se assim, que a primeira supressão realizada é a suspensão daquele que instrui do espaço de um livre exercício de instrução. O professor não se realiza como sujeito do seu ato, porquanto seu espaço de ação aparece crivado pelo conhecimento que lhe antecede e lhe confere as formas específicas de exercício funcional. A aplicação do apriorístico a toda e qualquer escola e para todo e qualquer aluno ganha justificativa no alicerce do conhecimento irrefutável que transcende os limites das diversidades particulares.

A absorção da ciência pela escola cria uma regra: todo professor é ali facilmente substituível por um outro professor. "O aumento do poder do sábio [professor] cuja tarefa é a transmissão; contanto que o indivíduo, instituído em meio a essa transmissão, assegure corretamente sua função, não será considerado como virtude nenhuma de suas capacidades pessoais, exceto aquelas que, por sua transparência e inocuidade, saberão não alterar seu funcionamento; ele é, por essa razão, facilmente substituível." (Milner, 1996, p. 102).

Mas, se na descrição desta operação, o professor é retirado do seu lugar de sujeito que enuncia o seu ato, por que, então, ele se agrega ao modelo que o submete?

Parece lacunar a compreensão desta aceitabilidade do professor à metodologia que lhe é estrangeira porque ele se aliena nela às expensas do que parece ser essencial a qualquer sujeito: a livre expressão da sua subjetividade. Deve, sobremaneira, haver uma explicação que torne plausível este acontecimento. Para se abrir mão do que é capital para um indivíduo, é necessária uma troca que lhe seja efetivamente, ou ao menos imaginariamente, alcatifada de um grande ganho.

Evidentemente, a explicação posta aqui é parcial. Ela apresenta apenas a faceta psíquica daqueles professores que se adequam ao saber que lhes é estrangeiro. Poderia-se estender o foco de análise, pensando, por exemplo, naqueles que rechaçam este saber, mas que por uma configuração política própria ao locus escolar são obrigados a aceitá-lo. Independentemente de uma coisa ou outra, pensa-se, de qualquer maneira, na hegemonia discursiva em questão (o Discurso da Ciência) que domina a organização dos espaços escolares.

A obediência ao método, que raramente parece ser contestada, denota, antes de qualquer opção conscienciosa, uma filiação inconsciente do professor à ciência de que se faz porta-voz. Esta obediência pode ser entendida, na medida em que a escolha pela submissão possui o ganho primário de revestir o sujeito docente de um saber sem furos, coadunado ao seu desejo narcísico de onipotência. A escolha estabelece um lugar ideal de acesso resoluto do sujeito à verdade, que se não foi por ele estabelecido, pode através dele ser vinculado. A imagem de pujança forjada pelo saber da ciência, saber de mestre que cala qualquer possibilidade argumentativa, assim pode ser encarnado na prática cotidiana. Ele confere uma roupagem de poder àquele que dele se utiliza. Ora, não é o desejo de força, presente numa fundação narcísica que marca a dinâmica das formações psíquicas, que é retomado? Somente a ilusão de envio do "agente" da educação ao lugar primitivo de satisfação do seu Ideal – o Ideal do Poder Total – pode ocasionar a troca que se faz. Abre-se mão das expressões pessoais para se tornar veículo do único saber (científico) que tudo pode autorizar.

Operando pelo quarto de giro, proposto na Teoria dos Discursos, Lacan explica, a partir do Discurso Universitário, o narcisismo que aqui se faz referência. O saber é "a dominante" deste discurso. Este saber, dentro da articulação discursiva, tem, como verdade que o determina (embaixo e à esquerda) o S1: o desejo velado de ser o mestre que tudo pode dominar. "O significante assim designado (S1), cujo sentido seria absoluto, é muito fácil de reconhecer, pois só há um que pode responder deste lugar – é o Eu.... O mito do Eu ideal, do Eu que domina, do Eu pelo qual alguma coisa é idêntica a si mesma, a saber, o enunciador, eis precisamente o que o discurso universitário não pode eliminar do lugar que se acha sua verdade." (Lacan, 1992, p. 58).

Desse modo, se o docente aceita tacitamente uma imposição de fora, é só para que ele justifique sua pretensão de domínio. Assim, ele imaginariamente colmata o abismo entre o precário de sua realidade e o ideal que lhe proporciona um traço da experiência de satisfação onipotente. Basta um relance ao cotidiano e percebe-se que não é raro se ouvir dizer, nas conversas diárias, como argumento último de uma discussão, que o que 'Eu' digo é certo porque tem o respaldo das descobertas científicas, divulgadas nesta ou naquela revista de grande respeitabilidade. Destarte, age nosso "professor", pois dá acento à força da sua prática e se regozija com ela, pela conquista do lugar que é suposto ocupar. Lugar este estatuído fora, mas ressonante na sua interioridade psíquica.

 

Do aluno

O aluno só aparece como um terceiro elemento deste eixo vincular – o primeiro é o Discurso da Ciência; o segundo é o professor. Se o professor desconhece o saber que antecipa sua função, o aluno, por sua vez, é desconhecedor do que antecede o estatuto daquele que lhe ensina. Seu lugar na instituição é mostrado como duplamente subjugado: ele é alienado na alienação do professor.

É a partir daqui que se pode entender o silêncio característico do papel discente no jogo formalizado do aprendizado escolar. As expressões singulares, produto das práticas individuais de cada sujeito, são descaracterizadas, visto que o fim almejado se encontra definido na largada do processo educativo. Trata-se, basicamente, da instalação conteudista de habilidades imprescindíveis à socialização; sendo que todo o método para o alcance desta pretensão já se encontra rigorosamente estabelecido.

Nota-se que as práticas pedagógicas são erigidas a partir de um esquema de relações já antevisto. O saber, enquanto produto eleito por uma "estrangeiridade" anterior às manifestações singulares do desejo, aparece sob o espectro de um imperativo de incorporação. Assim, o aluno é silenciado pelo silêncio do professor. O docente, crente no discurso científico e a ele ligado pelo lugar ideal que este lhe permite supostamente ocupar, ou seja, a revivescência daquele traço da experiência mnêmica de tudo poder dominar (onipotência), relega o próprio desejo. Em outros termos, secundariza-o. Para assumir o posto de agente da educação ele confia sua vontade aos desígnios de um Outro, desconhecido na sua corporalidade individual, mas reconhecido na sua função de mestria. Ora, desta maneira o educador tem justificada sua presença de autoridade plena diante do aluno. Por se referenciar na verdade, seu lugar é fortemente digno. Seu objetivo é retirar o que não sabe das trevas da sua ignorância e aprontá-lo para um encontro libertador com as luzes de um novo conhecimento.

O silêncio dos alunos é compreendido neste duplo aspecto; eles não possuem nenhum conhecimento formal relevante e nenhum metodismo técnico capaz de justificar sua voz.

 

Das falhas do Discurso do Mestre

Ainda não se esgotou a discussão sobre a incorporação do saber da ciência à escola tradicional. É digno de nota que, por mais avanços conseguidos no reino da ciência, parece haver no universo do que se coloca em causa, ou seja, no reino formal das causalidades, alguma claudicação.

O que se quer dizer, e aqui se faz sem mazelas, é que o discurso que se erige sem falhas, capaz de tudo portar, é um engodo, "malgrado as exceções à regra, parece-me correto dizer que o determinismo científico consegue, na maior parte das vezes, estabelecer a causa formal dos fenômenos sobre os quais ele se aplica. Os enunciados científicos estabelecem uma sintaxe do real que permite explicar como algo acontece segundo as leis regulares de sua produção. De uma maneira que, se num certo momento a causalidade parece inanalisável para Kant como problemática para o discurso da ciência, é porque aí se interroga não somente o como, mas pelo 'porquê' deste 'como' do qual o determinismo científico não pode decidir ... o discurso da ciência progride na medida em que seu agente não quer saber nada desta causa, pois ela implica sua própria posição subjetiva que este discurso exclui. O saber que a ciência constrói é assim produto de um desejo cuja causa se encontra excluída pela consideração científica." (Teixeira, 1999, pp.30-31).

O sujeito, forçosamente desmanchado para que surja o caráter derradeiro do saber completo, é silente apenas quando dele nos olvidamos. Este esquecimento é marcado por uma forclusão (Verwerfung). "O discurso da ciência rejeita a presença da Coisa, uma vez que em sua perspectiva se delineia o ideal do saber absoluto, isto é, de algo que estabelece, no entanto, a Coisa, não a levando em conta." (Lacan, 1991, p. 164).

O tempo em que a fronteira absoluta da verdade é alcançada, ou seja, em que o processo de procura é detido, já que o que se buscava foi completamente encontrado, está longe de ser o nosso.

Isto repercute no reino da técnica, que incorpora um saber-fazer sobre o mundo a partir da instrumentalização das descobertas realizadas por esta ciência. A noção defendida de progresso contínuo rumo a um fim perfeito e a conseqüente realização da potência da humanidade, idéias justificadoras da anulação do posicionamento subjetivo diante do que se visa produzir, são aqui postas em xeque. O saber de mestre da ciência, saber que tudo explica e, por isso, autoriza a prática, é o mesmo saber que é apresentado com suas fendas. Abre-se, nesta dimensão, um espaço interno para "aquilo que não se sabe", espaço este que, se confrontado com a realidade empírica, revela a proliferação sempre contínua do conhecimento e das formas de operação sobre o mundo.

"A história que, na visão cristã, se apresenta como a história da salvação tornou-se, primeiramente, busca de perfeição intramundana e, depois, progressivamente, história do progresso. Mas o ideal do progresso é vazio, seu valor final é o de realizar condições em que sempre seja possível um novo progresso."1 (Vattimo, 1996, pp. 12-13). Dizer da incapacidade do Mestre em revelar o que o sustenta, é destacar a primeira e mais importante defasagem do seu saber. O discurso científico se apresenta, logo de saída, alienado em sua própria fonte. Em seguida, o que observamos, é uma seriação contínua dos processos alienadores. Nesta medida, o professor se encontra alienado da alienação do Outro e o aluno, alienado na alienação da alienação do Outro. A esta sucessiva subordinação de desejos, o que se deve esperar é um forte rechaço às tentativas de pronunciamento autônomo dos sujeitos educadores e educandos. O constante sufocamento da vontade e a inibição do anúncio do desejo podem ter efeitos nefastos.

 

Retorno a Freud

O processo de ensino-aprendizagem, referido ao justo e bom desenvolvimento individual, requer, para o reconhecimento de seu sucesso, o alargamento das capacidades cognitivas e sociais dos educandos postos em jogo. Para tal fim, um metodismo rigoroso é colocado em cena; ele é um caminho seguro a ser seguido, pois é respaldado nos princípios não-falseados da razão que o fundamenta.

No entanto, parece que o purismo metódico, que encara os atores das práticas da educação formal como objetos abertos à instalação de conhecimentos previamente selecionados, é descompletado pelos acontecimentos próprios à relação empírica dos indivíduos da cena educativa. Desta maneira, algo do não-calculável se anuncia e, de alguma forma, dirige as condutas vinculares entre indivíduos. O algo que aqui se faz referência não é outra coisa senão a dinâmica de afetos e emoções inconscientes.

É Freud, no artigo intitulado Algumas reflexões sobre a psicologia escolar, que alerta para esta dimensão: "É difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. É verdade, no mínimo, que esta segunda preocupação constituía uma corrente oculta e constante em todos nós e, para muitos, os caminhos das ciências passavam apenas através de nossos professores. Alguns detiveram-se a meio caminho dessa estrada e para uns poucos – porque não admitir outros tantos? – ela foi por causa disso definitivamente bloqueada." (Freud, 1914/1996, p. 248).

Freud aponta que não é a importância da posse do saber, ao menos do saber disciplinar formalizado num currículo, o que garante a conformação do aluno às práticas de ensino. Não é a promessa de assunção das capacidades internas nem do desenvolvimento das habilidades imprescindíveis ao exercício da cidadania que sustenta o interesse do estudante pelo aprendizado. Apesar de estas diretrizes demarcarem a dimensão racional da exigência pelo conhecimento, o que nutre a relação é o que não é antevisto pelo método, ou seja, o que subjaz ao encontro do aluno com o professor.

A transferência, como fenômeno que baliza as relações vinculares, deve aqui ser realçada. A conexão entre aluno-professor e professor-aluno não é regulada por um planejamento antecipado que organiza o encontro entre sujeitos. O vínculo se dá, fazendo furo nas normas gerais que o estruturam, na imediatez do encontro. Ali, a revivescência de afetos positivos e/ou negativos, as identificações, as idealizações, os fantasmas ganham materialidade e passam a esculpir as modalidades de interação entre os agentes. "Não educamos com a teoria e sim com o que somos. Que significa isto? Que não se comanda o inconsciente, que não se pode ter domínio sobre os efeitos da influência exercida em outro ser, assim como não se domina o próprio inconsciente. Teoria pedagógica alguma permite calcular os efeitos dos métodos com que se opera, pois o que se interpõe entre a medida pedagógica e os resultados obtidos é o inconsciente do pedagogo e do educando." (Millot, 1987, pp. 149-150).

O conhecimento do fenômeno transferencial, que nos precipita na referência ao não- programado na relação pedagógica, aponta criticamente para o alcance restrito da ciência erigida nas premissas racionais que determinam o englobamento não contingente do ato educativo. Por mais que haja a necessidade do desenvolvimento de habilidades, e aqui não se pode negá-las, é impossível que o tecido da relação um-a-um se estabeleça a partir do atrelamento à noção de sujeito conceitualmente puro. Não há operação discursiva, mesmo aquela aludida à potência dos métodos da ciência, capaz de determinar, em absoluto, as mazelas constitutivas das relações de desejo que definem o encontro do sujeito com o Outro.

Destacar a transferência e os impulsos de desejo que modelam a relação vincular significa indagar sobre o silêncio dos agentes da educação (professor e aluno) diante da obediência que presumem dever à ciência que os regulamenta.

A transferência aponta para aquilo que se mostra lá onde "isso" não deveria se mostrar. Ela fura as imposições do método e revela o sujeito na relação com seu sintoma. O problema surge, numa dimensão ainda mais radical, quando há um esforço severamente maior por silenciar o que se esforça para encontrar brechas de escoamento (o desejo). É isso o que faz o "Discurso da Ciência"; atento apenas às suas exigências, como únicas verdadeiras, ele não só não se atenta como forclui aquilo que o desafia. Desta forma, as conseqüências surgem: vêem-se alunos marcados por um excesso de tentativas de colmatar a irrupção de qualquer falta; observam-se os bloqueados pela violência da palavra negada e outros tantos inibidos intelectualmente pelo não-reconhecimento de seus desejos ou esmagados pelas imperiosas demandas ditadas de fora. Temos professores perdidos e desestimulados de sua prática, pouco implicados com seu exercício profissional e, muitos deles, doentes.

A indução dos silêncios docente e discente não se faz, portanto, sem o preço nefasto das conseqüências que o método engendra.

O "Discurso da Ciência", inaugurador da modernidade e perpetuado na contemporaneidade, funda um tipo de laço social específico deste tempo. Ele tem repercussões diversas, e as tem, ainda mais, no interior das práticas escolares, exatamente porque, nesta nossa época, as escolas tomam para si a difícil tarefa de educar, isto é, formar seus alunos em todos os níveis de educação (da infância à idade adulta). O tipo de Discurso apontado implica numa configuração própria deste espaço que, elidindo o sujeito de seus procedimentos, ocasiona uma relação sintomática dos dois elementos vinculares da relação pedagógica, a saber, o professor e o aluno, no que concernem ao acesso ao primeiro elemento: o próprio Discurso da Ciência.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Lacan, J. (1991). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise, 1959-1960. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

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Millot, C. (1987). Freud antipedagogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

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Teixeira, A.M.R. (1999). O topos ético da psicanálise. Porto Alegre: EDIPUCRS.         [ Links ]

Vattimo, G. (1996). O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: marcelofgsouza@gmail.com
E-mail: mrp@fae.ufmg.br

Recebido em maio/2008.
Aceito em agosto/2008.

 

 

NOTA

1 Para aclaramento da proliferação contínua do saber da ciência, basta operar por um outro quarto de giro na estrutura dos discursos, e logo se está diante da denúncia histérica. Esta revela a insuficiência do Mestre para lhe dispor um saber completo. Nesta medida, um "saber mais e melhor" está sempre colocado como um horizonte movediço, em que se espera (vã esperança), num dia futuro, seu inteiro alcance.

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