SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.13 número25A letra na ciência e na psicanáliseA escrita e a constituição do sujeito: um caso de autismo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.13 n.25 São Paulo dez. 2008

 

DOSSIÊ: ESCRITAS II

 

Escrita ilegível: o que não se pode ler no que está escrito

 

Non-legible writing: what can't be read in what is written

 

Escritura ilegible: lo que no se puede leer en lo que se ha escrito

 

 

Ilana Katz Zagury Fragelli

Psicanalista, membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Psicanálise com Crianças, doutoranda da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (LEPSI IP/FE-USP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta uma discussão a respeito dos elementos teóricos que tornam possível a abordagem do fenômeno da ilegibilidade na escrita de uma criança como sintoma clínico. Para tal, pretende articular, em um fragmento clínico, as questões referentes à letra alfabética em sua vertente imagética e à instituição da imagem do corpo como próprio. Assim, a escrita, enquanto fato de linguagem, poderia situar uma formação sintomática referida à estruturação da imagem do corpo.

Descritores: escrita; sintoma; imagem; ilegibilidade.


ABSTRACT

This paper presents the non-legibility of a child's writing as a clinic symptom and discusses a theoretical approach that makes this assumption possible. With this aim, it proposes an articulation between the alphabetical letter in its imagetical materiality and the construction of the body image as a body proper, and presents a clinical fragment to expose this articulation. Understood as a fact of language writing can relate the constitution of a symptom to the structuration of the body image.

Index terms: writing; symptom; image; non-legibility.


RESUMEN

El artículo presenta una discusión acerca de los elementos teóricos que' habilitan el abordaje del fenómeno de la ilegibilidad en la escritura de un niño como síntoma clínico. Con ese fin, intenta articular, en una viñeta clínica, las cuestiones referentes a la letra alfabética en su vertiente imagética y la institución de la imagen del cuerpo como propio. Así, la escritura, en tanto hecho del lenguaje, podria ubicar una formación sintomática alusiva a la estructuración de la imagen del cuerpo.

Palabras clave: escritura; síntoma; imagen; ilegibigidad.


 

 

" Me vejo no que vejo.
É como ter em meus olhos,
os olhos mais límpidos."
(Octavio Paz, versão de H. Campos, 1986)

 

No discurso da mãe, Lucas aparece como um menino que, aos 9 anos, tem poucos amigos, e, apesar de muito inteligente, apresenta problemas escolares. "Sua letra é muito feia, não dá para entender o que ele escreve". Ela se pergunta ainda se há relação entre a precariedade aparente de seus desenhos e a ilegibilidade da letra.

Muito rapidamente a mãe conta a história do garoto. Ela parece querer manter as coisas fechadas, pouco disponíveis às questões que minha escuta pode recortar em sua fala. O único ponto em que se estende é quando fala a respeito do nascimento do filho. Por conta de uma má avaliação de seu obstetra, o parto foi atrasado por alguns dias, o que ocasionou sofrimento fetal. A circunstância perinatal toma muito tempo da fala de uma mulher que, em outros pontos, é bastante condensada. Na revista Scilicet 6/7 (1976), um grupo de analistas observa que o parto, bem como a menstruação ou a gravidez, são momentos reais [no sentido de que submetem o sujeito ao encontro com o real de seu corpo] em que a mulher se ilude sobre sua existência, e goza do que afeta o seu corpo. Para continuar gozando, ela fala sobre isso. De fato, não houve seqüela importante do ponto de vista neurológico como conseqüência desse acidente, mas é possível entender que falar insistentemente sobre isso faz essa mulher tentar recuperar um momento importante em que um acontecimento no real de seu corpo inscreve-a no discurso e proporciona-lhe um lugar a partir do qual falar. O movimento desse sujeito na linguagem, porém, não a leva muito longe desse ponto de inscrição, e será sempre a ele que ela vai retornar quando precisar situar o filho em seu desejo.

Lucas anda na ponta dos pés. Muitos tratamentos foram tentados no combate a esse traço, mas, até aqui, foram ineficientes: atividades físicas das mais variadas, avaliações ortopédicas com profissionais renomados, além de intervenções fisioterápicas. Seus pais se perguntam se essa seria então uma seqüela do parto tardio. E eu me pergunto a que esse acontecimento resiste.

Lucas anda na ponta dos pés, e, no entendimento de sua mãe, isso lhe traz muitos problemas. Os meninos dizem que Lucas anda de salto alto, que isso é coisa de mulher, e que, portanto, Lucas é gay.

O garoto que encontro é de fato muito inteligente, fala pelos cotovelos, tem muitas coisas para contar e parece que tem também a real intenção de não me deixar falar. Nessa posição, Lucas vai montando uma cena em que as coisas comparecem todas no plano das idéias, e fala, explica e ordena muitos pensamentos, emenda um raciocínio no outro vertiginosamente. Seus movimentos são, porém, bastante desordenados. Tudo com o corpo parece difícil, e cada vez que algo que tenciona fazer com seu corpo não acontece, Lucas trata de tirar mais um pensamento da cartola para – entendo assim – girar meu olhar, e talvez o seu também. O que eu não poderia ver?

Logo nas primeiras sessões, após me perguntar se eu achava que poderia ajudá-lo, formula o que veio me mostrar: "Eu vim aqui três vezes: uma pra desenhar, uma pra pintar e uma pra correr na ponta do pé." "Eu vim aqui três vezes porque eu tinha que falar de três coisas." No encadeamento associativo diz: "A conta de matemática que é difícil é a de dividir com restos".

No desenho de Lucas o que posso ver é uma figuração bastante precária. Pessoas que parecem bichos, e sobre as quais não há notícia sobre o gênero que representavam.

Este desenho, por exemplo, figura Lucas nadando.

 

 

Resolvo perguntar ao garoto como eu faria para saber se aquelas figuras eram meninos ou meninas. Suas respostas são impressionantes. Diante da constatação de que ali no seu traçado não havia nenhum indício para solucionar minha dúvida, Lucas faz, numa das figuras já desenhadas, olhos quadrados e na outra, olhos redondos, e diz: "assim está diferente".

 

 

Deixo aparecer o meu espanto e, então, Lucas se dedica a uma pesquisa, que ocupa vários de nossos encontros, para resolver isso que depois chamou de "seu problema". Produz várias hipóteses a respeito do que seria a marca do que, na ordem da imagem, poderia apontar a diferença sexual. A formulação mais insistente passa por um traço que aparece freqüentemente em seus desenhos, logo abaixo dos pés das mulheres… saltos altos.

 

 

"São as mulheres que usam salto alto?"

Numa das primeiras vezes em que tentou produzir uma resposta produziu uma hipótese a respeito do comprimento dos cabelos: para as mulheres, fios longos e para os homens, curtos, que, como podemos ver, ele acrescenta ao mesmo desenho.

Fica tão animado com sua formulação que resolve fazer uma escrita sob o título "Descoberta como desenhar"

 

 

Diz que vai chamar a mãe para saber se ela é capaz de acertar o gênero sexual do boneco que desenhou logo abaixo da sua escrita.

 

 

"É pra mostrar pra minha mãe, porque ela sabia que o meu problema era de desenhar e de pintar, mas não sabia que era do homem e da mulher, e praticamente tudo… do formato das coisas". Aí insere um subtítulo para seu texto: "caligrafia e desenho", dando uma pista de que o "tudo" ao que se refere inclui o formato da letra. A mãe de Lucas, já dentro da sala, erra a resposta. Diz que o desenho tem cara de menina, e Lucas faz uma nova frase, no final de seu texto:

 

 

A mãe então refaz sua resposta, por escrito, sem apagar a anterior, deixando aparecer o seguinte texto, que eu transcrevo mantendo a ausência de pontuação que ela produziu: "Está com cara de menina Tem cabelo curto, então é homem Mas o rosto me parece feminino".

Ela erra… porque a imagem não a esclarece e, ao se deixar elucidar pela explicação do menino, produz um texto bastante confuso. O que ela poderia dizer sobre os seus próprios cabelos curtos? E eu, por que estaria considerando o comprimento do cabelo da mãe do meu paciente importante? Bem, eu estava diante de uma mulher e de seu filho que formularam a idéia de que homens têm cabelos curtos e mulheres têm cabelos longos. Mas trata-se de uma mulher que usa cabelos curtos. De que modo eles vão conseguir continuar sustentando essa hipótese?

A dificuldade, do meu lado, aparece porque essa informação é oferecida sem nenhuma palavra do paciente ou de sua mãe. Eu sei que ela tem cabelos curtos porque eu vejo, e como sobre isso não se fala, não se associa, apenas se oferta algo no nível da imagem, num primeiro momento, resisto à idéia de usar esse "erro" como elemento do caso. Fico me perguntando se a significação (curto, cumprido, feminina, etc.) não passa necessariamente pelo meu léxico significante e, nesse sentido, fere a verdade do sujeito em análise.

Havia, porém, algo intrigante em relação a esse texto produzido pela mãe de Lucas: sua aparência física também produzia uma informação pouco clara. E, devido ao fato de a imagem que oferta ao Outro produzir uma informação imprecisa – assim como fez seu texto –, não pude me desvencilhar do que eu li naquilo que compareceu apenas como imagem em nosso encontro.

O fato é que, nesse caso, muitas informações comparecem apenas no nível da imagem, e é esse dado que finalmente assume uma importância cada vez maior na construção das hipóteses clínicas. "O formato das coisas", a nova formulação de Lucas sobre o "seu problema" passa a ser o assunto que aborda nas sessões, porém pela via da letra alfabética.

Temos uma seqüência de encontros em que faz, sob transferência, um jogo de adivinhações: eu deveria decifrar o impossível. "Você sabe o que tá escrito aqui? ...duvido que você consiga ler essa palavra" E assim traçava letras em que incrementava ainda mais sua ilegibilidade.

O fenômeno que assola a escrita de Lucas não é qualquer. Sua escrita não permite a leitura do texto produzido. Algo se processa no eixo da imagem (da letra, mas, como vimos, também do corpo) e é preciso dar seqüência a essa investigação. Sua "le

tra feia" cumpria a função exata de deixar o outro confuso, sem ter certeza sobre o que deveria entender do que via. "Que letra é essa, o que será que está escrito aqui?" Curiosamente, e isso parece ser muito importante, a ilegibilidade na caligrafia de Lucas é parcialmente superada nas situações em que enfrenta a questão a respeito da representação do gênero. É desse modo que podemos ver que seu texto "caligrafia e desenho" apresenta uma escrita legível no nível da imagem da letra, bem como tenta apreender pontos de balizamento, no nível significante, para o estabelecimento da diferença sexual na ordem da imagem.

Há na produção gráfica de Lucas certa isomorfia (o desenho e a escrita) em relação à problemática relativa à diferença sexual expressa no nível da imagem do corpo. Nesse caso parece que a condição subjetiva do garoto configura um sintoma com conseqüências expressas na sua escrita; uma escrita que põe problemas para ser lida/interpretada (tanto no nível do desenho quanto no nível da letra) e que, enquanto fato de linguagem, situa uma formação sintomática relativa à estruturação da imagem do corpo.

Antes de seguir com o caso é importante lembrar que a escrita alfabética não se reduz ao caráter de representante da fala. O pressuposto em jogo é o de que a escrita alfabética mantém em sua determinação relações diretas com a escrita inconsciente. Isso quer dizer que a escrita alfabética sofre os efeitos da escrita inconsciente tal qual a fala também os sofre, e não como conseqüência de terem sido sofridos pela fala. É esse um dos aspectos que permite atribuir à escrita alfabética a condição de fato de linguagem, e também permite considerar que a escrita será modulada/ afetada pela posição do sujeito do inconsciente, que pode aí, até mesmo, fazer sintoma.

Vale dizer que o fato de na escrita (gráfica) se escrever um sintoma desse garoto não nos autoriza a tomar uma escrita pela outra, ou a forçar aproximações. Apenas, e isso não é pouco, reapresenta a escrita (gráfica, alfabética) como acontecimento de linguagem, e, na ordem da experiência, como ato de comparecimento subjetivo.

Pommier (1993) e Allouch (1995) trabalham com a hipótese de que antes da letra (gráfica) é o corpo que pode ou não ser lido. E, portanto, quando esse corpo tiver problemas para ser lido, isso terá efeitos sobre aquilo que ele deve escrever. Ou seja, um corpo que se esquiva da leitura do outro faz também uma escrita, na ordem gráfica, para não ser lida; produz um indecifrável. O problema se faz, então, no âmbito das imagens: imagem do corpo e imagem da letra. De que modo essas imagens estão articuladas? Há relações entre esse indecifrável produzido na escrita e a letra, em sua condição de cifra ordenadora desse sujeito? Para avançar, será preciso distinguir aqui duas questões – uma de ordem clínica e outra, teórica.

Do ponto de vista do caso, deve ser interrogado o que está escrito nesse corpo que anda de salto alto. O que faz o texto de Lucas não poder ser decifrado?

No eixo teórico é preciso enfrentar a pergunta que a clínica com o escrito insiste em produzir a respeito da relação entre letra alfabética e o corpo em sua dimensão subjetiva. Como se articulam a imagem do corpo e a forma na escrita alfabética? Por que uma questão na instalação da imagem do corpo como próprio pode ter efeitos naquilo que o sujeito escreve? Os ditos "sintomas na escrita" – se a escrita apresenta-se como ilegível ou como cópia, se há trocas ou omissões, se não há extensão discursiva – não poderão ser lidos na ordem de uma generalidade. Sua leitura será sempre efetivada na via da clínica, singular, sem a pretensão de produzir generalidades. Porém, para ler todas, e cada uma das situações em que um sintoma do sujeito aparece na escrita, necessária e obrigatoriamente a pergunta formulada logo acima deve ser esclarecida.

Apontarei os elementos que, até aqui, tenho como ordenadores da questão em seu eixo teórico (isto é, como se articulam corpo próprio e escrita) para, em seguida, prosseguir na leitura do fragmento clínico.

Jeanne D'Arc Carvalho (2005) elabora a idéia de que o desenho tem função significante na medida em que ele escreve fatos de linguagem. O desenho é uma escrita que verifica a identificação do sujeito a uma imagem do corpo, e é como significante que opera tal suporte1. Allouch (1995), como já apontado, insiste em que o que deve ser lido numa escrita é o corpo, e que, quando isso não pode acontecer, a letra escrita também não poderá ser lida.

Pondo fim às discussões acerca da maturidade neuromotora relativa à figurabilidade na produção gráfica, Gerard Pommier (1993) aposta que os "erros" na representação do corpo humano estão referidos à imagem do corpo próprio e não exclusivamente a uma inabilidade técnica2.

Erik Porge (1983/1997), ao abordar os sintomas na escrita (aos quais se refere pelo termo dislexia), sustenta com vigor a hipótese de que o que ali se põe em jogo é uma mutilação da letra. Tal mutilação tem a função de amputar uma parte do objeto fóbico, a própria letra. É um tratamento operado à imagem daquilo que o sujeito teme que aconteça com seu corpo. A mutilação que desordena a escrita alfabética é então uma resposta do sujeito à sua fantasia de ser devorado. Nesse sentido, aprendemos que a produção escrita, no nível da letra e do desenho, sofre os efeitos da escrita do corpo próprio, que é uma escrita, sabemos, de ordem inconsciente. A questão é: como?

Como já foi dito, não é honesto supormos que porque se trata de escrita nos dois casos, escrita do corpo e escrita gráfica, a questão está respondida. Ao contrário, essa idéia, produz um curto-circuito e impede de avançarmos nas formulações que a clínica solicita.

Carvalho (2005) formula com precisão a diferença entre esses termos: há dois níveis de referência à escrita no texto freudiano, e esses dois níveis devem ser considerados em sua diferença, jamais sobrepostos. O primeiro é o nível simbólico, segundo o qual onde há linguagem, há escrita3. Nas palavras da autora: "nesse sentido o escriba do inconsciente é o Outro, tal qual Lacan ensina a compreender o lugar da linguagem. Dessa escrita do inconsciente, o que se lê é um efeito da linguagem" (p. 108). E esse efeito de linguagem pode ser capturado na fala, mas também no desenho e na escrita alfabética. Em outro nível, continua a autora, opera aquilo que não permite a justaposição das duas ordens de escrita. O inconsciente cifra uma letra que, diferente do significante, não é possível ser lida. "Há, nesse caso, a dimensão de uma escritura, registro da linguagem, mas que não se confunde com ela. Nesse sentido, a escrita, ou uma escritura, é sempre de um limite ao que não se pode escrever" (p. 113).

Para além da dimensão simbólica, trata-se da letra litoral, que faz borda ao Real. A letra que faz borda ao simbólico, é preciso frisar, situa no mesmo golpe o que não cessa de não se escrever, e será determinante na instituição do sintoma. A operação de ciframento aqui em jogo está relacionada à escrita da imagem do corpo como próprio.

Sabemos, a partir do trabalho de Freud e Lacan, que a inscrição do corpo é sustentada por uma operação psíquica sofisticada, que cumpre a função de arrancar o corpo do bebê do corpo da mãe. Trata-se de uma separação, orientada pela pulsão, que tem como ponto capital a instalação de um eu, na operação do espelho.

A imagem do corpo é produzida como conseqüência da alienação do sujeito ao campo do Outro. Lembremos que no estádio do espelho, ao se separar do corpo materno a criança se aliena em uma imagem do corpo próprio que é pura antecipação da unidade conferida pelo Outro. É por esse caminho, o da alienação, que o ser poderá habitar um corpo que anteriormente lhe era estrangeiro. Esse mesmo corpo, porém, na antecipação necessária que o espelho representa, é moldado com a forma do Outro, que, se de um lado cumpre a função de introduzir o pequeno humano na linguagem, isso acontece graças à oferta de uma designação bastante fechada em seu desejo.

A imagem do corpo, ao se moldar a partir do desejo do Outro primordial, tem como forma aquilo que falta a esse Outro e que o sujeito, ao se alienar, sutura com seu corpo. Nesse sentido, a relação especular submete o sujeito ao gozo do Outro e penhora seu corpo como objeto. Para sair dessa posição, o pequeno humano deverá se separar da significação da imagem do seu corpo produzida a partir do campo do Outro, uma vez que ali incide uma determinação de gozo à qual o sujeito submerge. Nesse ponto, Lacan formula que aquilo que acontece na operação especular é uma transformação, pois o sujeito assume uma imagem, e é essa identificação que o conduz da fragmentação a uma forma totalizada de seu corpo (Lacan, 1988). De fundamental importância no que diz respeito à causação do sujeito, a alienação à imagem deverá ser dialetizada pela operação de separação.

Se voltarmos, neste momento, às nossas crianças que fazem sintomas na escrita, vamos contar inúmeros casos em que a fenomenologia da escrita é afetada em sua imagem. Há crianças que só copiam, há aquelas que têm "a letra feia", e produzem escritas ilegíveis. Há ainda a possibilidade de que o desenho da figura humana esteja comprometido4. Há aqueles que, como Lucas, apresentam questões ao desenharem-se e também na vertente imagética da letra escrita.

Se, para responder a questão levantada, partimos da idéia de que a escrita, é, assim como a fala, um desdobramento da relação do sujeito com a linguagem, e, portanto, comportase como fato de linguagem, temos agora a possibilidade de avançar na construção de nossas hipóteses a partir da articulação das contribuições acima citadas à atividade clínica.

Parece que a escrita, por apresentar a vertente material da imagem – ao contrário da fala, em que a vertente imagética sucumbe à dimensão de imagem acústica –, seja como letra ou com desenho, torna-se um campo favorável para a construção de uma sintomatologia referida à problemática da imagem do corpo.

Dar-se a ver numa imagem legível para si e para o outro é necessariamente suportar a pergunta: "o que o Outro quer de mim?" sem oferecer a própria carne como resposta. É assim que, se o Outro não puder liberar o sujeito para armar-se para além das determinações daquilo que o designa em seu espectro (determinações essas presentes na condição de unificação do corpo próprio), as conseqüências serão múltiplas para o sujeito, em diversos níveis e graus, e expressas inclusive sobre o que se escreve.

O ponto central de nossa questão aponta para uma falha na separação da imagem que fixa o sujeito no campo do Outro. O sujeito, de algum modo, titubeia aqui, responde positivamente ao apelo do Outro e denuncia sua condição ao tentar produzir no desenho uma imagem do corpo próprio.

Porge (1983/1997) aposta que a dislexia aponta para uma identificação ao sintoma, constitutiva do inconsciente do sujeito (p. 103). Desse modo, é possível entender que a ilegibilidade da letra, como uma das figurações possíveis dessa "dislexia", deve ser tomada em sua dimensão de sintoma. Na escrita, o sujeito produz uma evidência: ao não se deixar ser lido, resiste ao Outro, tenta salvar sua pele, escapar de ser absolutamente entendido… ele produz um enigma.

É também Eric Porge quem formula a idéia de que o sintoma disléxico5 é um desafio à autoridade. Uma criança que lê e escreve, lê um texto que não é simplesmente aquele que o Outro lhe ofereceu. O sentido a ser produzido não está garantido nas palavras grafadas pelo autor. A leitura – insiste Porge – desafia a autoridade (do autor) e, no mesmo golpe, exige um ator. É aqui que podemos entender que aquele que faz sintoma na escrita recusa a autoridade para tentar firmar-se como ator, como intérprete de um texto. Ora, não seria esse um outro modo de descrever a separação necessária ao engendramento entre sujeito e Outro?

Se tomarmos a imagem do corpo unificado como texto para ser lido pelo sujeito, concluiremos que se trata de uma imagem que precisa ser lida/interpretada, e, por fim, que seria através dessa operação de leitura que o sujeito se articularia em uma cadeia de significantes. Seguindo o raciocínio construído até aqui, um sintoma na escrita, como formação subjetiva, assume a função de impor um limite ao Outro, de cavar um lugar para o sujeito. Ele engendra uma tentativa de separação que, por sua vez, demonstra sua consistência no nível da imagem.

Um dos problemas que encontramos nessa configuração é que o sujeito que se institui em um sintoma na escrita paga o preço da produção de um impedimento que pode assumir outras proporções. Impedir a escrita de funcionar pode ter como efeito, para citar apenas um exemplo, um baixo rendimento escolar que na maioria das vezes não é relativo ao que o sujeito pode apreender, mas, ao contrário, incide no que ele deve devolver: na produção de texto, naquilo que retorna ao Outro6.

Com os elementos acima dispostos, vamos retornar ao caso clínico para tentar responder à questão sobre o que faz o texto de Lucas não poder ser decifrado. Trata-se de impedir que o outro leia ou o é Lucas quem está impedido de ler? Será que Lucas está impedido de ler o que está impedido no Outro?

É possível observar, pelo que escreve, que Lucas tenta uma interpretação particular do seu corpo/texto alienado ao Outro. A clínica com o escrito ensina que ele faz essa construção sintomática no nível do texto porque não pode arriscar-se a despregar o corpo próprio da forma do desejo do Outro (e, portanto, daquilo que lhe falta). É pela via do sintoma que ele tenta construir algum enigma, tenta situar-se a partir de termos que não estejam preenchidos pelo sentido do Outro. Mas, é no nível gráfico que Lucas recusa os termos do Outro, e tenta uma autoria.

O movimento clínico de Lucas aponta para um sujeito que pretende se esquivar da leitura fechada que assume no campo do Outro, e que, para isso, apóia-se na vertente imagética do significante. Ao confundir seu leitor, tenta driblar a invasão de um Outro muito potente e sabido.

Por que Lucas precisou desse recurso? As hipóteses que levantou para construir no desenho a diferença entre a imagem do corpo masculino e feminino situam a resposta que procuramos. Qual a diferença entre homem e mulher? Seria o formato dos olhos? O comprimento dos cabelos? É o fato de a mulher usar salto alto?

Ao buscar a solução nessas formulações, Lucas deixa claro que não vai considerar a castração materna como critério decisivo dessa diferença. Ou melhor, Lucas considera que deve armar uma restituição à mãe daquilo que lhe falta. É melhor não VER a diferença, é bom impedir que seja vista. Foi preciso para ele embaralhar os dados na ordem da imagem para sustentar essa posição.

É assim que o sintoma na escrita parece oferecer ao sujeito certa estabilidade: seu corpo continua penhorado na alienação ao Outro materno, e ele goza disso. Ao mesmo tempo, para não sucumbir totalmente, garante, ainda que de modo precário, certo nível de separação, ao se propor numa escrita ilegível. Estamos diante da demonstração da formulação de Porge: a escrita de Lucas, no desenho e na letra, é uma identificação ao sintoma, é fundante do inconsciente desse sujeito. Por outro lado, se o sintoma de Lucas permite armar uma resistência ao Outro, fracassa na radicalidade necessária à dialetização da alienação. Além de criar-lhe um problema relativo ao desempenho escolar, do ponto de vista subjetivo, protela a necessidade de que a imagem do corpo unificado seja trabalhada e tratada para resgatar o sujeito da designação fechada que recebe no campo do Outro.

O que Lucas não pode ler no que está escrito? A castração materna. O nível das imagens (do corpo e da letra) comparece aqui, nesse caso, como o que fornece elementos para esse recobrimento.

Podemos supor uma coincidência exagerada na operação especular entre as produções da imagem real e virtual. A imagem real deve se oferecer como urbild, o 'sobre o que' o sujeito – ali antecipado pelo Outro primordial – vai construir-se como unidade. Será no espaço virtual, representado no grafo pelo espelho plano, que o sujeito deverá constituir o corpo próprio no nível da imagem.

No caso abordado, podemos supor um excesso de adequação entre o que sua mãe produz na antecipação de sua condição subjetiva e sua montagem própria do corpo. Bergès e Balbo (1994) apontam que é preciso calcular um desencontro entre essas imagens, um desencontro necessário, porque é através dele que será armada, para o sujeito, a possibilidade de separar-se da alienação costurada pelo desejo do Outro quando da produção da antecipação.

Andar na ponta dos pés escreve saltos altos no corpo de um menino que se esforça para ofuscar a castração materna usando o apagamento da diferença sexual como recurso. Sua escrita, no mesmo golpe em que denuncia sua condição, oferece-se como recurso à separação, no sentido em que no nível gráfico faz um sintoma em que ele se apresenta como autor, arriscando diferença em relação aos termos do Outro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Allouch, J. (1995). Letra a letra: Transcrever, traduzir, transliterar. (D. D. Estrada, trad.). Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Balbo (1996). Do ouvido ao olho, e num estalar de dedos: acerca do desenho e sua leitura prévia. In A. B. R. Teixeira, O mundo a gente traça: Considerações psicanalíticas acerca do desenho infantil (pp. 52-70). Salvador, Ba, Ágalma. (Trabalho original publicado em 1986)         [ Links ]

Bérgers, J. & Balbo, G. (1994). Do corpo à letra. Revue de L'Association Freudienne: La Psychanalyse de L'Enfant, 20, 181-208. [tradução de Angela Vorcaro para uso interno]         [ Links ]

Carvalho, J. D. (2005). Entre a imagem e a escrita: Um diálogo da psicanálise com a educação. São Paulo; Anablume/Belo Horizonte, MG: FUMEC.         [ Links ]

Fragelli, I. K. Z. (2005). A escrita na fobia e na debilidade. Associação Psicanalítica de Curitiba em Revista, 1 (11), 21-32.         [ Links ]

Lacan, J. (1988). O estádio do espelho como formador da função do eu tal qual nos é revelada na experiência psicanalítica. In J. Lacan, Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 96-103). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Paz, O. & Campos, H. (1986). Transblanco: Em torno a Blanco de Octavio Paz. Rio de Janeiro: Guanabara.         [ Links ]

Pommier, G. (1993). Naissance et renaissance de l'ecriture. Paris: Presses Universitaire de France.         [ Links ]

Porge, E. (1997). Uma fobia da letra: a dislexia como sintoma. In L. M. F. Bernardino (Org.), Neurose infantil versus neurose da criança: As aventuras e desventuras na busca da subjeitividade (pp. 76-107). Salvador, BA: Ágalma. (Trabalho original publicado em 1983)         [ Links ]

Scilicet (1976). Jouissance et division. Scilicet, 6/7, 129-141.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: ilana@zenza.com.br, ilanakzf@uol.com.br

Recebido em julho/2008
Aceito em setembro/2008

 

 

NOTAS

1 A esse respeito ver o capítulo "Entre a imagem e a escrita" (Carvalho, 2005, p. 126).
2 A esse respeito ver Pommier, 1993, p. 200.
3 É por isso que a autora pensa o desenho como escrita.
4 Não se trata de um comprometimento em relação ao esperado do ponto de vista do desenvolvimento, comprometimento aqui aponta para um impedimento, no eixo da representação, relativo a instalação e/ou apropriação do corpo unificado e separado do Outro.
5 Falar em SINTOMA disléxico necessariamente afasta a idéia de que a dislexia seja um problema em si, um problema de formatação neurológica que em nada toca o sujeito, ou é tocado por ele.
6 A esse respeito ver Balbo (1996/1986). Nesse artigo o autor produz uma escansão, em 8 tempos, relativa à passagem pela escritura de uma percepção recebida para uma percepção oferecida.

Creative Commons License