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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.13 n.25 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Novas normas e formas de laço familiar: a sexualidade na sombra

 

New norms and forms of family bonds: sexuality in the shadows

 

Normas y formas nuevas de lazo social: la sexualidad en la sombra

 

 

Laurence Gavarini

Psicanalista, professora titular da Université Vincennes-Saint-Denis, França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em se considerando a realidade tensa do dispositivo familiar, uma vez que deve conjugar as diferenças dos sexos e a das gerações, o texto analisa as suas transformações recentes – causa e efeito das novas técnicas de reprodução.

Descritores: família; funções parentais; reprodução assistida.


ABSTRACT

Considering the tense reality of the family device, since it must conjugate the differences between sexes and between generations, this paper analyzes its recent transformations – the new techniques of reproduction's cause and effect.

Index terms: family; parental functions; assisted reproduction.


RESUMEN

Partiendo de la tensión inherente al dispositvo familiar, uma vez que debe conjugar las diferencias entre los sexos y entre las generaciones, el texto analisa sus transformaciones recientes – causa y efecto de las nuevas técnicas de reproducción.

Palabras clave: família; funciones parentales; reproducción asistida.


 

 

É comum opor o exercício atual – "moderno" – da função parental às formas tradicionais vindas "de alhures" ou "do passado". Esse "alhures" seria constituído por pais migrantes, ou de meios muito populares e desfavorecidos, que encarnariam o enigmático, a alteridade, não tanto pelo exotismo de sua tradição, que pelo indecifrável de suas práticas e de seus laços aos olhos de certos profissionais.

Mas o contemporâneo, o atual, o que está em vias de mudar na função parental ou na filiação não nos deixa menos indiferente. A dita forma atual suscita uma gama de reações, indo da fascinação e da paixão à inquietação, às profecias e predições, virando uma questão ideológica, até mesmo nas esferas universitárias e científicas. A utilização de técnicas médicas para procriar, ou a procriação no quadro das uniões homossexuais, se elas permanecem marginais quantitativamente na sociedade, não deixam de constituir um terreno experimental mais geral.

Também o "wait and see", escutado com freqüência pelos psicanalistas com relação a essas questões, é razoável, mas o pragmatismo corriqueiro – só a clínica de crianças possibilita dizer algo sobre isso –, ignora os efeitos subjetivos em larga escala, aqueles que ultrapassam os sujeitos isolados imediatamente concernidos pelas novas formas de procriação e filiação. Perante os dois extremos que são o profetismo apocalíptico e a banalização, parece-me importante abrir o questionamento sobre esses novos procedimentos graças aos quais alguns procriam e tornam-se pais.

Não é como especialista da família, mas a partir da sociologia da infância e da psicanálise, que venho trabalhando as questões da parentalidade no intuito de compreender, além das transformações aparentes, como ela produz no seu seio, hoje em dia, indivíduos crianças. Tentei reconstruir o encadeamento de fatos que teria produzido em quatro décadas o que chamo de "paixão da criança" (Gavarini, 2004), paixão que apresenta correlações evidentes com as transformações ocorridas nas configurações familiares, parentais e sexuais. Como, em tempos dessa paixão, as crianças tornam-se indivíduos civilizados? Dito de outro modo, como acontece a "fabricação" de indivíduos sociais e a construção como sujeitos, numa época marcada – se concordarmos com Gilles Lipovetsky (1993) – pelo ideal liberal do auto-governo dos indivíduos.

A construção subjetiva e social de todos e de cada um cruza inevitavelmente as modalidades do grupo familiar no qual ela toma lugar, e em que é cunhada pelos modos de exercício da parentalidade e pelas relações entre os sexos e entre as gerações que se atualizam. Essa operação ultrapassa o âmbito estrito do aprendizado social e cultural, no qual crê exclusivamente a maioria dos sociólogos, e destaca, também, os mecanismos inconscientes (tais como a transmissão e a identificação) assim como as instituições sociais e jurídicas (tais como a filiação, a inscrição genealógica). A família e a parentalidade não são estados, ou substâncias naturais, ainda que a tentação seja grande, mesmo no discurso político, de querer fazer delas "células essenciais" da sociedade; assim como está na moda pensá-las, até no interior do discurso científico, como assuntos estritamente privados.

A variabilidade das formas adotadas pelo grupo familiar e pela parentalidade mostra bem que a família e o fato de ser pais são diversamente instituídos segundo o período histórico e as sociedades. Trata-se de agenciamentos ou de dispositivos sociais que têm por função não só inscrever as crianças numa linhagem, mas também transmitir os bens materiais e simbólicos. O laço familiar se apresenta aos indivíduos segundo regras, prescrições e interditos recaindo sobre a parentalidade, sobre a filiação, sobre as obrigações parentais, ou ainda sobre o princípio da diferença dos sexos e das gerações. O grupo familiar constitui – aliás, nós o sabemos desde o aporte do freudismo – uma cena na qual se jogam a sexualidade e as identificações sexuais para todo sujeito. Nesse sentido, podemos nos referir a ela em termos de dispositivo psíquico. A família, pela pertinência que requer de seus membros, desempenha uma função no plano imaginário e simbólico nas construções subjetivas e identitárias.

Minhas próprias pesquisas me conduziram a trabalhar com dois tipos de experiências, relativamente particulares do laço familiar e da filiação, e que parecem bastante sintomáticas de nossa época. Uma primeira série de trabalhos tratou da procriação medicamente assistida (PMA ou AMP) e dos efeitos sociais e subjetivos dessa medicalização, quanto à relação com as crianças e com o parto como ato e experiência. Uma segunda série de pesquisas tratou da família como lugar de violências exercidas sobre as crianças, por meio de representações e palavras que os profissionais do campo sócio-educativo mobilizam para identificar as configurações familiares e parentais características, segundo eles, de maus tratos.

 

As novas cenas da tragédia familiar

Com as técnicas de procriação, a vontade de gerar filiação "a qualquer preço" foi colocada em destaque através da expressão dolorosa dos casais que demandam uma criança; a sociedade sendo levada a testemunhar um sofrimento que por muito tempo foi considerado sinônimo de impotência e que, até então, era gerido privativamente. A demanda endereçada aos médicos e aos cientistas – de fato quase exclusivamente uma demanda oriunda das mulheres – tomou uma forma oscilante entre súplica e reivindicação militante de um "direito à criança".

Esse "gerar filiação", ao preço às vezes de uma obstinação terapêutica, essa imperiosa necessidade de reprodução biológica de uma criança geneticamente própria, tomou subitamente, durante os anos oitenta e noventa, um alcance dramático. Esse "desejo de criança" foi qualificado por um ginecologista francês – René Frydman, pioneiro da FIV – de "irresistível", mas tão "irresistível" que se justificava a invenção de uma nova especialidade, qual seja, a "medicina do desejo" (Frydman, 1986). A medicina ginecológica podia assim estender seu campo de intervenção, do corpo até a vida psíquica, prescrevendo um penoso tratamento físico e, dependendo do caso, uma abordagem "psi" dessa "impossibilidade de filho"1. Os anos 70 promoveram na cena pública uma mensagem de emancipação das mulheres em sua vontade de escapar da dominação sexual. Com a chegada das técnicas de procriação, as mulheres foram novamente – como mostraram várias autoras – consideradas na sua relação visceral com o parto, não sem evocar uma forma de alienação a essa condição de procriadora. O dolorismo2 maternal na forma na qual se dava a ver operava uma redução das múltiplas e sutis facetas da maternidade, tais como a experiência subjetiva e social relatada pelas histórias das mulheres.

Debrucei-me sobre o comprometimento subjetivo das mulheres nesse percurso medicalizado da procriação, que reduz freqüentemente os corpos ao funcionamento hormonal e mecânico, marcado por uma evasão da sexualidade e por uma temporalidade descontínua, verdadeiro estilhaço espacial e temporal da procriação (Gavarini, 2004, 2002). A demanda de PMA revelou de maneira evidente esse desejo particular, expresso no dito "desejo de criança", um desejo no qual se mesclam desejo de gravidez e de paternidade, e desejo de gerar filiação biológica. O pano de fundo desses questionamentos íntimos foi constituído por uma enxurrada de fantasmas e promessas, indo da cura da "impossibilidade de filho" aos desígnios mais excêntricos que são a ectogênese, a gravidez masculina, a seleção embrionária, a clonagem. O imaginário dos pesquisadores e dos médicos reencontrou, aqui, esta outra aspiração: que os indivíduos possam um dia se libertar da reprodução biológica e sexuada e estabelecer a filiação livres das restrições "do passado".

Nesse sentido, como sociólogos ou antropólogos observadores dessas evoluções, constatamos que a concepção social da parentalidade tende a regredir. Assistimos ao desenvolvimento de uma biologização da filiação. Mais precisamente, seria necessário dizer que as representações clássicas de uma filiação biológica (os famosos laços de sangue), realizaramse no real, a fecundação in vitro instalando a procura por uma criança geneticamente "própria", mesmo nos casos nos quais se acaba recorrendo a uma doadora ou a um doador. Uma ilustração dessa busca de uma criança é constituída pelo sucesso de uma técnica que se chama ICSI, que consiste no forcejo in vitro do processo de fecundação: introduz-se um espermatozóide num óvulo, graças a uma técnica específica, quando a espermatogênese de um homem é deficitária (em número e qualidade). A perspectiva dessa técnica de laboratório, cada vez mais preferida à inseminação com doador, é a de garantir a filiação biológica do lado paterno. Paradoxalmente, em certas circunstâncias a importância do biológico só aparece pela força do rechaço da realidade sobre a qual repousa a filiação: como, por exemplo, quando ela é chancelada pela lei do anonimato dos doadores com sua respectiva proibição de obter os dados de identificação dos genitores, ou quando o recurso a terceiros – doadores de gametas ou de embriões – é objeto de um não-dito inultrapassável. Em razão do desenvolvimento dos conhecimentos da genética, tudo o que advém dos genes e da hereditariedade ascendeu ao primeiro plano e, ao mesmo tempo, as significações e os fantasmas que o biológico pode carrear ao nível da procriação são, às vezes, recusados, invertendo a mão em nome de um "não são nada mais que materiais biológicos!". É preciso notar que esse fenômeno da biologização que se desdobra sobre a cena médica está em ressonância com uma vontade mais ampla, expressa na sociedade e no direito, de reconhecer os laços de sangue na filiação (com a disseminação do estabelecimento genético da paternidade). O biológico tornou-se um objeto de reivindicação, o que não impede que, ao mesmo tempo, seu papel possa ser rechaçado: por exemplo, um doador masculino pode ser reduzido à função estrita de provedor de esperma, no caso de uma união homossexual feminina.

Após ter se desdobrado com vistas à satisfação da demanda de uma criança ligada à esterilidade, a lógica tecnocientífica reencontrou e favoreceu fantasmas de uma outra ordem, em particular aquela de dispensar o outro sexo para procriar, isto é, de poder gerar uma criança sozinha ou, ainda, de se livrar um dia da gravidez ou da diferença dos sexos para procriar.

No discurso social e midiático, o fenômeno dos maus tratos apareceu pouco tempo depois do fenômeno da medicalização da procriação. Discurso de mobilização, imagens e depoimentos chocantes de crianças ou de adultos, voltando a seu passado de vítimas, que acabou deslocando no imaginário social as proezas médicas e as "X formas novas de procriar" – louvadas pelos amantes de furos de reportagens de ocasião. Os educadores e defensores das crianças, concedem, então, uma representação da família, na qual se produzem os maus tratos, sob traços totalmente caóticos, uma cenografia familiar da ordem de um hiper-real: laços de sangue que não teriam sido simbolizados ou nem mesmo, talvez, imaginarizados. Sabíamos que a família podia ser mortífera. Mas, depois da leitura das obras de Laing e Cooper, principalmente, era muito mais a um excesso de instituição que imputávamos seu caráter patogênico: a uma instituição que por excesso de instituído, de normas, de autoridade e de dominação era destruidora para os sujeitos. Hoje em dia, os maus tratos ou a violência intra-familiar são, ao contrário, interpretadas como defeitos ou falhas da instituição. Elas resultariam de uma instituição anômica, que evoca a horda e seus rancores, inclinando os adultos a maltratar gravemente as suas crianças, a impingir-lhes violências psíquicas e sexuais. Para sustentar a família e conduzir consequentemente ações de proteção à infância, o Estado, via profissionais da saúde e da assistência social, crê poder avaliar o sistema familiar e suas configurações. Nesse trabalho de análise e de expertise técnica – cabe assinalar – intervêm mecanismos de interpretação: de um lado o desejo de objetividade descritiva e avaliativa (donde o recurso às grades de análise e às análises de risco multifatoriais), e de outro, as dimensões mais subjetivas, o que vários profissionais dizem ser seu "feeling". Essas interpretações são sustentadas por uma ética, por representações tanto comuns a todos os interventores sociais quanto específicas a cada um. Minha pesquisa consistiu em esclarecer precisamente o processo e esse olhar endereçado à família. Tratava-se de tentar compreender como, finalmente, a família que maltrata permitia também dizer, pelo avesso, o que seria hoje a norma familiar e educativa do bem-tratar.

Diante desses dois fenômenos contemporâneos que são a procriação medicamente assistida e os maus tratos intrafamiliares, pela fascinação e a repulsa que eles geraram, não há dúvidas de que a família constitui – ainda e sempre – o laço imaginário fundamental na sociedade, mas, ao mesmo tempo, esse laço é reconhecido como potencialmente patológico ou patogênico, muito além do meio psicanalítico.

 

A retórica do "direito a..." e o pluralismo familiar

A família, fortemente criticada, após 1968, pelos militantes progressistas assim como pelos teóricos e por um bom número de clínicos, aparece de novo glorificada socialmente não só como dispositivo de filiação mas também como modo de vida. O jurista Daniel Borrillo (2000) reivindica "a vida familiar" para todos, seja qual for sua orientação sexual; ele milita por "um direito humano à família". A família em questão deve, entretanto, a seus olhos, ser libertada de sua "função" de sistema constrangedor e das diversas "ordens" às quais ela está subordinada: a vida familiar não está de maneira alguma a serviço de uma ordem metafísica qualquer, pois que ela não precisa nem da ordem natural, nem da ordem simbólica da diferença dos sexos, nem mesmo daquela da lei para qualificar o laço. A ruptura com as análises estruturalistas da família e da parentalidade é radical: trata-se de fazer o elogio de um modo de vida tradicional, mas libertado das obrigações que lhe dariam uma ordem. É isso, no entanto, um elogio da desordem? Ou bem aquele de uma reunião mais "fluída", agenciamento variável ao sabor da vida amorosa e sexual dos indivíduos, em função da evolução de suas problemáticas identitárias?

Essa aspiração à vida familiar é solidária da expressão de um desejo de filiação entre os casais homossexuais e de sua reivindicação, bem explícita desde os anos 80, de acesso às técnicas de procriação medicamente assistida em nome de um direito de igualdade de tratamento médico entre todos, garantido pelo Estado. Esquematicamente a lógica discursiva sustenta-se assim: tendo obtido as mulheres estéreis o direito de procriar, como as outras, graças à PMA, a cobertura médica não deveria excluir os homossexuais, cujas relações sexuais são necessariamente estéreis. Além desse argumento, é colocada também a defesa das liberdades individuais e da vida privada. A idéia de um "direito à criança" pode ser entendida como um direito a ser como os outros, do mesmo modo que o fato de colocá-lo em questão é rapidamente considerado signo de homofobia.

Diversos pesquisadores, sociólogos, juristas, antropólogos e psicanalistas (citemos destacadamente Eric Fassin, Marcella Iacub, Anne Cadoret, Geneviève Delaisi de Parseval, Sabine Prokoris, Michel Tort e Elisabeth Roudinesco) sustentaram essa lógica por meio de seus trabalhos e publicações e alguns dentre eles se engajaram do lado da associação de pais gays e lésbicas. As novas configurações familiares que se desenham na homoparentalidade atraem, com efeito, observadores e comentadores, pelo fato de apresentarem um caráter de experimentação in vivo, bem como uma multiplicidade de cenários de aliança e de recomposição, com as crianças nascidas de uniões heterossexuais, mas educadas em uniões homossexuais, ou de outras nascidas de "arranjos" ou de inseminação artificial ou de mães de aluguel, e criadas por dois pais do mesmo sexo, com ou sem referência a um pai do outro sexo. Uma série de implicações significativas se delineiam no que tange à nominação da parentalidade. No Québec, onde a filiação homossexual foi legalizada, os pais são, doravante, designados no texto da lei como "co-pai" e "co-mãe"! Será preciso, sem nenhuma dúvida, certo tempo para que essas denominações sejam assimiladas e para que sejam investidas subjetivamente não de um sentido intrínseco, mas de um sentido simbólico de valor.

 

Oscilações entre desnaturalização e naturalização do laço familiar

Uma primeira tendência de bastante repercussão entre as pesquisas atuais sobre a família consiste em fazer equivaler todas as formas que o laço familiar e a filiação poderiam tomar. A referência jurídica incontestável é o jurista Yan Thomas (Thomas, 1998), que mostra muito bem que a montagem simbólica da filiação é um "artifício legal". Não há então, deste ponto de vista, dispositivos familiares e de práticas de filiação ou de procriação que possam ser considerados universais ou mais apropriados que outros. A demonstração sustenta-se na colocação em continuidade de referências diversas, indo da teoria das invariantes estruturais da parentalidade (derivada da hipótese de que as funções parentais são independentes das funções reprodutivas e até mesmo independentes em certas culturas da diferença dos sexos), até o relativismo cultural, tal como a antropologia do "muito distante de nós" permitiu pensar (as sociedades tradicionais experimentaram toda sorte de laço de filiação e de parentesco, tanto como podemos constatar o pluralismo das formas familiares nos dias de hoje). Essa demonstração levou, no debate sobre as novas formas do laço familiar e de filiação, a atrair a atenção sobre a postura ético-política do pesquisador, sempre suposta neutra, mesmo quando a atitude alimenta, aqui, uma ambigüidade permanente entre ciência e convicção.

Uma segunda tendência persistente, até no discurso político, consiste em naturalizar a família, no vocabulário mesmo, no qual ela aparece como o lugar "natural", privilegiado da socialização, da identidade, da cultura, lugar de expressão dos particularismos das comunidades. Essa família pode, inversamente, ser estigmatizada, segundo já se assinalou, como instituição social falha. Ela é então designada como carente em sua função de educação e de bom governo dos indivíduos. É notório que o grupo familiar pode ser o lugar onde operam horrores e o ódio das crianças. Nas campanhas de prevenção, a mensagem explícita chega até a dizer que nenhuma família está livre a priori, o risco legitimando a ingerência do Estado e das novas formas de intervenção como a reeducação para os pais, a ordenação do sistema familiar por diversos métodos de mediação para "reparentalizar". Aqui a referência à psicanálise e à análise sistêmica apresenta-se de maneira totalmente normativa. Qualifiquei essa empresa, graças à leitura do clássico trabalho de Donzelot (Donzelot, 1977), como "polícia simbólica das famílias" (Gavarini et Petitot, 1998) com vista ao assinalamento de sua vã pretensão: a transformação das modalidades de laço intrafamiliares e a retificação do sistema simbólico.

Em suma, a família nunca deixa de inquietar tanto os governantes quanto os pesquisadores em ciências humanas cujos modelos de análise apresentam profundas diferenças e até contradições.

 

A construção sociológica da família por seus "observadores"

Uma revisão de trabalhos recentes é suficiente para nos convencer de que os pesquisadores, bem como, sem dúvida, os clínicos, constroem o real à sua maneira; eles o encenam ou o formatam, conforme apontado por Erving Goffman e Ian Hacking. As leituras sociológicas da família não escapam ao não-sabido ideológico e subjetivo do pesquisador, a sua ética e ao que, mais singularmente o marca como sujeito sexuado, pertencendo a uma geração, tendo um estatuto matrimonial e parental, advindo, necessariamente, ele mesmo, de uma história familiar e sexual. Os pesquisadores tampouco fogem da marca do tempo. Como o observaram recentemente Jacques Commaille e Claude Martin, as representações científicas da família contribuíram por muito tempo para promover "uma imagem apolítica, a-social e assexuada (em termos das relações sociais de sexo) da família". Ao mesmo tempo, a família esteve sempre no centro das apostas políticas, sobretudo porque ela é "instituinte da sociabilidade".

É preciso notar um traço comum às análises sociológicas recentes: a situação econômica e social das famílias não é sempre muito especificada, como se a vida familiar não fosse mais verdadeiramente determinada por seu estatuto social e pelas desigualdades que a marcam. Essa família contemporânea corresponde às famílias das classes média e alta, urbanas, laicas? Ela é um tipo ideal? Tudo isto fica freqüentemente impreciso. Fato que não é sem conseqüências do ponto de vista de uma sociologia da família.

Cabe assinalar que a terminologia empregada vem se apoiar, mais ou menos, sobre certos traços funcionais ou anatômicos do agenciamento familiar e dar a ele um valor positivo ou negativo. Vejamos:

1. Alguns definem a família por uma caracterização de seu princípio organizador; assim, por exemplo, a família contemporânea é considerada individualista. A família é qualificada com termos utilizados no domínio político. Assim, fala-se de família "democrática", na qual se exerceria uma "paridade" entre os indivíduos, homens, mulheres, adultos, crianças, que a compõem. O princípio de igualdade entre todos os membros e a exigência de que as tarefas e os papéis sejam auto-definidos por todos, a liberdade recíproca dos indivíduos, eis aí seus principais atributos, segundo o sociólogo François de Singly (2000).

2. Trata-se de uma família "relacional", cujos traços específicos seriam a flexibilidade das alianças e a auto-regulação das relações parentais e filiais: as regras e decisões advêm do consentimento dos cônjuges e das crianças. Nessa família, a negociação é a modalidade de regulação da vida cotidiana e dos afetos.

3. O acento pode ser posto sobre a dinâmica formal da família, segundo uma dialética entre composição, decomposição e recomposição. Essa dialética aponta para a instabilidade das uniões, conforme o processo descrito por Irène Théry (1998), qualificado de "descasamento"3. Trata-se de uma família que consegue integrar em suas configurações novos membros e, portanto, é chamada de "família recomposta". Os laços de filiação e de parentesco são aí reputados indissolúveis em comparação aos laços conjugais que evoluem ao sabor das uniões e dos afetos.

Certamente, a priori, uma geração inteira de pais esclarecidos poderia se reconhecer – entre os quais, sem dúvida, muitos dos sociólogos formados desde 1968 – nas diversas modalidades democráticas e consensuais de adaptação aos novos laços familiares. Resta saber se os esquemas funcionam de fato de modo tão límpido como se pensa e, portanto, se eles não repousam sobre a idealização ou a recusa de conflitos.

4. Um outro tipo de abordagem insiste, ao contrário, na desinstitucionalização da família. Desinstitucionalização significa que a família se torna um assunto privado – o contrário de um assunto público – escreve Marcel Gauchet (1998). O contratualismo generalizado dos laços familiares é problemático: os laços eletivos acabam se impondo sobre a instituição seus caracteres restritivos. Gauchet considera essa família desinstitucionalizada o lócus da promoção do indivíduo hiper-contemporâneo.

5. Um pouco diferentemente, Louis Roussel (1999) vê na família contemporânea uma família "incerta" e, como tal, ameaçada, até mesmo ameaçadora. Esta orientação não está muito distante daquela inspirada pelos trabalhos de Pierre Legendre, reencontrada também entre os psicanalistas, consistindo em deplorar o enfraquecimento da figura do pai, bem como no fato de fazer disso mesmo a origem da crise do princípio da autoridade na sociedade.

6. Neste quadro de representações científicas da família, são acrescentadas, por sua marginalidade, as famílias caracterizadas pela não-institucionalização. São as famílias bem conhecidas dos serviços sociais e de saúde pública, cujo arquétipo foi por muito tempo a família monoparental. Uma variante extrema apareceu, apresentando formas de laço ainda menos estruturadas que a monoparentalidade, com grupos familiares em suas múltiplas constelações, vivendo numa espécie de tribalismo4 estilhaçado, cujos observadores externos dizem não conseguir traçar sua genealogia ou delimitar suas fronteiras. Um assistente social me comentou certa vez: "elas são o verdadeiro reencontro com a alteridade". Essas famílias, ou melhor, esses indivíduos, parecem escapar por seus pathos às transformações atuais da família e mesmo, com freqüência, às análises sociológicas. Não se pode incluí-las no modelo da família individualista ainda que, sem dúvida, a palavra indivíduo possa ganhar aqui todo seu sentido para designar o estado de não-laço existente entre seus membros. Escutando os agentes sociais falarem dessas famílias, podemos validar o que Robert Castel descreveu em termos de desafiliação5: sua estruturação é tão caótica que elas não conseguem conter a autonomia radical de seus membros – individualidades seriadas, verdadeiros elétrons livres. Castel mostra bem que para existir como indivíduo distinto, como ator ou como sujeito "é necessário ter suportes", "condições objetivas de possibilidades", "alicerces" que nos dêem consistência na sociedade (Castel & Haroche, 2001). A degradação da propriedade social, hoje em dia, produz "indivíduos defeituosos", "indivíduos negativos", a respeito dos quais podemos tecer a hipótese de que dificilmente conseguirão manter o laço social, mesmo no registro familiar. A degradação da propriedade social, hoje em dia, produz "indivíduos com defeito", "indivíduos negativos" de quem se pode fazer a hipótese de que dificilmente conseguirão manter o laço social, inclusive no registro familiar.

 

Os impensados ideológicos

As interpretações sociológicas a propósito da família e de suas transformações repousam – em minha opinião – sobre implícitos inerentes ao contexto no qual elas se produzem, e que marcam as posições de uns e de outros:

1. Invoca-se, de um lado, uma idéia de família tradicional; uma família situada num "antes" da crise atual, antes do fenômeno de desinstitucionalização deplorado por alguns observadores. É uma família um tanto mítica, que parece ter esquecido, nos dias de hoje, as relações de dominação que a estruturaram, assim como o fato de que ela podia ser o lugar de violências privadas escondidas e de uma ordem freqüentemente arbitrária com respeito às mulheres e às crianças.

2. Há, de outro lado, uma exaltação, não muito discreta, com relação às experimentações atuais no registro da parentalidade e da filiação. Parentalidade múltipla, pluriparentalidade, parentesco recombinado, homoparentalidade: essas formas ainda experimentais, ainda um tanto difusas, são saudadas com entusiasmo por outros observadores, uma vez que aqueles que as praticam aparecem liberados das obrigações instituídas da vida familiar e das funções parentais: eles "inovam". Pode-se mesmo ouvir dizer que esses indivíduos seriam "revolucionários", uma vez que mostrariam a colagem que pode ser feita com os laços sociais de aliança e filiação.

Não são, estritamente, as habituais clivagens políticas, esquerda/direita, que caracterizam as oposições no que tange aos modos familiares contemporâneos, mesmo se, na França, questões como o casamento homossexual ou a homoparentalidade permaneçam propícias a caracterizações políticas sumárias. Assim, as reservas que certos clínicos podem ter com relação a essas questões, em conjunto com o estatuto da diferença dos sexos na aliança e na filiação, são qualificadas de "reacionárias", sobretudo quando elas se apóiam em uma noção como a de "ordem simbólica". Aqueles que sustentam, nessa matéria, um ponto de vista "liberal", consideram que a filiação deve contemplar as liberdades e as orientações sexuais individuais e não uma ordem estática ou jurídica qualquer, bem como lançam aos seus "adversários" anátemas tais como "papistas", tradicionalistas, defensores de uma "ordem burguesa"!

Podemos pensar, para além desse tipo de alternativa que nos captura, em uma posição ideológica? Um exemplo arrebatador, entre vários outros: parece haver, cada vez mais, uma confusão nas reflexões sociológicas sobre a família, sobre o que advém de reivindicações como a paridade e a não-discriminação social entre os sexos, reivindicada pelas mulheres com uma espécie de não-diferenciação sexual do pai e da mãe, no nível de suas respectivas funções parentais: não é mais o caso de especificá-los; eles são, ambos os dois, igualmente pais! Sob a influência da antropologia e da psicanálise, mas também das práticas sociais como a adoção e a PMA, os trabalhos sociológicos sobre a família incorporaram o fato de que as funções biológicas e parentais podem se dar separadamente: certamente, todos nós sabemos que não se é "naturalmente" pai porque se é genitor. Nos dias de hoje, um discurso ultraliberal flexionou esses trabalhos e, por um tipo de transposição com o raciocínio precedente, afirmou que as funções parentais não são funções sexuadas e sexualizadas, isto é, tomadas na diferença dos sexos e na sexualidade. Depois, passou-se a afirmar que essas mesmas funções corresponderiam, de fato, às tarefas educativas (educar as crianças, assegurar-lhes amor e proteção), muito mais do que as responsabilidades genealógicas e geracionais. Assim, assistimos a uma confusão entre, por um lado, as tarefas implicadas no dia-a-dia com uma criança – aquilo que uma socióloga de Quebec, Renée Dandurand, chamou com razão de "paternagem"6 – e, por outro, as funções simbólicas inerentes ao parentesco.

 

A família como instância sexual: uma idéia para sempre revolucionária?

Podemos nos perguntar se a família, como instância sexual, continua a ser de fato uma idéia realmente revolucionária, inclusive face a esta outra idéia liberatória que é a igualdade. Parece-me que devemos trabalhar essa hipótese reatando com um freudismo quase em desuso. A multidão de figuras educativas que se ocupam de uma criança, de forma amorosa e benfeitora, cumpre as mesmas funções que o pai e a mãe, homem e mulher, presentes ou ausentes, mas sempre imperfeitos, com os quais ela tem que se haver, isto é, "contracenar" e pôr em jogo suas identificações, sua relação com os outros, sua linguagem e sua vida sexual. O cenário edipiano familiar lembra, sem cessar, que a fabricação de um sujeito humano passa também pela questão sexual. Realidade "revolucionária", à qual Freud nos permitiu aceder, que é para todo humano objeto de teorias sexuais infantis e de recalcamento, e que, no entanto, hoje em dia, em grande escala social, está em vias de ser negada, quando não considerada suspeita. Assim, assistimos a uma transformação significativa e sobre a qual as constatações dos profissionais da educação e da saúde se juntam às análises sociológicas: as funções de pai e mãe passam a ser consideradas conjuntamente sob uma mesma palavra, qual seja "parental" e a sua derivada "a parentalidade". Duas palavras emblemáticas de nossa época. O laço conjugal e matrimonial torna-se precário, enquanto o parentesco se torna imaginariamente um laço indissolúvel: os casais se separam e não formam mais um casal, mas idealmente permanecem pais em conjunto e de comum acordo. Aliás, é desejável inculcar essa função parental nos pais "defeituosos", "incompetentes", naqueles que devem ser "reparentalizados". O parental é uma espécie de figura neutra ou bissexual, no qual papai e mamãe cumprem papéis educativos, papéis intercambiáveis, podendo ser exercidos seja qual for a identidade sexual, tendo cada um sua parte feminina e masculina. Os defensores desse parental indiferenciado afirmam que, para a criança, o principal é que ela seja "amada" por seus pais.

Há, atualmente, aliás, uma tendência forte de sustentar que a parentalidade é divisível conforme o gosto e como prova disso assistiríamos nas famílias contemporâneas a uma pluriparentalidade: biológica, afetiva, educativa e social. Idealizando um pouco a idéia de uma "livre" circulação das crianças entre uma série de figuras parentais, chega-se até, por exemplo, a integrar nessa configuração pluriparental a mãe de aluguel que, por generosidade – dizem – carregou a gestação das crianças para os casais de homens.

A realidade da família atual "democrática" e "igualitária" é, assim, construída teoricamente como uma espécie de utopia comunitária, em todo caso, como se fosse um grupo que apresenta, ao mesmo tempo, traços fortes de pertinência e uma grande autonomia entre as individualidades que a compõem. Todas as relações sociais parecem sofrer essa mesma corrosão: inicialmente as relações dos sexos, depois as geracionais, em proveito de laços afetivos "amigáveis" entre pais múltiplos e entre pais e crianças "emancipadas". Essa concepção utópica e não-conflituosa rompe significativamente com o modelo lévistraussiano e lacaniano de apreensão da família e com aquilo que se entende por funções simbólicas. O amor não era certamente o eixo organizador. No entanto, era reconhecido o papel da família de regular, em seu seio, a questão sexual (identidades, prescrições e interditos sexuais, relação com os corpos, sexualidade). Parece ter se tornado obsoleta, em se considerando as uniões múltiplas derivadas das práticas individuais, a fundação da aliança e da filiação na base de funções simbólicas enraizadas no sexual e que acarretem interdições às iniciativas individuais. Do ponto de vista da antropologia estruturalista e psicanalítica que nos guiava em nossa reflexão em ciências humanas, as instâncias parentais, pai e mãe, não são de fato funções auto-evidentes, elas são simbolizadas na linguagem e na sociedade, e tornam-se necessárias nas trocas simbólicas e materiais, e na diferenciação sexual. Essas funções não são, para tanto, fixas, uma vez que evoluem, mas também não estão integralmente à disposição dos indivíduos que as ocupam e as servem mais ou menos bem. Dito de outro modo, para além das interpretações pessoais que todo sujeito pode fazer da função de pai e de mãe, uma parte escapa à vontade dos indivíduos, precede-os e impõe-se a eles no exercício do parentesco, sob a forma de significações instituídas, para retomar aqui uma terminologia emprestada de Castoriadis. Como Lévi Strauss (1974) afirmara, "a eficácia simbólica" de um sistema implica uma imposição a todos os indivíduos de sua "propriedade indutora". Na Introdução à obra de Marcel Mauss, Lévi Strauss (1968) afirmou que é da natureza da sociedade que ela se exprima simbolicamente em seus costumes e em suas instituições; ao contrário, as condutas individuais normais não são jamais simbólicas por elas mesmas: elas são os elementos a partir dos quais um sistema simbólico, que não pode ser, senão, coletivo, se constrói. São somente as condutas anormais que, não-sociáveis e portanto abandonadas a elas mesmas, realizam, sobre o plano individual, a ilusão de um simbolismo autônomo. Não autônomo, não definido arbitrariamente pelos indivíduos em função de suas escolhas e orientações, o simbólico necessita, contudo, ser integrado, ser "efetivado". Todo sujeito, bom ou mal portador do simbólico, exercita a simbolização e o simbólico, como lembrava há 15 anos Nathalie Saltzman (1989), ou seja, bem antes do aumento da onda atual de denúncia da crise do simbólico: É evidente – escrevia ela – que existe uma dimensão simbólica da vida psíquica que orquestra as diferenças e separa os sexos, as gerações, os corpos, a singularidade e o universal. De fato, o simbólico não faz mais que coordenar o que é possível, o permitido e o proibido numa sociedade determinada, ele os organiza nos mitos ou nas grandes narrativas. Que as transgressões existam com relação às normas sociais instituídas, que elas sejam mesmo numerosas, não impede que os atos dos sujeitos transgressores deixem de possuir uma significação para eles próprios e para a sociedade.

 

A criança abusada

Abordarei um último ponto recolocando a criança na reflexão sobre as transformações da família; particularmente a emergência desta nova figura que é "a criança abusada". A extensão da noção de criança abusada, que não corresponde necessariamente a um aumento das violências reais, indica-nos que a redistribuição das relações entre as gerações não é tão harmoniosa quanto o leva a crer uma abordagem sociológica centrada no adulto. Se a família mudou, se ela se tornou o lugar de uma maior paridade entre os sexos, se as crianças circulam mais em casos de separação conjugal, se elas são consideradas mais como sujeitos, isto não impede que, mais do que nunca, nós a pensemos como vítimas dos adultos e, sem dúvida, que as crianças também se pensem assim. Com efeito, é numa família "em transformação" que se pode desenvolver uma outra consciência dos riscos corridos pelas crianças e, portanto, que aparece a questão do abuso colocando sob suspeita as relações adultos/crianças. Para melhor compreender essa idéia de abuso, para além de sua dimensão sexual mais manifesta e violenta, deve-se constatar que ela está ligada – tem o mesmo espírito – àquela da dominação, e com a aspiração coletiva de pôr fim às relações de poder entre adultos e crianças. Em outros termos: não há idéia de abuso,sem crítica da dominação (Gavarini, 2003). O abuso é um revelador de outra fundação das normas relacionais entre adultos e crianças. O abuso deriva, aliás, da transposição para as relações entre as gerações do modelo da paridade sexual, que se impôs nas relações entre os sexos em reação ao patriarcado e à dominação masculina.

O enunciado "abusado" marca também uma nova relação com o corpo, com a sexualidade – direito de ver estendido à intimidade. Estamos em vias de retornar a uma idéia pré-freudiana da criança. O distanciamento progressivo do corpo das crianças, as interrogações a propósito de sua sexualidade marcam nossa época e nos distanciam da criança reconhecida durante um curto século como sujeito com suas pulsões, sua sexualidade, sua sedução, seus fantasmas, mas também seus conflitos psíquicos. A sexualidade infantil parece não mais poder ser evocada senão como um sintoma, um traço mnêmico da exposição direta da criança à sexualidade dos adultos. Perspectiva que faz pouco caso da realidade da vida sexual infantil e da atividade psíquica e fantasmática da qual ela se nutre. O clima que se instalou em apenas alguns anos não é sem a evocação de certo puritanismo. No novo dispositivo de controle da sexualidade das crianças que supõe a prevenção dos abusos sexuais, pode-se perguntar como serão distinguidas, no futuro, a sexualidade infantil "normal" daquela considerada abusiva ou abusada. Como será avaliada a sexualidade investida por uma criança, sozinha ou com outros colegas, mas, também, com os adultos, a começar por sua mãe e seu pai, através de suas moções de ternura, sua sedução, e nas atitudes que necessitam de suas identificações, de sua construção como sujeito sexuado.

Como já afirmei, perguntam-nos se esta nova família não seria, segundo as normas atuais, pensada fora da sexualidade, tratar-se-ia de uma família não-sexual. Com a mobilização atual em torno da criança abusada, atualiza-se novamente uma idéia de castidade, e assim recusamos o processo ordenador do sexual no interior de toda família, ora heterossexual ora homossexual, ora "constituída" ora reconstituída.

Finalmente, permito-me sustentar que a família relacional e consensual, na qual reinariam liberdades e a igualdade entre os indivíduos (homens e mulheres primeiro, pais e crianças, em seguida) parece ser uma ficção necessária à nossa época. Ela supõe, na realidade, um rearranjo das modalidades do laço familiar e da configuração das relações entre os sexos e as gerações, onde ainda restaria bastante a ser inventado, construído: desde as liberdades respectivas, até as prescrições e os interditos relacionais e corporais ou, mais ainda, o próprio princípio da autoridade.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: laurence.gavarini@univ-paris8.fr

Recebido em outubro/2008
Aceito em novembro/2008

 

 

NOTAS

Tradução: Rinaldo Voltolini e Leandro de Lajonquière
1 No original, mal d'enfant (N.T)
2 No original, dolorisme, doutrina que valora moralmente a dor (N.T)
3 No original, démariage (N.T)
4 No original, clanisme (N.T)
5 No original, désaffiliation (N.T)
6 No original, parentage (N.T)

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