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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.13 n.25 São Paulo dez. 2008

 

DOSSIÊ: ESCRITAS II

 

Escrevendo a psicanálise em uma prática de pesquisa1

 

Writing the psychoanalysis in research practice

 

Escribiendo el psicoanálisis en una práctica de investigación

 

 

Maria Cristina Poli

Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (LAPPAP/UFRGS)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A prática da pesquisa em psicanálise é analisada à luz do contexto das relações entre instituição analítica e universidade, bem como da subversão histórica que o paradigma da linguagem aporta para o estudo do homem pelas ciências. O artigo se propõe ainda a pensar a prática da pesquisa dentro de um contexto de formação analítica, considerando a noção de "fato clínico" como correlativa da inscrição da psicanálise na cultura.

Descritores: pesquisa em psicanálise; formação psicanalítica; fato clínico; experiência; linguagem.


ABSTRACT

The research practices in psychoanalysis is analysed in the context of the relations between analytical and university institution, as well as the historical subversion that the paradigm of language brings for the study of the Man by sciences. The article aims still think the research in psychoanalysis in the context of analytical formation, considering the notion of "clinical fact" as correlative of the inscription of psychoanalysis in culture.

Index terms: research in psychoanalysis; psychoanalytic formation; clinical fact; experience; language.


RESUMEN

La práctica de la investigación en psicoanálisis se examina bajo el contexto de la relación entre institución analítica y universidad, así como la subversión histórica que el paradigma del lenguaje contribuye al estudio del hombre por las ciencias. El texto se propone también a pensar la practica de investigación en el contexto de formación analítica, teniendo en cuenta la noción de "hecho clínico" como un correlato de la inscripción del psicoanálisis en la cultura.

Palabras clave: investigación en psicoanálisis; formación psicoanalítica; hecho clínico; experiencia; lenguaje.


 

 

1. Contexto da pesquisa em psicanálise: universidade e instituição

"A inclusão da psicanálise no currículo universitário seria sem dúvida olhada com satisfação por todo psicanalista. Ao mesmo tempo, é claro que o psicanalista pode prescindir completamente da universidade sem qualquer prejuízo para si mesmo." (Freud, 1919/n.d.).

O tema da pesquisa é, ao mesmo tempo, novo e antigo na psicanálise. Antigo pelas relações que alguns de seus principais autores trilharam na universidade, instituição da qual o termo "pesquisa" provém. Contudo, abordar esse tema demanda sempre que se construam pontes e justificativas, seja para os outros ou para nós mesmos, para a inserção da psicanálise nesse lugar. Constata-se hoje que a criação de Laboratórios e Grupos de pesquisa em psicanálise na universidade é cada vez mais numerosa. São lugares que visam criar as condições para que a produção de psicanalistas possa encontrar vias efetivas de circulação e, também, para que os diálogos entre essas produções possa se dar.

O "novo" na abordagem desse tema diz respeito à necessidade constante de atualizá-lo diante dos contextos e das interlocuções que estão em causa a cada momento, da importância da renovação e da invenção inerentes à pesquisa em psicanálise, e que a justifica, e dos desafios políticos que se apresentam e se renovam.

Podemos afirmar, assim, que há um desafio interno ao campo da psicanálise – a renovação/invenção de seu saber e de sua prática, fundada na particularidade de que, para cada analista, como para cada caso clínico, é necessário reinventar toda a psicanálise novamente. Isso porque o saber psicanalítico tem a peculiaridade de ser especialmente suscetível ao recalque, e é graças a isso que se pode operar para buscar, não um conhecimento, mas a posição de enunciação que situa a produção de um saber singular.

Na orientação de trabalhos de pesquisa, acompanhamos, em cada aluno, esse processo de construção de uma questão e de um saber singular no campo da psicanálise. Isso é sempre novo. Talvez um dia os analistas que orientam trabalhos de pesquisa se dediquem à tarefa, importante, de construir uma teoria sobre a transferência na orientação de pesquisas e sua função no percurso de formação analítica.

Outro desafio que é sempre novo e renovado é o da relação com os pares dentro do espaço universitário. Isso poderia nos levar muito longe, desde considerações históricas sobre a relação da psicanálise com a universidade, até questões do funcionamento burocrático de órgãos reguladores de pesquisa etc. Sem entrar nos detalhes, podemos afirmar que hoje vivemos um momento paradoxal. Por um lado, no Brasil ao menos, a psicanálise nunca teve tanta expressão no meio universitário. Há um número importante de psicanalistas trabalhando no âmbito acadêmico e que tem uma valiosa produção. Até uns vinte anos atrás, a psicanálise era uma teoria a mais no campo da psicologia e da psiquiatria. Hoje, ela está cada vez menos presente na psiquiatria, mas é ensinada por psicanalistas na psicologia, por meio de seminários, supervisão e orientação de pesquisa. É certo que isso tem efeitos, mesmo que num enquadre de formação acadêmica de psicólogos, e não em uma instituição de formação de analistas.

Além disso, essa comunidade de analistas que trabalham na universidade conseguem constituir circuitos de circulação de transferência que garantem – através dos Laboratórios, grupos de pesquisa e redes inter-universitárias – reconhecimento do valor de sua produção pelos órgãos de fomento que se reverte em verbas de pesquisa, financiamento e incentivo a publicações, eventos etc. Claro que esses dispositivos correm muitas vezes o risco de tornarem-se sistemas corporativos, exclusivamente burocráticos e protecionistas. E isso pode ser mais prejudicial à produção psicanalítica do que o ostracismo. É, contudo, necessário reconhecer que a psicanálise, sobretudo lacaniana, tem atualmente no Brasil um lugar de destaque e reconhecimento no circuito universitário.

Por outro lado, essa visibilidade reinscreve os sistemas de resistência ao saber psicanalítico. Na prática, observa-se a constância de um embate político – a busca de reconhecimento da especificidade da pesquisa em psicanálise junto ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), à ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia), aos Comitês de Ética em pesquisa etc. No entanto, se tal reconhecimento fosse assegurado, a expressividade e a consistência da psicanálise seriam incluídas no processo universitário de especialização das áreas da psicologia. Nesse sentido, que a psicanálise entre no rol das "especialidades" não é muito alvissareiro. Há quem, em função disso, ainda seja saudoso do tempo em que os alunos que queriam estudar psicanálise faziam-no em grupos de estudos extra-acadêmicos. Era mais subversivo e, por isso mesmo, talvez mais propício à formação analítica. Mas, enfim, são outros tempos.

Um outro conjunto de questões se abre quando focamos os efeitos da pesquisa em psicanálise nas instituições de formação psicanalítica. É sempre muito complicado falar de modo genérico, mas, se retomamos a história, é preciso reconhecer que a relação instituição/universidade é marcada por idas e vindas que nos fazem pensar no percurso da formiguinha de Escher sobre a banda de Moebius. Freud não conseguiu ingressar na universidade e, em parte, a criação da IPA se deve a isso. Segundo suas próprias palavras: "O fato de que uma organização dessa natureza [a instituição psicanalítica] existe, deve-se, na verdade, à exclusão da psicanálise das universidades. E, é, portanto, evidente que esses sistemas de organização continuarão a desempenhar uma função efetiva enquanto persistir tal exclusão." (Freud, 1919/n.d.)

Lacan, quando "excomungado" da IPA, buscou na Escola Normal Superior (ENS), por intermediação de Althusser, um lugar para sediar seu ensino. À criação da Escola Freudiana de Paris, em 1964, seguiu-se da implantação do departamento de psicanálise na universidade de Paris 8 – Vincennes, conduzida por Leclaire. A posição ambivalente de Lacan a esse respeito, segundo testemunho de Roudinesco (1988), não impediu que até hoje o ensino lacaniano na França tenha na Universidade um importante lugar de difusão.

Criaram-se, portanto, vias paralelas, às vezes opostas, às vezes complementares. Em todo caso, lugares distintos. Formalmente, a universidade caracteriza-se pelo tripé ensino, pesquisa, extensão; a instituição analítica tem outro tripé: análise, supervisão, transmissão (Rosa, 2001). A oposição ou complementaridade entre esses termos coloca a questão da função que um lugar e uma posição que marcam a diferença presente nestes termos têm para um psicanalista.

É curioso como tanto Freud como Lacan precisaram apoiar-se em uma contestação para sustentar a transmissão. A presença do opositor, do resistente, até mesmo de um sabotador, é onipresente na obra de Freud. Ele chega a criar esses personagens em alguns de seus textos: o opositor em O futuro de uma ilusão, o questionador ingênuo nas Conferências introdutórias, o "juiz imparcial" no texto sobre a análise leiga, além, claro, da encarnação mais direta dessas figuras em Jung e Adler, sobretudo.

No texto A história do movimento psicanalítico – escrito após a ruptura com eles –, Freud expressa sua preocupação por meio de uma fórmula que poderíamos repetir ainda hoje: "Pelo menos uma dúzia de vezes durante os últimos anos li em relatórios de congressos e de órgãos científicos, ou em resenhas críticas de certas publicações, que agora a psicanálise está morta, derrotada e eliminada de uma vez por todas. A melhor resposta a isso seria nos termos do telegrama de Mark Twain ao jornalista que publicou a notícia falsa de sua morte: 'Informação sobre minha morte muito exagerada'. Depois de cada um desses obituários a psicanálise ganhava novos adeptos e colaboradores ou adquiria novos canais de publicidade. Afinal de contas, ser declarado morto é melhor do que ser enterrado em silêncio." (Freud, 1914/n.d.).

Lacan também gostava das oposições. É conhecida a importância que a crítica à psicologia do ego e aos seus personagens tem para ele, e sabemos como pode ser violenta a forma como essa contestação colocou-se em sua obra. Porém, que isso o tenha feito trabalhar significa que não se tratava de um embate narcísico, de simples contraposição, mas da possibilidade de construção de um lugar terceiro, o lugar da obra, da inovação. A psicanálise é uma "paranóia dirigida", dizia Lacan (1998a, p.112), e colocava efetivamente isso em prática na posição de analisante ao longo do seminário.

Além disso, encontramos também, tanto em Freud como em Lacan, o reconhecimento da própria voz nessa espécie de alter-ego persecutório. Algumas vezes, Freud é ele mesmo autor dessas oposições ao criar personagens que o contradizem. Também Lacan, de modo talvez mais sutil, faz críticas derrisórias de suas próprias proposições em diferentes momentos de seu ensino.

Nesse sentido, ter na universidade um espaço de exercício dessa tensão, dessa oposição, seja entre saberes, seja com os próprios dispositivos, pode fazer bem para a psicanálise, pois esse lugar de resistência pode sustentar essa oposição necessária, ao seu discurso, que lhe permita avançar. Pode, por outro lado, preservar a unidade na instituição: afinal os inimigos estão fora. Nunca escapamos inteiramente desses fins corporativos. De qualquer modo, isso também nos indica o risco que corremos quando aportamos na instituição significantes que lhe são, a princípio, estrangeiros.

Seria, então, possível fazer "pesquisa" na instituição analítica? Isso começa a acontecer, como tentativas de construir um espaço interno à instituição que inclua os litorais da psicanálise, as zonas de diálogo, de indeterminação, de indefinição. Por outro lado, mantém-se o desafio de preservar a particularidade e especificidade de uma instituição de formação analítica, preservando-a em exterioridade com o âmbito da pesquisa

Esses litorais ou zonas de indeterminação – afinal, quando se está na beira do mar, não se sabe bem onde termina o mar e começa a areia – podem ser variados. Além da questão da pesquisa, a instituição analítica tem hoje o desafio da construção de espaços que propiciem o exercício da psicanálise em extensão. A prática efetiva, e cada vez mais comum, de psicanalistas em instituições públicas (saúde, assistência, educação, cultura) e privadas (assessorias/consultorias), e o retorno dessas experiências para as instituições de formação em psicanálise, coloca a necessidade de constituição de novos espaços institucionais. A instituição analítica, hoje, tem a tarefa de repensar seus litorais para que esses movimentos tenham lugar e possam ter conseqüências ainda mais importantes para a formulação e sustentação do discurso psicanalítico. Reconhecese, assim, nessas experiências "extraclínicas" (a "psicanálise extramuros") uma função de interrogação da doutrina, de corte no saber constituído, de reinvenção dos pontos de ignorância da qual nós, analistas, somos tributários e que nos interessam sobremaneira como espaços de alteridade (entre opositor, juiz e endereço de uma transmissão) constitutivos do nosso campo.

 

2. Os muros (ou extramuros) da psicanálise e a produção do objeto na prática de pesquisa

A expressão "extra-clínica" ou "extramuros" para referir-se a práticas que excedem ao denominado setting analítico é curiosa. Lembramos de Lacan, quando diz no seminário O saber do psicanalista: "eu falo aos muros" (Lacan, 1971-72/inédito) Ele refere-se aos muros do hospital Saint-Anne no qual está proferindo seu seminário. Situa neles, alegoricamente, a barreira impermeável de divisão entre o interno e o externo que caracteriza um hospital psiquiátrico e que situa a loucura como esse espaço segregado, excluído da circulação. É também, evidentemente, uma queixa que ele profere, do mesmo tipo que lhe faz dizer em vários seminários de seus últimos anos: "vocês me escutam? Vocês estão mesmo me escutando?" Ou ainda: "por que ainda estão aqui? É mesmo surpreendente que ainda (encore) estejam aqui". Os "muros" são essa barreira de resistência, que toma a forma de impermeabilidade, de segregação ou de transferência infinita que persiste e resiste a dissolução.

O próprio Freud sabia que, ao propor a transferência como a mola do tratamento analítico, estava propondo o antídoto e o veneno em uma só substância. Transferência é resistência – necessária à construção de uma passagem. "Extramuros" pode ser, então, um muro em excesso, um mais-muro ou, ainda, uma ultrapassagem, um além do muro.

"Clínica ampliada" ou "clínica aberta" (Costa, 2007) são nomes que contemporaneamente têm sido usados para designar esses outros espaços nos quais o dispositivo psicanalítico da transferência pode operar. Como um analista pode fazer incidir aí o seu discurso? Como interpretar, cortar, pontuar – enfim, analisar, nesse contexto? Freud indicou suas dúvidas e expectativas quanto a isso: "Eu não diria que uma tentativa desse tipo, de transportar a psicanálise para a comunidade cultural, seja absurda ou que esteja fadada a ser infrutífera. Mas teríamos de ser muito cautelosos e não esquecer que, em suma, estamos lidando apenas com analogias e que é perigoso, não somente para os homens mas também para os conceitos, arrancá-los da esfera em que se originaram e se desenvolveram." (Freud, 1929/ n.d.)

Vale lembrar que, apesar de sua exemplar prudência nesse terreno híbrido, Freud – desde o início, e ao longo de toda a sua obra – incluiu em suas análises expressões individuais e coletivas do inconsciente, estudou-as e conceitualizou-as quase sem discriminar a sua procedência. Observa-se, portanto, que no trabalho de pesquisa que Freud conduz, esses muros entre singular e coletivo, entre clínica e cultura, dobram-se de um jeito que produz tensões, mas sem perder a permeabilidade.

Quem é o Freud pesquisador? Aos que querem aprender a fazer uma tese, costumamos indicar que é interessante ler alguma já feita. Se essa tese é em psicanálise podemos, então, recomendar que não leiam apenas uma, mas quatro: Estudos sobre a histeria, A interpretação dos sonhos, Os chistes e sua relação com o inconsciente e Psicopatologia da vida cotidiana. Em todas essas obras encontramos a mesma estrutura rigorosa de trabalho de um pesquisador: uma revisão bibliográfica que define o estado da questão até aquele momento; um levantamento de dados, exemplos, ilustrações do fenômeno pesquisado e uma interpretação desses elementos a partir de uma hipótese nova que dialoga com as teorias anteriores, acrescentando algo de novo.

É realmente surpreendente que possamos observar nessas quatro obras de Freud, nos quatro pilares da teoria psicanalítica – as formações do inconsciente –, uma estrutura tão semelhante, ao mesmo tempo clássica e inovadora. Inovadora porque, apesar de seguir os cânones da ciência quanto à estrutura argumentativa, a construção do objeto é absolutamente nova. Vamos situar alguns pontos dessa inovação que podem nos servir de guia para a prática de pesquisa em psicanálise hoje:

1) os objetos/fenômenos escolhidos por Freud não são quaisquer. Hoje sabemos que eles perfazem o conjunto das formações do inconsciente. Mas Freud não sabia disso de antemão. Ele não tinha uma teoria sobre as formações do inconsciente que o conduziu a estudar essas expressões. O que havia era o desejo de ciência que o movia. Em relação a isso, o que essas expressões têm em comum é a de serem fenômenos relegados pela ciência e pelo status quo intelectual. (É certo que Freud se apóia em alguns cientistas ou filósofos que haviam se interessado, mesmo que lateralmente, por esses fenômenos. Mas ele mesmo, às vezes, se culpava por haver se dedicado a coisas tão "insignificantes" como um chiste.) Além disso, não eram apenas fenômenos relegados pela ciência, mas inexplicáveis por ela. Tratava-se, portanto, de elementos que produziam (e ainda produzem) furo no saber. Objetos a da pulsão epistemofílica. Ser relegado, nesse sentido, é expressão de um "não querer saber nada disso". O descaso aqui é irmão do recalque;

2) a segunda característica é a de serem fenômenos que podem ser qualificados como universais e atemporais. Sonhar, produzir lapsos, sintomas e chistes participam da qualidade do humano, são patrimônios da humanidade. Isso porque são, todos, atinentes ao campo da linguagem e à função da fala, como dirá Lacan;

3) um terceiro elemento igualmente presente é a forma como em cada um deles se situa a dobra entre individual e coletivo. Nos chistes, isso é evidente, e sua característica mais marcante. O que os coloca lado a lado das demais formações do inconsciente é essa mesma estrutura. Vejamos: quando aborda os sintomas histéricos, Freud propõe uma analogia que não é apenas um artifício de retórica. Ele compara o sintoma conversivo com um monumento histórico, que representa um acontecimento, permitindo seu esquecimento. Tal interpretação vale tanto para o sintoma histérico como para o monumento, isto é, para a forma como se lida com os fatos históricos em uma dada sociedade. Nos sonhos – expressão que parece ser o índice máximo do que há de mais íntimo a cada um – esse elemento coletivo é expresso na homologia de seu enigma com os hieróglifos egípcios, os ideogramas orientais, essa língua cifrada, meio letra, meio desenho, que está na origem da escrita alfabética. Os sonhos são, por assim dizer, nossa Pedra da Roseta. Por fim, os lapsos. Freud não deixa de indicar quão contagioso é um esquecimento e, da mesma forma como a gente se esquece de um nome, acontece também de povos inteiros esquecerem um fato marcante de sua história.

Podemos, portanto, encontrar na obra de Freud um dos principais ensinamentos para a elaboração de uma pesquisa em psicanálise: a construção da questão, a produção do objeto a ser estudado. Hoje, podemos afirmar, genericamente, que "é o método que cria o objeto". Ou seja, que as características do que vamos pesquisar são absolutamente dependentes do tipo de estilete que se utiliza para recortá-lo. Este "estilete" em parte é a teoria, mas é também, e principalmente, a posição do analista, de seu desejo de analista, na construção da questão.

Um sonho, por exemplo, pode ser estudado também por um neurocientista, que tentará nos provar que os ratos também sonham porque emitem ondas cerebrais semelhantes às que emitimos quando dormimos. Esse sonho, no entanto, não tem nada a ver com o sonho tal como a psicanálise o concebe. Ou seja, não é o fenômeno em si que define nosso modo de pesquisar, mas a rede (significante) ou o anzol (do desejo: Che vuoi?) que jogamos para apanhálo. O objeto vem com a rede e se confunde com ela; ele traz o anzol para apanhar quem o lançou. É o retorno da mensagem, na medida em que o objeto da psicanálise é, em sua própria definição, um fato de linguagem. Ela é por princípio social, mas seu uso é necessariamente individual, como as formações do inconsciente indicadas acima.

Para concluir esse ponto, deixemos indicadas as linhas daquilo que pretendemos desenvolver a seguir. Ao eleger o campo da linguagem como seu campo de pesquisa, a psicanálise inaugura um novo paradigma. Ele não se limita, certamente, à pesquisa psicanalítica. As chamadas ciências humanas – antropologia, lingüística etc. – são tributárias da subversão, que traz conseqüências para o campo do saber científico, contida no fato de o homem ser um ser falante, ser sujeito à linguagem. A obra de Freud se situa nessa virada (a "virada lingüística"). Ele quer fazer da psicanálise uma ciência natural, mas opera com um método interpretativo que produz um objeto nada natural: o inconsciente, as pulsões, o desejo etc.

Segundo Rosa (2001), Lacan, em O seminário, livro 11, reformula a questão "a psicanálise é uma ciência?" para "o que é uma ciência que inclua a psicanálise?" Se pensarmos na trajetória de Freud na invenção da psicanálise, encontramos dois passos fundamentais: a passagem do fato acontecido à fantasia e da hipnose e sugestão para a transferência. Esses dois passos implicam numa reviravolta nos "muros" do saber. É uma mudança na forma de produzir a questão que implica necessariamente uma mudança na implicação, no topos de onde o pesquisador/analista se situa nessa produção.

Essa reviravolta pode ser expressa como o faz Lacan, ao dizer que "o sujeito está em uma exclusão interna a seu objeto." (Lacan, 1998b, p. 875) Não apenas no sentido que é lá então que temos de buscá-lo – no interior da fantasia e da transferência – mas também que é lá que temos de produzi-lo.

Ou seja, mais do que uma ciência, a psicanálise é uma ética. Também na prática de pesquisa, ela produz o sujeito, não apenas o descobre. "Eu não procuro, acho." (Lacan, 1990)

 

3. Linguagem e experiência: um paradigma para a pesquisa

Uma afirmação de Freud, bastante conhecida e referida quando se trata de pensar o tema da pesquisa, encontramos na própria definição de psicanálise em seu artigo para a enciclopédia. Segundo o autor: "Psicanálise é o nome de (1) um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica." (Freud, 1923/n.d.)

Investigação/pesquisa, tratamento e metapsicologia são, portanto, as características indicadas. Também no pós-escrito ao texto sobre a análise leiga, Freud (1927/n.d.) atribui à psicanálise essa peculiaridade: a de ser o único método no qual investigação e cura coincidem.

Essa investigação, como se sabe, Freud a estende a si mesmo, praticando algo conhecido pelo espírito científico, principalmente no campo da medicina, durante o século XIX: provar da própria invenção. Ele aplica em si sua ciência, submete-se à associação livre e testemunha isso em cartas e textos. Como um bom cientista, não é de "si" que ele fala, nem de um "si", como quem constrói um personagem – o que o colocaria no campo da literatura e da arte; ele fala do "isso" que o habita. E ali ele encontra uma condição de máxima intimidade que, no entanto, o aproxima de forma irrevogável de seus pacientes e, por extensão, de todos os seres falantes.

Quais as condições culturais para que Freud tenha dado esse passo? Lacan introduziu essa pergunta com sua noção de "sujeito moderno" e nos pôs a trabalhar em torno dela. Os trabalhos de pesquisa no campo da psicanálise, em alguma medida, têm sempre de formular uma resposta a esta questão que seja condizente com o tema pesquisado.

Temos aqui, portanto, um ponto de encontro, um litoral com a crítica cultural (sustentado pela filosofia e pela sociologia) que é interessante mencionar.

O encontro desse "isso" que perfaz o enlace entre o mais singular e o mais universal da experiência é abordado por Agamben (2005) no texto Infância e história. Ele trabalha o tema da experiência – termo herdado de Benjamim – para problematizar as condições de sua produção na contemporaneidade. Vamos recorrer a esse filósofo por meio do diálogo que ele permite estabelecer com a psicanálise, com a concepção de sujeito moderno, introduzida por Lacan.

Agamben menciona duas passagens literárias que demonstram o encontro com o "isso" da experiência (a in-fância – sem fala – da experiência) na narrativa autobiográfica de seus autores. São duas experiências de queda, uma narrada por Montaigne e outra por Rousseau. A de Montaigne, um trecho dos Essais, é assim narrada: "Um dia, eu estava a passear, não longe de casa, em um cavalo pequeno e trôpego, quando um de meus serviçais, grande e forte, montando um baio brioso que tinha uma boca impossível, mas era fresco e vigoroso, para fazer-se de valente e superar os seus companheiros, incitou-o a toda brida em minha direção, precipitouse como um colosso contra o pequeno homem e seu pequeno cavalo, fulminando-os com o seu peso e com o seu ímpeto e lançando-nos, um e outro, de pernas para o ar: e eis o cavalo abatido por terra, completamente atordoado, e eu, dez ou doze passos mais adiante, morto, estendido de bruços, a espada que tinha na mão a mais de dez passos, o cinturão em pedaços, sem mais nenhum movimento ou consciência, como uma raiz.... Quando recomecei a ver, foi com uma vista tão turva, débil e morta, que discernia apenas a luz... quanto às funções da alma, estas nasciam passo a passo com as do corpo. Vi-me todo ensangüentado, porque minha camisa estava manchada do sangue que havia vomitado... Parecia-me que minha vida não me sustivesse senão à flor dos lábios: fechei os olhos para ajudar-me, era esta a impressão, a empurrá-la para fora, e sentia prazer na languidão e no abandono." (Montaigne, citado por Agamben, 2005, pp.48-49, itálico nosso)

Mais adiante Montaigne prossegue: "Eu tinha o estômago oprimido pelo sangue coagulado e as minhas mãos para ali corriam sozinhas, como o fazem freqüentemente aonde prure, contra o parecer de nossa vontade.... Cada um sabe por experiência própria que existem partes de nós que se movem, levantam-se abaixam-se sem pedir permissão. Estas paixões, que não nos tocam senão através da casca, não se podem dizer nossas. Para torná-las nossas, é preciso que o homem nelas tenha se empenhado completamente; e as dores que os pés e as mãos sentem enquanto dormimos, estas não nos pertencem." (Montaigne citado por Agamben, 2005, pp.49-50)

Percebe-se nessa narrativa o ponto de encontro com o que constitui o solo comum da experiência, nessa indeterminação do eu, o ele, o nós. Com a queda do "eu", no desfalecimento, o mais íntimo e o mais estrangeiro se aproximam: "extimidade", é o neologismo criado por Lacan (1988).

Podemos pensar que a queda retratada pelo escritor é uma alegoria das perdas dos referentes simbólicos pré-modernos que se encontra na origem do que Freud trabalhará como "inconsciente". Segundo Agamben: "Estes episódios [de Montaigne e de Rousseau] são como dois estafetas isolados que anunciam o emergir e o alastrar-se do conceito de inconsciente no século XIX .... Pois certamente, na idéia de inconsciente, a crise do sujeito moderno da experiência – ou seja, da experiência que se funda sobre o sujeito cartesiano – chega à sua evidência máxima. Como manifesta claramente a sua atribuição a uma terceira pessoa, a um Es, a experiência inconsciente não é, de fato, uma experiência subjetiva, não é uma experiência do Eu.... Todavia, a psicanálise mostra-nos precisamente que as experiências mais importantes são aquelas que não pertencem ao sujeito, mas a 'aquilo' (Es)." (Agamben, 2005, p.51).

Essa passagem que instaura o sujeito moderno, o sujeito da psicanálise, pode ser narrada por diferentes vieses. Hannah Arendt (2005), por exemplo, menciona a invenção do telescópio – a possibilidade do homem ver-se do ponto de vista do universo – como a alegoria máxima dessa mudança de posição do sujeito. Interessante essa figura porque transmite de modo imediato a duplicação do sujeito no campo da ciência – aquele que vê e aquele que é visto; o pesquisador e o objeto da pesquisa. Ela refere criticamente o alheamento da experiência que tal perspectiva cientifica introduz, indicando que o método da introspecção (na origem da psicologia) é um modo de se olhar com os olhos da mente (como um telescópio interno).

Freud e a psicanálise são frutos desse contexto. Porém, percebe-se aí um passo a mais nessa divisão que o olhar da ciência promove e que diz respeito ao trabalho com o campo da linguagem. É neste campo que as oposições binárias, as clivagens cedem lugar a uma outra torção que implica na relação entre enunciado e enunciação, entre eu e Outro, entre verdade e ficção. Termos que não são excludentes nem contraditórios: eles têm uma relação de "extimidade", cujas malhas da experiência são tecidas pela linguagem e na linguagem.

Um importante autor a situar as condições dessas mudanças no campo da cultura e da ciência é Foucault. No livro As palavras e as coisas (Foucault, 1990), ele se propõe a ler a entrada na modernidade a partir da consideração do modo de conceber e abordar a relação da linguagem com o mundo. O que ele indica – sendo talvez excessivamente simplista com a riqueza dos elementos que ele aporta – é a ruptura entre as palavras e as coisas, quebra do signo lingüístico, desnaturação da linguagem (sua arbitrariedade) como marco de entrada na modernidade: "A profunda interdependência da linguagem e do mundo se acha desfeita. O primado da escrita está suspenso. Desaparece então essa camada uniforme onde se entrecruzavam indefinidamente o visto e o lido, o visível e o enunciável. As coisas e as palavras vão separar-se. O olho será destinado a ver e somente a ver; o ouvido somente a ouvir. O discurso terá realmente por tarefa dizer o que é, mas não será nada mais que o que ele diz." (Foucault, 1990, p. 59).

O interessante é perceber o quanto a concepção pré-moderna de uma relação imanente ou transcendente da linguagem com as coisas – que tomava a natureza como um texto a ser lido e a linguagem como uma nomenclatura – se sustentava em um referente externo: Deus ou o Cosmos. Com a perda desse referente, resta a cada um e/ou às ideologias e à ciência a constituição das condições para a produção de significações.

No inicio do livro, Foucault ilustra esse momento de ruptura, de desnaturalização do mundo, através de uma análise do quadro de Velázquez "As meninas", tela na qual, segundo suas palavras: "o que olha e o que é olhado permutam-se incessantemente. Nenhum olhar é estável, ou antes, no sulco neutro do olhar que transpassa a tela perpendicularmente, o sujeito e o objeto, o espectador e o modelo invertem seu papel ao infinito.... Somos vistos ou vemos? No momento em que colocam o espectador no campo do olhar, os olhos do pintor captam-no, constrangemno a entrar no quadro, designam-lhe um lugar ao mesmo tempo privilegiado e obrigatório, apropriam-se de sua luminosa e visível espécie e a projetam sobre a superfície inacessível da tela virada. Ele vê sua invisibilidade tornada visível ao pintor e transposta em uma imagem definitivamente invisível a ele próprio." (Foucault, 1990, p. 21).

Ele segue nessa preciosa descrição do quadro, demonstrando seu efeito de captura e de produção de enigma: o que é representado na tela? Qual o meu lugar no quadro? – duas questões que se sobrepõem na cena que inclui o espectador e que interrogam diretamente a função da representação, a relação cópia-modelo.

Esta interrogação vai ser levada às últimas conseqüências quando se percebe ao fundo do quadro um espelho que reflete a imagem do casal real – o rei e a rainha. Percebe-se, então, que são eles o modelo do pintor. Mas a artimanha de Velázquez é colocar a nós, os espectadores, nesse lugar. Como se dissesse: o poder real é contingente, depende de quem venha a ocupar uma determinada posição. Tal é o valor subversivo da tela, a desmontagem de uma lógica de poder que sustenta e organiza o campo das representações. Foucault demonstra que no lugar de uma relação biunívoca, objeto-representação, temos um lugar vazio. É esse lugar vazio, que marca a incompletude do campo do Outro, que vai dar lugar à hipótese freudiana do inconsciente.

O referente da significação não está mais, portanto, no exterior do quadro. Cabe a cada um, a cada vez, refazer o circuito, ser pego na armadilha e se safar dela. Essa experiência, que poderíamos chamar de vertiginosa, de Unheimlich, é o solo da experiência freudiana. O fato de sua pesquisa ter começado justamente pelo estudo das afasias, expressão desse vazio na relação entre as palavras e as coisas, também é prova disso. Nesse lugar, Freud perguntou pelo inconsciente, pelo desejo.

A construção de um saber na psicanálise passa por esse circuito que o quadro de Velázquez, através da leitura de Foucault, nos faz percorrer. Um desfazer das certezas apriorísticas – não são as meninas o objeto do quadro – um mergulho na cena se deixando apanhar pelo enigma, e uma apropriação do seu lugar na produção de um saber que seja condizente com seu lugar na estrutura, o que requer situar-se na psicanálise, em sua transmissão e herança e construir aí seu lugar de enunciação.

Para que isso seja possível, no entanto, é preciso partir desse ato original de aceitar a queda de um referente exterior, operação de castração simbólica que incide sobre a cultura na aurora da modernidade, mas que precisa ser refeita a cada vez, por cada um. É ela, a castração, que permite a emergência da psicanálise como exercício de uma ética que resiste à obturação desse "não saber".

 

4. Escritas da clínica

"Na psicanálise tem existido desde o início um laço inseparável entre cura e pesquisa. O conhecimento trouxe êxito terapêutico. Era impossível tratar um paciente sem apreender algo de novo; foi impossível conseguir nova percepção sem perceber seus resultados benéficos. Nosso método analítico é o único em que essa preciosa conjunção é assegurada." (Freud, 1927/n.d.).

Essa imbricação entre cura e pesquisa na psicanálise é afirmada por Freud em diferentes momentos. Ela nos indica a importância e a necessidade de interrogarmos o lugar e a função do caso clínico num trabalho de pesquisa em psicanálise. Abordaremos esse tema dentro da perspectiva do trabalho que viemos fazendo – qual seja, de situar as condições de produção de uma pesquisa em psicanálise e o modo de operar o paradigma da linguagem que ela coloca em causa. Cabe retomar, para tanto, alguns elementos.

Primeiro, vale salientar que a questão da verdade na psicanálise fica sempre remetida para o interior da linguagem, o lugar vazio no qual o sujeito da enunciação e os efeitos de significação se produzem. Em termos mais amplos e conceituais, Freud denomina "umbigo do sonho" esse ponto, esse elemento, esse solo comum da experiência e da linguagem que toca na dimensão do irrepresentável do sexo e da morte.

Dentro da própria teorização psicanalítica, esse elemento pode ser situado no caso clínico. Conforme expressa Lacan: "O que é a clínica psicanalítica? ... a clínica é o real enquanto impossível de suportar." (citado por Porge, 2007, p. 10). Se tomarmos o real como aquilo que resiste a se fazer representar, o que "não cessa de não se escrever", temos justamente o encontro com o extremo singular do caso, presente em cada transferência, que resiste a ser posto em discurso, a ser incluído no trabalho do conceito.

Por outro lado, e em certo sentido, paradoxalmente, não há psicanálise, e muito menos pesquisa em psicanálise, sem o encontro desse real. Nesse sentido, o trabalho de pesquisa opera nessa tensão, nessa interface de recobrimento impossível entre o simbólico dos significantes disponibilizados pela teoria psicanalítica e o real da clínica.

Alguns autores que desenvolveram trabalhos sobre os casos clínicos de Freud indicam a importância da escrita do caso. Chiantaretto (1999) é um deles. Ele afirma que é a escrita do caso que garante a Freud a possibilidade de fundar a teoria psicanalítica. Isso porque é sua característica justamente sustentar-se – como solo de experiência que afirma sua especificidade – na singularidade do caso.

É o trabalho com esse singular que Freud, ao escrever os casos clínicos, vai tentar transmitir. Segundo Erik Porge (2007), para Freud não é apenas uma escolha escrever ou não escrever o caso. É antes uma necessidade, tendo em vista a constituição do campo psicanalítico como tal. Dito de outro modo, para que Freud fundasse a psicanálise e a fizesse valer, ou seja, encontrasse uma via para a transmissão de seus princípios e de sua experiência, ele precisava passar pela escrita do caso. Porge acrescenta ainda que: "A fórmula que se impôs entre nós é que a especificidade da clínica psicanalítica, do estabelecimento de um fato clínico, de uma verdadeira nova clínica reside no método de sua transmissão. Se trata de encontrar o laço adequado entre a clínica e o que se transmite dela. O método constitui esse laço." (Porge, 2007, p. 10)

Encontramo-nos aí com o tema da transmissão como co-extensivo à escrita do caso. É justamente através dele que a articulação com o tema da pesquisa em psicanálise se justifica. Pois, fazer pesquisa em psicanálise é, como indicamos, ser afetado por sua "discursividade" (Foucault, 2001). É incluir-se como autor na sua produção, o que significa envolvimento em sua transmissão. É nesse sentido que, na psicanálise, não se pesquisa para comprovar o que já se sabe. Pesquisase, antes, para dar testemunho de um encontro com o real, com esse ponto da experiência que resiste ao saber e que opera pela via privilegiada da transmissão na psicanálise: a transferência.

Nesse sentido, cabe precisarmos o que estamos chamando de clínica e se a escrita do caso, hoje, segue os mesmos parâmetros do tempo de Freud. Em relação a esse segundo ponto, adiantamos desde já que não. A escrita do caso teve na obra de Freud um lugar de fundação do campo que não está mais em questão hoje. Por isso, ninguém conseguiria, nem Lacan conseguiu, escrever casos clínicos como Freud escrevia. O caso escrito por Lacan (caso Aimée), assim como aqueles escritos por Melanie Klein, Dolto e outros, introduzem sempre algum elemento de inovação conceitual que é extensivo ao modo, como o caso é apresentado. Esta, via de regra, não é uma operação corriqueira.

Normalmente, o caso é trabalhado como "fato clínico". Como sustenta Cyssau (1999) ao definir "fato clínico": "O caso não é toda a clínica, mas o acontecimento na clínica" (p. 61). Esse acontecimento é, segundo essa autora, reconhecível por dois elementos: seu efeito de ruptura, de corte que bascula a teoria e a inclusão do sujeito nesse corte (fazer corpo à essa experiência). Trata-se, portanto, de reconhecer aí o ponto de encontro e enlace entre a insuficiência do aparelho conceitual e a inscrição do circuito pulsional. Isso é mais forte do que dizer que algo se produziu e "fez enigma". O enigma pode ser uma forma de encobrimento, de véu, ao já conter a solução em sua própria formulação. Somos tentados a dizer que o "fato clínico", no sentido que Cyssau o define, faz sintoma: o sintoma de ter de produzir uma pesquisa.

Sustentar a prática de pesquisa como um sintoma, requer reconhecêla como decorrente, do lado do analista, de seu lugar na neurose de transferência. Para que o analisante entre na transferência é necessário que o analista fique alienado à posição de objeto a do fantasma. A passagem desta posição a sua queda – o "des-ser" do analista, como propõe Lacan – é a operação que a análise põe em causa. Propor o "fato clínico", tal como definido acima, como o objeto de uma pesquisa em psicanálise, implica em reconhecê-lo, neste movimento de alienação e queda, naquilo que dessa operação resta do lado do analista. Tal precisão é importante, posto que o autor de uma pesquisa não está na posição de analisante. É como analista que o pesquisador conduz sua abordagem do "fato clínico", isto é, do real de sua experiência.

Retomemos Freud para pensar alguns desses elementos. Destacaremos, nesse momento, um de seus mais famosos casos: o do homem dos ratos (Freud, 1909/1998). Freud inicia a narrativa com uma série de elementos sobre a técnica terapêutica da psicanálise, a tomada de notas sobre o caso e as dificuldades atinentes à escrita e publicação de casos clínicos, do mesmo modo como já fizera no caso Dora. São elementos importantes que lhe permitem construir a particularidade de sua posição de psicanalista, seja na escuta do caso, seja em sua narração, seja nas conseqüências conceituais que dela decorrem. Poderíamos indicar muitos pontos para análise, mas no contexto deste trabalho sobre o tema da pesquisa destacamos os seguintes:

1) diante da dificuldade de expor as intimidades do paciente, Freud (1909/1998) argumenta que "é muito mais fácil divulgar os segredos mais íntimos do paciente do que os fatos mais inocentes e triviais a respeito dele: enquanto os primeiros não esclareceriam sua identidade, os outros pelos quais ele é geralmente reconhecido, torná-lo-iam óbvia a qualquer um" (p. 10);

2) a diferença entre exatidão e verdade – destacada do texto por Lacan (1998b) – ao recomendar que não se tome notas durante a sessão porque elas falseariam a verdade do caso. Nas palavras de Freud (1909/1998, p.13): "sinto-me obrigado a apresentar um alerta contra a prática de anotar o que o paciente diz durante o tempo real do tratamento. A conseqüente retirada de atenção do médico prejudica mais o paciente do que um acréscimo de exatidão que se possa conseguir na reprodução de seu caso clínico.";

3) por fim, que "os resultados científicos da psicanálise são, presentemente, apenas um co-produto de seus objetivos terapêuticos, e por esse motivo é, com freqüência, exatamente nos casos em que o tratamento falha que muitas descobertas são feitas." (Freud, 1909/ 1998, p.54).

Não passa despercebido a um leitor atento que tais preceitos técnicos não são sem relação com as próprias características, singularidades, do caso clínico trabalhado. Freud sustenta ali, na transferência com o homem dos ratos, as razões desses seus argumentos. Como ele mesmo expressa em outro momento da narrativa desse caso, o sintoma na neurose obsessiva costuma passar despercebido. O obsessivo sabe, muito mais que o histérico, dissimular seu mal-estar na vida cotidiana. Assim que expor as intimidades do paciente não revela sua identidade, posto que ninguém as conhece. Além disso, o tipo de clivagem que opera nesta neurose é bastante semelhante à que situa a diferença entre exatidão e verdade. O obsessivo funciona na lógica da exatidão, na busca extenuante da precisão, e essa é sua estratégia principal para desconhecer a verdade do desejo. Por fim, é curioso que justamente no caso em que Freud apresenta um êxito terapêutico é que ele vai sustentar a importância da "falha" do tratamento para novas descobertas científicas. Que o êxito seja uma falha, na lógica dessa neurose, pode também ser ilustrado, com humor negro, pela leitura da forma paradoxal como Freud conclui a escrita do caso: "A saúde mental do paciente foi-lhe restabelecida pela análise que relatei nestas páginas. Como tantos outros jovens valorosos e promissores, ele morreu na Grande Guerra." (Freud, 1909/1998, p. 89).

Além das conseqüências conceituais que tais considerações trazem para a própria noção de neurose obsessiva, elas indicam o quanto o trabalho de escrita do caso foi, para Freud, o apoio necessário para veicular as especificidades do trabalho analítico. Podemos afirmar que, de alguma forma, a escrita do caso, sua "alienação ao" e "contaminação pelo" estilo discursivo do paciente, foi necessária para a elaboração desse quadro clínico (Mahony, 1991). Para escrever, e assim transmitir, a psicanálise, ele se vale do que, no caso, pode operar na transferência com o paciente, do que pode "ler" nas formações do inconsciente.Tal escrita não se dá nem in absentia, nem in effligie, segundo sua expressão sobre a importância da presença do analista na transferência (Freud, 1912/n.d.).

Um último elemento, ainda, que gostaríamos de deixar indicado é, na verdade, algo que poderia passar por uma simples curiosidade: Freud não apenas descreveu a neurose obsessiva, ele a inventou. Trata-se de uma inovação nosológica proposta por ele. Podemos pensar que também outros quadros clínicos, como a histeria ou a paranóia, foram "inventados" por Freud, na medida em que ganharam um sentido absolutamente novo na psicanálise, mesmo que os significantes já existissem no campo médico. Porém, que a "neurose obsessiva" tenha sido uma nomeação própria, um significante novo, não me parece casual. Os elementos clínicos estruturais, apontados por Freud em sua descrição da neurose obsessiva, são por demais semelhantes à interpretação que ele propõe para os fundamentos do laço social e o mal-estar na cultura para que seja mera coincidência. Na verdade, acreditamos poder afirmar que a essa invenção nosográfica, corresponde, na outra ponta da banda de Moebius, a interpretação cultural que a invenção da psicanálise, como estrutura discusiva, promove.

Como podemos ler no livro de Mahony (1991) sobre o caso do homem dos ratos: "a neurose obsessiva é a doença da humanidade no ser humano". Temos aqui um apoio importante para pensar que quando um trabalho de pesquisa em psicanálise se produz, ele incide sempre nesses dois eixos: no irredutível do sujeito e no irredutível do campo do Outro, em um real compartilhado. Como produzir esse enlace e esse corte, tal é a arte do pesquisador na psicanálise.

 

5. A prática de pesquisa e a transmissão: entre a restauração do saber e a nomeação de um real

No dicionário de psicanálise, de Roudinesco e Plon (1998), podemos ler no verbete "neurose obsessiva" as seguintes considerações: "o sujeito é mergulhado num verdadeiro inferno do qual nunca consegue escapar. Pois bem, esse inferno não é outra coisa senão a versão patológica de um sistema institucional patriarcal e judáico-cristão do qual, aliás, Freud tanto enaltece as fraquezas quanto os méritos. De fato, em sua análise do homem dos ratos e, mais tarde, em Totem e tabu, ele liga os progressos da ciência e da razão ao advento do patriarcado, com isso mostrando que o freudismo, como expressão dessa ciência e dessa razão, pode servir de proteção contra as diversas tentativas de abolição da família e contra o inelutável declínio do pai na sociedade ocidental do séc. XX.... Assim, a neurose obsessiva inventada por Freud seria sempre, para ele, um verdadeiro objeto de fascinação, na medida em que põe em cena a essência da relação edipiana." (Roudinesco & Plon, p.540).

Vemos aí algo da relação que indicamos acima, entre a neurose obsessiva e a interpretação freudiana do mal-estar na cultura. Muitos outros aspectos poderiam ser destacados. Chama a atenção, contudo, nesta observação dos autores do dicionário, a inclinação de Freud pelo re-estabelecimento da função do pai, em declínio na modernidade. O "fascínio" de Freud pela neurose obsessiva seria, então, decorrente de uma identificação com o mote fantasmático dessa neurose: salvar o pai a qualquer custo, restaurar sua função, mesmo que para isso seja preciso renegar o fato dele estar morto.

No seminário sobre a ética da psicanálise, Lacan (1988) interpreta esta faceta da inclinação freudiana na relação ao complexo paterno. Efetivamente, ele propõe uma crítica à proposição normalizante da abordagem freudiana ao complexo de Édipo. Lacan retoma neste ponto argumentos já apresentados no seminário "O mito individual do neurótico" (Lacan, 2008), no qual apresenta uma leitura do caso do homem dos ratos. O que Lacan indica é – entre outras coisas e dizendo de modo muito sintético – o quão patogênico (e não normalizante, como queria Freud) pode ser a alienação do neurótico à sustentação imaginária (e, portanto, duplicada) de um pai simbólico. Outra coisa é a redução do pai à função significante – "morte" – ao significante do "Nome-do-pai". Tal inscrição significante implica em poder fazer o luto do pai morto.

Ainda neste seminário sobre a ética da psicanálise, Lacan interroga tal posição na própria origem da invenção freudiana, na criação desse novo significante: "psicanálise". Nos capítulos dedicados ao tema da sublimação, ele propõe uma leitura inovadora do tema da criação. Lacan situa a relação entre real e significante de modo que não seja a da eliminação do primeiro pelo segundo, ou seja, que não conceba a operação sublimatória como uma simbolização – e, nesse sentido, "uma elevação" a uma esfera mais nobre – do real. Ele inverte essa lógica ao indicar que a sublimação eleva um objeto à dignidade da Coisa (das Ding) (Lacan, 1988, p. 141). Trata-se, antes, de desprover o objeto de seus atributos imaginários, apresentando-o como elemento mínimo, traço discreto que permite discernir, contornar, um real. Tal é a função exemplar do oleiro: a construção de um vaso como contorno do vazio, a produção de uma borda que crie um suporte para que esse vazio opere no lugar de objeto de gozo estético.

O que isso nos ensina sobre a criação freudiana? O próprio Lacan o indica ao dizer que Freud tem que se haver com a constatação de que o pai está morto e que isso implica em reconhecer que Deus (o Pai do pai) estava, ele também, desde sempre morto. Isto é: nunca existiu. Apesar disso, e mesmo por isso, o Nome-do-Pai segue operando.

Lacan, portanto, atribui à invenção da psicanálise uma função cultural nada humilde: trata-se da possibilidade de tirar conseqüências da morte de Deus afim de que o Nome-do-Pai possa, enquanto significante mestre, ter efetividade. Contudo, ele também deixa entrever que, para Freud, o significante "psicanálise" pode operar no sentido de restituir o pai morto. E é aí que ele erra o alvo. É aí que a psicanálise pode se confundir com um sintoma obsessivo: uma religião privada.

Tais considerações não são sem relação com o tema da "pesquisa em psicanálise". Pois se esta prática requer a atualização e reinvenção do ato de fundação freudiano, o modo como se opera com o significante – se visando restituir à vida o pai morto ou reduzilo à função de nome, de borda, de um real – faz toda diferença. Podemos, de fato, conduzir nossas pesquisas de modo a propor uma restauração da função simbólica e, então, faremos da teoria analítica um modo de obturar a falha constitutiva de nossa relação com

o saber. É a teoria que, no extremo dessa proposição, se situa como uma metainterpretação, seja das expressões singulares de mal-estar, seja das coletivas. Ou podemos – de modo mais condizente com o propósito da posição analítica tal como indicada por Lacan – nos limitar à tarefa, de todo modo nada simples, de construir uma pequena borda que permita a nomeação de um ponto do real que nos é dado testemunhar em nossa experiência.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: mcrispoli@terra.com.br

Recebido em junho/2008
Aceito em agosto/2008

 

 

NOTA

1 Esse artigo é resultante do trabalho de pesquisa "O campo da linguagem na fala e na escrita como fundamento do discurso e da experiência psicanalítica", financiado pelo MCT/CNPq.

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