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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.13 n.25 São Paulo dez. 2008

 

DOSSIÊ: ESCRITAS II

 

A escrita e a constituição do sujeito: um caso de autismo1

 

The writing and the constitution of the subject: a case of autism

 

La escritura y la constituición del sujeto: un caso de autismo

 

 

Mariana Soares Melão

Psicóloga, especialista em Psicologia Clínica – Abordagem Psicanalítica pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem como ponto de partida indagações a respeito da relação entre a escrita alfabética e a constituição subjetiva, instigadas por uma prática de acompanhamento terapêutico com uma criança autista dentro de uma escola particular regular. Tomando o diagnóstico de autismo na infância como uma suspensão no percurso da constituição subjetiva, o relato abrange desde a aposta simbólica nessa criança até os enlaces feitos entre primeiras marcas, letras, palavras escritas, que possibilitaram o início de uma escrita inconsciente e novas alternativas para esse menino.

Descritores: acompanhamento terapêutico; autismo; escrita; constituição subjetiva.


ABSTRACT

The present work as its starting point some inquiries about the relation between the alphabetical writing and the subjective constitution instigated by a therapeutic accompaniment practice with an autistic child in a regular private school. Taking the diagnoses of autism in childhood as a suspension on the way of the subjective constitution, this account starts at the symbolic bet for this child up to the links made with first marks, written words, which made the beginning of an unconscious writing and new alternatives possible for this boy.

Index terms: therapeutic accompaniment; autism; writing; constitution of the subject.


RESUMEN

El presente trabajo tiene como punto de partida indagaciones a respecto de las relaciones entre la escritura alfabética y la constitución subjetiva, instigadas por una práctica de acompañamiento terapéutico con un niño autista dentro de una enseñanza privada regular. Tratando el diagnóstico de autismo en la infancia como una suspensión de la constitución subjetiva, el relato abarca desde la apuesta simbólica en este niño hasta los enlaces hechos entre primeras marcas, letras y palabras escritas que posibilitaron el comienzo de una escritura inconsciente y nuevas alternativas para este niño.

Palabras clave: acompañamiento terapéutico; autismo; escrita; constitución subjetiva.


 

 

Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra
(Chico Buarque, 1995)

 

Do ponto de vista psicanalítico, pode-se pensar a criança com diagnóstico de autista enquanto um ser à espera de um encontro frutífero com um representante do Outro que possa instaurar o processo de escrita inconsciente e a decorrente constituição do sujeito. No caso de Bruno, um menino que foi acompanhado por mim na escola em que estudava, parece que essa suspensão na constituição subjetiva que o caracterizou como autista foi interrompida pelas marcas que a escrita alfabética (representante do Outro) instaurou nele.

Os olhares interessados de Bruno sobre a escrita, suas primeiras marcas representantes de si, seus rabiscos, detalhes gráficos, letras, palavras, foram acompanhados por mudanças em relação a seus movimentos repetitivos com o corpo, ao lugar em que se colocava dentro da turma, aos seus pedidos ao Outro, à flexibilidade de aceitação daquilo que saía de sua rotina, àquilo a que ele se autorizava, à possibilidade de se colocar pela fala. A escrita e a abertura subjetiva parecem ter se enlaçado, construindo novos caminhos, novas possibilidades para esse menino.

Podemos pensar que, por diversos motivos, Bruno poderia elaborar essas mudanças subjetivas, e que a possibilidade de escrita decorreria dessas mudanças. Durante essa experiência, no entanto, acredito que o encontro com a escrita provocou marcas simbólicas importantes, as quais possibilitaram mudanças subjetivas. O que se pergunta, então, é: poderia a escrita ocupar uma função na constituição desse sujeito? Que função seria essa e como isso poderia ocorrer?

 

Um lugar para Bruno: a escola

Quando iniciei o trabalho com Bruno, ele já estava há quatro anos nessa escola, tendo feito três anos na educação infantil e a 1ªsérie. Foi-me relatado pela escola que se tratava de uma criança autista, que não falava, que tinha dificuldades em olhar e brincar, que se comunicava muito pouco por gestos, irritava-se com mudanças de rotina, cometia auto-agressão – geralmente quando lhe eram colocados limites –, fixava-se em determinados objetos e imagens. Para conseguir estar nessa escola, ele realizava rituais como modos de se relacionar com aquilo que via, ouvia, e o que lhe era dito.

Segundo Jerusalinsky (1999a, p. 54), a criança entra no campo da linguagem muito antes de começar a falar, e é isso que nos diferencia de outros animais: tomamos os signos não como algo fixo, mas como significantes. Assim, podemos transportar um mesmo significante para contextos, séries diferentes, dando significados diferentes. Toda criança nasce inserida nesse campo da linguagem que é anterior a ela, no campo dos significantes transmitidos pelo Outro, determinados por uma lógica inconsciente que vai além daquilo que as pessoas ao redor dessa criança sentem, pensam ou esperam para ela. É dado um lugar a Bruno; ele o ocupa tomando certa posição a partir daí; isso já basta para pensarmos que esteja inserido no campo da linguagem.

Bruno, porém, não opera a partir dessa linguagem; o modo como se coloca perante essa Lei, que situa os sujeitos de tal modo que real, simbólico e imaginário se enlaçam, é ficando à margem dela, negando-a para se deixar ser puro Real. Isso faz com que os signos sejam, para ele, duros e fixos, impossíveis de serem metaforizados. Bruno não mostrava essa possibilidade de flexibilizar a função de um objeto, o sentido de um movimento, ou mesmo as atividades de sua rotina: quando um novo sentido estava implicado, ele se desorganizava, pois não podia lidar com essa nova possibilidade. Pode-se dizer que, não se submetendo a essa lei da linguagem (a partir da qual há a estruturação de um sujeito), dentro do terreno do mutismo, à margem do campo das palavras, restou a Bruno organizar-se pelo Real. "Tudo o que se faz sobre eles (bebês) sistematicamente, instante por instante e segundo por segundo, mesmo quando estejam dormindo, é submetido a esta clivagem da linguagem, e ninguém escapa disto, a menos que, se escapa, caia então no terreno do mutismo. Porque é certo que alguém escapa ou é expulso do seu campo temporalmente, e aí então não há ninguém, como sabemos que ocorre com os autistas" (Jerusalinsky, 1999a, p. 55).

Durante os anos na educação infantil, segundo as coordenadoras, Bruno havia tido alguns avanços como o respeito aos horários e lugares de cada atividade, sem que isso o desorganizasse; a interrupção dos atos agressivos na relação com outras crianças (principalmente as mordidas) e uma abertura às propostas e convites vindos das professoras e dos colegas, permitindo deixar de lado por um tempo as atividades repetitivas que escolhia diariamente. Segundo Kupfer (2001), o próprio fato de a escola (seja ela regular ou especial) disponibilizar um espaço para crianças psicóticas ou autistas tem um efeito terapêutico, na medida em que essa instituição, enquanto lugar social que oferece aparato simbólico através de leis e regras que ordenam a vida dos homens, oferece, para a criança com dificuldade de laço social, um lugar possível. "A escola é uma instituição poderosa quando lhe pedem que assine uma certidão de pertinência: quem está na escola pode receber o carimbo de 'criança'" (Kupfer, 2001, p. 92).

Sibemberg (1998) coloca a questão da aprendizagem no autismo como algo que poderá se efetivar a partir do início de uma constituição subjetiva: "A direção de cura do autismo em psicanálise aponta seu vetor para a constituição de um sujeito psíquico que ali falta, de modo que toda aprendizagem apareça como conseqüência da sua inclusão subjetiva no campo significante" (1998, p. 65). É possível supor que alguma inserção de Bruno no lugar de sujeito no campo significante já ocorria. Bruno pôde ter um lugar social ao entrar na escola, e suas mudanças em direção a uma possibilidade de aparecimento do sujeito podem ser vistas a partir desse lugar de participante de uma organização que se coloca como um Outro ordenado e, portanto, organizador de uma possibilidade de laço social e de simbolização.

Durante esse período da educação infantil, Bruno não tinha um acompanhamento terapêutico, porém, ao passar para a primeira série, a escola sentiu necessidade de que tal trabalho acontecesse. Um maior direcionamento das atividades, uma exigência de regras com relação a horários e postura para o trabalho de alfabetização foram questões práticas do dia-a-dia a partir das quais a escola pensou na necessidade de um acompanhamento mais individualizado para Bruno. Mais do que isso, havia uma aposta enorme da coordenação da escola no crescimento nos âmbitos simbólico e social desse aluno: a possibilidade de ele escrever, falar, brincar com os outros e conseguir conviver com certa tranqüilidade em um grupo era uma crença explícita e mobilizadora para a escola.

Nesse ponto entra outra questão muito importante para pensarmos no lugar que foi dado a Bruno: a questão simbólica apresenta-se através de todo aparato e organização que giram socialmente em torno da escola enquanto instituição social – englobando até mesmo o fato de o próprio conceito de criança, a partir da modernidade, constituir-se atrelado à passagem pela escola – e também se faz presente por parte dos profissionais da escola, como essa crença nas possibilidades de Bruno, essa suposição de um sujeito a advir. Essa escola ocupa então, em relação a Bruno, um lugar que pode se configurar a partir do registro simbólico, como oposto ao de Outro desregrado e como aposta na possibilidade de se estruturar uma subjetividade, antecedendo o sujeito que ali ainda não existe; bem como a partir do registro imaginário, como meio facilitador de relações com pares, como função de espelho. Foi no sentido de buscar mais um recurso para a possibilidade de efetivação dessa aposta simbólica e desse encontro imaginário que a escola optou pelo acompanhamento. Aos poucos pude delimitar melhor minha função ali e formular as especificidades desse trabalho enquanto acompanhante terapêutica de Bruno na escola.

 

O acompanhamento terapêutico

O trabalho de acompanhamento terapêutico começa a aparecer como uma prática no Brasil na segunda metade do século XX. Pulice e Manson (1996) contam um pouco a respeito do momento de questionamento de práticas tradicionais em que o acompanhamento terapêutico surgiu como uma das ferramentas alternativas ao que vinha sendo feito até então. Com o impulso do movimento da antipsiquiatria em diversos países ocidentais, o acompanhante terapêutico apareceu como uma profissão muito ligada à investigação daquilo que poderia ser oferecido, e daquilo que poderia ser esperado terapeuticamente de pacientes portadores de sofrimentos psíquicos severos, que não o mero controle social conseguido pela internação médica.

Tendo inicialmente uma prática voltada principalmente para a inserção social de pacientes psicóticos, o acompanhamento terapêutico possibilitou a saída desses sujeitos do hospital para as ruas. Mais recentemente, o acompanhante terapêutico tem conquistado outros espaços, como as escolas, integrando a equipe no auxílio ao processo educacional de crianças com graves distúrbios do desenvolvimento. "Aí se insere o trabalho do AT enquanto um agente facilitador do processo inclusivo. Através do seu trabalho, o AT cria as condições para que a criança possa freqüentar a escola, beneficiando-se do processo educativo" (Fraguas & Berlinck, 2001, pp. 7-8). Dentro do processo educacional, esse profissional possibilita à criança, que em principio teria no máximo um lugar na família, ocupar o lugar que lhe é atribuído pela sociedade: a escola.

Quando comecei a trabalhar como acompanhante terapêutica do Bruno, que na época estava com oito anos, iniciando a 2ª série do ensino fundamental, fiquei um tanto receosa quanto à indefinição (para mim, para a escola) do lugar que eu iria ocupar ali. Eu estaria dentro da sala-de-aula, não seria professora nem atuaria clinicamente; eu estaria entre a pedagogia e a educação, de um lado, e a psicanálise, de outro. Um trabalho desses seria possível? A educação e a psicanálise poderiam caminhar em uma mesma direção? Esses eram alguns aspectos que me inquietavam muito no início, e que até hoje – felizmente – ainda me fazem questão.

Durante a 1ª série, Bruno foi acompanhado por outra pessoa; eu iria entrar no lugar dela, no início do ano letivo seguinte, e não sabia como isso seria encarado por Bruno. Já nos primeiros dias, porém, eu percebia seu corpo expressando no Real aquilo que ele não podia colocar no campo da linguagem: Bruno não falava, mas algo dele se manifestava através de seus movimentos, seus olhares, suas escolhas. No início do meu trabalho, a escola manifestou justamente a preocupação com o lugar de Bruno na turma, na escola. A possibilidade de Bruno participar desse meio social em que estava inserido serviu-me como rumo. Bruno fazia parte da turma há alguns anos e era respeitado pelos colegas e professores, mas pouco compartilhava dessa convivência em grupo: não fazia laço com algum colega, não participava das brincadeiras, não estabelecia sentido para situações ou para si, enfim, não estava inserido na linguagem.

Direcionei o trabalho no sentido de acompanhar esse menino dentro da escola e oportunizar encontros entre ele e a linguagem que de algum modo despertassem nele o desejo, que a princípio era meu, de ali se enlaçar. Meu lugar ali estaria, então, muito ligado a uma função de escutar os movimentos de Bruno nas suas tentativas de organizar-se e possibilitar (desejar) – pontuando situações, emprestando-lhe significados, oferecendo-lhe símbolos, lendo marcas – encontros com a linguagem que inaugura o sujeito, podendo esta se tornar um recurso para Bruno poder dizer-se.

Poderíamos dizer que há nesse trabalho algo da função do Outro primordial, algo da ordem de uma educação dos primórdios do sujeito. "Esse ato, da ordem de uma inscrição, é, nas palavras de Jerusalinsky (1995), 'aquilo que insere no sujeito a marca da sua relação com o Outro, insere a presença do Outro', inaugurando então a subjetividade. Entendemos que este ato é da ordem da educação, tomada aqui de maneira ampla, como uma transmissão de uma filiação simbólica" (Hanff & Petri, 1998, p. 28).

Nesse sentido, o trabalho situa-se entre a educação e a psicanálise, se pensarmos que, no caso de crianças com grandes dificuldades psíquicas, o trabalho de possibilitar o advir simbólico (a oferta de significantes) é educativo, mas, por outro lado, ao estar atravessado pela psicanálise, precisa fazer valer o Outro barrado, a marcação da falta. A educação e a psicanálise fariam, metaforicamente, um jogo de alternância presença / ausência no contexto escolar, possibilitando a abertura de um espaço para o aparecimento do sujeito a partir da relação com um outro desejante marcado pela falta: o acompanhante terapêutico.

 

O desejo do Outro: questão diagnóstica

Em minhas primeiras conversas com os pais de Bruno percebi uma confiança da mãe nesse trabalho e uma vontade do pai em trocar informações sobre como lidar com crianças autistas. O fato de Bruno não falar, porém, parecia algo acabado para o casal, não havendo possibilidade de supor um outro lugar para essa criança que não o do autismo. "Todo adulto, quando se endereça a uma 'criança', demanda-lhe deixar atrás essa sua condição de infans – ou seja, o fato de ser privada de palavra – derivada da própria presença antecipada do adulto no mundo" (Lajonquière, 2003, p. 143). O fato de um sujeito privado de palavra caracterizar a condição de infans faz com que pensemos no autista como aquele que não sai dessa condição, situando-se à margem do campo simbólico. É possível, então, que os pais da criança autista não demandem que esta deixe para trás essa condição, o que a faz permanecer em um lugar sem palavra. A partir disso, podemos questionar: primeiramente, o que estaria implicado no fato de os pais desejarem ou não a entrada do filho no campo da linguagem? Em segundo lugar, a partir do lugar que o Outro lhe oferece, quais os caminhos que essa criança pode seguir? Haveria uma "escolha" possível?

Jerusalinsky (1999a), afirma que, ao falar, o sujeito corre o risco de que sejam dadas versões, sentidos diferentes ao seu dito: "Este é o risco que não estão dispostos a correr os pais da 'criança que não fala', não estão dispostos a correr o risco de uma versão diferente daquilo que em 'stricto sensu' eles quiseram dizer, e se não se está disposto a correr esse risco, o outro não é interpelado na posição de quem escuta, e portanto fica impedido de falar, porque ...o que não escuta não fala" (p. 51). Mais adiante, continua: "para que uma criança saia falando ... se deve estar disposto a apoiar-se em algo que não se sabe bem de todo ..., deve-se agüentar, deve-se suportar ... que há uma infinidade de coisas que não se sabem, e que estão sempre rondando por aí" (p. 56). Assim, se esse risco apresenta-se muito alto em um momento de entrada do filho na linguagem, pode haver uma falta de demanda desses pais. Falta de demanda de escuta, falta de demanda de fala, falta de demanda de que deixe a condição de ser privado da palavra, falta de demanda de um vir a ser sujeito. Ou melhor: não podendo suportar correr tal risco, não conseguindo agüentar reconhecer que há muitas coisas que não se sabe, os pais põemse a demandar nada dessa criança.

Quando o bebê nasce, começa a manifestar diversas sensações incômodas de seu corpo. Se a mãe passa a tomar essas manifestações como demandas de seu filho ("ele chorou porque quer mamar", por exemplo), este vai configurando-se como um ser demandante. "E, na verdade, a mãe espera que seu filho lhe demande algo, ela demanda que seu filho demande" (Jerusalinsky, 1999b, p. 117). A criança começa a ligar a sensação de malestar, sua manifestação de choro e a presença da mãe enquanto apaziguadora desse incômodo, ou seja, começa a perceber que a mãe responde a sua demanda. Na fase especular, a criança passa a ver a mãe como alguém também demandante, e aí ela começa a colocar-se para o olhar desse Outro, busca ser percebida pelo Outro, em uma sedução desse sujeito que demanda algo dela.

Quando digo que esse Outro está aí implicado, não falo da particularidade do indivíduo ou indivíduos que ocupa(m) esse lugar, mas sim de um campo simbólico que marca uma posição, um lugar que remete a essa criança, e que, portanto, implica-a. Talvez o termo "escolha" não seja apropriado (por parecer uma opção consciente feita por um sujeito psiquicamente constituído), afinal estamos falando de uma fase muito precoce da constituição subjetiva, em que talvez nem se possa falar de um sujeito; mas o que podemos dizer é que há algo dessa criança que é capturado nessa estrutura em constituição. O Outro só o é em relação a esse ser, e toda a questão inconsciente implicada na "decisão" da estrutura está ligada à existência desse ser enquanto lugar que ocupa para esse Outro. Como afirma Bernardino, "situar essa escolha em termos de uma determinação inconsciente da cadeia significante familiar, isto é, de um funcionamento simbólico que excede os sujeitos envolvidos, configurando lugares e destinos desde antes até de um nascimento, permite uma leitura do autismo fora dos limites inibidores da culpabilização dos pais quanto a uma pretensa 'rejeição' do filho" (Bernardino, 1999, p. 19).

Esse funcionamento simbólico, então, seria algo anteriormente determinado, mas desencadeado pela chegada dessa criança ao mundo, pelo Real que aí se apresenta e que precisa desse funcionamento simbólico para se "acomodar", para ocupar um lugar. Ao mesmo tempo em que o autista estaria como um "nada aí", também ocuparia o lugar de obturar a falta do Outro. Essas posições falam de uma mesma questão, a ausência do desejo do Outro: uma criança que se encontra com o Outro não barrado, sem esse buraco, é alguém que permanece sem lugar no Outro, o que o impossibilita de desejar em relação mesmo a essa criança, que passa a ocupar então o lugar de nada.

Laznik-Penot (1997) enfatiza que há uma diversidade de fatores que podem interferir no aparecimento de um autismo numa criança; fatores estes que dificultam ou o olhar do Outro em relação a essa criança ou a procura dessa criança por esse olhar, impedindo a montagem do laço mãebebê. Está no registro psíquico desse laço a possibilidade do estabelecimento da relação entre a criança e o Outro no âmbito do circuito pulsional. Para essa autora, o circuito pulsional é um ponto chave para pensarmos na diferenciação entre uma estruturação psicótica e uma autística. Como nenhum objeto da necessidade satisfaz a pulsão, a satisfação da pulsão "vai corresponder a uma finalização de um trajeto em forma de circuito, trajeto que vem se fechar sobre o seu ponto de partida. Mesmo se esse circuito se apóia sobre a satisfação orgânica, a satisfação pulsional é de um outro registro" (Laznik-Penot, 1997, p. 41). A satisfação pulsional está no fechamento do circuito, na passagem pelos três tempos do circuito pulsional: a busca do objeto pulsional externo, a busca auto-erótica e a alienação ao Outro primordial. Esse trilhamento marca o encontro com a satisfação do Outro, com o desejo e a possibilidade de erogenização do corpo, ou seja, a entrada no campo da linguagem.

Poderíamos dizer que a psicose infantil teria início na impossibilidade de, ao estar alienada ao Outro primordial, elaborar essa alienação no registro simbólico. Haveria, então, um fracasso na separação, na possibilidade de um corte a esse assujeitamento. Como pontua Laznik-Penot, no caso da psicose "a alienação real da criança a este Outro primordial assim se instala muito bem. O que fracassa é sobretudo o outro pólo da subjetivação do sujeito: a função separadora produzida pela metáfora paterna" (Laznik-Penot, 1997, p. 47). Já o autismo, caracterizado por uma estagnação anterior à entrada no tempo de alienação (mesmo que essa criança esteja inserida nos dois primeiros tempos), impossibilita para esse ser a satisfação pulsional que ocorreria com o fechamento do circuito. Não entrando no tempo da alienação, a criança não se assujeita ao significante (não se faz objeto para esse Outro) por não haver o encontro com a satisfação do Outro, que daria ao seu corpo algo além do Real, um significado. Desse modo, não ocorre a inauguração do sujeito do desejo, do inconsciente, ficando o ser voltado à satisfação orgânica, ao Real.

No caso do Bruno, é possível ver como ele se defende desse puro Real: estereotipias, auto-agressões, sons emitidos por ele, são elementos que revelam um corpo que se mexe, uma boca que solta barulhos, mas que não têm intuito de um ponto de chegada. Trata-se de um corpo que não foi simbolizado, que não sente dor (pois esta não foi significada), que não tem bordas.

Bernardino (2004) alerta para uma cautela quanto à questão dos diagnósticos na infância, especialmente pensando que, no campo psicanalítico, esse diagnóstico não é fenomenológico, e sim transferencial: "Por que correr o risco de propor, à criança e à família, justamente neste momento de fragilidade, de vacilação, um diagnóstico fechado que poderia funcionar como uma nomeação, um 'tu és' que pode adquirir o valor de um imperativo, de S1, colocado desde o peso do 'discurso científico', abalizado, e, aí sim, definir um destino?" (Bernardino, 2004, p. 84).

A autora indica, assim, uma abertura a um trabalho a ser feito na infância, uma possibilidade de encontro dessa criança com a alienação, com o Outro, com a linguagem, nessa fase de suspensão (e não de definição) de uma estrutura em que ela se encontra. No caso de Bruno, poderíamos falar então de uma fenomenologia autística em uma estrutura em suspensão, à espera de um encontro com esse Outro. Um trabalho aí pode entrar promovendo um novo encontro entre a criança e o Outro e a modulação dos lugares ocupados, "em que um Imaginário poderia desabrochar, promovendo a queda desse objeto real cristalizado no autista. Seria possível, então, o advento de um sujeito que, entre alienação e separação, poderia formular alguma questão sobre si, tendo vivido a angústia da incidência do desejo e do apelo do Outro para com ele" (Bernardino, 1999, p. 25). Neste trabalho, o apelo a Bruno pôde marcar uma relação entre mim e ele, possibilitando que me colocasse numa posição de mediadora (desejando, demandando, antecipando) entre ele e a linguagem.

 

Das primeiras marcas ao desenho do corpo

Nos primeiros meses, Bruno era muito agitado, e minha presença ou a presença de qualquer outro ali não encontrava em Bruno qualquer elo significante ao qual pudesse se prender. As auto-agressões, comuns nessa época, eram indispensáveis para Bruno conseguir se ancorar em algo: ao deparar-se com uma dificuldade na relação com a palavra que vinha do Outro, sua saída era bater-se e jogarse ao chão, marcando uma retomada à única possibilidade sua de integridade, o Real.

Em meio a essa agitação, havia situações repetidas por meses todos os dias, nas quais ele estabelecia rituais de organização ou de atividades e movimentos, dos quais ele demonstrava precisar. Tais situações foram, por mim, sendo olhadas como um modo de organização particular de um mundo externo que chegava até ele sem poder ser tomado por uma rede simbólica. As defesas de tipo autístico, expostas através dessa função organizadora do Real, eram, em muitas ocasiões, o modo de Bruno se enunciar, e eu comecei a enunciar a ele uma antecipação de significados que eu via ali.

Um dos momentos em que Bruno ficava muito atento era a hora de escrever a agenda do dia. Nos primeiros meses do meu trabalho com ele, eu escrevia no computador e ia mostrando a ele o que a turma iria fazer naquele dia: a escrita entrava como um auxílio concreto de um "contrato de trabalho" diário, o qual retomávamos cada vez que fosse necessário. Aos poucos ele foi tomando o meu lugar e escrevendo no computador algumas palavras ligadas às atividades da escola ("roda", "lanche"). Parecia que ele associava o som de uma palavra que ele conhecia, que fazia algum sentido para ele, àquele conjunto de letras dispostas naquela ordem.

Nesse primeiro ano do trabalho, Bruno também começou a escrever no computador ou com alfabeto móvel nomes de personagens que ele via escritos nos filmes e desenhos assistidos por ele. Esses modos de utilização das palavras escritas, se ainda ligados a algo bastante concreto, privados de generalização ou capacidade de abstração, indicavam um interesse por esses símbolos gráficos (letras, palavras) e a compreensão por parte dele de que estes remetiam a alguma outra coisa, poderiam ser colocados no lugar de, ou para representar algo que não estaria ali. A palavra, então, entrava aos poucos como uma possibilidade de substituição, de simbolização, ali onde só havia Real.

O aparecimento do interesse de Bruno por escrever palavras (ainda que não utilizasse o lápis para isso) ocorreu na medida em que ele conseguiu apropriar-se de marcas que, por menores e mais simples que fossem, de algum modo apontavam para uma interrupção do modo como até então lidava com o que chegava até ele. Bruno começava a apontar um caminho (que apostei ser) possível de encontro com o Outro através da escrita. Um trabalho nessa direção teria que englobar certamente uma abertura à construção de um corpo imaginário, afinal, não é possível incorporar a instância do Outro se esse próprio corpo mantém-se no puro gozo. "Tanto na leitura como na escrita a letra entra no registro do significante por essa via, ou seja, para ser leitura ou escrita tem de cumprir esta condição, entrar na via do Outro" (Milmann, 2003, p. 36).

O corpo de Bruno estava, para ele, misturado com as outras coisas ao seu redor – como algo que era possível de se jogar no chão, bater, colocar num canto quando atrapalhava de alguma forma. O seu corpo não era tomado na constituição de si, não lhe dava consistência enquanto imaginário sobre si mesmo. Segundo Sibemberg (1998, p. 65), "se, por alguma razão, há uma falha precoce na apresentação dos referentes imaginários e simbólicos ao bebê, seja por razões fantasmáticas, seja secundária a problemas nas constituições orgânicas constitucionais da criança, esta pode ficar excluída do campo das trocas simbólicas da linguagem, reduzida ao real de um corpo perceptivo não subjetivado". Ao encontro dessa idéia, Jerusalinsky fala: "o autismo consiste na ausência do Imaginário/Simbólico propriamente ditos. A idéia é que o espelho que o intermediário mater-no oferece à criança a devolve permanentemente à esfera do Real" (1984, p. 27).

Foi no sentido de possibilitar a abertura para uma imagem corporal e uma significação para esse real do corpo, que comecei a provocar Bruno com jogos de olhares, a brincar com o desaparecimento, as bordas, o contorno, o tato. Através de seu interesse pelo espelho, eu e Bruno iniciamos nossas "conversas" sobre o seu corpo. No início, ele nem percebia uma careta que eu imitava dele, e incomodava-se quando eu o olhava pelo espelho. Aos poucos, ele passou a inverter os lugares – provocando-me ao fazer aparecer e desaparecer sua imagem no espelho, ficando na minha frente e imitando as caras que eu fazia com o rosto, pedindo cócegas. Em meio a tudo isso, eu nomeava as partes do seu corpo ou registrava a ele em voz alta suas reações, como que em uma função de tradutora – colocando na linguagem o que ele apresentava enquanto Real.

Desde que eu iniciei o trabalho com o Bruno, percebi sua fixação por três cores: o rosa, pelo qual a fixação era maior, o amarelo e o azul. Quando começávamos a trabalhar com algum material – lápis de cor, gizes, peças de jogos, livros – a primeira coisa que Bruno fazia era procurar essas três cores e deixá-las juntas, mas separadas do resto. Tínhamos na sala fotos das pessoas da sua família, inclusive a dele mesmo. Apesar de me mostrar onde estavam todas as pessoas sobre as quais eu lhe perguntava, quando indagava "onde está o Bruno?", ele parecia ensurdecer. Era como se ele não quisesse saber daquilo, muito provavelmente por razão de uma ausência da representação de sua imagem. Certo dia, Bruno foi buscar uma peça rosa, uma amarela e uma azul e colocou uma ao lado de cada foto que ele havia separado: a rosa ao lado da sua foto, a azul ao lado da foto da irmã e a amarela ao lado da foto do irmão. Apostei em uma brecha que se abria à representação e traduzi sua própria marca construída: ele se singularizava por aquele rosa; a primeira representação de si que Bruno pôde fazer foi através de uma cor, diferenciando a sua marca de outras que atribuía aos irmãos. Parecia estar se construindo um corpo imaginário, marcado de alguma forma por um primeiro traço pelo qual Bruno pôde dizer-se.

O corpo real a que ele dava atenção pelo espelho começava a ser bordeado, possibilitando uma separação de si em relação ao mundo a partir dessa referência. "Se não há simbolização primordial, o Outro se apresenta como um Outro maciço, completo, que não comporta a escansão presença/ausência, nem a concomitante extração do objeto que o descompletaria" (Ribeiro, 2005, p. 40). Ribeiro fala aí de como o Outro se apresenta para a criança autista: um Outro excessivo. Penso na possibilidade do advir de um Outro fundador e incompleto para Bruno, justamente pelo encontro com o imaginário e a simbolização; encontro ao qual ele parecia então se permitir – "ao mesmo tempo em que começa a se delinear sua imagem corporal, o Outro surge não como ameaçador, mas como um lugar possível ao qual dirigir suas demandas" (Hanff & Petri, 1998, p. 32).

Bruno começou a olhar quando eu o chamava pelo nome. Aos poucos, a imagem corporal ligada a esse nome foi aceita por ele, e, depois, ele mesmo começou a construí-la. Bruno não pegava no lápis para desenhar, rabiscar ou escrever. Seu traçado era fraco, e suas garatujas a princípio não tinham a intenção de representação de algo. A partir das brincadeiras com a imagem de seu corpo, fomos passando essa imagem para o papel: eu o desenhava e ia mostrando, a cada parte desenhada, aquela correspondente no seu corpo; olhando-se no espelho, ele começou a desenhar-se, e eu me colocava como intérprete, contando cada parte do corpo que ele traçava no papel, ou indagando a respeito de algum nariz ou braço esquecido. Ao mesmo tempo em que foi aperfeiçoando sua imagem no papel, seu traçado foi ficando mais firme e claro.

De um Real do corpo, Bruno pôde marcar-se inicialmente por uma cor para, em seguida, construir uma representação imaginária de si (através do desenho). O que lhe dava consistência, agora, não eram mais as batidas da cabeça na parede; Bruno se ancorava na exploração desse corpo imaginário, olhando-se muito no espelho, descobrindo seus buracos e brincando de aproximar-se/ separarse do meu corpo. O que podemos notar em Bruno é que essa representação de si começou a existir. O inicial desenho de um corpo foi sofrendo transformações, e tornando-se a imagem de um corpo com direito a ser coberto de detalhes e de roupas.

 

Da inscrição da letra à identificação com o nome próprio

É nesse momento de Bruno que vejo uma primeira representação se instaurar. Uma representação que não tem ainda valor significante, que está muito ligada ao registro imaginário, mas que marca uma diferença com relação a um tempo anterior, em que havia apenas o Real. Podemos dizer que isso que aí se instaurava seria a letra, no sentido de uma primeira cifra marcando a singularidade. "A letra é o elemento que foi considerado por Freud e isolado por Lacan para tratar dessa singularidade do sujeito. É o que, na trama da constituição, marca a diferença mínima entre cada inscrição.... Marca o tempo primeiro da instalação do significante, ofertando-se como suporte material para que sobre ele a operação se desdobre" (Fragelli, 2002, p. 66). Adiante, complementa essa idéia: "O desenho põe no papel o elemento que articula as produções do sujeito, que é a instância da letra no inconsciente, ou, dito de outro modo, os traços a partir dos quais se fundarão os significantes que darão consistência ao sujeito" (p. 109). Bruno começava a dizer-se através de traços que pareciam marcá-lo a partir do apelo do Outro. Como que numa primeira inscrição de marcas feitas pelo Outro primordial, esses traços começavam a inscrever-se e escrevê-lo.

Fragelli lembra que o sujeito da psicanálise não é aquele que determina e usa a linguagem como um instrumento, e sim aquele que é determinado por ela, estando a ela assujeitado (2002, p. 21). Mais adiante, retoma a idéia, para incluir a escrita nessa idéia de linguagem: "A escrita passa a ser entendida como uma modalidade da linguagem, ou seja, assim como a fala, opera como uma linguagem e, nesse sentido, é anterior ao sujeito e participa da sua constituição" (p. 26). E, ainda, coloca a escrita no estatuto daquilo que tece o inconsciente, e, portanto, que constitui o sujeito: "O tecido do inconsciente é, para Freud, uma escrita. Essa escrita inconsciente, na metapsicologia psicanalítica, é o texto construído pelas inscrições dos traços mnêmicos e, como analisamos, são marcas da relação do sujeito com a linguagem" (p. 53).

A partir do momento em que Bruno passou a representar-se pelo desenho, abriu caminho para sua escrita inconsciente, instaurando uma primeira letra e, assim, possibilitando uma abertura aos tempos de constituição do significante. O desenho representava-o, mas parecia estar carregado de um sentido fixo e por isso mesmo impossibilitava os deslizamentos da cadeia significante, inaugurada justamente por uma rasura, uma fenda entre objeto e significante. "Qualquer imagem, figura ou palavra pode ser significante, funcionar com estrutura de escrita, isto é, organizar-se no sistema simbólico e ser passível de leitura, e para que possam ser lidas devem funcionar como letras, esvaziadas de sentido e destituídas de sua função representativa" (Lacet, 2003, p. 54). A marca de Bruno, ao contrário, era totalizante em sua representação: trata-se de um primeiro tempo de constituição do significante.

No segundo tempo, há o recalcamento primário: o apagamento da letra, do traço inicial do primeiro tempo (S1). A marca de um S2 pode assim se instaurar, possibilitando que, pela inauguração inconsciente feita pelo par S1 – S2, outros significantes se liguem à cadeia. O terceiro tempo "é o momento em que o sujeito desponta a partir da leitura das marcas anteriormente inscritas – e essa é a condição de sua constituição, dar uma significação própria, interpretar suas marcas no campo do Outro. O operador dessa leitura seria o significante Nome do Pai, aquele que confirma a divisão do sujeito pela linguagem que submete o sujeito à lei simbólica" (Lacet, 2003, pp. 56-57).

Talvez uma outra representação de si – a escrita do seu nome – possibilitasse um deslocamento dessa identificação com a imagem para além dessa marca imaginária pela qual ele se dizia. Mesmo não tendo havido um apagamento do traço, a possibilidade de Bruno dizer-se através de uma escrita alfabética poderia dizer de algo do simbólico aparecendo no lugar do imaginário do desenho e do Real do corpo. Como aponta Fragelli (2002, pp. 90-91), mencionando Pommier, a escrita alfabética teria aí uma ligação com a escrita inconsciente, já que, para existirem, em ambos os casos é preciso que haja um recalcamento. Para a escrita inconsciente se inaugurar, é preciso um recalcamento do traço, como colocado anteriormente; do mesmo modo, para que haja uma escrita alfabética, é preciso deixar de lado o aspecto real da letra, sua imagem. Caso contrário, "presos ao desenho de cada letra, não poderemos ler ali nada além de formas; ao invés da letra S, no máximo, veríamos o desenho de uma minhoquinha" (Fragelli, 2003, p. 90).

Em suas pastas e cadernos e na estante da sala, o nome de Bruno, como os dos colegas, estava escrito, mas ele parecia, a princípio, não se identificar ali. A partir do momento em que passou a apontar para si quando pegávamos sua foto, introduzi as palavras escritas correspondentes aos nomes dele, das pessoas da família e da escola. Ofereci a ele um significante para identificá-lo, algo do simbólico que, diferente de dar consistência, permite flexibilizar, brincar, deslizar pelo campo das palavras.

No final do nosso primeiro semestre de trabalho, Bruno se reconhecia pela palavra escrita "Bruno", mesmo que a princípio parecendo uma ligação muito fixa, um substituto do desenho, que não pedia outro significante para formar uma cadeia de representação. Apesar disso, essa relação que começou a fazer entre seu nome escrito e sua imagem, impulsionou-o para a construção desse significante: Bruno passou da identificação com o nome para o começo de uma escrita do mesmo.

 

Da escrita do nome próprio a uma posição de falante

Inicialmente, Bruno precisou de ferramentas mais indiretas que o papel e o lápis para escrever-se. Mesmo reconhecendo as letras no teclado do computador e as letras do alfabeto móvel para construir seu nome, identificando-se com ele, Bruno era incapaz de traçá-las com o lápis no papel. Essa sua impossibilidade foi vista por mim como uma dificuldade com relação ao lugar que poderia ocupar ao entrar nesse mundo da escrita: a escrita à mão e seu traçado diriam da sua singularidade.

A partir de materiais variados (colagem, recorte, massinha, na areia), Bruno passou semanas experimentando o movimento da primeira letra de seu nome. Aos poucos ele foi traçando essa letra, para a qual às vezes eu dava continuidade, escrevendo o resto do seu nome, às vezes não. Inicialmente nada vinha, a partir dele, depois do B, mas foi justamente com essa letra que ele passou a dizer-se. Depois, mesmo com seu traçado ainda bastante fraco, era possível ver uns rabiscos dando continuidade ao seu nome: ele estava começando a colocar uma seqüência de marcas para se dizer. E dizia-se, agora, de uma posição de sujeito: a sua escrita do nome próprio (mesmo aparecendo só um "B", ou "B ^^ ~") foi a primeira marca produzida por Bruno que não estava ligada a ele "ponto a ponto".

Podemos pensar, portanto, que há algo do significante como algo que remete o sujeito ao Outro que começa a se inscrever em Bruno. "O corpo deve se desprender do imaginário da letra para que a letra possibilite o acesso ao sentido" (Milmann, 2003, p. 38). O desenho e a escrita alfabética, num primeiro momento interessando a Bruno enquanto fragmentos do real com os quais fazia uma tentativa de organizar aquilo que não pôde ser inscrito no registro simbólico, aos poucos foram sendo bordeados imaginariamente e tomados de sentido. "A falha no imaginário torna problemática a organização das representações próprias ao registro do inconsciente, e, apoiando-se nas imagens, a criança pode realizar uma suplência à circulação dos pensamentos inconscientes" (Pavone & Rubino, 2003, p. 74).

Um ano havia se passado desde que iniciei o trabalho com Bruno, e ele começava a escrever as outras letras do seu nome, no início bem fraquinho ou tremido, depois com mais segurança, como que determinado: "BRUNO" era o que o identificava, e ele apontava para si ao ver essa palavra escrita. Poderíamos dizer que essa escrita de uma palavra pela qual se dizer ampliou as possibilidades de relações de Bruno com a linguagem, abrindo as portas para uma trilha em direção a uma outra escrita, a inconsciente. Freud, em Uma nota sobre o 'Bloco Mágico', aponta para uma escrita inconsciente ao afirmar que os traços, captados pelo sistema consciente, não são aí inscritos. "A camada que recebe os estímulos – o sistema Pcpt.-Cs. – não forma traços permanentes; os fundamentos da maioria ocorrem em outros sistemas contíguos" (Freud, 1996/1925, p. 258), ou seja, no inconsciente, como Freud propõe adiante. Essa inscrição dos traços no inconsciente marca a inauguração do sujeito ao instaurar uma abertura para o funcionamento significante.

Depois que escreveu seu nome, foi com grande interesse que começou a nomear pela escrita outras coisas ao seu redor. Parece que depois que Bruno conseguiu deparar-se com sua identidade imaginariamente situada em seu corpo e nomear-se, pôde, de um novo lugar (um lugar de metáforas possíveis), enxergar as outras coisas e pessoas e querer, também, nomeá-las, atribuir-lhes lugares, identificá-las, organizar o que o rodeia pela escrita, numa tentativa de assim também ocupar um outro lugar, definindo-se na escola, em casa, no mundo.

Nesse movimento de representar-se, Bruno despertou novos olhares dos colegas da turma, e deu abertura a novas tentativas pedagógicas por parte dos professores, o que lhe possibilitou conquistar um novo lugar dentro da escola. As crianças que já tinham uma relação mais próxima com Bruno interessaram-se em ajudá-lo a escrever outras palavras e passaram a chamá-lo para trabalhos em grupo e a atribuir tarefas a ele. Essas tarefas inseriam Bruno na autoria do trabalho, e ele assinava seu nome ali, marcando uma nova posição dentro da turma: Bruno passava de ouvinte a participante no meio social.

A escrita de Bruno, composta de algumas palavras, não se mostra como uma escrita submetida às leis sociais que a ordenam; mas poderíamos caracterizá-la como uma escrita incipiente, no sentido proposto por Fragelli (2002, p. 131), uma escrita que possibilita uma abertura para o sujeito se dizer, mesmo que por alguns poucos significantes. Tendo acompanhado Bruno, pude perceber que essa primeira escrita incipiente funcionou como alavanca para Bruno conquistar novos significantes, marcar diferenças, posicionar-se socialmente com menos dificuldade e, mesmo, começar a falar.

No ano seguinte, Bruno começou um trabalho de detalhamento das partes do corpo, observando, mexendo, desenhando, montando e escrevendo cada uma delas. Foi durante esse ano que sua escrita deslanchou. Logo após a escrita dessas partes do corpo, passou a escrever as atividades que faríamos no dia, nomes das cores, nomes de bichos, meses do ano, nomes de pessoas, comidas, formando grupos de palavras, marcando diferenças entre esses grupos através da escrita. Enquanto sujeito identificado ao seu nome, começava a singularizar-se ao tomar outros significantes para representar-se. Não apenas o significante "Bruno" remetia a ele: nas suas experiências de agrupamentos de palavras, apontava para si quando escrevia "pessoas", depois começou a se incluir no grupo dos meninos.

Ao longo do ano sua agitação foi diminuindo, dando lugar a uma crescente concentração. Na metade do ano ele foi dispensando de minha presença durante algumas atividades, pedindo um espaço maior em certos momentos. Depois que o Bruno conquistou um lugar para si, pôde colocar-se como aluno dentro da escola, permitiu-se flexibilizar tanto atividades do dia-a-dia quanto atitudes frente a situações diversas e "improvisar" nas relações com as outras pessoas.

No final desse ano, Bruno começou a atribuir uma outra função para sua escrita: além da possibilidade de simbolização e diferenciação que vinha oferecendo sua escrita, Bruno começou a dar os primeiros passos em direção a uma comunicação com os outros, através dessa escrita, na escola e em casa. No início da 4ª série e do meu terceiro ano de trabalho com Bruno, ele começou a mostrar interesse pela fala e pela relação entre a letra escrita e seu som. Bruno começou a usar a escrita como uma alavanca para a fala. Ele passou a responder às pessoas falando, mesmo muitas vezes não sendo compreendido pelo outro (sua fala constituía-se de balbucios, sílabas repetidas). Suas constantes tentativas nesse sentido mostraram uma procura por essa comunicação pela fala, e talvez seu desejo de ter as ferramentas para inserir-se nesse grupo dos "falantes".

 

Considerações finais sobre a escrita e a constituição do sujeito

Muitas questões a respeito das relações entre escrita e a constituição do sujeito, bem como sobre a função do A.T., as questões diagnósticas do autismo e as interfaces entre psicanálise e educação podem ser formuladas a partir de relatos como este, cujo valor não se funda no saber técnico que poderia se encerrar aqui, mas constitui-se justamente na construção de possibilidades de encaminhamentos, interrogações e invenções. "Quando o saber médico, psicológico ou saber educativo tampam com um saber técnico o que essa criança quer saber, fechamos, a partir da técnica, todo o espaço da subjetividade que nessa criança está se constituindo" (Jerusalinsky, 1999a, p. 62).

Em se tratando de um sujeito em constituição, Bruno foi dando bordas a seu corpo e construindo uma consistência imaginária que lhe permitiu uma primeira identificação com o desenho. Da representação imaginária, pôde desligar-se do Real do corpo e tomar a palavra escrita – o nome próprio – para dizer-se. Esse encontro com a escrita e com os significantes permitiu que ele caminhasse no sentido da escrita inconsciente. Esse processo de Bruno "aponta para o universo da escrita alfabética como uma alternativa de linguagem, como uma modalidade que se oferta ao sujeito no esforço de alavancar a operação significante" (Fragelli, 2002, p. 131). A conquista da escrita não foi somente um crescimento pedagógico, e sim uma possibilidade para Bruno se dizer.

Assim, é possível dizer que a escrita ocupou uma função importante no processo de estruturação subjetiva, ao ser tomada, através da aposta e do apelo do Outro, como marca simbólica. As letras escritas, ao serem tomadas como significantes com os quais Bruno pôde se dizer, funcionaram como linguagem, inauguradora de uma Lei inconsciente que pôde talvez mudar o rumo dessa estruturação e, com certeza, abrir possibilidades de outros lugares para o sujeito.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: nanamelao@hotmail.com

Recebido em setembro/2008
Aceito em novembro/2008

 

 

NOTA

1 Artigo produzido como trabalho de conclusão do curso de Especialização em Psicologia Clínica – Abordagem Psicanalítica pela PUC-PR, sob orientação da Profª. Drª. Leda Mariza Fischer Bernardino.

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