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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.13 n.25 São Paulo dez. 2008

 

DOSSIÊ: ESCRITAS II

 

A função da escrita na psicose

 

The role of writing in psychosis

 

Función de la escritura en la psicosis

 

 

Sonia Borges

Docente da Universidade Veiga de Almeida (Rio de Janeiro), psicanalista da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, discuto a função da escrita na psicose. Tomo como referência textos produzidos por Pedro, por cerca de dez anos, numa Oficina de Escrita destinada a pacientes do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É mesmo emblemática a figura do louco com papéis debaixo do braço e não é difícil encontrar arquivos com seus escritos nos hospitais psiquiátricos, mas há pouca literatura a respeito. A participação na Oficina, assim como a leitura dos textos arquivados, vem me trazendo muitas questões. Afinal, o que é escrever para o psicótico?

Descritores: escrita; psicose; "metáfora delirante"; oficina terapêutica.


ABSTRACT

In this article, I discuss the role of writing in the psychosis. As a reference, I've taken texts produced by Pedro for about ten years in a Writing Workshop destined to patients of the Federal University of Rio de Janeiro's Psychiatry Institute. The figure of the insane person with papers under his arm is really emblematic and it's not difficult to find archives with its writings in the psychiatric hospitals, but, there is little literature concerning this. The participation in the Workshop, as well as the reading of the filed texts, has been bringing me many questions. After all, what does writing mean to a psychotic?

Index terms: writing; psychosis; "delirious metaphor"; therapeutical workshop.


RESUMEN

En ese artículo discuto la función de la escritura en la psicosis. He escogido como referencia los textos producidos por Pedro durante casi diez años en un Taller de Escritura para pacientes del Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ya es emblemática la figura del loco con sus papeles bajo el brazo y no es difícil el hallazgo de archivos con sus escritos en hospitales psiquiátricos, mientras sea poca la literatura sobre el tema. Muchas cuestiones se me han presentado por la participación en el taller y la lectura de los textos del archivo. ¿En fin de cuentas, que es escribir para el psicótico?

Palabras clave: escritura; psicosis; "metáfora delirante"; taller terapéutico.


 

 

"Nunca mais fui internado depois que comecei a freqüentar este Hospital. Já faz oito anos, acho que é porque faço tudo aqui de A a Z."
(Pedro, setembro de 2000)

 

Pedro – o nome é fictício – foi submetido a freqüentes internações dos dezoito aos trinta e três anos de idade, quando passou a freqüentar o Centro de Atendimento Diário do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nesse Centro, freqüenta oficinas de pintura, música, teatro, etc. É a essas oficinas que está se referindo quando diz fazer "tudo" ali "de A a Z", e que isso mudou a sua vida.

Discuto, aqui, algumas idéias que são fruto de uma pesquisa que venho desenvolvendo na Oficina de Escrita desse Centro1, onde Pedro produz textos há cerca de dez anos. É mesmo emblemática a figura do louco com papéis debaixo do braço e não é difícil encontrar seus escritos nos hospitais psiquiátricos, mas há pouca literatura a respeito. A participação na oficina, assim como a leitura dos textos arquivados, vem me trazendo muitas questões. Afinal, o que é escrever para o psicótico? Poderia ter efeitos de apaziguamento que decorreriam da intensificação de relações com a forma escrita da linguagem?

A Oficina começa pela leitura e discussão de texto literário, jornalístico, poético, etc. Passa-se, então, ao momento de escrever sobre o que se discutiu, ou sobre outro tema, se for essa a escolha dos participantes. Depois, cada um lê o que escreveu para que os outros comentem. Alguns participantes compartilham essa atividade há vários anos, como é o caso de Pedro. Tomo seu caso para refletir sobre as questões mencionadas.

Pedro tem quarenta anos, vive com a mãe, de quem diz que é tudo para ele. Do pai, diz que esteve sempre ausente. Ao completar dezoito anos, dois fatos novos ocorreram em sua vida: ficou sabendo da impossibilidade de realizar o seu sonho de vir a ser piloto, por ter um grave problema de visão e, pela primeira vez, teve um emprego. Nessa mesma época, teve o primeiro surto e a primeira internação.

É bem provável que o defrontar-se com o impedimento de realização de um ideal, assim como com o trabalho agindo como um chamado à significação, tenham provocado um abalo na sua relação dual, exclusiva, com a mãe; e, por não dispor ele mais dessa compensação imaginária, dessa "bengala imaginária", é possível que tenha se desencadeado o fenômeno psicótico. Este é efeito da emergência na realidade de um chamado ao Nome do Pai, que faz com que a estrutura do sujeito fique sem sustentação pela não integralização de determinado elemento. O Nome do Pai possibilita a emergência da significação fálica, permite ao sujeito dar significação a seus significantes, funcionando como "ponto de basta". Quando ocorre a sua foraclusão, como diz Quinet, "isso tem como conseqüência a dificuldade do sujeito de se situar no registro do simbólico, que é apreendido como totalidade sem furo, sem falta que se manifesta como um Outro que faz do sujeito um objeto ou o invade através de vozes alucinadas, em seu corpo, até o âmago do seu ser." (Quinet, 1997, p. 220)

Nos textos de Pedro, arquivados por quase dez anos, pude constatar a construção de uma "metáfora delirante", ou seja, um minucioso trabalho de reconstrução do universo que vai se dando de forma paulatina. Pedro conta a sua história com os "galenos", procurando convencer a todos, na Oficina, de que todo o universo está em jogo, sendo iminente a destruição da terra. Conta que ficou sabendo da existência dos "galenos", que são extraterrestres do mal, através de um aparelho receptor que lhe foi implantado pelo general Figueiredo e pelo SNI. Esse aparelho passa-lhe informações, ordens, e também transmite os seus pensamentos, pode até colocá-los na TV Globo. Foi através dele que, pela primeira vez, ouviu falar dos "galenos". Diz que são seres extremamente poderosos, possuem armas atômicas, naves e aviões de ultima geração, e visam apoderar-se de nossos minérios para, em seguida, destruir a terra, "megatonando-a com asteróides". "Eles têm a religião do mal", escreve num texto, "pensam que podem fazer as maiores vilanias entre nós. São covardes, é da natureza deles atacar planetas como o nosso e destruí-los". Essa informação lhe foi passada pelos extraterrestres do bem. Diz ainda, que, segundo o que lhe foi dito pelo general Figueiredo – também através do aparelho – só ele, Pedro, poderá impedir essa catástrofe, isso se transar com uma mulher da "raça dos galenos", uma mulher perfeita, a Galena. Se isso vier a acontecer, ele será o salvador da Terra e, portanto, de todos nós. Contudo, o SNI procura impedi-lo de encontrar-se com ela, causando-lhe enorme sofrimento: "Se eu não desvirginar a Galena, o planeta não tem futuro...", escreve, ainda que seus sentimentos sejam contraditórios, porque transar com a Galena significa também ser morto pelos "galenos", em conseqüência do ódio que isso geraria.

Pedro fala do seu sofrimento como insuportável, e quase suplica para que acreditemos no que conta. "Por favor, peço que vocês me contemplem ao menos com a dúvida, vocês todos serão destruídos..." insistiu um dia, ao começarmos a oficina. Muitos outros detalhes foram e vão sendo agregados aos seus textos. Por exemplo, considerase autor de todos os enredos dos grandes filmes de ficção científica. Diz que são partes da sua história com os "galenos", mas lhe foram roubados, e que "isso é do conhecimento da rede Globo".

Conforme a perspectiva lacaniana, o delírio tem como efeito a presentificação do gozo, ao mesmo tempo em que o barra. É uma construção do sujeito impregnada do gozo do Outro, mas que vem conferir uma significação que pode fazer suplência à significação fálica faltante.

Que papel teve a Oficina de Escrita na construção, por Pedro, da "metáfora delirante"? Teria sido lugar de facilitação dessa construção? Essa possibilidade teria sido aberta a Pedro pela intensificação das relações com a escrita que a Oficina promove?

Pensar sobre uma função terapêutica para a escrita faz pensar no mito de Theus, deus da escrita, relatado por Platão. Segundo o mito, a escrita seria phármakon, uma medicina, um remédio, traria a cura. Mas, Thamous, rei do Egito e de todos os deuses, a quem Theus oferece a escrita, recusa-a e, jogando com a ambigüidade da palavra, afirma que a escrita é phármakon, droga, perigosa, provoca a perda da memória, pois por sua própria essência é errante, irresponsável, parricida... Platão tende a apresentar a escrita, diz Derrida, em A farmácia de Platão (Derrida, 1991, p. 7), como uma potência oculta, suspeita, que se constituiria a partir das oposições bem/mal, verdadeiro/falso, essência/aparência, sensível/inteligível. "Errante, sem convicção, sem responsabilidade, parricida", é isso a escrita para Platão. Sua especificidade é não ter pai, diz Derrida. Estaria nisso a sua afinidade com o delírio? Uma e outro não se submeteriam à oposição clássica "dentro-fora", base de todas as outras citadas oposições que impregnam o pensamento clássico?

Sem pai, a escrita de Pedro corre atrás de um significante, para depois, sem convicção, abandoná-lo e recorrer a outro, depois a outro, até que venha à tona aquele que pode fazer suplência, que susta o descarrilamento significante pela produção de um sentido novo, estabelecendo uma ordenação do seu gozo e, assim, da realidade, do seu pensamento e de seu corpo. É pelo fato de habitar a linguagem que o homem pode dar à realidade, incluindo-se aí o seu corpo, uma forma una, ainda que ilusória. Ao abordar a clínica a partir das leis da linguagem, observa Quinet, "Lacan parte da estrutura da metáfora paterna, onde a metaforização do significante do Desejo da Mãe produz a significação fálica para definir o sintoma como metáfora, substituição significante, e conclui que a restauração da realidade na psicose é devida ao advento de uma metáfora delirante." (Quinet, 1997, p. 56)

A partir do que foi dito, pode-se pensar que a psicose é efeito da coincidência de dois furos em um só: por um lado, a elisão do imaginário em conseqüência de um evento de vida, necessidade de escolhas, etc. Por outro, a elisão pelo apelo em vão ao Nome-do-Pai. Desse furo único podem se desencadear dois tempos sucessivos: o da perplexidade e o da convicção, tomando de Philippe Julien (1999, p. 13) a terminologia. Para expor e comentar o caso, Julien toma como referência esses dois tempos.

 

Uma experiência de perplexidade

Pode-se pensar em um "tempo da perplexidade", no caso de Pedro, considerando-se o seu relato sobre o momento desencadeador da sua última internação; tempo que precede o "tempo da convicção", convicção da verdade das idéias delirantes que constrói. É interessante observar que no pequeno fenômeno que relata repete-se a temporalidade do delírio.

Pedro estava em um shopping center e esbarrou no braço de uma moça desconhecida. Foi, então, tomado por um sentimento de perplexidade em razão de não conseguir interpretar o ocorrido: "Que aconteceu? Que significa isso?". Conforme o seu relato, foi sendo invadido pelo pensamento de que passara a mão, não no braço, mas, na bunda da moça. É invadido por esses pensamentos, pela dúvida, pela perplexidade, que advêm tanto da impossibilidade de compreender, de interpretar o que acontecera, como do fato de poder compreender que não está compreendendo. Quase imediatamente, entra em extrema agitação, em surto, e ocorre a internação.

A psicose se declara assim: palavras ou pensamentos se impõem ao sujeito como vindas do exterior sob a forma de voz, como eco do pensamento, como enunciação de atos a cumprir ou como comentários destes. Como diz Collete Soler (1993, p. 54), a experiência de perplexidade nem sempre é veiculada especificamente por um significante alucinado. Ela pode se dar em relação a fenômenos do cotidiano, como me parece ter ocorrido nesse episódio relatado por Pedro.

A realidade é pulsional para todo falante. Mas a esquize do sujeito é particularmente desvelada na psicose. Pedro é invadido por um enigma, tocara no braço ou na bunda da moça? De onde vem isso? Quem? Por quê? Deslizamento metonímico? Despedaçamento do corpo? As pulsões invadem a realidade nas modalidades escópica ou invocante, olhar e voz a esburacam. No caso, provocam o deslizamento metonímico – do braço à bunda –, revelador da infinitização do sentido em que fica desnudada a esquize entre a realidade e o real.

A ausência do Nome-do-Pai, como suporte de todas as representações, tem como efeito essa dispersão nos significantes que corresponde à dispersão do gozo. Enquanto para o neurótico o corpo simboliza o Outro, para o psicótico o corpo é o Outro, sendo lugar de gozo sem mediação. Os significantes espalham-se pelo corpo, fazendo-o sem lei ou coordenação, por falta da mediação fálica. Como ensina Lacan, "é a falta do Nome-do-Pai que, pelo furo que abre no significado, atrai uma cascata de remanejamentos do significante de onde procede o desastre crescente do imaginário até que um nível seja atingido onde o significante e significado se estabeleçam na metáfora delirante." (Lacan, 1988a, p. 577)

Na esquizofrenia, ou, como se pode constatar, também no momento esquizofrênico da paranóia, que precede a construção da metáfora delirante, há a perda dessa unidade imaginária, há como que uma multiplicidade de S1, sem hierarquia. E lá onde deveria advir S2 como produto diferencial de repetição significante, tem-se em conjunto vazio (Quinet, 1997, p. 129). Para o neurótico, o Outro não goza por ser barrado pelo significante da castração – o Nome do Pai. Na psicose, como efeito da não inclusão da castração no Outro, o gozo presentifica-se nas alucinações, invade o sujeito, pois a suposição de que o Outro tudo sabe a seu respeito, é substituída pela certeza.

 

A experiência de convicção

Pedro escreve de A a Z, constrói, letra a letra, o seu universo e a sua relação com o Outro. Essa construção tem como objetivo dar uma resposta à experiência de perplexidade. A emergência do significante-Galena, no processo metaforonímico de construção do delírio, a meu ver, permitiu-lhe reordenar os seus investimentos libidinais, ainda que de forma delirante.

Para Freud, "o doente tirou das pessoas de seu meio e do mundo exterior em geral todo investimento libidinal nelas investido até ali. Tudo se lhe tornou indiferente e sem relação com ele; é por isso que lhe é necessário explicar o universo" (1911/ 1969, p. 77). Freud recusa-se a separar a experiência de perda da de retorno, considerando-as como efeito do que chama de distribuição da libido que, por sua vez, descreve como sendo um fenômeno de sentido. Também Lacan (1988), em O Seminário, livro 3, afirma a determinação da neurose e da psicose pelos fenômenos da linguagem ou, mais precisamente, que a condição do sujeito depende do que se desenrola no Outro. Isto é acentuado, particularmente, nos primeiros momentos do seu ensino sobre a psicose. Vê-se que ela é então construída como uma variante da neurose e pensada como déficit.

Nos textos iniciais de Pedro, a invasão do Outro presentifica-se pela implantação do "aparelho receptor" no seu intestino. Através desse aparelho, ele é injuriado, recebe ordens e ameaças. Que ordens? Delírio schreberiano: trata-se de salvar a Terra. O delírio confere significação às vozes. As vozes que ouve no aparelho têm o estatuto de objeto pulsional. Pedro sofre os efeitos da voz, as injunções do supereu, cuja voz atribui aos seus perseguidores, o SNI ou o General Figueiredo: "Figueiredo não queria que eu transasse com a Galena e me torturava mentalmente o dia inteiro!" A posição do sujeito na psicose é de objeto do gozo do Outro, de um Outro absoluto e despótico. Quinet observa que "um exemplo de suplência do Nome do Pai, utilizado pelos esquizofrênicos, é a Máquina que, por si só, constitui uma tentativa de delírio e que mostra bem como o corpo é lugar do Outro. O corpo se maquiniza, e é influenciado e comandado por um aparelho que o faz funcionar" (1997, 118).

O delírio tem efeito organizador. Pedro é como que pinçado e inserido na cadeia significante do seu delírio ao atribuir as vozes a um outro nomeável, ao General Figueiredo, ao SNI. Isso facilita que lhes dê sentido, ordenando o gozo e permitindo certo apaziguamento. Trata-se de dar consistência ao Outro, um nome àquele que goza dele.

Os significantes "aparelho receptor", general Figueiredo, S.N.I. não foram, entretanto, suficientes para a constituição da metáfora. Foi preciso recorrer a outros que, paulatinamente, vão emergindo em seus textos: "planeta Mercúrio", "extraterrestres do bem e do mal", "nave-mãe", até que o general Figueiredo lhe fale da "Galena". Mas, "Galena" veio a ser mais que um significante para alongar a história. "Galena" faz Um, é o significante que faltava, o "ponto de basta" articulador dos outros significantes.

Com o significante "Galena", ao lado dos sentimentos de perseguição e megalomania, evidencia-se a erotomania. Pedro passa a ocupar o lugar de objeto a, pois recebe como missão salvar a Terra, cuja destruição só poderá ser evitada se vier a transar com a "Galena". Da "raça dos galenos", ela é virgem, uma mulher ideal, linda, toda, e, para o seu espanto, estará disposta a trair o seu povo para transar com ele. Com a "Galena", o delírio produziu um substituto do falo, a Mulher. O delírio faz, assim, suplência a Édipo, e tem como efeito a restauração da realidade. Essa possibilidade é indicada por Lacan, quando desenvolve a teoria dos nós, ao considerar que, além da solução edipiana como amarração dos três registros, existem outras possibilidades.

Pedro ouviu o significante "Galena", assim como "galenos" nas vozes, através do "aparelho receptor". No "Aurélio", em "galeno" lê-se: médico grego, um dos fundadores da medicina; mas, também é possível encontrar "galena": aparelho receptor primitivo, colocado nos postes para receber mensagens. Um "aparelho receptor" dentro, no intestino, e outro fora. Ou, o de dentro, fora?

Pedro diz que já havia tomado purgante para expelir o "aparelho receptor". Seria possível pensar que evacuar o aparelho, lugar das vozes que provocam dispersão e sofrimento, seria uma tentativa de reunir os elementos de seu corpo e de seu mundo despedaçados? E que isso diria respeito à emergência do significante Galena? Conforme Quinet, "no ato de evacuar, há uma tentativa de Schreber de reunir os elementos de seu ser a nível do que sai do corpo, pois o excremento faria dessa forma a função de órgão separado do corpo, um órgão condensador de gozo que ao 'fazer', ele abandona" (1997, p. 71).

Na construção de Pedro, evacuado o receptor, o Outro despótico, do lado de fora, toma a forma da Galena, ocorrendo, nesse movimento, a instituição de uma ordem. A sua relação com a realidade e com os semelhantes torna-se possível, porque definida. Ainda que com muito sofrimento, passa a poder se movimentar na ordem simbólica pela subjetivação do papel de salvador do mundo; salvação que se efetivará quando, contornando as dificuldades, vier a transar com a "Galena".

"Galena" vem sustar a proliferação significante. Seria possível pensar que isso se dá pela significantização de Galena, por seu estatuto de letra, de lugar primário de precipitação de sentido? A estrutura imaginária teria se restaurado, pela via da produção de textos, com a construção dessa interpretação delirante? Como diz Quinet, "o significante foracluído retorna no real sob a forma de uma palavra. Ao estilhaçamento do gozo, se opõe o gozo do UM, do qual o paranóico toma parte como parceiro sexual" (1997, p. 63). Retorno sob a forma de uma palavra escrita? Sob a forma de letra, a letra-Galena retorna, é significantizada fazendo litoral, liteira para o gozo? A letra é imagem, é visual. O visual é corporal. A letra morde na carne, por isso o aparelho será phármacon? Quando no intestino, é droga perigosa, lugar das vozes e do Outro despótico, responsável pela dispersão e despedaçamento do gozo como efeito da falta do significante fálico. Quando fora, evacuado como "Galena", é cura, apaziguamento, porque condensador do gozo. "Galena" barra o Outro, delimita o gozo, tem efeito de Nome-do-Pai.

Vê-se que o aparelho receptor, assim como os raios divinos no caso Schreber, têm a particularidade de ser, ao mesmo tempo, linguagem e sexo, o que denota a relação de equivalência entre gozo e significante: o sujeito aparece como objeto a. Diferentemente do que ocorre na neurose, na psicose não há extração do objeto mais-de-gozar do campo do Outro. Isso acarreta a sua multiplicação e surgimento no real.

O texto psicótico é demasiado livre quanto ao sentido. A relação que se estabelece entre o aparelho receptor – o de dentro, o do intestino – e a Galena – o aparelho fora – não é meramente de ordem semântica. Nos seus textos, a metáfora delirante se cifra, é um fato de escrita. Significantes, suportados por letras, neles emergem isolados do seu valor de código, Galena vem a adquirir o estatuto de letra condensadora de gozo pelo valor que ocupa no jogo das substituições metonímicas. Assim, a foraclusão do Nome-do-Pai, como falha que condiciona a aparição do significante no real, não reduz a instância da significação, ao contrário, libera-a.

Como nos diz Colette Soller, a partir de RSI, o sintoma definido "como função da letra, na qual o gozo está em jogo sem Outro, não é tecido pela significação. Ele é resposta do real, mas não esgota a significação mais que qualquer outro significante no real, podendo-se, mesmo, dizer que a ela faz apelo, ou que a engendra" (1993, p. 56). E, ainda conforme Soler, "essa definição de sintoma é solidária do que Lacan ensina, naquele momento, sobre a autonomia do imaginário em relação ao simbólico, e sobre um simbólico que não é o da linguagem enquanto cadeias S1-S2 que geram ficções de significação, mas sobre um simbólico enquanto língua, (S1, S1, S1...) tal como os encontramos no nó borromeano" (1993, p. 54). Lacan refere-se ao delírio de Schreber, mencionando que ele é, ele próprio, a sua referência. Conforme Miller, "o sintoma não diz nada a ninguém: ele é cifra e é gozo puro de uma escrita. A construção do delírio deve tudo à letra, é construção da letra com a ajuda da letra, por isso sua compatibilidade com a ausência do Nome-do-Pai" (Miller, 1994, p. 4).

Lacan estabelece, ao final do Seminário RSI de 1974-1975, o estatuto do sintoma como um Nome-do-Pai ligado ao simbólico, constituindo um círculo com o inconsciente. Mas, no caso da foraclusão do Nome-do-Pai, como o sujeito vai sustentar um pai? Com o delírio, que pode ser construído tendo como suporte qualquer significante que apresente o estatuto de S1 que funcione como letra condensadora de gozo. Dessa forma, "neurótico e psicótico se equiparam, enquanto o primeiro encontra em Édipo seu sintoma, o segundo constrói um sintoma novo, uma teoria, arte, no caso de Joyce, uma relação com a escrita" (Quinet, 1997, p. 49).

O delírio corresponde ao sintoma na psicose, e é uma tentativa de cura, pois traz um apaziguamento patente do gozo sem limites ao qual o sujeito está submetido. Exerce a função de barrá-lo, delimitá-lo pela reconstrução da realidade, ainda que esta seja, forçosamente, distinta da realidade comandada pelo Nome-do-Pai. É preciso observar que essa polaridade do sujeito – significante e gozo – é encontrada nos dois campos. Para o neurótico, o Outro não goza por ser barrado pelo significante da castração – o Nome-do-Pai. Na medida em que é barrado, extrai-se algo que condensa o gozo fora do corpo, o objeto a. O psicótico não está fora da linguagem, mas em decorrência da foraclusão do Nome-do-Pai, sua relação com o significante é problemática e, em conseqüência, ele se encontra submetido a um gozo sem barreiras, colocando-se ele próprio como objeto a do gozo do Outro.

Nos textos de Pedro, de A a Z, a escrita da metáfora. Escrever supõe o gesto de tomar a folha em branco e traçar letras-imagens, de modo a instaurar-se ali a dialética essencial do objeto. Esse gesto implica todo o corpo, posicionamento da espádua, braços, mãos, punhos, dedos... olhar e voz. O corpo tensiona-se para o ato impressor que suporta a articulação entre representação-coisa, representação gráfica, fonemática, gramatical e semântica: articulação que instaura a letra e a lei. Penso que é esse gesto de separação-objetivação, exigido pelo traçar as letras na constituição da escrita, que abre a possibilidade para que a metáfora delirante se deposite no papel com o estatuto de um precipitado de gozo e significante.

A Oficina não poderia ter efeitos de apaziguamento, também por propiciar, aos que a freqüentam, o gesto de submeter a sua escrita à apreciação dos colegas? No caso de Pedro, inclusive, convocando-os a tomar sua parte de responsabilidade no que vai ocorrer com a Terra? Isto não poderia ser visto como uma passagem ao outro que teria a eficácia de publicação e, portanto, de reconhecimento de sujeito? À semelhança do que ocorreu com Joyce e Schreber, que se estabilizaram com a elaboração e publicação de sua obra, não se poderia ver, ai, "uma quebra dos limites entre o psíquico e o social que seria uma forma de compensação, de suplência para a estrutura psicótica", usando os termos de P. Julien? Também segundo esse autor, "a desqualificação da vida privada, tão impressionante nos psicóticos, não é um déficit, mas, um apelo a uma inserção social bem sucedida, onde o nome próprio jamais seja reduzido a um nome comum" (Julien, 1999, p. 57).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
E-mail: sxborges@uol.com.br

Recebido em junho/2008
Aceito em agosto/2008

 

 

NOTA

1 A Oficina de Escrita é coordenada por Eliúd Guerreiro, e a pesquisa vem sendo desenvolvida a convite da Drª. Ana Cristina Figueiredo, Diretora de Ensino do Instituto.

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