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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.13 n.25 São Paulo dez. 2008

 

DOSSIÊ: ESCRITAS II

 

A letra na ciência e na psicanálise

 

The letter in science and in psychoanalysis

 

La letra en la ciencia y en el psicoanálisis

 

 

Luciano Elia

Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, psicanalista, membro do Laço Analítico Escola de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo discute o estatuto da letra e da literalização na Psicanálise e na Ciência Moderna. Afirma-se a estrita filiação da Psicanálise à Ciência, e interroga-se o que faz com que a Ciência literalize seu campo de modo direto e imediato, enquanto a Psicanálise precisa recorrer a um percurso (dito "ex-curso" no artigo) pelo campo da fala, da palavra falada e do significante como condição metodológica exigível de sua experiência. Faz-se então a suposição de que a inclusão do sujeito (efeito da Linguagem e causado pelo significante) no campo operatório da Psicanálise é a causa do modo não-direto e não-imediato pelo qual a letra faz sua incidência na experiência psicanalítica.

Descritores: letra; psicanálise; ciência; significante; sujeito.


ABSTRACT

The aim of this paper is to discuss the status of the letter and literalization in psychoanalysis and in modern science. Our statement is that there is a strict filiation of psychoanalysis at science, and we ask what makes possible that science literalizes its field directly and immediately, while psychoanalysis needs to pass by other ways (named "ex-ways" in this paper) in the field of speaking and of the significant as a required methodological condition of its experience. We suppose that the inclusion of the subject (effect of Language and caused by the significant) in the operatory field of psychoanalysis is the reason of the indirect and mediate way in which the letter operates in the psychoanalytical experience.

Index terms: letter; psychoanalysis; science; significant; subject.


RESUMEN

Esto artículo trata del estatuto de la letra y de la literalización en el psicoanálisis y en la ciencia moderna. Afirmamos la estricta filiación del psicoanálisis à la ciencia, y interrogamos lo que hace posible a la ciencia literalizar de un modo directo y inmediato su campo, mientras que el psicoanálisis debe recurrir a un precurso (dicho "ex-curso" en el artigo) por lo campo de la palabra hablada y del significante como una condición metodológica exigible de su experiencia. Hacemos la suposición de que la inclusión del sujeto (efecto del Lenguaje y causado por el significante) en el campo operatorio del psicoanálisis es la causa del modo indirecto y mediatizado por el cuál la letra hace su incidencia en la experiencia psicoanalítica.

Palabras clave: letra; psicoanálisis; ciencia; significante; sujeto.


 

 

1. A letra e a ciência

Segundo leitura que Jean-Claude Milner desenvolve em sua belíssima L'oeuvre claire (Milner, 1995), Lacan foi levado a elaborar o que esse autor denomina o "Doutrinal de Ciência". O Doutrinal não é exatamente uma epistemologia, porque não se situa em posição de exterioridade em relação às ciências, mas constitui, antes, um lugar discursivo que só é possível no interior do discurso psicanalítico, a partir do qual permite uma análise do surgimento da ciência em suas relações com a categoria de sujeito.

Poderíamos assim dizer que o Doutrinal se impôs a Lacan por força de seu ensino, especialmente de suas elaborações sobre as categorias de sujeito, estrutura e discurso. De tais categorias, não podemos dizer que admitam os atributos binários e muitas vezes opostos de "teóricas" e/ou "clínicas", posto que o discurso psicanalítico recorta um campo da experiência no qual o saber é elemento estruturante e não um modo de apreensão exterior à experiência que se exerceria sobre ela. Assim, se são elaborações psicanalíticas, elas não serão nem teóricas nem clínicas nominativa ou excludentemente. Por isso, um escrito com o título La science et la vérité (Lacan, 1966a), que sugere que seu autor tratará de um tema demasiado teórico, ou até "metateórico", filosófico ou epistemológico (pela vocação epistemológica que as palavras ciência e verdade carreiam), é capaz de surpreender, logo na primeira linha, o seu leitor atento, ao começar a escrita perguntando: "O estatuto de sujeito na psicanálise, será que podemos dizer que no ano passado nós o fundamos?" para imediatamente responder: "O que chegamos a fazer foi estabelecer uma estrutura que dá conta do estado de fenda, de Spaltung, em que o psicanalista o situa em sua práxis" (p. 855, itálicos do autor, tradução nossa). O texto começa, assim, pela práxis, pelo modo como o analista nela encontra o "seu" sujeito, o sujeito da psicanálise, e afirma ainda que há uma estrutura que dá conta disso.

Em que sentido as elaborações lacanianas sobre essas categorias ter-lhe-iam imposto o Doutrinal? Foi por se colocar questões sobre as conexões psicanálise-ciência-filosofia que Lacan foi levado a desenvolver o Doutrinal? Não. O que verificamos é que essa exigência chegou-lhe pela práxis, pelo exercício da clínica da psicanálise. Que sujeito é esse de que se trata na experiência de uma análise? Como terá ele se constituído? Como é que ele refaz, de modo inédito, sua própria constituição na própria análise? Essas questões levaram Lacan a interrogar o estatuto da psicanálise no campo dos saberes e práticas, e a encontrar, no curso histórico do pensamento, um momento muito peculiar que ele demonstra ser o da emergência do sujeito. Esse momento, ele o situa como o "correlato essencial da ciência: um momento historicamente definido, do qual talvez tenhamos que verificar se ele é estritamente situável na experiência, aquele que Descartes inaugura e que se chama o cogito" (1966, p. 856, itálico do autor, tradução nossa). O momento inaugurado por Descartes sob o nome de cogito é o correlato essencial da ciência moderna, e é um momento muito particular de emergência do sujeito.

Seguindo os passos de Alexandre Koyré, que demarca a incidência de um corte – não qualquer corte, não um mero "corte epistemológico" no sentido bachelardiano, mas um corte maior, divisor de águas entre o Mundo Antigo e o Mundo Moderno – Lacan situa a emergência do sujeito na aurora da era moderna, condição histórica do advento da própria Ciência, como ciência e como moderna – única condição em que ela poderia constituir-se como ciência. O título do livro de Koyré é tão belo quanto eloqüente a esse respeito: Do mundo fechado ao universo infinito (Koyré, 2006). A ciência, como ciência e como moderna, só poderia habitar um universo infinito.

A originalidade e o ineditismo da leitura de Lacan consiste não na afirmação do surgimento da ciência como moderna por estrutura e constituição (posto que essa é precisamente a tese de Koyré), mas na formulação de que o sujeito, homologamente, também só poderia constituir-se como sujeito e como moderno na condição de um correlato essencial da ciência, daí sua particularíssima leitura do passo cartesiano que inaugura o cogito, primeiro nome do sujeito moderno. Nenhum filósofo ou epistemólogo, nem mesmo Koyré, chegou a formular essa tese, que é lacaniana de pleno direito – mas, sem Koyré, Lacan não poderia tê-la formulado. E o sujeito de que Lacan está falando não é outro senão o sujeito do inconsciente, o sujeito da Psicanálise, como se lê na sempre surpreendente frase de Lacan: "o sujeito sobre o qual operamos em psicanálise não pode ser outro senão o sujeito da ciência" (Lacan, 1966, p. 858, tradução nossa). A frase, espantosa à primeira vista, revela-se pouco a pouco cristalina: O seu primeiro fragmento – o sujeito sobre o qual operamos em psicanálise – afirma que a psicanálise opera sobre um sujeito (e não sobre um eu, um indivíduo, um organismo, um doente mental, uma doença mental, uma pessoa humana, etc.). Esse mesmo fragmento não diz que a ciência opera sobre um sujeito. Aliás, nada diz sobre as operações da ciência. O segundo e último fragmento da frase diz que esse sujeito – repitamos, sobre o qual operamos em psicanálise – não pode ser outro senão o sujeito da ciência. O sujeito é o mesmo, não pode ser outro, mas a operação não. A psicanálise opera sobre ele, a ciência, cujo correlato essencial é o momento de emergência do sujeito (tese do Doutrinal), o cogito, em Descartes, no entanto, não opera sobre ele, não constitui a "outra cena", o lugar – outro – no qual o sujeito possa habitar (ein anderer Schauplatz, na expressão de Fechner adotada por Freud para designar a cena do inconsciente, única em que o sujeito pode estar).

Na verdade, a ciência faz uma operação com o sujeito que lhe é coemergente sim, ela o foraclui, exerce sobre ele uma foraclusão – mecanismo próprio à psicose, tradução teórica dada por Lacan à Verwerfung freudiana, que significa rejeição, exclusão para fora (foraclusão) de determinado campo, de determinada cena. A Psicanálise não virá a contrapor-se à ciência em sua démarche metodológica, discursiva. Ela seguirá os trilhos estabelecidos pela ciência clássica. Mas ela o fará de modo a operar sobre o sujeito, e é nisso que reside a sua subversão em relação ao estatuto (foracluído) do sujeito da ciência. De linhagem, filiação e procedência estritamente científicas, a psicanálise representa, contudo, a subversão da ciência, do sujeito da ciência, e é por isso que ela concebe o sujeito como sujeito do inconsciente, única condição em que a operação com e sobre ele se torna possível através de um dispositivo – a techné – artefato técnico criado por toda práxis de orientação científica para efetuar as operações formuladas por seu campo respectivo de saber – a thêoria.

Estritamente dentro dos parâmetros metodológicos da ciência, Freud criou um dispositivo – o da associação livre, sua techné, sua regra fundamental, a Grundregel, como única forma de aceder ao campo de sua investigação e de sua clínica – as duas juntas, pois, como em seu dizer, investigação e tratamento coincidem (Freud, 1912/1969a, p. 152). Através desse dispositivo, a palavra deve ser usada de modo a ficar desprovida de todos os seus atributos significativos, sua carga de valor, seu sentido compartilhado socialmente, sua intenção comunicacional. Tudo que vier à palavra do sujeito deve ser dito, e as considerações subjetivas conscientes que acompanharem essas ocorrências, as preferências, a seleção, o incômodo, o pudor e a vergonha devem ceder a essa exigência, sendo acrescentado explicitamente por Freud que a intensificação da incidência desses fatores deve ser tomada pelo sujeito como uma razão a mais para falar, já que constitui um importante indicador de aproximação do inconsciente. Voltaremos a este ponto na seção final do presente artigo, na sustentação da hipótese que ali fazemos.

Vemos que, se Freud privilegia a palavra – utilizada, porém, de modo a-semântico, não significativo e não valorativo e não intelectual (ainda que críticos desavisados e pouco rigorosos insistam em afirmar que a psicanálise é demasiado "verbal" e "racional", conferindo pouco valor ao corpo, ao afeto, etc.) – como único modo fidedigno de aceder ao inconsciente, é porque supõe ao inconsciente uma estrutura de linguagem. É esse o fundamento freudiano da conhecida formulação lacaniana: o inconsciente é estruturado como uma linguagem. E o que esse uso muito particular da palavra produz, aquilo a que ele conduz senão ao aparecimento da transferência como realização em ato do inconsciente, presentificação real que exige um modo de tratar inteiramente inconcebível em termos de técnica, de previsão, requerendo a denominação de manejo (Handlung) e merecendo de Freud a consideração de que constitui a única dificuldade realmente séria do trabalho psicanalítico? Aí está: um dispositivo que produz um recorte do real sobre o qual se pode operar, mas de modo peculiar, próprio, específico e correspondente ao campo da experiência e seus modos igualmente específicos de constituição. É esse o fundamento científico da Psicanálise, mas também o ponto em que a Psicanálise subverte, rompe, ultrapassa o procedimento científico.

Estaríamos com isso dizendo que a Psicanálise é superior à Ciência? De modo algum, e o que efetivamente sustentamos é que é por ter seguido estrita, e diríamos até mesmo obstinadamente os preceitos metodológicos da ciência, aplicados, contudo, a um novo recorte do real, a um campo de fenômenos até então inabordados, que insistiam em dar sinais daquilo que a ciência precisamente constituiu foraclusivamente e sobre o que jamais havia operado – o sujeito – é que Freud foi levado a criar a Psicanálise. Estamos com isso dizendo que, se a Psicanálise opera em relação à Ciência um corte, uma subversão, uma descontinuidade, é por força de sua obediência estrita, apaixonada e obstinada às exigências de rigor científico, e não pelo exercício da livre crítica, da polêmica epistemológica, do gosto pelo que seria simplesmente diverso ou alternativo à ciência, como algumas vertentes da Filosofia se comprazem – aliás, com todo o direito – em fazer. Apenas queremos consignar, do modo mais claro possível (sim, porque isso não é uma afirmação de consenso, nem mesmo uma formulação trivial, sendo muito mais freqüente encontrarmos na literatura e na comunidade psicanalíticas a idéia de que a Psicanálise tem vocação diversa da ciência e rompe com ela), que o caminho da psicanálise é científico em toda a sua extensão e em todos os seus princípios, e que se esse caminho levou a Psicanálise a um destino situado fora do campo científico foi exatamente por fidelidade – e não por infidelidade – a esse campo.

Assim, a Ciência, como discurso e como procedimento introduzido no mundo no alvorecer da era moderna, com Galileu Galilei – e, portanto, a Ciência como ciência e como moderna – caracteriza-se pela mais estrita exigência de literalização. Não há ciência que não seja literalizada, que não recorra à letra como modo de formalização e matematização dos seus conceitos. Toda ciência é ciência de um recorte do mundo empírico, mas só se constitui efetivamente como uma ciência se o seu modo de tratar esse recorte consistir na sua matematização, na sua formalização em letras com as quais a ciência possa operar, e só a partir dessas operações literais atuar sobre o recorte do real considerado. Para isso, é exigível de toda ciência que ela proceda a uma redução, "às vezes longa para realizarse, mas sempre decisiva no nascimento de uma ciência: redução que constitui propriamente seu objeto" (Lacan, 1966a, p. 855, tradução nossa).

Verifica-se facilmente também que a ciência procede à metematização-literalização de seu objeto empírico imediatamente, ou seja, sem a exigência da intervenção de mediações. Tão logo o recorte é delineado, o objeto de uma ciência particular é delimitado, o processo formal que conduz à literalização matematizante se inicia: os axiomas são formulados, os conceitos são cifrados em letras (entre as quais incluímos os números) as deduções são feitas, relações são estabelecidas e formuladas em termos literais permitindo a escrita de equações e cálculos diversos que, uma vez resolvidos por operações matemáticas, produzem resultados que norteiam a aplicação de modos de intervenção no real que chamamos de tecnologias.

O que permite à Ciência formalizar seu objeto empírico, matematizálo, literalizá-lo, tão imediatamente, tão diretamente, como ela o faz? Como é que a Psicanálise, que – como demonstramos na primeira parte do presente escrito – é tão estritamente derivada da ciência procede em relação à literalização?

Para responder a essas perguntas que constituem o mote do presente artigo, passamos a considerar o estatuto da letra na Psicanálise, sempre mantendo nossa atenção às possíveis articulações desse estatuto com aquele que a letra detém na ciência.

 

2. A letra na psicanálise

Uma apreensão do ensino de Lacan em seu conjunto, e que tome em conta o movimento e a direção que ele tomou no seu percurso, mostra que a literalização é uma das principais vicissitudes desse ensino. Entretanto, se essa vicissitude já se inscrevia no ensino de Lacan desde o seu início, é só em seu final que ela é efetivamente cumprida. No início era o significante, podemos dizer, não utilizando tais ecos bíblicos para nos referir à origem dos tempos, do mundo ou da criação, mas para aplicá-lo a coisa bem mais singela: ao primeiro momento do ensino de Lacan.

Notemos que, mesmo reconhecendo o monumental empreendimento de Lacan para livrar a psicanálise do reducionismo biomédico e bio-psicológico que a vinha assolando, através da insistência na Ordem Simbólica, na categoria de Outro como lugar da linguagem e do significante (mas também lugar da Lei, pela introdução do Nome-do-pai), não é da letra, como operadora do ato da escrita, que se trata neste momento, mas da primazia do significante. Ora, o significante (diferenciá-lo de Saussure) está relacionado ao plano da palavra, da palavra ouvida, da experiência, enfim, da fala no sujeito. O significante é detectável no que se diz. E o que se diz não é idêntico a si mesmo, jamais diz o todo daquilo que o sujeito experimenta como anseio de dizer, é equívoco, no sentido de que sempre pode dizer outra coisa diferente do que se ouve, enfim, no dizer de Lacan: o significante se ouve, mas isso não tem nada a ver com o que isso significa.

Assim, mesmo em um texto intitulado L'instance de la lettre dans l'inconscient ou la raison depuis Freud (Lacan, 1966b) podemos dizer que é do significante que se trata. Embora Lacan refira-se textualmente à letra como tal, e demonstre, por exemplo, no texto freudiano sobre os sonhos, que as condições de incidência de imagens nos sonhos não devam ser tomadas em seu estatuto imaginário, mas que se submetam às restrições de um sistema de escrita (portanto simbólico), ele não dá ainda à escrita, nesse momento de seu ensino, o estatuto que ela terá em um momento posterior.

Podemos, em outro plano, afirmar uma homologia estrutural entre Lacan e Freud, entre os percursos que suas respectivas obras tomaram. Por homologia estrutural queremos exprimir uma particularidade metodológica da Psicanálise, que consiste em fazer uma mesma espécie de imposição do real a cada um desses dois grandes autores do campo que responde pelo nome de Psicanálise: aquele que fundou esse campo e aquele que, retornando ao eixo estabelecido pelo primeiro, e que vinha se extraviando na mão de seus sucessores imediatos, restabeleceu seu rigor, reinventando-o – nem um nem outro pôde ser poupado de cumprir certo circuito de saber, constituído, nos dois casos, por dois pilares, dois momentos, duas "tópicas" (como ficaram conhecidos esses dois momentos, em Freud), dois "classicismos" (como ficaram conhecidos em Lacan).

Denominaremos dois paradigmas esses dois momentos de cada uma dessas duas grandes obras da Psicanálise. Os dois paradigmas de cada uma guardam alguns pontos homólogos entre si: o primeiro momento tem, nos dois casos, uma prevalência simbólica, um predomínio da função da palavra, operada como agente primordial da reconstrução histórica da verdade do desejo do sujeito. O primeiro paradigma, em Freud e em Lacan, desconsidera, cada um a seu modo, o impossível da empreitada que propõem, e é esse impossível, situável no cerne da empreitada mesma que cada um propõe, que constituirá o ponto de desconstrução do primeiro paradigma, engendrando o segundo. E o segundo paradigma, engendrado pela inclusão do impossível do primeiro, dá, portanto, lugar a ele, e, nesse sentido, pode-se dizer que os segundos paradigmas – tanto o de Freud quanto o de Lacan – exibem uma prevalência do real, do que não é alcançável pela palavra, ex-siste a ela, mas que pode ser cernido pela letra, pela escrita.

É igualmente curioso que, também para cada um deles, essa dimensão do real impossível de dizer – indizível, pois – já estivesse indicada desde o início. O que equivale a dizer que aquilo que, no tempo de compreender de cada um (as elaborações e reviravoltas teóricas empreendidas por Freud ao longo de sua obra, e os cortes e viradas discursivas de Lacan ao longo de seus 27 seminários, por exemplo), incidiu como fator determinante de suas guinadas teórico-discursivas, levando ao momento de concluir de cada uma dessas obras, já se fazia ver no instante de olhar que tragou cada um deles para dentro do buraco negro da Psicanálise, no qual eles foram capazes de acender luminosas lanternas.

O que já era visível em cada início (ou seja, no início e no reinício) não pôde economizar a elaboração que, no meio do caminho, como mediação necessária e exigível pelo real do campo mesmo da experiência, conduziu, ao seu final, à formalização do já-visto inicial, mas em lugar inteiramente diverso daquele, inapreensível à formalização, em que incidia, no início, esse real.

Pois bem: interpusemos essas considerações concernindo à homologia estrutural da imposição do real feita a Freud e a Lacan pelo campo em que eles escolheram trabalhar para articulá-la à nossa questão central neste escrito: qual o estatuto da literalização na psicanálise? Que diferenças existem entre esse estatuto e o da literalização científica? Por que a psicanálise não pôde e não pode literalizar direta e imediatamente o "objeto" constitutivo do campo de sua experiência?

Para começarmos a construir as respostas a essas perguntas, tratemos logo de estabelecer as condições de definição desse "objeto" da psicanálise. Podemos dizer que o objeto da psicanálise é o sujeito do inconsciente, ou o próprio inconsciente? Mas nomear o sujeito como objeto específico da psicanálise, como o objeto da ciência no caso particular da psicanálise, tomando a categoria de "objeto" como designativa de um referente neutro – aquilo de que um determinado saber trata – e não de algo substancial e qualificado em sua natureza ou no estatuto de seu conteúdo significativo, enfim, essa démarche não incorreria na desconsideração das diferenças entre o ato de situar o sujeito como referente, baliza absoluta (repère absolu, como propõe Milner, 1995) da psicanálise, e das conseqüências que traz para um campo de saber situar, no seu cerne, o sujeito, fazendo da psicanálise uma ciência equiparada a qualquer outra, uma ciência de um particular especificado (no caso, o sujeito)? Se é verdade que A Ciência, no sentido moderno, especifica um modo de constituição do sujeito (essa é a tese central do Doutrinal de Ciência, a que nos referimos anteriormente), que Lacan situa no Cogito cartesiano, não é também verdade que ela o excluiu de seu campo operatório, o que faz com que qualquer ciência de qualquer particular se defina e se sustente pela exclusão do sujeito? Como seria possível, então, que um campo de saber e de experiência que, embora derivado em todos os pontos desse momentoso passo inaugural que é a Ciência Moderna (inclusive no ponto íntimo em que esse advento institui o sujeito que, no mesmo golpe, excluiu de seu campo operatório), define-se no entanto pela inclusão do sujeito no cerne de sua experiência, opera sobre esse sujeito, possa equiparar-se às demais ciências que justamente se definem por excluí-lo e por não operar sobre esse sujeito?

Retomemos o escrito La science et la vérité, com o qual já trabalhamos na primeira seção do presente artigo, em que examinamos o Doutrinal de ciência de Lacan. Nesse escrito, Lacan afirma que o sujeito encontra-se "em exclusão interna ao seu objeto" (Lacan, 1966a, p. 861, tradução nossa), que é ali definido como o objeto a. O objeto a é uma categoria demasiado complexa para ser aqui apresentada de modo inteligível a quem não esteja familiarizado com o ensino de Lacan. Entretanto, como não podemos a ela não nos referir, e como não queremos deixar que nossos leitores eventualmente leigos nesse ensino sejam aqui desconsiderados, diremos que o objeto a é o objeto na medida em que destacado simultaneamente do campo do Outro e do corpo do sujeito (o seio da mãe, as fezes, o pênis, enquanto objetos radicalmente perdidos) e que, na condição de destacado e perdido, cria, para o sujeito, o fundamento de toda objetividade possível, ou seja, a condição mesma de possibilidade de que o sujeito venha a ter objetos consistentes, imaginarizados (dotados de matéria e imagem), palpáveis. Por isso Lacan (2004) diz, em outro lugar, que o objeto a é o fundamento não objetivável [ele próprio não tem consistência nem imagem] de toda objetividade possível.

O objeto a é um objeto fora do espaço e do tempo, sem imagem, e é, por esse motivo, precisamente o modus do objeto que convém ao sujeito, que se ajusta ao conceito mesmo de sujeito. Esse objeto funda, a partir do próprio sujeito (na medida em que se destaca dele), o campo da realidade em que todos os objetos possíveis, encontráveis, dispor-se-ão para o sujeito em sua vida. Ora, um objeto desse estatuto não é da mesma ordem do objeto de cada uma e de toda ciência. Lacan (1966a, p. 863, tradução nossa), então, afirma: "O objeto da psicanálise ... não é outra coisa senão o que avancei sobre a função que nela desempenha o objeto a.". E se pergunta, em seguida, em uma questão que decorre imediatamente desta afirmação: "O saber sobre o objeto a seria então a ciência da psicanálise?" E responde: "Esta é muito precisamente a fórmula que é preciso evitar, posto que este objeto a deve ser inserido ... na divisão do sujeito pela qual estrutura-se muito especialmente ... o campo psicanalítico". Conclui-se, pois, que o objeto a não é o objeto da psicanálise, mas sua função de divisão do sujeito constitui, ela sim, o objeto da psicanálise.

 

3. A fala entre "duas" letras

Nossa suposição pode ser agora enunciada: a psicanálise, integralmente derivada da ciência, faz, contudo, em relação a ela, uma subversão que consiste em trazer para a cena operacional o sujeito cujo modo de constituição a própria ciência determina, mas exclui de seu campo operatório. Ao fazer isso, a psicanálise paga, por assim dizer, um preço ao real, que consiste em não poder simbolizar diretamente seu modo de operar sobre esse mesmo real. A psicanálise não pode literalizar direta e imediatamente seu campo, suas operações, seus conceitos, porque eles trazem uma dimensão de real irredutível, resistente à simbolização, dimensão sobre a qual a psicanálise não pode e não quer efetuar uma redução demasiado apressada ou integral, e da qual não pode e não quer fazer a economia.

Considerar o sujeito é, necessariamente, introduzir na experiência a dimensão da fala, do significante. E a função da fala obriga a um enorme desvio, a uma excursão, um percurso por fora, da dimensão estritamente literal. Freud começou por ler na perna paralisada de uma mulher histérica a incidência de uma letra ali incrustada. Deu lugar, no campo científico, ao que ali não cabia: diante de uma histérica que paralisava sua perna de modo que contrariava frontalmente as leis da neurologia (próximo-distal, céfalocaudal: não se pode paralisar, ao longo de determinado feixe neuronal, um membro mais distante do encéfalo antes de paralisar um mais próximo – e as histéricas faziam exatamente o contrário disso), Freud não adotou nenhuma das duas alternativas que a ciência admitia: nem repudiou a veracidade da paralisia rebelde à lei científica, nem refutou a referida lei (que ele, como excelente cientista, sabia ser bastante sólida em seu grau de confiabilidade científica). Recusando ambas essas alternativas, adotou uma terceira, inaudita: concebeu a possibilidade de que uma paralisia não fosse neurologicamente determinada (com isso não refutava a lei neurológica das paralisias), mas ainda assim fosse uma paralisia digna de estudo e tratamento (com isso não repudiava a veracidade do fenômeno), mas subjetivamente determinada. Escreveu então: Alguns pontos para um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas (Freud, 1891/1969b). Passaram a existir paralisias histéricas em um mundo em que elas não existiam. Será esse mundo o científico? Freud introduziu algo de novo no mundo da ciência? Sim, mas, ao fazê-lo, viu que a novidade não mais caberia nesse mundo, pois essa novidade não era nada menos do que o sujeito, que esse mundo da ciência recusou no ato mesmo de sua constituição.

A letra, que, recalcada, incrustava-se na perna da moça histérica, não poderia mais ser lida assim de modo tão imediato, segundo uma formulação matemática. Só as paralisias orgânicas admitiam leitura imediata pela literalização científica. Mesmo tendo entendido que, no sintoma histérico, tratava-se de uma letra no corpo, era preciso dar uma grande volta, a excursão pela palavra de que falamos acima, para que um dia essa letra – desde então já ali exilada, como corpo (literal) estranho ao corpo de carne que complacentemente a deixava nele chegar1 – viesse a ser decifrada e reescrita como letra de gozo capaz de libertar o sujeito de seu sintoma.

Essa excursão pela fala é o que Freud denominou associação livre, a que nos referimos anteriormente: A expressão freudiana em alemão é Freie Assoziation, mas seu elemento central não é a associação de uma idéia a outra, no sentido psicológico, mas uma ocorrência (Einfall): a submissão pelo sujeito à palavra que lhe ocorrer, palavra descomprometida com todo cuidado de sentido, adequação, clareza ou propriedade. Palavra louca, des-intelectual, de modo algum cognitiva, que abre as portas para que o demônio do amor transferencial entre em cena – novo itinerário dentro do itinerário da viagem pela palavra.

Que não se pense que Freud tivesse algum pendor pessoal pela escuta de palavras. Ele não começou propondo a ninguém dizer o que lhe viesse à cabeça, mas foi a isso levado por seu verdadeiro mote, que era o de resolver o enigma que o sintoma histérico propunha à ciência. Podemos afirmar que Freud teria preferido infinitamente a letra, a leitura do real que sua atividade científica recortava, e que a literalização própria a seu campo permitisse. Mas esse mesmo real, sob a forma de sujeito, obrigou-o a ouvir palavras, muitas palavras, e a propor aos sujeitos falantes que o procuravam, assolados por seus sintomas, a despi-las de toda e qualquer significação já conhecida, socialmente compartilhada, douta ou ignorante. De palavra em palavra, do ato transferencial ao uso da palavra interpretativa, Freud finalmente reencontrou a letra, a escrita, nos depósitos cristalizados do fantasma fundamental do sujeito, que o trabalho de análise, sob a forma de frases curtas e incisivas, fazia decantar no fundo do copo: Bate-se numa criança... (Freud, 1919/1969c) e essa criança seria eu, ou melhor, o sujeito, na condição de objeto, caso esse objeto radical do gozo do Outro falasse...

Lacan, submetido à mesma imposição que se colocara a Freud (e sem poder tirar vantagem alguma, quanto a isso, por ter vindo depois dele, já que nada do que Freud aprendeu por sua própria submissão ao real poderia ser transmitido a qualquer seguidor, pelo menos de modo a poupar este último de pagar, ele próprio, o preço devido a esse real), levou 30 anos de prática psicanalítica (se contarmos do final da década de 30 seu início nessa prática) e 17 anos de seminários anuais (a contar de 1953) para chegar à fórmula de um discurso sem palavras (Lacan, 1991), articulação de letras em posições determinadas, que definem formas do laço social. E, a partir daí, tirar uma série de conseqüências que o levaram à escrita como invenção de um modo de saber-fazer com o real, única coisa de que se pode ser responsável, como dirá em Le seminaire, livre 23 : Le sinthome (Lacan, 2005).

Em um percurso que inclui em seu curso um excurso, a psicanálise é a experiência que, para ir de uma letra muda e ilegível no corpo a uma outra letra a ser lida no corpo (uma letra, diferentemente do significante, que jamais é o que ele é, e que não é idêntico a si mesmo, é o que ela é, e, se for outra coisa, já será outra letra), precisa passar por longos circuitos de palavra, de fala, sem economia nem atalhos. Feito esse percurso, e lida a letra inicialmente muda e ilegível, torna-se possível a leitura do gozo escrito no corpo e abre-se ao sujeito a possibilidade de que outras escritas de gozo nele se escrevam.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
E-mail: lucianoelia@uol.com.br

Recebido em junho/2008
Aceito em julho/2008

 

 

NOTA

1 Modo como traduzimos, em português, a palavra Entgegenkommem (que integra a expressão alemã somatische Entgegenkommem empregada por Freud) decompondo-a: ent: prefixo de negação; gegen: contraposição/oposição a; kommem, chegar, deixar chegar, admitir, perfazendo a formulação: negação ou suspensão da oposição a deixar que algo(psíquico) chegue (ao somático), como o equivalente mais preciso de "complacência somática".

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